A ilha - versão final
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Pedro Pereira/ A Ilha
Pedro Pereira/ A Ilha
Ilustrações por
Zdzistaw Beksínski
Texto de Pedro Pereira
Revisão de Diogo Barreto
Formatação e Edição Catarina Araújo e Francisco Fidalgo
Pedro Pereira/ A Ilha
Durante as últimas noites tenho sonhado. O sonho é sempre
o mesmo. As imagens repetem-se sem qualquer mudança como uma
melodia aperfeiçoada, repetindo-se até ao primeiro raiar do
sol.
Nas últimas noites tenho sonhado com uma ilha.
Inicialmente vejo apenas a lamparina a óleo na proa da
barca de madeira negra, a luz pálida e doentia que se debate
contra o espesso nevoeiro, de tons febris cruzando o mar e
mantendo-me companhia contudo aos poucos toda a cena se vai
compondo. O céu vestido de cinza e laranja, de esbatido
escarlate e linhas de negro como se um fogo tivesse consumido
todos os cantos do paraíso, funde-se na linha do horizonte
escura com as águas fundas e baças impossíveis de ser
perscrutadas até pelos melhores olhos ou o coração mais
corajoso, pintando assim um quadro sombrio e tenebroso, a
falta de um qualquer som que não as ondas calmas apenas
ampliando a solidão.
Por fim surge a ilha. Primeiro um borrão negro na linha
do horizonte, depois os sinais de uma praia, de uma montanha,
as luzes de uma vila e as copas negras de uma floresta. O
nevoeiro levanta para permitir o olhar da imponente paisagem.
No meio peito sinto o instinto primordial de admiração e medo.
Vejo os contornos de um castelo de pedra negra esculpido e
rasgado das rochas que compõe o pico mais alto da ilha. Até
daquela distância, preso no meio de um mar falsamente calmo
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podia sentir a escuridão que emanava do interior dos salões
daquele castelo, os dedos gelados alcançando a pequena barcaça
e envolvendo todos os meus sentidos.
Quando me encontro diante da ilha, na sua plenitude não a
vejo como um local mas sim como uma criatura viva e milenar,
detentora de uma infinidade de segredos e de histórias,
portadora de almas, colosso e titã de lendas respirando
lentamente e pesadamente, a sua antiguidade e terror
contagiando o ar, infectando-o. Temo que a qualquer momento se
erga e me consuma, que o meu espírito mortal ceda perante o
seu espírito primordial, uma aura para além da descrição,
pertencente a uma idade mais antiga deste mundo, antes de
haver alguém que lhe pudesse dar um nome.
Da mais alta torre do castelo, até às suas praias, sinto
a sua ténue vida, abraçando-me com investidas suaves, não por
falta de fraqueza, mas por omnipresença, demasiado grande e
complexa para os meus sentimentos compreenderem, demasiado
antiga para a poder descrever, a sua essência muda o próprio
ar, as próprias regras, o mundo à sua volta, torce com
silêncios o manto do que é real e introduz-se na minha mente,
apoderando-se. Apenas me consigo aperceber do perigo por
instinto, um reflexo que sobrevive àquela descarga emocional,
vejo o perigo daquelas águas, daquelas encostas, do som do
vento nas florestas, da espuma branca na água, do fumo das
chaminés da vila. Pôr um pé naquela ilha, sob o céu de
labaredas e diante do mar de sombras seria um erro que poderia
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pagar demasiado caro.
A barcaça atravessa as ondas enquanto chuva fria começa a
cair das nuvens de cinza, frias e intermináveis. Caem como
navalhas na minha roupa, ensopando-a, apenas desejo chegar a
terra, por momentos, esquecendo-me da sua aura tenebrosa e
antiga, a tempestade que se levanta obriga-me a escolher o
menor de dois males e a encontrar refúgio.
Pedro Pereira/ A Ilha
Pedro Pereira/ A Ilha
Um barulho seco assinala o travar da barca contra um
banco de areia. Olho para o mar e continuo sem ver o seu
fundo, a água escura move-se como uma entidade viva,
arrastando-se, emulando ondas e correntes, procurando puxar o
mais incauto aventureiro para as suas profundeza.
Agarro na candeia e respiro fundo, olho para o horizonte
atrás de mim, contudo, o nevoeiro cobre tudo a uma distância
de cinco metros do meu nariz, o silêncio uma mentira que
esconde os terrores da noite que se começa a abater na ilha,
uma noite fria e negra desprovida de luar.
Salto para a água e sinto-me aliviado ao sentir os meus
pés baterem no chão, ajusto o meu corpo de forma a enfrentar a
corrente e avanço a passo firme tentando escapar da água
gelada.
Ao chegar à areia apercebo-me da severidade da minha
situação. Diante de mim a floresta não parece oferecer abrigo,
as suas árvores intransponíveis e os seus habitantes pouco
dotados na arte de anfitriões. Não precisava de pensar muito
para concluir que aquela não era a melhor escolha para
pernoitar.
Na distância vejo as luzes doentias das candeias do
vilarejo, também estas me parecem uma mentira, uma criatura
sob o disfarce de humanidade, pronta a adicionar-me ás trevas
da ilha, mais um detalhe, uma marca no corpo milenar daquele
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lugar. Porém face à escolha entre o mal desconhecido e o mal
humano, escolho o humano, pois esse raramente se esconde e é
ainda imaturo face aos seus companheiros ancestrais, mais vale
recear o conhecido do que irar o incompreensível e magnânimo
desconhecido.
A caminhada não demora mais do que alguns minutos. Após
abandonar o areal cinzento reparei num trilho de cabras que
serpenteava da praia em direcção à vila, olhando para trás já
nem o meu barco consigo ver pois tanto a noite como o nevoeiro
rapidamente se apressam a engolir a ilha e levá-la deste
mundo.
O ar parece-me pesado, a chuva cai sobre os meus ombros e
gela-me os ossos, deixando-me deprimido e drenando as minhas
forças. O ambiente à minha volta atacando sem nunca arredar,
uma contínua corrente de investidas a tentar fazer-me
desistir, a ser levado pela ilha, tentando adaptar-me a si,
limando as arestas do meu ser que contrastam com a sua ordem.
Chego por fim à vila, vendo diante de mim nada mais do
que um lugar esquecido e abandonado, deixado à mercê dos
deuses naquele lugar que provavelmente não constava em nenhum
mapa.
Pouco mais do que duas filas de casas ladeando uma
pequena praça central de cada lado formavam aquela área. A
maioria das casas não tinha aspecto de ter mais do que uma
sala e um quarto, todas em madeira, candeia à entrada para
iluminar os alpendres sujos, porém havia uma habitação maior
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como se várias daquelas casas se tivessem fundido numa só,
infectadas por aquele espírito doentio que dominava a vila,
tentando tirar a cor e vida de tudo e pintando o mundo de
cinzento, uniformizando todo aquele local.
Por mais que me quisesse afastar daquele lugar lúgubre,
bastava-me olhar de relance para as copas das árvores da
floresta que se agitavam furiosamente com o vento para ser
dissuadido de me afastar muito do único contacto que tinha com
a civilização.
Refugio-me debaixo de um dos alpendres de madeira, que
chiou em sofrimento com cada passada e procurei a luz da
candeia, uma pequena réstia de conforto num quadro cada vez
mais tenebroso.
Retirei a candeia do seu suporte de metal e caminhei de
porta em porta à procura de uma estalagem de alguma espécie. A
lama começava a abrandar os meus movimentos e a apegar-se às
minhas roupas ensopadas, a própria terra querendo afundar-me
naquele lugar triste, o mais importante era não ficar quieto,
tinha que permanecer em movimento.
Após alguma procura deparei-me com uma tabuleta onde um
brasão meio apagado parecia anunciar uma estalagem de alguma
espécie. O edifício que assinalava era ligeiramente maior que
os outros, e duas portadas rangiam assinalando que estavam
destrancadas. Aproximei-me cautelosamente, à procura de uma
voz humana que viesse do interior.
O som incessante da chuva fria e miúda aliava-se ao
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ranger das tábuas de madeira para tornar a minha tarefa o mais
difícil possível, porém pareceu-me ouvir um som. Perguntei-me
se estaria a imaginar o som de uma voz por desespero ou se
aquilo seria uma armadilha daquele lugar, a simples ideia de
que aquele lugar fosse apenas uma estalagem normal era o
pensamento menos credível que tinha.
Pousei a candeia num dos corrimões e aqueci o peito. Cada
minuto que passava na rua deixava-me mais inquieto. Aos
poucos, o som da chuva tornava-se ensurdecedor, estática que
encobria qualquer raciocínio que podia ter. O frio que me
enregelava as pontas dos dedos, do nariz e dos pés empurravam-
me para a segurança aparente da estalagem e o local desolado
inspirava em mim uma enorme vontade de fugir.
Respirei fundo e tomei a decisão de entrar na estalagem.
Se algo me fosse acontecer, que ao menos fosse dentro de
quatro paredes e não num lamaçal triste.
Olhei em redor, retirando o casaco ensopado e pendurando-
o num cabide que se encontrava na entrada, analisando todo o
interior daquele sítio.
Do pequeno vestíbulo via-se directamente à frente umas
escadas de madeira de degraus tortos que levavam a um andar de
cima de onde nenhuma luz vinha assinalando a falta de vivalma.
Do outro lado, uma pequena entrada levava para uma sala maior
onde se podiam ver algumas mesas, um balcão de madeira, e ao
fundo duas janelas abertas por onde a chuva continuava a
entrar deixando poças em partes do chão.
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Avancei para o interior da sala que era iluminada por
múltiplas velas em cima das mesas. O leve crepitar das chamas
quebrava o som contínuo da chuva, dando-me algum sentimento de
segurança, apaziguando algumas das minhas inseguranças.
Contudo algo naquela situação não batia certo. Tudo aparentava
uma banalidade forçada, como se o real se tivesse tornado na
ficção naquele lugar. Não era suposto haver algo familiar e
seguro, pois ia contra tudo o que havia levado àquele momento,
uma incongruência numa narrativa que tinha premido apenas pelo
perigo e o desconhecido. Um arrepio percorreu-me todo o corpo,
impedindo-me de relaxar. Os meus sentidos cada vez mais
alerta, esperando que algo acontecesse. Permaneci de pé no
meio da sala vazia por vários minutos, esperando uma
reviravolta qualquer que suportasse as minhas suspeitas,
esperava que a ilha fizesse a sua jogada e me tentasse
surpreender. Todo o meu corpo estava hirto, expectante e
preparando-se para alguma coisa.
Nada. Apenas o som da chuva e das ténues chamas. Mais
nada se ouvia.
Suspirei, baixando levemente a guarda. Haviam já passado
largos minutos, ou assim julgava, desde que atravessara as
portadas e me tinha refugiado dentro daquele lugar e, em todo
esse tempo, ninguém tinha aparecido.
Onde estava o dono daquele lugar, os clientes, alguém?
Podia ser que o vilarejo, e a estalagem por consequência
estivessem abandonados, porém isso deixava por explicar as
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velas acesas e as portadas abertas. O próprio lugar não tinha
qualquer sinal de estar abandonado: As mesas limpas, o chão
bem tratado, nenhum sinal de confusão ou de pestes que
normalmente teriam tomado conta de um local como aquele em
caso de abandono e todavia nada, nem uma única alma.
Dei alguns passos em direcção ao balcão onde uma
campainha de ferro se encontrava junto a uma das velas acesas.
Olhei por detrás do balcão e vi uma porta entreaberta.
Estiraçando-me sobre o balcão tento ver o que se encontra no
interior mas também este esforço torna-se infrutífero. Por
momentos considero passar por detrás do balcão e investigar,
mas o medo e a insegurança não permitem que o faça. Olho para
a campainha de metal. Ferrugenta e sem qualquer detalhe
especial, não devia ter qualquer motivo para me deixar nervoso
e no entanto algo nela criava em mim uma sensação de
premonição, como o abrir de uma porta para o desconhecido, o
alterar das circunstâncias e das regras daquele lugar, talvez
tocar naquele botão de metal poria fim ao descanso que havia
adquirido.
Que era aquele descanso senão um limbo? Mesmo que
estivesse seguro naquele momento, teria que sair dali
eventualmente e ficar exposto às sombras da ilha. Algo me
fazia pensar que não estava senão a evitar o inevitável. Não
podia ficar naquela situação para sempre, e sem dúvida que não
podia voltar atrás. Apenas me restava ir em frente.
Respirei fundo, ergui a mão. Expirei, baixei a mão.
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O som metálico, seco e agudo da campainha ressoaram pela
sala, sobrepondo-se à chuva, às chamas e à minha respiração.
Nenhuma resposta se fez ouvir. A minha mão pairava ainda
sobre a campainha esperando que algo acontecesse, que alguém
se revelasse, pelo menos uma causa e consequência que fizessem
sentido, todavia tudo permanecia da mesma maneira, como um
quadro, inalterável e permanente. A atmosfera sinistra
parecia-me menos imponente portanto tentei descontrair e
tentar decidir o que fazer a seguir visto que não poderia
ficar ali para sempre.
Servi-me de uma das várias bebidas por detrás do balcão.
Vinham em diversas formas e feitios, cores e brilhos. Percorri
com o dedo o vidro poeirento tentando decifrar alguns dos
rótulos mais antigos que na sua grande maioria estavam já
esbatidos ou apagados. Apenas em alguns casos se apercebia um
título ou um semblante de um brasão o que também não serviu de
ajuda porque não reconhecia nenhum daqueles licores.
Segui-me pelas diversas cores parando num com uma
coloração âmbar, pálido e turvo que me parecia, na minha
opinião pouco experiente, um licor de malte ou um whiskey,
duas coisas que naquele instante eram bastante apetecíveis.
Servi-me num copo que não tardei a encontrar - debaixo do
balcão - e fui-me sentar numa das mesas juntas às janelas de
onde a chuva continuava a entrar.
Olhei para a paisagem exterior: O vento agitava com raiva
as copas das árvores que se juntavam em coro num rufar
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omnisciente e premonitório, som capaz de gelar o coração, o
céu cinzento carregado não dava sinais de estar para terminar.
A natureza em toda a sua fúria mostrava-se hostil a mim, como
se de intruso me tratasse.
Dei um trago do líquido âmbar e senti um arrepio correr-
me toda a espinha. Era forte, mais do que estava habituado, o
ténue sabor era apagado por completo pelo trago de álcool
puro.
Lá fora algo me chamou a atenção. Longe, onde a montanha
se levantava, com o castelo esculpido na sua encosta, como se
um tumor negro que envenenava a montanha, conseguia avistar
uma luz brilhante no ponto mais alto desta, na sua parte
desnuda de árvores onde apenas a terra vermelha reluzia. Era
uma luz forte e constante, como aquela de uma estrela, que se
mantinha pousada no mais alto pico da ilha e a sua luz chamava
por mim. Não conseguia discernir se a natureza daquela luz era
benevolente ou assustadora, não conseguia de facto compreendê-
la, reflectir sobre toda a sua natureza, brilho ou o que
provocava em mim resultava num zumbido e névoa que me impediam
de juntar as peças mentais, de realizar qualquer raciocínio ou
ideia.
Tinha que ir lá. Pensei que fosse apenas um desejo criado
pela minha mente, um plano de acção que talvez me pudesse
levar a sair daquele lugar, contudo sabia no meu âmago que
estava compelido a lá ir, sem qualquer outra razão que não ter
sido atraído pela ilha.
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-Sai daqui! Sai daqui criatura que nos amaldiçoas a
todos! Sai! Sai!
Saltei da minha cadeira, caindo desamparado no chão.
Diante de mim um homem velho gritava incessantemente.
- Sai, sai! Sai! Sai desta ilha imediatamente!
Tentei raciocinar com a pessoa, mas esta mostrou-se
adamante na sua posição, empurrando-me e agarrando-me pelo
colarinho à medida que me arrastava.
- Pare, por favor, estou só a tentar...!
- Cala-te e sai! Sai!
Depois de me conseguir apoiar no chão com ambos os pés,
agarrei-me à armação da porta e deixei-me sair com empurrões,
voltando-me para trás para tentar conversar com o homem. Fui
recebido com o som e a imagem da porta de madeira a fechar-se,
deixando apenas uns segundos para vislumbrar o meu anfitrião.
A sua pele era pálida como a neve, os olhos de um azul
esbatido e frio, os cabelos grisalhos e molhados, bochechas
ossudas e pescoço rijo e delgado, demasiado até, pouca vida
mais do que um esqueleto ou um espectro.
Bati à porta uma e outra vez explicando a minha situação,
com cada pedido ia ficando mais enfurecido e batia com mais
força, frustrado com a falta de compreensão do homem. De nada
adiantou, pois a porta permaneceu imóvel e sem qualquer sinal
de se pretender mover. A estalagem voltara ao silêncio no qual
a encontrara.
Amaldiçoei o homem uma última vez em desespero, mas mais
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uma vez de nada adiantou. Olhei para a chuva que não parava de
cair e amaldiçoei aquele lugar. Aquele lugar nefasto não iria
tomar conta de mim, amaldiçoei a minha sorte e pus-me a
caminho do ponto mais alto da ilha, talvez aí pelo menos não
chovesse.
Agarrei noutra candeia que se encontrava à porta da
estalagem e pus-me no caminho de lama, passando a praça
principal e procurando o caminho para o castelo. Enquanto
percorria as fileiras de casas homogéneas conseguia ouvir um
pequeno burburinho. Por entre as frechas das portas e as
janelas que escondiam o interior das casas, via toda a gente
daquele vilarejo a olhar-me. Talvez pessoas não fosse a melhor
palavra para descrevê-las. Caras sulcadas, quase sem vida,
olhos encovados, reluzindo em caras ossudas e marcadas pela
escuridão das suas olheiras, todos fantasmas, como se nunca
tivessem visto a luz do sol.
Afastei-me daquele lugar o mais depressa possível, a
passada o mais larga quanto a chuva e a lama me permitiam,
debaixo do meu fôlego ia amaldiçoando aquele lugar, o meu
coração ainda palpitando do meu encontro com o que eu deduzi
ser o estalajadeiro.
Depois de longos minutos perdido no meio da lama,
encontrei um caminho que penetrava por parte da floresta e
subia o monte, o trilho era todo ele coberto por pedras lisas
o que me parecia convincente como um caminho para o castelo,
um ponto mais alto onde depois poderia descobrir como subir a
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montanha. Mesmo movido com a adrenalina do susto que havia
apanhado estava consciente dos olhos da ilha, da sua presença
antediluviana, a sua consciência antiga e milenar, para além
da minha compreensão e sobretudo da sua maldade. O caminho
diante de mim era só uma falsa segurança, dada como isco pela
ilha, apelando ao meu raciocínio humano que temia o
desconhecido das árvores de folhas negras que se moviam
incessantemente. Engoli em seco e pus-me a caminho, empunhando
a candeia alto para me revelar o caminho. Inicialmente dei
passos sem medo ou temor, decidido a chegar ao outro lado no
menor tempo possível. O chão pareceu ficar mais negro, a
floresta rodeando-me e abatendo-se sobre mim deixava-me
claustrofóbico, tento apertar toda a vida de mim, comecei a
encurtar os passos sentido objectos nas minhas pernas no qual
podia tropeçar e mesmo sabendo que não eram mais do que
truques da minha mente receava cair neles mesmo assim.
Por fim fiquei completamente quieto, a ouvir só o som do
meu coração, tambor incessante que fazia todo o meu corpo
vibrar. A escuridão à minha volta adensava-se. O barulho das
folhas nas árvores pareciam sussurros, pedindo-me que
relaxasse, que parasse.
Suores frios corriam-me pela testa. Baixei a candeia e
vi-me só na escuridão. Era de dia? De noite? Já não fazia
qualquer ideia, queria desistir. Talvez tudo parasse se
desistisse de vez. Debati-me vezes e vezes contra mim mesmo, o
desejo de pôr fim a tudo a morder-me a consciência enquanto a
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vontade de auto perseverança dizia-me para continuar, que
podia sair vivo daquela situação toda. A escuridão, contudo,
permanecia sem qualquer sinal de arredar pé. A decisão teria
que ser só minha e de mais ninguém. Se quereria sair dali, a
Ilha em nada me iria ajudar. Fechei os olhos, e pus a mão no
peito. Sussurrei suavemente para mim mesmo tentando acalmar-
me. Ia ficar tudo bem, ia chegar ao fim daquele lugar, não
podia deixar-me levar pela vontade daquele lugar fúnebre.
Voltei a caminhar. Inicialmente, um passo de cada vez,
cuidadosamente e com medo, depois vendo que nada acontecia fui
caminhando mais confiantemente. Os meus olhos habituaram-se à
escuridão. O meu corpo focado em seguir o caminho de pedras
negras iluminado pela fraca luz da candeia.
Não sei quanto tempo fiquei naquele limbo, a minha
consciência focada apenas em andar, os meus olhos presos na
luz da candeia e nas pedras. Eventualmente cheguei ao outro
lado, sentido um alívio e um peso sair-me das costas.
Pedro Pereira/ A Ilha
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Diante de mim estava o castelo. Lúgubre e negro, opulente
e distorcido, o vento passando as suas torres e frechas
provocavam um sibilar constante como se em agonia, uma quimera
em sofrimento por ser meio-montanha, meio castelo, meio-
humana, meio divina, parte da ilha.
Senti o meu sangue esfriar novamente e o meu coração a
enregelar com o pensamento que teria de atravessar aquele
lugar para chegar ao topo da montanha. Procurei, em vão, por
um caminho alternativo. Porém a montanha era demasiado íngreme
para subir, sem rochas ou sulcos por onde me agarrar, e do
outro lado havia apenas um desfiladeiro, onde debaixo de si as
árvores uivavam pedindo que regressasse.
Diante de mim apenas o portão em metal negro e retorcido,
enferrujado com a chuva contínua me esperava, um monstro que
se ria com dentes tortos e disformes. Tinha que passar por
aquele sítio? Quantos mais lugares envenenados e odiosos teria
que atravessar, onde acabava a sombra da ilha, estaria eu
condenado a ser corrompido da mesma forma? Estava entre a
espada e a parede. Voltar atrás significaria atravessar a
floresta mais uma vez, algo que eu temia não ser feito a ser
repetido, ir em frente seria prosseguir o jogo e lançar-me
ainda mais no desconhecido. Não havia forma de ganhar o jogo.
Olhei o céu negro e triste. A chuva começava a deixar-me
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louco. Odiava tudo nela. O som, a forma como caía, como me
desgastava e me cansava todos os músculos, como me atrasava.
Estava farto, farto daquilo. Só queria que se calasse. Pelo
menos no castelo não choveria. Parece ridículo tomar decisões
baseado em coisas tão pequenas porém, naquele momento,
qualquer razão ajudava a tomar uma decisão que pouco mais do
que uma ilusão era. Não tendo encontrado nenhuma porta de
criados ou uma fenda nas paredes resolvi entrar por entre as
grades.
Senti a brisa e o vento passarem dos corredores e contra
mim como uma rajada de vento. As grades pressionando contra o
meu corpo, cortando a circulação às minhas pernas e ao peito.
A chuva tornava qualquer movimento mais complicado não me
deixando agarrar em segurança às barras metálicas, fazendo-me
raspar a pele e cortar-me. Quando finalmente caí do outro lado
senti todo o meu corpo batendo no chão, deixando-me
entorpecido. Levantei-me sob a forte chuvada que ainda caía e
procurei de novo uma porta para o interior do castelo. Uma
porta solitária rangia para a frente e para trás, de resto não
havia outro sinal de vida. As muralhas interiores levantavam-
se alto porém sem quaisquer guardas, os estábulos vazios, os
celeiros trancados. Não me parecia que ninguém estivesse
estado naquele castelo há já algum tempo.
Sem qualquer outra alternativa decidi entrar pela porta.
Precisava de fugir da chuva antes que ela desse comigo em
louco.
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Tinha entrado na cozinha. Isso era claro. Por todo o lado
mesas largas, e utensílios de cozinha permaneciam abandonados,
juntamente com uma grande lareira de pedra onde uma velha
panela de cobre permanecia inutilizada. Ao fundo uma pequena
porta de madeira permanecia aberta levando ao coração do
castelo. Tal como a cozinha também este estava abandonado.
Salões de baile e jantar encontravam-se vazios fora um ou
outro candelabro, outras salas estavam cobertas por toalhas
brancas que tapavam todos e quaisquer móveis que houvesse.
Nenhuma luz lá restava, apenas uma escuridão permanente que me
acusava de intruso. Caminhei com cuidado, tendo apenas o som
dos meus passos a fazer-me companhia. O pior naquele castelo
não era o abandono ou a falta de vida, isso já eu tinha
pressentido na hora de chegar. O que realmente me assustava
era o frio desumano que parecia querer matar qualquer vida
naquele lugar. Como uma faca das sombras atravessava os
corredores e parecia focar-se em mim. Nunca sentira um frio
tão debilitante ou aterrador.
A candeia tremia nas minhas mãos, o metal queimava-me as
mãos do quão frio estava. Senti-me ficar mais pálido, à medida
que o corpo tremia, esvaindo-me de vida enquanto percorria
aqueles corredores gelados.
Abri uma grande porta. Não sei à quanto andava ou quanto
faltava ainda, mas naquele momento só tinha forças para
continuar a andar e abrir toda e qualquer porta. Dei por mim
num largo e alto corredor. Do lado direito, janelas altas,
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algumas abertas, outras partidas, mostravam o céu cinzento e a
chuva incessante, do outro lado quadros.
O meu coração parou mais uma vez.
Aqueles não eram quadros normais. Neles surgiam a figura
de pessoas em trajes nobres e reais, porém não tinham caras.
Não queria dizer que estas haviam desaparecido, cobertas,
rasgadas ou pintadas por cima, eram simplesmente dezenas e
dezenas de pessoas sem caras. Os pescoços e as poses eram
naturais, porém tudo o resto estava ausente deixando só um
vazio.
Todas pareciam olhar para mim, mesmo sem olhos, as suas
atenções viravam-se para mim. Arrepios atrás de arrepios
correram o meu corpo. Nada daquilo era natural, não eram
humanos. Como se algo tivesse tentando emular a humanidade da
pintura e falhado devido a fazer parte de outra realidade
retorcida, como se algo me tentasse convencer que estava em
território humano, apenas para me enganar. O meu coração
acelerou. Atrás de mim uma escuridão engolira o resto do
castelo. Havia somente o caminho diante de mim, debaixo do
olhar de todos os quadros. Os seus olhares fixos em mim
pareciam perscrutar-me, tentando falar comigo, as suas vozes
pareciam humanas, mas eram completamente desprovidas de
naturalidade ou humanidade, como ruídos. Aproximavam-se cada
vez mais, tomavam cada vez mais conta de mim. Respirei fundo e
corri. O pânico tomava conta de mim, a adrenalina controlava o
meu corpo, se parasse estava perdido. O vento silvou à medida
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que atravessava os corredores, o que me fez apressar ainda
mais o passo. As vozes continuavam, cada vez mais perto.
Fechei os olhos.
Continuei a correr.
As vozes aumentaram.
Fechei-os com mais força.
Corri o máximo que pude.
Um grito ressoou na minha cabeça em sofrimento. Centenas
de vozes em agonia num só instante. O susto abriu-me os olhos
e estava diante de uma outra porta. Pontapeei-a para sair. Uma
luz banhou-me assim que os meus pés sentiram a terra vermelha
debaixo delas.
Caí no chão exausto, a candeia batendo com força no chão.
Tinha conseguido fugir daquele lugar. Estava longe daquele
monstro.
Olhei para trás e vi as paredes do castelo. Pareciam
diminutas, como se a maldade as tivesse abandonado e agora
mirrassem sem uma vida para capturar. Senti um misto de
orgulho e sucesso enquanto lançava um olhar de vitória na sua
direcção. Percebi aí que a chuva tinha terminado. Estava livre
daquele lugar de vez. O silêncio nos meus ouvidos dava-me
conforto.
Levantei-me vitorioso. Pegando na candeia. A luz tinha-me
salvo, a luz protegera-me e dava-me refúgio da ilha, ali
naquele ponto, acima da chuva e do miasma do seu ar a Ilha
parecia não ter qualquer influência.
Pedro Pereira/ A Ilha
Caminhei com calma e sem medo. O pior já parecia ter
passado. A paisagem não tinha nada de relevante, apenas pedras
e terra vermelha ladeavam um caminho que serpenteava monte
acima. Comecei a questionar-me sobre onde estava, sobre aquele
lugar, e comecei a pensar como haveria de sair dali. Na
verdade como é que eu tinha chegado ali? Por que razão tinha
eu ido para o mar?
Porquê?
Na minha mente havia apenas uma escuridão permanente.
Como se não tivesse tido uma vida antes daquele barco, antes
do momento em que chegara à Ilha. Antes que me pudesse prender
por estes pensamentos deparei-me com uma visão tenebrosa.
Encontrava-me na base de um enorme desfiladeiro, as suas
paredes elevando-se cerca de vinte ou trinta metros acima de
mim. Um longo e aberto caminho continuava em frente contudo o
mais assustador eram as estátuas. Enormes estátuas corriam a
montanha. Estátuas de figuras esqueléticas olhavam na minha
direcção. De longos mantos vermelhos, as caveiras apontavam
todas na minha direcção. Foi aí que percebi de novo que o céu
funesto de vermelho e negro, cinza e fogo tinha voltado e
substituído a chuva e céu negro. Não havia vento, não havia o
som de pássaros ou o ruído de árvores. Apenas silêncio.
Caminhei vagarosamente enquanto as caras das estátuas me
olhavam. As covas dos olhos presas em cada passo meu. Levantei
a candeia para melhor as ver. Pareciam vivas, como se das
covas esculpidas dos seus olhos houvesse uma intenção em olhar
Pedro Pereira/ A Ilha
para mim. Sustive a respiração enquanto atravessei aquele
desfiladeiro. Sentia-me como se fosse parte de um ritual, como
se atravessasse uma corte real em direcção ao trono. Quando
cheguei ao fim do caminho deparei-me só com uma larga rocha
que se erguia como o pico mais alto da ilha, ao fundo dessa
rocha erguia-se a luz.
Deixei de conseguir pensar. O meu corpo sentia-se leve,
os pensamentos abandonavam-me e as memórias abandonavam o meu
corpo, só existia a luz.
Aos poucos parei de sentir frio, aos poucos deixei de
pensar, não me lembro de quando deixei cair a candeia, não sei
quando parei de ter medo ou preocupar-me, não sei quando
deixei de ser humano, de ser complexo.
Tentei agarrar a luz, os meus dedos aproximaram-se dela,
estava prestes a alcançá-la quando num ápice desapareceu.
Pisquei duas vezes os olhos para confirmar aquilo que tinha
visto. Ao abrir os olhos de novo percebi que havia apenas
escuridão. Abrir ou fechar os olhos era redundante. Apenas via
negro. Procurei a candeia, mas foi em vão. Mesmo que quisesse
voltar atrás, lembrei-me do quão estreita era a pedra onde
tinha caminhado para chegar à luz, um passo em falso e caía.
Senti-me nu e vulnerável. Os meus olhos permaneciam sem se
habituar. Aos poucos perdi noção das minhas extremidades, do
meu corpo. O silêncio puro destabilizava a minha audição,
senti que ia endoidecer com o somo do meu coração.
Comecei a ficar mais ofegante, cada vez mais em pânico.
Pedro Pereira/ A Ilha
O meu coração batia com força.
O meu coração batia diante de mim.
O meu coração tinha saído do meu corpo.
Não sei como é que isto pode ser possível, mas sinto-o
diante de mim a bater, fora do meu peito, sinto os seus
contornos na escuridão e o seu bater. Tenho medo.
Quero alcançar o meu coração.
Quero agarrá-lo.
Estico a mão na escuridão.
Ele bate cada vez mais.
O medo aumenta.
Estou quase a recuperá-lo.
A terra treme. Um rugido engole o mundo e sinto diante de
mim algo de enorme a contorcer-se nas trevas, magnânimo,
eterno, ancestral, algo para além da minha compreensão
levanta-se. Sinto-me uma formiga diante de si. Tento alcançar
o meu coração antes que aquilo perceba que eu ali estou.
Aquilo contudo sabe muito bem que estou ali.
Deus velho, monstro, ilha, universo.
Sinto o meu coração cada vez mais longe. Ele rosna e ruge
fazendo-me estremecer, todo o meu ser fica à beira da
destruição pela simples pressão da sua presença. Imagino duas
mandíbulas enormes abrirem-se. E num só movimento engolem o
meu coração. Deixo de o sentir bater. O terror corre-me o
corpo, sinto-me indefeso, aterrorizado. Apenas resta o
desespero. E até isso deixo de compreender.
Pedro Pereira/ A Ilha
Deixo de ser.
É este o sonho que tenho todos os dias. Poucas vezes
muda, apenas fica mais nítido, a ilha, o terror, o medo. E
cada dia, depois de ter acordado numa cama banhada em suor, e
onde antes de acordar me fazia sentir seguro e de volta ao
mundo, agora a diferença começa a ser pouca. O terror começa a
passar para o mundo real. Cada vez que fico sem coração, a
Ilha torna-se cada vez mais o meu mundo.
Um dia não vou poder sair da Ilha.
Um dia Ele acordará.
Pedro Pereira/ A Ilha