A Ideologia Do Direito e o Direito Da Ideologia - TCC - Int.
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS
RENE JOSÉ KELLER
A IDEOLOGIA DO DIREITO E O DIREITO DA IDEOLOGIA
PORTO ALEGRE
2010
RENE JOSÉ KELLER
A IDEOLOGIA DO DIREITO E O DIREITO DA IDEOLOGIA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como requisito para a obtenção do grau de
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Orientador: Dr. Marcus Vinicius Martins Antunes
Porto Alegre
2010
RENE JOSÉ KELLER
A IDEOLOGIA DO DIREITO E O DIREITO DA IDEOLOGIA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como requisito para a obtenção do grau de
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Aprovado em ___ de ______________ de 2010.
Prof. Dr. Marcus Vinicius Martins Antunes - PUCRS
____________________________
Prof. Dr. Elias Grossman
____________________________
Prof. Dr. Thadeu Weber
____________________________
Aos que, incansavelmente, fazem do Direito um instrumento de
luta e de libertação social; e que, acima de tudo, não aceitam
com naturalidade esta lógica que subjuga a coletividade a viver
em condições desiguais.
Isto é Utópico? Um mapa-múndi que não inclua a Utopia não é
digno de consulta, pois deixa de fora as terras à que a
Humanidade está sempre aportando. E nelas aportando, sobe à
gávea e, se divisa terras melhores, torna a içar velas.
O progresso é a concretização de Utopias.
Oscar Wilde
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 7
2 A ORIGEM E A PRECISÃO DO PENSAMENTO IDEOLÓGICO E A
IDEOLOGIA E O DIREITO NO UNIVERSO SOCIAL ......................................... 17
2.1 A PSEUDOCONCRETICIDADE: A GÊNESE DA IDEOLOGIA............... 17
2.2 A IDEOLOGIA O E O DIREITO NO UNIVERSO SOCIAL ....................... 24
2.3 A IDEOLOGIA .............................................................................................. 32
3 O DIREITO COMO APARELHO IDEOLÓGICO ESTATAL E A
IDEOLOGIA JURÍDICA ............................................................................................ 43
3.1 O APARELHO IDEOLÓGICO JURÍDICO E O ESTADO .......................... 43
3.2 A IDEOLOGIA JURÍDICA ........................................................................... 51
4 A FUNÇÃO HARMONIZADORA DA IDEOLOGIA E A TOTALIDADE
CONCRETA NO DIREITO ........................................................................................ 58
4.1 A FUNÇÃO HARMONIZADORA ............................................................... 58
4.2 A FUNÇÃO HARMONIZADORA NO DIREITO PÚBLICO E NO
DIREITO PRIVADO ................................................................................................. 64
4.3 O DIREITO CONCRETO .............................................................................. 75
5 CONCLUSÃO ....................................................................................................... 87
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 90
7
1 INTRODUÇÃO
Os problemas que, aqui, serão apresentados trouxeram enorme inquietude durante
praticamente toda a graduação. Assim, o trabalho que se oferece não é o resultado de
uma investigação que durou apenas o tempo formal das duas cadeiras de Trabalho de
Conclusão de Curso, mas sim o produto de leituras e experiências acadêmicas desses
cinco anos.
O tema eleito, em verdade, é um aceite, mesmo que tácito, à provocação que o
professor Dr. Marcus Vinicius Martins Antunes, ora orientador, efetuou em artigo
publicado na Revista da Ajuris. No estudo, intitulado “Engels e o Direito: Parâmetros e
Apontamentos Para Uma Reflexão Sobre a Ideologia Jurídica No Brasil”, o autor assim
conclamou:
A pesquisa é feita com o intuito de reacender algumas questões, como a
relação entre o Direito e a Sociedade, Direito e Economia, Superestrutura e
Direito, Direito e Ideologia. Qual o grau de autonomia do Direito? Podem
coexistir, no Direito, Ciência e Ideologia? Quais as relações possíveis entre
forma, conteúdo e essência, no campo do sistema jurídico? Mais do que dar
respostas cabais, o propósito é contribuir para a crítica, apontar algumas
linhas de análise e estimular novos estudos e investigações sobre o sistema
jurídico brasileiro, particularmente a ideologia jurídica. (ANTUNES, 1997, p.
410).
O mote de estudo é dotado de alta complexidade, como advertiu,
insistentemente, o orientador. Examinar a relação entre o Direito, que constitui um
mundo à parte, e a ideologia, conceito exógeno à ciência jurídica, é uma atividade árdua
em demasia para um estudante de graduação, que não possui experiência e
conhecimento suficiente para tanto. Porém, assumiu-se o risco da empreitada, sempre
recordando dos dizeres de Marx (MARX apud HARNECKER p. 21), em carta a
Lachâtre, ao atentar à dificuldade de compreensão dos capítulos iniciais de “O Capital”:
Esta é uma desvantagem contra a qual nada posso fazer senão advertir e
precaver aos leitores preocupados com a verdade. Não há caminho régio para
a ciência e só podem chegar aos seus cumes luminosos os que não temem
fatigar-se escalando suas vias escarpadas.
Foi preciso, para cumprir o objeto em exame, socorrer-se de literaturas que
fugiam por completo da ciência jurídica, que, no entanto, concediam arrimo teórico às
8
proposições levantadas. Obras de filosofia, sociologia, economia política etc., são
citadas de maneira quase indiscriminada, fazendo parecer que o trabalho escapa do
âmbito jurídico por diversas passagens. Entende-se, todavia, que o desvio foi
necessário, não só para aumentar o grau de completude do trabalho, mas também como
forma de não perder o percurso e de atingir o alvo pretendido.
Perpassando as justificações pessoais, que poderiam, certamente, compor uma
apresentação, adentra-se na estrutura e conteúdo em pormenor. O trabalho apesar de
portar divisões por capítulos, estas não poderiam ser estritamente efetuadas senão pelo
prisma organizacional. Existe, imagina-se, uma linha de continuidade, que costura o
trabalho do início ao fim, fazendo dele um todo orgânico, que deve ser lido na
sequência apresentada.
Na parte inicial do primeiro capítulo foi examinado o que se pode enquadrar
como gênero da ideologia: a pseudoconcreticidade. A maior parte dos argumentos
despendidos teve como esteio a obra “Dialética do Concreto”, de Karel Kosik1. O
estudo consistiu, basicamente, em responder a seguinte pergunta: como surge o
pensamento ideológico? A necessidade da análise se deu em razão da percepção da
existência de um mundo não concreto (também no Direito), repleto de representações de
toda a ordem, que permeiam as mentes humanas de modo a falsear o real.
No ponto seguinte, embora o tópico constitua campo fértil de debate, resumiu-se
o estudo a alocação do Direito e da ideologia no universo social. Lá, não se pretendeu
apresentar nenhuma visão inovadora, repisando-se tão somente as noções gerais acerca
da capacidade de influência recíproca entre as esferas sociais, bem como a potência de
uma influir sobre a outra em maior grau.
No terceiro tópico, pôs-se relevo à ideologia sob o viés do materialismo
histórico. Com isso, encerrou-se o primeiro capítulo, que perpassou pelas fases que se
julgou elementares da ideologia: a) o seu surgimento; b) a sua alocação na totalidade
das relações sociais; c) a sua definição mais precisa.
No capítulo central, de transição, o conteúdo jurídico passou a tomar cor mais
acentuada. Na oportunidade, analisou-se o Direito como aparelho ideológico do Estado,
havendo um pequeno detalhamento acerca da figura estatal – a partir do surgimento do
1 Karel Kosik nasceu na Tchecoslováquia, em Praga, no ano de 1926. Foi um filósofo marxista que se
notabilizou pela obra “Dialética do Concreto”, bem como pela posição assumida durante a Primavera de
Praga, que contrariou os interesses da URSS, custando-lhe o afastamento das suas atividades acadêmicas
até o fim do bloco soviético. Morreu em 2003, também em Praga, sendo um árduo crítico do
neoliberalismo.
9
Estado liberal –, bem como um exame do Direito propriamente. Além disso, no tópico
seguinte, o questionamento girou em torno da possibilidade de redução do Direito à
ideologia.
Não obstante tais análises, não foi, ainda, o momento em que houve a
particularização da ideologia no Direito, que ficou resguardada para o capítulo final,
iniciado tratando da harmonização do Direito. Em outros termos, o ponto visa apreender
um dos modos de particularização da ideologia no Direito, isto é, a função de
harmonizar a contradição inerente à ordem social no ordenamento jurídico.
Após, o fenômeno da harmonização foi aplicado às esferas jurídicas que,
praticamente, dividem o Direito em dois grandes grupos, quais sejam, o do direito
público e o do direito privado. Foi o viés mais prático do trabalho, em que se trouxe
exemplos na legislação vernácula como forma de conceder escora à teoria.
Por fim, concluindo o caminho que partiu do pseudoconcreto, o último subtópico
abrange a noção do Direito concreto. Na ocasião, o que se intenta é especular acerca de
um possível Direito em que o conteúdo ideológico seja mitigado ou até mesmo
eliminado; ou, caso não seja, que se reconheça o potencial de transformação da
realidade que porta o Direito.
O método eleito como guiador do trabalho – o dialético materialista – gerou
certa perplexidade. Foi preciso ler obras específicas, sob pena de se incorrer em
incoerências e inconsistências lógico-argumentativas. Pela via inversa, ao menos em
certa medida, serviu como suporte à compreensão tanto da realidade como do meio
através do qual o conhecimento é produzido, pois consiste em mais do que um pensar
lógico (correto), um real instrumento que ad vervm dvcit.
Além disso, a dificuldade se apresentou quando da aplicação do método ao
Direito, uma vez que tal atividade intelectual não foi desenvolvida de maneira completa
por seus fundadores, que estavam preocupados com questões alheia ao Direito. Assim,
pode-se dizer que a presente introdução tem uma dupla finalidade (embora uma delas já
tenha sido cumprida): a) elencar os principais pontos que serão abordados; b)
apresentar, mesmo que minimamente, a problemática que envolve o objeto de estudo
em relação ao método escolhido.
Para atingir o último objetivo posto, busca-se obra clássica de Roberto Lyra
Filho, intitulada “Karl, Meu Amigo: Diálogo com Marx sobre o Direito”. O autor, de
maneira direta e com quase meio século de estudo da relação entre o Direito e o
10
marxismo, apontou problemas de ordem técnica àqueles que pretendem se aventurar
pelo exame do Direito por este prisma.
No primeiro deles, denominado “obstáculos filológicos” 2, o autor censura a
tentativa, procedida pelos marxistas, de sistematização da obra dos fundadores do
marxismo sob formato de uma teoria do Direito, uma vez que esta jamais existiu. Ao
máximo, pode-se aceitar a existência de
enunciados, ora cognitivos, ora preceptivos, concernentes ao Direito, mas não
existe meio de reduzi-los à unidade e muito menos de considerar a soma
deles uma doutrina constituída, dispensando integração e necessitando apenas
explicitações e repetição ortodoxa. (LYRA FILHO, 1983, p. 12).
Nesse sentido, Marta Harnecker (1973, p. 18) aponta: “o estado atual da teoria
do materialismo histórico é, portanto, mais ou menos o seguinte: [...] – ausência de uma
teoria científica da estrutura [...] jurídico-político do modo de produção capitalista”.
Marcus Vinicius Antunes (1997, p. 410) também assim se manifesta: “Nem Marx, nem
Engels desenvolveram uma teoria do Direito. Essa afirmação é corrente entre os juristas,
mesmo entre alguns que se reivindicam do marxismo”. José Arthur Giannoti (1980, p.
8) é categórico: “Cabe ter presente desde o início que não existe uma teoria do Direito
em Marx, nele podemos encontrar apenas alguns fragmentos [...]”. Por fim, Michel
Miaille (1984, p. 43): “Deve-se começar reafirmando que não temos, em Marx, uma
teoria acabada do Direito [...]”.
Por isso, Tarso Genro (2004, p. 46) sustenta: “[...] o marxismo, mesmo como
movimento filosófico amplo, tem uma „limitação genética‟ para compreender o Direito
apenas a partir de seus fundadores”. Como ressalva, Marcus Vinicius (1997, p. 411)
rebate: “Penso que a limitação existe. Não é genética, porém”. De fato, embora nem
Marx nem Engels tenham se debruçado sobre o Direito, ao menos a ponto de formular
uma teoria, as bases do materialismo, por eles edificadas, permite uma análise do
Direito a partir dos fundadores, sem que se afaste a limitação, que decerto não é de
cunho genético.
O segundo, chamado “obstáculos lógicos”, traduz-se na falta de uma construção
sistêmica da dialética materialista, que reflete no Direito, notadamente a partir das
2 Nas palavras do autor: “O primeiro tipo concerne aos obstáculos filológicos, no sentido em que a
palavra é empregada na metodologia da ciência histórica (16); isto é, o estabelecimento e ordenação de
fontes” (LYRA FILHO, 1983, p. 10).
11
repisadas noções de que este é apenas corpo integrante da superestrutura social, bem
como fruto da vontade das classes dominantes; posturas que seriam típicas das visões
mecanicistas e reducionistas, afastadas inclusive por Engels.
Não se pode negligenciar a lição de Lyra Filho (1983, p.13) sobre o ponto:
Não há espaço, aqui, para considerar in extenso a questão da dialética
marxiana – que já debati em dois longos escritos recentes (31).
Mas é preciso, ao menos, situar o problema, - pelas suas óbvias interferências
na focalização dialética, e, às vezes, subdialética, em Marx e, especialmente,
nos marxistas, dos fenômenos jurídicos e das “relações essenciais”, que neles
se ocultam (31 A).
De fato, no próprio O Capital, Marx distingue o fenômeno, em superfície, e
aquelas relações subjacentes e portadoras da significação profunda, que nos
permite vê-lo com exatidão. “Sabe-se”, diz ele, “que é preciso distinguir entre
a aparência das coisas, e sua realidade” (32) ou “essência” (32 A).
Como ficará constatado adiante, a questão foi enfrentada em tópico próprio e
considerada no decorrer do trabalho.
Ainda acentuando o segundo obstáculo, Roberto Lyra Filho (1983),
acertadamente, infere que se deve evitar a formulação de proposições como se
“revelações marxistas” fossem. O que o autor pretende afirmar é que, adicionando a
ideia de que não há uma teoria do Direito em Marx, não cabe aos marxistas oferecer
uma reconstrução da essência do Direito, supostamente retirada da obra de Marx, em
que as postulações e as citações do mestre fossem prova do acerto das teses.
Lyra Filho (1983, p. 20) é bastante crítico nesse aspecto, cabendo menção à
seguinte passagem:
É um método bastante utilizado pela maior parte dos marxistas, com
transposição da teológica “verdade revelada”, um bocado sacrilegamente, das
barbas brancas do Senhor, para os bigodes grisalhos do bom Karl, que, como
vimos, não se julgava um deus (70), nem sequer admitia a existência de
deuses3.
Michel Miaille (1994, p. 66) também se atentou ao problema:
3 O trocadilho é pertinente. Não seria bastante mencionar, a exemplo do procedido por Roberto Lyra
Filho, acerca da religiosidade que Marx portava até certa idade, talvez por influência de seu pai, judeu,
convertido ao luteranismo por questões de interesse pessoal e, principalmente, profissional. Marx,
adolescente teísta, jovem poeta, assim escreveu: “Contra ventos, ondas luto;/ Rezo a Deus, é meu
Senhor,/ Velas pandas,/ rumo fruto/ No astro firme, condutor.” (MARX apud LYRA FILHO, 1983, p.
20).
12
É freqüente, infelizmente, mesmo por parte daqueles que se reclamam de
Marx, considerar a obra deste pensador como uma espécie de revelação de
que bastasse recitar ou citar as passagens importantes para que se
extinguissem as dificuldades da investigação. Para cada problema, pareceria
que Marx nos deu a solução, à maneira como certas seitas protestantes
utilizam os textos bíblicos.
O terceiro problema é decorrente dos paralelismos. A questão pode ser resumida
na noção de que é impossível tentar formular qualquer teoria ou doutrina do Direito em
Marx, sem perpassar pelo problema lógico e ontognosiológico da dialética marxiana4.
Roberto Lyra Filho (1983) afirma que a dialética é ao mesmo tempo lógica
ontológica e ontognosiológica. Pois não se trata apenas de um estilo de pensamento
correto (lógica), de uma postura que interliga a natureza contraditória das coisas, em
totalidade e em movimento (ontológica), mas consiste também em um co-implicado
critério de coincidência do pensamento e do “ser” das coisas (gnosiológica).
Com base na referida diferenciação ontológica da dialética, assevera o autor que
o próprio Marx perpetrou paralelismo – raciocínio falso, não sofisma – ao abordar o
Direito. Em Marx, a análise do Direito foi procedida visando à resolução de problemas
não jurídicos, o que teria levado a um paralelismo textual, materializado através do
desconjuntamento do raciocínio.
Em outras palavras, o que o autor pretende afirmar é que em razão da
inexistência da formulação de uma teoria do Direito marxiana, quando se deu o exame
deste ramo do conhecimento, Marx estava resolvendo questões específicas, que levaram
a formulações pouco coesas acerca do Direito. É o caso da visão desenvolvida em
alguns escritos, em que o pensador sustenta que o Direito é um instrumento de
dominação de classe e, por outro lado, quando necessário, assemelhou o Direito a
instrumento de libertação, dependendo da obra analisada e do enfoque concedido.
O segundo paralelismo apontado por Lyra Filho (1983), dessa vez efetuado
pelos marxistas, é de ordem hermenêutica. Os sentidos criados da leitura da obra de
Marx, em especial das passagens referentes ao Direito, conduziram ao desenvolvimento
de concepções acerca do Direito que escapam do próprio método dialético5. Por isso a
4 Cabe destaque à advertência que faz Gastão de Sá Weyne (2006, p. 29): “[...] o termo „marxista‟ é
geralmente usado para caracterizar o corpo heterogêneo de pensamento desenvolvido pelos seguidores de
Marx e „marxiano‟ é a designação em relação às opiniões e idéias atribuídas ao próprio Marx”. 5 O exemplo claro do exposto é o surgimento de certo “positivismo marxista”, como apontou Tarso Genro
(1988, p. 15): “As relações do direito com o marxismo são, até agora, relações de crise permanente. [...]
De outra parte, porque [...] se formaram diversas correntes dogmáticas ou ecléticas que fizeram, não
13
necessidade de resolução da questão do método antes da análise do Direito
propriamente.
Com isso, de modo algum pretende o autor retirar a validade das proposições
tecidas por Marx acerca do Direito. Pelo contrário, como se verifica do seguinte
excerto: “É em Marx que a verdadeira e própria teoria dialética do Direito [...] começa a
emergir do diálogo com Hegel, para combater o lado vulnerável do sistema idealista,
que é a Filosofia Jurídica” (LYRA FILHO, 1983, p. 28-29).
O quarto obstáculo, o cronológico, refere-se ao problema denominado pelo autor
de “beatice marxista”. Lyra Filho (1983) censura à postura de alguns marxistas que
dividem a obra de Marx em períodos, com a finalidade de conferir validade eterna a
certos postulados, notadamente, aos escritos em momentos de maturidade intelectual.
Até certo ponto, existe a tendência de assim analisar a obra dos mais variados
pensadores. No Direito, é o caso de Carnelutti; na Filosofia, o mesmo ocorre com
Hegel6, tendo em vista que ambos sofreram análise cronológica. O argumento central
para afastar essa forma de periodizar o conjunto da obra de autores, em especial Marx,
reside no fato de que: “[...] Marx tanto pode estar certo e fecundo neste ou naquele
período, independentemente das datas „evolutivas‟, já que a validade ou invalidade das
teses não é questão de cronologia” (LYRA FILHO, 1983, p. 33).
Além disso, caso se queira traçar uma linha cronológica do pensamento
marxiano, não se pode julgar as fases sucessivas como excludentes e incompatíveis com
as anteriores. Assim pondera Lyra Filho (1983, p. 33):
É possível ler Marx de várias formas: todo o autor genial e criativo é
multifacetado e se presta a manobras que tomam isto e largam aquilo,
segundo suas preferências, predeterminações e preconceitos. Há, sempre, cá e
lá, uns textos ou frases isoladas, que arrimam esta ou aquela leitura. Mas o
que me interessa é outra coisa: é o sentido geral, é a curva marxiana. Toda
disposição em linha reta é tão mais arbitrária, quanto mais forceje para dar
“coerência” ao seu autor, expungindo contradições fecundantes e rompendo a
continuidade do itinerário.
O quinto problema, chamado de obstáculos psicológicos, concerne ao reto
enfoque que deve ser dado na relação entre Marx e o Direito. O argumento se baseia na
sínteses dialéticas superiores, que desembocaram ou num positivismo de esquerda, à André Demichel –
que chega a afirmar que os „marxistas são os únicos verdadeiros defensores da regra jurídica‟ [...]”. 6 Axel Honneth, professor da Escola Crítica de Frankfurt, chega a falar, por exemplo, na obra “Luta Por
Reconhecimento – A Gramática Moral dos Conflitos Sociais”, em “o primeiro Hegel”, quando se refere
aos tempos de Jena.
14
circunstância de que Marx, filho de advogado, iniciou seus estudos acadêmicos nos
bancos de Direito. Ocorre que o ambiente encontrando por ele foi o até hoje existente,
perfeitamente descrito por Lyra Filho (1983, p. 40):
Quando chegam aos bancos acadêmicos, o alvoroço de inquietações e ideais
apressados e não isentos de impaciência e sentimentalismo, defrontam-se
com patacoadas rotineiras, os catedr´áulicos subservientes, a dogmática
obtusa alienante, o estômago de avestruz dos positivistas engolindo qualquer
pacote das prepotências estatais, que o famoso “toque de midas” kelseniano
transforma em “neutros” produtos “jurídicos”.
Com essa rotineira vida acadêmica, os que possuem olhos progressistas logo
percebem que aquele universo não lhes pertence, e que toda a patotada jurídica não
corresponde à noção devida de justiça. Desde aqueles tempos a academia está
contaminada com a pobreza na reprodução espiritual e racional da realidade
(principalmente a jurídica); não conseguindo propiciar o ambiente adequado de reflexão
e de estudo sobre os diversos aspectos e institutos próprios do Direito, de modo a
escapar do óbvio ululante, do pensamento comum e das representações ideológicas.
Lyra Filho (1983) aponta que com Marx fato semelhante ocorreu, levando-o a
assumir posturas maniqueístas no trato com o Direito. O repúdio manifesta-se em suas
obras, embora não de maneira plena. Pois quando da necessidade de conceber as
reivindicações socialistas, são as palavras Direito e justiça que voltam à tona; e, ainda,
quando temia que estas expressões fossem confundidas com o Direito corrompido e a
justiça degenerada, apressava-se em efetuar a distinção.
Assim, o elemento psicológico se firmou na obra de Marx. Quem pretende lá
encontrar um fundamento materialista para o Direito, deve ler com cautela as menções e
passagens acerca do Direito, sabendo distinguir até aonde as ojerizas tecidas não são
apenas reflexo do contato inicial que teve com a ciência jurídica.
Já o sexto e último problema mencionado pelo autor, referente aos obstáculos
metodológicos, trata da atitude adequada do investigador perante a obra de Marx. Lyra
Filho (1983) acentua que dentre as diversas posturas possíveis de serem adotadas, estas
oscilam entre o que denomina “objetivismo ilusório” e “subjetivismo descarado”.
O primeiro tem como característica a ocultação do diálogo entre o leitor e o
texto, em que o elemento essencial é a passividade na absorção da obra. O segundo, por
sua vez, deforma o texto, utilizando método de mascaragem, através de operações de
15
exegese, como forma de direcionamento a bel prazer do conteúdo textual, adicionando-
se a isto uma dose de preconceito, claro.
O que prima Lyra Filho (1983) é pelo meio termo entre o objetivismo e o
subjetivismo, ou seja, a obra de pensamento não se situa apenas no texto apresentado,
mas na relação que pode ser estabelecida do interlocutor com o leitor, tendo a
capacidade de produzir campos de reflexão em comum. Pensar o Direito em Marx pode,
nessa lógica, significar pensar o Direito contra Marx também.
Se não bastassem os problemas de cunho técnico-teórico apresentados por
Roberto Lyra Filho, não se pode negligenciar o ostracismo a que foi relegado o
materialismo na ciência jurídica, como se não tivesse nenhuma contribuição a ofertar. O
isolamento, ao menos em partes, é devido à ideia, corrente, de que “Marx está
superado”, como ressaltou Florestan Fernandes (2009, p. 7-9):
Entre as discussões ideológicas da crise do marxismo, sobressai uma
tendência: a que se firma na ideia de que “Marx está superado”,
independentemente do valor intrínseco das suas ideias. Ele só poderia tomar
em conta as condições em que aparece e se desenvolve inicialmente o capital
industrial. Ora, posteriormente, o capitalismo sofreu sucessivas
transformações tecnológicas, organizatória e se internacionalizou,
acompanhando a evolução do mercado mundial. Em conseqüência, as ideias
de Marx valem tanto teórica quanto praticamente, para “capitalismo de sua
época”. Seria inútil pretender enfiar a realidade em fórmulas que não
possuem mais existência real. Para restabelecer a validade do marxismo, na
economia ou na prática política revolucionária, seria preciso construir uma
nova teoria e uma nova práxis, que mantivessem algumas premissas das
ideias originais de Marx, mas partissem da situação existente.
Poder-se-ia chamar tais revisionistas de “revisionistas orgânicos” [...]
Se se considera que Marx investigou não só o capitalismo de sua época, mas
as condições objetivas da produção e da reprodução da acumulação
capitalista acelerada, só seria possível negar as “suas ideias” se o capitalismo
se tivesse tornado o avesso de si próprio, ou seja, se a mais-valia relativa, a
manipulação econômica, social e política do exército industrial de reserva, a
concentração e a centralização do capital, as classes e as dominações de
classe etc., tivessem desaparecido. Ora, isso não ocorreu, as contradições do
capitalismo monopolista e do imperialismo, assumem dimensões aterradoras,
exatamente por isso.
Como bem frisa o autor, acredita-se que os fatores objetivos ainda estão postos,
na verdade, mais do que nunca. O que ocorreu foi apenas o desenvolvimento natural do
capitalismo, mas não ao ponto de invalidar as contribuições ofertadas por Marx, bem
como que o materialismo pode trazer para o Direito.
Por derradeiro, atenta-se para o fato de que a ciência dos obstáculos acima
ressaltados, de modo algum será um impeditivo para que neles se incorra. De toda sorte,
16
as lições colocadas servem como premissas para o início desse estudo, que pretende
aproximar o Direito do materialismo histórico e da ideologia, na conotação oferecida
por Karl Marx e Friedrich Engels. Como uma introdução não deve, ao menos se sente,
antecipar o mérito das discussões, o exposto é o que se resume, por ora, a dizer.
17
2 A ORIGEM E A PRECISÃO DO PENSAMENTO IDEOLÓGICO E A
IDEOLOGIA E O DIREITO NO UNIVERSO SOCIAL
2.1 A PSEUDOCONCRETICIDADE: A GÊNESE DA IDEOLOGIA
Analisar a pseudoconcreticidade, antes mesmo de afirmar o concreto, tem um
fundamento metodológico. A ideologia, na acepção marxiana do termo, é entendida
como a expressão de apenas parte do real; ou, ao menos assim se manifestam os seus
estudiosos. Fernando Henrique Cardoso (1995, p. 85), por exemplo, assim firmou: “A
ideologia (e é preciso repetir outra vez o óbvio) espelha, de forma inversa e às vezes
perversa, uma parte do real”.
Tal circunstância não ocorre em virtude da intencionalidade de o indivíduo
assim conceber as coisas, mas sim por decorrência da aceitação natural das suas formas
aparentes. A ideologia trata, por isso, da falsa imagem produzida pelo sujeito
cognoscente quando do processo de apreensão da realidade. Logo, o caminho para o
concreto só pode partir do visível e facilmente constatável, como são os fenômenos
criados (o pseudoconcreto), para somente após este percurso ser possível atingir a sua
lei e buscar o seu núcleo oculto para efetuar as múltiplas ligações necessárias (o
concreto).
O ponto norteador do capítulo é que o mundo tal qual aparece para o homem
nem sempre tem correspondência com a sua essência. Isto ocorre em virtude de o
indivíduo apenas compreender o fenômeno e lhe faltar à essência ou por ter o domínio
da essência e rejeitar o fenômeno. Nesse grau de relação entre o fenômeno e a essência,
a dialética, que trata da “coisa em si”, é o fio condutor à compreensão da totalidade,
ainda que sempre inacabada e em constante transformação.
Karel Kosik (1995), para chegar à formulação do que denomina de
pseudoconcreticidade, infere que a atitude do homem ao se deparar com uma realidade
posta não é a de um abstrato sujeito cognoscente, que reflete e especula detidamente
sobre os fatos objetivos que se defronta. Pois o sujeito histórico encontra na sua
atividade prático-sensível o meio para atingir – em sentido amplo – os mais variados
fins.
18
Nesse processo de apropriação da realidade, o homem, sem proceder a um
detóur, capta a realidade sem a capacidade de compreendê-la, criando representações
próprias às coisas, o que acaba por determinar o aspecto fenomênico da realidade.
Segundo Kosik (1995, p. 13-14):
Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o
aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender
teoricamente, cujo pólo oposto e complementar seja justamente o abstrato
sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo;
apresenta-se como o campo em que exercita a sua atividade prático-sensível,
sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. No
trato prático-utilitário com as coisas – em que a realidade se revela como
mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a
estas – o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas
e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto
fenomênico da realidade.
Com isso, o autor pretende demonstrar que o homem ao se defrontar com a
realidade objetiva não só faz parte dela, porém, com ela interage e desenvolve sentidos
intuitivos, tudo a partir da forma aparente. Ocorre que, a posição frente a esta realidade
não é a de um indivíduo que tem a introspecção e potência de refletir sobre ela de
maneira crítica e detida. Logo, tende a aceitá-la e absorvê-la da maneira como se
apresenta ou é transmitida, criando as representações, como apontado.
Pode, à primeira vista, não se compreender com exatidão o que se pretende
demonstrar. Para clarear, menciona-se o exemplo que traz Kosik (1995, p. 14), que é
simples e elucidativo:
Os homens usam dinheiro e com eles fazem as suas transações mais
complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é
dinheiro. Por isso, a praxis utilitária imediata e o senso comum a ela
correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de
familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a
compreensão das coisas e da realidade.
A atividade prática do indivíduo não lhe proporciona a compreensão do mundo
objetivo, firma-lhe apenas os sentidos primeiros, que são pseudoconcretos. Antes de
avançar no estudo, traz-se a definição de Karel Kosik (1995, p. 15) sobre o mundo da
pseudoconcreticidade:
O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera
comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e
19
evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um
aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade.
[...]
O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O
seu elemento próprio é o duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao
mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de
modo inadequado, parcial, ou apenas sob certo ângulos e aspectos. O
fenômeno indica algo que não é ele mesmo e vive apenas graça ao seu
contrário. A essência não se dá imediatamente; é mediata ao fenômeno e,
portanto, se manifesta em algo diferente daquilo que é. A essência se
manifesta no fenômeno. O fato de se manifestar no fenômeno revela seu
movimento e demonstra que a essência não é inerte nem passiva. Justamente
por isso o fenômeno revela a essência. A manifestação da essência é
precisamente a atividade do fenômeno.
A passagem é densa, todavia, riquíssima. Trata da relação do fenômeno com a
essência, ou seja, das formas produzidas idealmente, através da prática humana, e a
possibilidade de ver o seu núcleo oculto.
Dentre as situações elencadas por Kosik que pertencem à pseudoconcreticidade,
encontra-se: o mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à margem dos
processos essenciais; o mundo dos objetos fixados, que passam a impressão de serem
frutos de condições naturais, não sendo reconhecidos como produto da atividade social
dos homens. Além dessas, pertence também à pseudoconcreticidade: “O mundo das
representações comuns, que são projeções dos fenômenos externos na consciência dos
homens, produto da praxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento”.
(KOSIK, 1995, p. 15).
A ideologia, como típica consequência da pseudoconcreticidade, toma vida
própria a partir do aparente real. Por oportuno, traça-se, ainda que brevemente, um
paralelo entre a ideologia e a pseudoconcreticidade. Marta Harnecker (1973, p. 105),
socióloga chilena, infere: “A ideologia contêm elementos de conhecimento da realidade,
mas estes se encontram sempre integrados em um sistema global de representações que,
por princípio, é um sistema deformado e falseado da realidade”. A identidade e precisão
conceitual são flagrantes. Pois a ideologia, parte integrante do mundo pseudoconcreto,
surge da atividade prático-sensível, no campo em que é gerada a representação.
Até aqui se utilizou definições de suma importância sem a devida cautela de
apresentar os seus significados. É o caso do fenômeno e da essência, que, nesse estágio,
pode-se ofertar alguma explicação para conceder claridade solar ao ponto.
O fenômeno é o que se manifesta primeiro. A sua captação é imediata, ao passo
que é a maneira pela qual a totalidade e o singular se mostram. Cronologicamente – no
20
trato prático-utilitário –, antecede a essência, sempre, pois é a forma aparente, sendo
inclusive condição indispensável para atingi-la.
As projeções dos fenômenos, quando maximizadas, geram as representações
comuns, que são fenômenos externos na consciência humana. Os fenômenos são
captados em contato primeiro, sedimentados historicamente, fazendo com que o sujeito
crie e atribua sentidos pseudosconcretos aos objetos cotidianos.
Sintetizando, pode-se afirmar que são características do fenômeno: a) indicar a
essência, sem, contudo, demonstrá-la; b) manifestar a essência apenas sob certo modo,
de maneira parcial; c) revelar, em parte, a essência e escondê-la (esta é sua atividade
própria).
O fenômeno apresenta ainda a característica de se reproduzir de maneira
espontânea no pensamento comum como se a própria realidade fosse. Isto não se baseia
no fato de que o fenômeno esteja vinculado ao conhecimento sensorial ou mais
superficial, mas porque o aspecto fenomênico é produto direto da praxis humana social.
Esta praxis utilitária cotidiana, que forma o pensamento comum – ou “senso comum” –,
constitui “a forma ideológica do agir humano de todos os dias” (KOSIK, 1995, p. 19).
Todo o fenômeno possui uma lei, que é também o elo entre ele e a respectiva
essência. Embora Kosik não explique tal lei, esta deve ser entendida como a regra de
determinação da aparição, da forma, da duração e da transformação de um fenômeno
em outro. Neste último caso, embora mantenha a sua forma, o conteúdo é diverso.
Chegar à compreensão da lei do fenômeno é o que busca, por exemplo, o
método aplicado em “O Capital”, que Marx jamais expôs de maneira didática. Não
obstante inexista uma teoria marxiana do método dialético, de onde se poderia,
possivelmente, extrair o significado preciso da lei do fenômeno, no posfácio da segunda
edição da referida obra, Karl Marx (1983, v. I, p. 19) cita passagem do Correio Europeu,
de Petersburgo, que, em artigo redigido em 1872, analisou o método:
Para Marx, só importa uma coisa: descobrir a lei dos fenômenos de cuja
investigação ele se ocupa. E para ele é importante não só a lei que os rege, à
medida que eles têm forma definida e estão numa relação que pode ser
observada em determinado período de tempo. Para ele, o mais importante é a
lei de sua modificação, de seu desenvolvimento, isto é, a transição de uma
forma para outra, de uma ordem de relações para outra.
As leis dos fenômenos – e Marx tentava provar isso – são leis que independem
da vontade, consciência e intenção do homem. Pela lógica inversa, são leis que
21
determinam o agir, o pensar, manipulando a vontade, sem que se tenha o elemento
consciência como fundamental.
Na teoria marxiana, como o elemento consciência desempenha papel secundário,
o início da análise parte da aparência do fenômeno externo, para, posteriormente, chegar
à sua lei7. É o único caminho para o conceito, que é justamente o conhecimento da
estrutura da coisa. Por isso, reitera-se que, do ponto de vista lógico e metodológico, se
justifica analisar a pseudoconcreticidade antes mesmo de apontar o concreto.
A essência, por sua vez, é a meia parte da realidade. Constitui a “coisa em si” e
sua estrutura, não se manifestando imediatamente ao homem. É, portanto, um grau e
uma forma diferenciada de conhecimento. Em outras palavras, chegar até a essência é
enxergar a face oculta do fenômeno e entender por que ele assim aparece, embora a
manifestação da essência seja através do fenômeno, que é a sua forma aparente.
Atingir a essência significa também retirar a pretensa independência do
fenômeno. Uma vez captado o núcleo essencial oculto, resta possível a demonstração do
mediatismo do fenômeno, deixando às claras o seu caráter derivado no universo social.
A realidade, na lógica apresentada, constitui não apenas a compreensão da
essência, mas a unidade dela com o fenômeno. A essência entendida em isolado pode
ser tão irreal quanto o fenômeno o é ontologicamente. Até mesmo porque, como
mencionado, é íntima a vinculação do fenômeno com a essência; e, não obstante haja a
cisão, ambos são partes do todo. Terry Eagleton (1997, p. 84) acentua: “Se a realidade
capitalista abrange sua própria falsidade, então essa falsidade deve, de certa maneira, ser
real”.
Entendimento diverso foi apresentado por Antonio Gramsci (1978, p. 53),
quando assim assentou: “Na Sagrada Família, afirma-se que a realidade esgota-se
inteiramente nos fenômenos e que além dos fenômenos nada existe; e assim o é,
certamente”. Embora o autor italiano tenha, nesta passagem, negligenciado a existência
da essência, bem como que o método dialético busca justamente compreender a “coisa
em si”, a definição do que seja o fenômeno foi bem apresentada:
7 Karel Kosik (1995) aponta que em “O Capital”, Marx analisa a mercadoria primeiramente sob o seu
aspecto fenomênico, ou seja, como valor de troca, para somente depois examinar a sua essência: o valor.
Nessa lógica, observar o movimento real da mercadoria significa: “1) fixar as leis do seu movimento; 2)
analisar de per si as aparências ou formas (Gestallen )reais que o sujeito cria no curso ou no fim do seu
movimento; 3) oferecer um quadro do próprio movimento, no seu conjunto” (KOSIK, 1995, p. 182).
22
Que são os fenômenos? São algo objetivo, que existe em si e por si, ou são
qualidades que o homem distinguiu em conseqüência dos seus interêsses
científicos, isto é, da necessidade de encontrar uma ordem no mundo e de
descrever e classificar as coisas (necessidade que é, também ela, ligada a
interêsses práticos imediatos e futuros?) [...]. (GRAMSCI, 1978, p. 53-54).
Nesse momento, seria justo indagar: por que o fenômeno e a essência não
coincidem? Ou, por que “a coisa em si” não se manifesta de maneira imediata ao
homem? A resposta, para Kosik (1995, p. 17), é no sentido de que “Se a aparência
fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia
seriam inúteis”. Complementando, Roger Garaudy (1967, p. 127), pensador francês,
afirma: “Toda ciência tem por objeto passar do movimento simplesmente aparente dos
fenômenos ao movimento interno real”.
A presente imagem sintetiza o até então exposto:
Figura 1 – A composição da realidade
Fonte: O autor (2010).
Segundo Kosik (1995, p. 18), o processo do conhecimento se realiza com a
separação do fenômeno e da essência, ou seja, do que é secundário e do que é essencial.
Somente é possível demonstrar a coerência interna da coisa através deste ato de apartar,
em que o secundário não é considerado irreal (ou menos real), sendo evidenciado
apenas o seu caráter derivado e fenomênico.
Para proceder à decomposição do todo, existem certas distinções teóricas que
auxiliam na tarefa. É o caso da diferenciação entre representação e conceito, mundo da
23
aparência e mundo real, falsa consciência e consciência real etc. É a maneira pela qual o
pensamento capta a “coisa em si” e procede a “cisão do único” 8.
Assim, destruir a pseudoconcreticidade, que é tarefa do pensamento dialético,
não significa negar a existência ou objetividade do fenômeno, mas retirar a sua pretensa
independência, provando o seu caráter derivado. Kosik (1995, p. 21) refere ainda que
A dialética não considera os produtos fixados, as configurações e os objetos,
todo o conjunto do mundo material reificado, como algo originário e
independente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das
representações e do pensamento como, não os aceita sob o seu aspecto
imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo
objetivo e ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa
originalidade, para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos,
como sedimentos e produtos da praxis social da humanidade.
Além disso, a desconstrução da pseudoconcreticidade visa dissolver as criações
fetichizadas de um mundo idealmente desenvolvido. Constitui, nessa via, a atitude
humana crítica necessária à transformação da realidade ou de alguma das suas esferas
(como o Direito o é). Por isso, Kosik (1995, p. 22-23) afirma que:
a realidade pode ser mudada [...] só porque e só na medida em que nós
mesmos produzimos a realidade, e na medida em que saibamos que a
realidade é produzida por nós. A diferença entre a realidade natural e a
realidade humano-social está em que o homem pode mudar e transformar a
natureza; enquanto pode mudar de modo revolucionário a realidade humano-
social porque ele próprio é produtor desta última realidade.
Inclusive, o sustentado, como não poderia ser diferente, está em plena
consonância com as premissas da concepção materialista da história, elencadas por
Marx e Engels (1982, t.1, p. 8), em a “A Ideologia Alemã”: “Podemos distinguir os
homens dos animais pela consciência, pela religião, por tudo o que se quiser. Mas eles
começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de
vida [...]”. Essa capacidade de produzir e reproduzir as condições materiais, bem como
espirituais, é o fator que permite a transformação da realidade.
8 “O Capital, de Marx, é construído metodologicamente sobre a distinção entre a falsa consciência e
compreensão real das coisas, de modo que as categorias principais da compreensão conceitual da
realidade investigada se apresenta aos pares: fenômeno – essência; mundo da aparência – mundo real;
aparência externa dos fenômenos – lei dos fenômenos; existência positiva – núcleo interno, essencial,
oculto; movimento visível – movimento real interno; representação – conceito; falsa consciência –
consciência real; sistematização doutrinária das representações („ideologia‟ – teoria e ciência)” (KOSIK,
1995, p. 20).
24
De todo o exposto, verifica-se que a gênese da ideologia está centrada na ideia
de pseudoconcreticidade, que compreende o mundo das representações de todas as
ordens, desenvolvidas pelo ser humano na sua atividade prático-sensível. A função do
pensamento dialético é chegar à estrutura da coisa, desvendando a “coisa em si”.
Em boa hora, reitera-se que a dialética trata da “coisa em si”, que não se
manifesta de maneira imediata ao homem. A “coisa em si” não constitui uma coisa
qualquer, não sendo, em verdade, nem mesmo uma coisa, conforme leciona Kosik
(1995, p. 248): “a „coisa em si‟, de que trata a filosofia, é o homem e o seu lugar no
universo, ou (o que em outras palavras exprime a mesma coisa): a totalidade do mundo
revelada pelo homem na história e o homem que existe na totalidade do mundo”.
2.2 A IDEOLOGIA O E O DIREITO NO UNIVERSO SOCIAL
As lições postas no ponto pretérito serviram como auxílio à percepção mínima
de como surge o pensamento ideológico, mas não foi bastante para precisá-lo (que será
tarefa do próximo tópico) e para alocá-lo dentro do universo social. Portanto, antes de
traçar um paralelo entre a ideologia e o Direito, bem como analisar uma possível
ideologia jurídica, cabe situar ambos na totalidade das relações sociais.
De modo prosaico, pode-se afirmar que é corrente a assertiva de que o Direito é
um produto da sociedade. Os manuais de Direito, principalmente os de introdução,
enunciam a máxima Ubi societas, ibi ius (“onde há sociedade também há Direito”), que
não raro é apresentada na formulação latina como forma de conceder maior autoridade à
proposição, conforme aponta Miaille (1994). Esta ideia, portanto, não é exclusiva de
quem se filia ao materialismo histórico.
A ideologia, igualmente, é um produto social à medida que se desenvolve no
cérebro dos integrantes em cada sociedade (embora seja possível universalizá-la). Além
disso, toda a ideologia é criada a partir da atividade prático-utilitária dos indivíduos, no
processo de apreensão do mundo objetivo, como restou demonstrado no ponto passado.
A simples noção de que tanto o Direito como a ideologia integram o universo
social não é suficiente, todavia, para que se identifique o locus preciso de ambos dentro
da totalidade. Afora isso, em um primeiro momento, não é possível aferir a possível
existência de qualquer relação de determinação entre as esferas sociais.
25
A totalidade da ordem social, dentro da qual pertencem o Direito e a ideologia, é
um todo indivisível. A possibilidade de conhecimento das partes componentes desse
universo somente se torna viável a partir da intencionalidade de o sujeito isolar
determinadas facetas. Este ato de apartar o todo é levado a efeito com a tematização,
precedida pela atividade de abstração9. Após, efetua-se o caminho inverso, buscando o
concreto, com a projeção. É o que se chama, em linhas gerais, de detóur. Karel Kosik
(1995, p. 30), nas suas sempre completas palavras, expôs:
Na apropriação prático-espiritual do mundo, da qual e sobre o fundamento da
qual derivam originariamente todos os outros modos de apropriação –
teórica, artística etc. – a realidade é, portanto, concebida como um todo
indivisível de entidades e significados, e é implicitamente compreendida em
unidade de juízo de constatação e de valor. Só mediante a abstração, a
tematização e a projeção, tomando-se como ponto de partida este mundo da
realidade pleno e inexaurível, se isolam determinadas zonas, facetas e esferas
[...].
Logo, o ato pensante de conhecer a realidade tem a capacidade de isolar
determinadas partes que compõe o todo social. Esta atividade intelectual é
imprescindível à alocação do Direito e da ideologia nesse universo, auxiliando, de outro
vértice, no estabelecimento do grau de influência entre as esferas componentes da
ordem social.
Para a concepção materialista, esse universo de relações não é o produto de
criação metafísica – ou de qualquer espécie de dádiva sobrenatural –, é o resultado puro
e simples da atividade (práxis) humana na terra. O homem, dotado da capacidade de
transformar e criar o seu ambiente material, produz, na mesma linha, as ideias, as
teorias, as visões de mundo etc., que integram o complexo das relações.
Para a exata compreensão da maneira pela qual os homens produzem as
condições materiais e espirituais, é necessário deter, previamente, o conceito de modo
de produção. O conceito, diga-se de passagem, é igualmente útil à localização do
Direito e da ideologia no universo social.
Ao contrário do que se presume imaginado, quando se fala em modo de
produção não se está referindo apenas às relações econômicas; ou às que neste âmbito
9 Plekhanov (2006, p. 59) afirma: “Graças ao processo de abstração, os diferentes aspectos do complexo
social tomam a forma de categorias isoladas, e as diferentes manifestações e expressões da atividade do
ser social – a moral, o direito, as formas econômicas etc. – convertem-se, em nossa mente, em forças
particulares [...]”.
26
são travadas. O conceito é muito mais amplo. Marta Harnecker (1973, p. 134) e Michel
Miaille (1994, p. 68), respectivamente, fazem a distinção:
Pois bem, não se deve confundir a expressão “modo de produção de bens
materiais” com o conceito de MODO DE PRODUÇÃO. A primeira é uma
noção descritiva e se refere apenas à estrutura econômica da sociedade; o
segundo, pelo contrário, é um conceito teórico e se refere à totalidade social
global, isto é, tanto à estrutura econômica como aos demais níveis da
totalidade social: jurídico-político e ideológico.
É justamente o que Marx propõe sobre de uma maneira global sob a
expressão, que ele cria, de <<modo de produção>>. É necessário, sobre isto,
evitar desde já um erro, tanto mais partilhado quanto mais é mantido. O
modo de produção não tem de maneira nenhuma o significado unilateral
económico que se lhe costuma dar: é o conceito que designa a maneira como
uma sociedade se organiza para produzir a vida social.
Portanto, compreender o modo de produção do universo social significa assimilar a
maneira através da qual sociedade se concatena e cria as suas condições materiais e
espirituais de determinada época.
O ponto de partida, para o entendimento da proposição levantada, deve ser dado
com as palavras de Marx (1982, t. 1, p. 530-531), que, na sua formulação mais didática,
embora complexa, assim colocou a questão:
O resultado geral que se me ofereceu e, uma vez ganho, serviu de fio
condutor aos meus estudos, pode ser formulado assim sucintamente: na
produção social da sua vida os homens entram em determinadas relações,
necessárias, independente da sua vontade, relações de produção que
correspondem a uma determinada etapa de desenvolvimento das suas forças
produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a
estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma
superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem determinadas formas
de consciência social. O modo de produção da vida material é que condiciona
o processo da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos
homens que determina o seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que
determina a sua consciência. Numa certa etapa do desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de
produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as
relações de propriedade no seio das quais se tinham até ai movido. De formas
de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em
grilhões das mesmas. Ocorre então uma época de revolução social. Com a
transformação do fundamento económico revoluciona-se, mais devagar ou
mais depressa, toda a imensa superestrutura.
Esta mesma ideia já havia sido apresentada por Marx e Engels em estudo
anterior, denominado “A Ideologia Alemã”, que teve publicação póstuma, apenas. Não
obstante consistisse o desenvolvimento rudimentar do materialismo, em que os
27
fundadores desta ciência ainda não tinham clareza bastante sobre ele, a passagem serve
como forma de aclarar a citação acima posta:
O facto é, portanto, este: o de determinados indivíduos, que trabalham
produtivamente de determinado modo, entrarem em determinadas relações
sociais e políticas. A observação empírica tem de mostrar, em cada um dos
casos, empiricamente e sem qualquer mistificação ou especulação, a conexão
da estrutura social e política com a produção. A estrutura social e o Estado
decorrem constantemente do processo de vida de determinados indivíduos;
mas destes indivíduos não como eles poderão aparecer na sua própria
representação ou na de outros, mas como eles são realmente, ou seja, como
agem, como produzem materialmente, como trabalham, portanto, em
determinados limites, premissas e condições materiais que não dependem da
sua vontade.
A produção das ideias, representações, da consciência está a princípio
directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio material
dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio
espiritual dos homens aparecem aqui ainda como efluxo directo do seu
comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela
se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da
metafísica, etc., de um povo.
Os homens são produtores das representações, ideias, etc., mas os homens
reais, os homens que realizam (die wirklichen, wirkenden Menschen], tal
como se encontram condicionados por um determinado desenvolvimento das
suas forças produtivas e do intercâmbio a que estas corresponde até às suas
mais formações mais avançadas. (ENGELS; MARX, 1982, t. 1, p. 13-14).
Para Marx e Engels, o universo social é composto de duas partes: a
infraestrutura e a superestrutura. A infraestrutura da sociedade é a esfera social em que
os homens atuam sob a forma de uma ação instrumental. Ou seja, é a instância em que
são contraídas relações que, por vezes, independem da vontade dos agentes envolvidos,
com a finalidade de produzir os bens materiais. A base corresponde, portanto, à
totalidade das relações de produção econômica.
É também na infraestrutura social que os homens exercem a sua atividade
prático-utilitária e tomam ciência dos fatores objetivos e históricos. Isto ocorre em um
processo de apreensão da realidade, que tem por consequência a criação dos fenômenos.
A estrutura social ao produzir as condições materiais de existência dos homens ergue
sobre ela uma superestrutura, que a justifica e que corresponde a certo grau de
desenvolvimento das forças produtivas.
A superestrutura é, nessa ordem, o reflexo da totalidade das relações sociais de
produção. Nela, estão abarcadas as ciências, as teorias, as formas jurídicas, as
concepções filosóficas, a religião, a arte etc. Por isso, os vínculos estabelecidos na
infraestrutura da sociedade, na concepção dialética da história, determinam, em última
28
análise, a consciência social e a forma pela qual os indivíduos tomam conta de
apreender os fatos cotidianos.
Entre a base e a superestrutura existe uma relação de determinação, uma vez que
os laços desenvolvidos na infraestrutura têm a capacidade de influenciar em maior grau
o universo social e, consequentemente, a superestrutura. Pondera Marcus Vinicius
Antunes (1997, p. 411) que: “A relação, porém, não é de causa/efeito, mas de ação e
reação”. O vinculo não é causal em virtude de que as sínteses não são jamais
predeterminadas, constituindo sempre um produto incerto de acordo com a ação.
Deve-se apontar que, não raro, há deturpações e exageros quanto à relação
determinação que existe entre base econômica e a superestrutura. São várias as
interpretações, dentro e fora dos círculos marxistas, no sentido de que toda a
superestrutura deriva – como mero reflexo – da base. É o que se chama, vulgarmente, de
“determinismo mecanicista”.
A redução mecânica da superestrutura à base escapa do próprio método
dialético, que não é ontologicamente reducionista10
, e tenta o impossível, que é reduzir
toda a carga superestrutural do bloco histórico às relações econômicas pura e
simplesmente. Tal visão é o caso típico dos obstáculos lógico e metodológico,
elencados na introdução desse estudo.
A questão já havia suscitado enorme divergência antes mesmo do falecimento
de Marx. No entanto, foi Engels (1985, t. 3, p. 547), em uma carta a Joseph Bloch, em
1890, que afastou explicitamente tal visão:
...Segundo a concepção materialista da história, o momento em última
instância determinante, na história, é a produção e reprodução da vida real.
Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso
(afirmando) que o momento econômico é o único determinante, transforma
aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação
econômica é a base, mas os diversos momentos da superestrutura – formas
políticas das lutas de classe e seus resultados: constituições estabelecidas pela
classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc. e mesmo os reflexos de todas
estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas,
filosóficas, visões religiosas e seu ulterior desenvolvimento em sistemas de
dogmas – exercem também a sua influência sobre o curso das lutas históricas
e determinam em muitos casos preponderantemente a forma delas.
10
Karel Kosik (1995, p. 39) aponta: “A dialética não é o método da redução: é o método da reprodução
espiritual e racional da realidade é o método do desenvolvimento e da explicitação dos fenômenos
culturais partindo da atividade prática objetiva do homem histórico”.
29
Não foi a única oportunidade em que o fundador da filosofia da práxis pôs de
lado o modo mecânico de enxergar e deturpar o materialismo histórico. Em carta a W.
Borgius, em 1894, Engels (1985, t. 3, p. 565-566) expôs:
Nós encaramos as condições econômicas [ökonomische Bedingungen] como
o em última instância condicionante [Bedingende] do desenvolvimento
histórico. [...] O desenvolvimento político, jurídico, filosófico, religioso,
literário, artístico, etc., repousa sobre o [desenvolvimento] económico. Mas,
todos eles reagem também uns sobre os outros e sobre a base económica. Não
é que a situação económica seja causa, unicamente activa, e tudo o mais
apenas efeito passivo. [...] Não há, portanto, como aqui e além por
comodidade se quer imaginar, um efeito [wirkung] automático da situação
econômica, mas os homens fazem eles próprios a sua história, mas num dado
meio que a condiciona, sobre a base de condições efectivas que encontram
[já], entre as quais, as económicas – por mais influenciadas que possam ser
pelas [condições] políticas e ideológicas – são, contudo, em última instância,
as decisivas e constituem o fio condutor que as percorre e que, só ele, leva ao
entendimento.
Karel Kosik (1995, p. 124), no mesmo sentido, alude:
O marxismo não é um materialismo mecânico que pretenda reduzir a
consciência social, a filosofia e a arte a “condições econômicas” e cuja
atividade analítica se fundamente, por isso, no desmascaramento do núcleo
terreno das formas espirituais. Ao contrário, a dialética materialista
demonstra como sujeito concretamente histórico cria, a partir do próprio
fundamento materialmente econômico, idéias correspondentes e todo um
conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições
dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito concreto
produz e reproduz a realidade social; e ele próprio, ao mesmo tempo, é nela
produzido e reproduzido.
Após as quase exaustivas citações de Engels e do Kosik, entende-se que restou
devidamente claro que a superestrutura não pode ser deduzida da base de maneira
mecânica. Ainda, segundo Maurice Duverger (1976, p. 419):
Freqüentes confusões, entretanto, são cometidas na exposição das teses
marxistas relativas às relações da “base” e da “superestrutura”: não é verdade
que sejam consideradas em sentido único; o marxismo tem sempre admitido
que as superestruturas reagiam sobre a base.
Inclusive, cabe atentar, conforme lição de Martha Harnecker (1973), que toda a
parte do universo social integrante da superestrutura tem o seu conteúdo próprio e leis
próprias de desenvolvimento e funcionamento. Como já visto, captar esta lei significa
30
apreender a estrutura e o respectivo conceito. Em outros termos, significa chegar até a
essência.
Pode, por vezes, resultar que os fenômenos encontrem a sua essência obscura e
aparentemente na própria superestrutura. Isso ocorre a partir do desenvolvimento
aparente de vida própria, sem que, com isso, se afaste o caráter de determinação e a real
essência, que permanece ofuscada. Marx (1983, v. I, p. 77), certa vez, em nota de
rodapé de “O Capital”, chegou a exemplificar um período histórico em que a
superestrutura atuava de maneira determinante, como se constata da seguinte passagem:
Aproveito essa oportunidade para refutar, de forma breve, uma objeção que
me foi feita, quando do aparecimento do meu escrito Zur Kritik der Pol.
Oekonomie, em 1859, por um jornal teuto-americano. Este dizia, minha
opinião, que determinado sistema de produção e as relações de produção a
ele correspondentes, de cada vez, em suma, “a estrutura econômica da
sociedade seria a base sobre a qual levanta-se uma superestrutura jurídica e
política, e à qual corresponderiam determinadas formas sociais de
consciência”, que “o modo de produção da vida material condicionaria o
processo da vida social, política e intelectual, em geral” – tudo isso estaria até
mesmo certo para o mundo atual, dominado pelos interesses materiais, mas
não para a Idade Média, dominada pelo catolicismo, nem para Atenas e
Roma, onde dominava a política. Em primeiro lugar, é estranhável que
alguém prefira supor que esses lugares-comuns arquiconhecidos sobre a
Idade Média e o mundo antigo sejam ignorados por alguma pessoa. Deve ser
claro que a Idade Média não podia viver do catolicismo nem o mundo antigo
da Política. A forma e o modo como eles ganhavam a vida explica, ao
contrário, por que lá a política, aqui o catolicismo, desempenhava o papel
principal.
Seria proceder de maneira omissa bastante caso não se mencionasse que, mesmo
entre os estudiosos do materialismo histórico, há discrepância acerca dos elementos que
integram a superestrutura. Josef V. Stalin (apud HARNECKER, 1973, p. 92)
asseverava, por exemplo, que a linguagem não é um fenômeno que integra a
superestrutura:
[...] não se pode situar a linguagem nem nas categorias das bases nem
naquelas das superestruturas. Tampouco se pode situá-la na categoria dos
fenômenos „intermediários‟ entre a base e a superestrutura, visto como não
existem fenômenos intermediários deste gênero.
É impróprio, aqui, proceder a um exame rigoroso da afirmativa, no entanto,
entende-se que a linguagem pode ser enquadrada como elemento tipicamente
superestrutural. Na diferenciação entre a forma e o conteúdo, a linguagem, como ato de
31
expressão e entendimento, embora possa apresentar forma de aparente independência, o
conteúdo é movido pelas forças materiais.
Colocando a questão sobre outro ângulo, o conteúdo da fala de determinada
sociedade irá refletir, em certa medida, as condições objetivas da vida material,
inclusive as expressões mais simples do cotidiano, que podem passar despercebidas.
Sendo evidente que a influência sobre a linguagem pode ocorrer pela própria
superestrutura, que também estabelece contatos constantes.
Sobre o tema, assim se manifesta Florence Carboni (1997, p. 123):
Stalin, ao propor que a língua não fazia parte da superestrutura e que não
constituía um fenômeno de classes negava as relações dialéticas entre as
variações e a evolução lingüística e a evolução da própria vida social.
Significava definir a língua como um instrumento neutro. Significa fugir da
história. Significa recusar o materialismo dialético.
Outro ponto interessante foi o embate teórico promovido de Althusser para com
Gramsci. Aquele afirmava que a ciência não é um fenômeno superestrutural, conforme
se denota da seguinte passagem: “Fazer da ciência uma superestrutura é tê-la na conta
de uma dessas ideologias „orgânicas‟ que se coadunam tão bem com a estrutura que
devem desaparecer com elas” (ALTHUSSER apud HARNECKER, 1973, p. 93).
Gramsci (1978, p.70-71), ao seu turno, assim dispôs:
Colocar a ciência na base da vida, fazer da ciência a concepção do mundo por
excelência, a que liberta os olhos de qualquer ilusão ideológica, que põe o
homem em face da realidade tal como ela é, isto significa recair no conceito
de que a filosofia da praxis tenha necessidade de sustentáculos filosóficos
fora de si. Mas, na realidade, também a ciência é uma superestrutura, uma
ideologia. É possível dizer, contudo, que no estudo das superestruturas a
ciência ocupa um lugar privilegiado, pelo fato de que a sua reação sôbre a
estrutura tem um caráter particular, de maior extensão e continuidade de
desenvolvimento, notadamente após o século XVIII, a partir de quando a
ciência seja uma superestrutura, é o que é demonstrado também pelo fato de
que ela tenha tido períodos inteiros de eclipse, obscurecida por uma outra
ideologia dominante, a religião, que afirmava ter absorvido a própria ciência;
assim, a ciência e a técnica dos árabes eram tidas pelos cristãos como pura
bruxaria.
Por outro vértice, Jürgen Habermas compreende que, ao lado da infraestrutura
social, em que o homem atua sob a forma de uma ação instrumental, existe espaço para
uma ação comunicativa. Embora admitisse que a teoria da comunicação não tivesse
como finalidade solver problemas de ordem filosófica, o autor via um estreito vínculo
32
com a teoria da evolução social. Em sua obra “Para a Reconstrução do Materialismo
Histórico”, Habermas (1983, p. 12-13) mencionou que:
As linhas de conjunção não passam apenas entre a teoria do agir
comunicativo e os fundamentos do materialismo histórico. Ao examinar
hipóteses singulares sobre a teoria da evolução, deparamo-nos com
problemas, que, ao contrário, tornam necessárias considerações de teoria da
comunicação. Enquanto Marx localizou os processos de aprendizagem
evolutivamente relevantes (na medida em que encaminham as ondas de
desenvolvimento das épocas) na dimensão do pensamento objetivante, do
saber técnico e organizativo, do agir instrumental e estratégico – em suma,
das forças produtivas –, emergiram nesse meio-tempo boas razões para
justificar a hipótese de que, também na dimensão da convicção moral, do
saber prático, do agir comunicativo e da regulamentação consensual dos
conflitos de ação, têm lugar processos de aprendizagem que e traduzem em
formas cada vez mais maduras de integração social, em novas relações de
produção, que são as únicas a tornar possível, por sua vez, o emprego de
novas forças produtivas. Uma posição importante para a estratégia teórica
chega assim a tocar nas estruturas de racionalidade, que encontram
expressões nas imagens do mundo, nas idéias morais e nas formações de
identidade; que têm eficácia prática nos movimentos sociais e que, por fim,
se materializaram em sistemas de instituições.
Afora as discussões teóricas, que, decerto, poderiam compor um estudo à parte,
na concepção materialista da história tanto o Direito como a ideologia são elementos
superestruturais. Por isso, são decorrência das relações de produção, que é o locus onde
o homem produz as suas condições materiais de sobrevivência, em que ele cria e é
criado.
2.3 A IDEOLOGIA
Em linhas gerais, a ideia serve para o pensador como meio de apreensão da
realidade. Quando ele elabora as teorias de explicação desta, as formula imaginando
estar reproduzindo parte de todo o universo real em um processo de atribuição de
significações específicas para determinado objeto. Ao desenvolver uma ideia própria,
crê, portanto, que está desvendando um significado inexplorado e não somente
repisando, no plano ideal, o resultado de relações típicas de conjunturas históricas
específicas.
O movimento da ideia parece caminhar e se desenvolver de maneira autônoma e
independente da esfera social. O ato de pensar, associado à noção da pessoa como um
fim em si, leva ao entendimento – e à sensação – de potência reveladora de entes e
33
significados que se encontram disseminados no mundo objetivo. A questão que se
coloca, no entanto, é a seguinte: se o sujeito é que apreende a realidade, será que
poderia ela manipular o pensar, sem que o indivíduo tivesse a percepção deste fato que,
aparentemente, seria tão notório?
A palavra “ideologia” porta, hoje, diversos significados. Terry Eagleton (1997)
elencou pelo menos dezesseis definições distintas, nem todas coerentes entre si. Pela
primeira vez, a palavra foi empregada por Antoine Destutt de Tracy, ao escrever a obra
“Elementos de Ideologia”, publicada em quatro volumes, entre 1801 e 1815. Na
acepção original, o termo servia para designar a ciência da gênese e do desenvolvimento
das ideias.
Para os objetivos deste trabalho, basicamente uma única concepção de ideologia
será utilizada, que é a advinda do materialismo histórico clássico. Quando se fala em
materialismo histórico clássico, está-se retomando a um momento específico da história.
Karl Marx e Friedrich Engels, nem meio século após o surgimento da palavra ideologia,
conferem a ela uma nova acepção, segundo referem Luiz Roberto Lopez (1999),
Marilena Chaui (1985) e Louis Althusser (1985)11
.
O contorno inovador foi dado na obra “A Ideologia Alemã”, terminada em
1846. O livro foi escrito pelos fundadores da filosofia da práxis, em parte, para
responder a Hegel e, em parte, para rebater o que chamaram de “materialismo vulgar”
dos jovens hegelianos, conforme aponta Luiz Roberto Lopez (1999)12
.
Na oportunidade, Marx e Engels inverteram o sistema lógico do idealismo
alemão impulsionado por Hegel, entendendo que não se poderia partir da consciência do
indivíduo para compreender o seu status. A proeza consistiu em desvendar a face oculta
dos fenômenos sociais atribuída, até então, às projeções do espírito ou às dádivas
sobrenaturais. Na concepção materialista, a produção da ideia representa e reflete a
atividade real do homem, exatamente como ele é em dada circunstância.
11
Henri Lefebvre (1968, p. 42-43) ressalta que: “Marx transformou o significado do têrmo [...]. A palavra
torna-se pejorativa. Não designa apenas uma teoria explicativa, mas a própria coisa a ser explicada. Essa
coisa a ser explicada assume uma outra dimensão. Para os ideólogos franceses, a ideologia se limitava à
explicação, através da psicologia causal, das representações individuais. Para Marx e Engels, o objeto
estudado torna-se um conjunto de representações características de uma época e de uma sociedade. Por
exemplo: a ideologia alemã. O primeiro significado do têrmo não desaparece. Marx quer elaborar uma
teoria das representações gerais, isto é, sociais; êle dá os elementos de uma gênese explicativa das
ideologias, que define e vincula às suas condições históricas e sociológicas”. 12
Na mesma direção, Luiz Fernando Coelho (2009, p. 120) diz: “Esse conceito deflui da crítica que Marx
faz ao idealismo, particularmente ao de Hegel e ao dos chamados jovens hegelianos.”
34
A difícil tarefa inicial do materialismo histórico recém desenvolvido era
comprovar, cientificamente, que os objetos ideais que se movem com pretensa
independência apresentam as suas raízes nas condições materiais de existência humana.
Todo o conjunto de pensamentos e sistemas idealmente criados, em verdade, apenas
corresponde a impulsos das condições objetivas de vida.
Na lógica materialista, as ideias apresentam estreita vinculação com a base
material. Logo, é necessário recorrer a esta para as compreender em sua estrutura.
Ainda, ao examinar as relações de produção de bens materiais de certa época, é possível
aperceber os reflexos no pensamento comum. Agora, é cabível afirmar que dado
segmento social pode influenciar em maior grau o senso comum ou a consciência social,
ao ponto de formar uma ideologia dominante?
Nesse estágio, adiciona-se um conceito imprescindível à teoria marxiana e à
ideologia, que é o de classe social e a sua respectiva luta13
. A divisão da sociedade em
classes, em uma visão superficial, pressupõe a noção de que há mais de um grupo social
atuando em patamares distintos – e hierarquizados – na cadeia produtiva. Com isso, as
relações de produção serão exercidas de modo diverso dentro da mesma infraestrutura.
Pedrinho Guareschi (2000), em sua obra “A Máquina Capitalista”, escrita
também por Roberto Ramos, indagou: o que é classe social? Aponta o autor que as
respostam circundam teorias que advogam pelo simples enquadramento social,
formulando definições a partir das características visíveis, sob um enfoque que
denomina de “positivista-funcionalista”.
Nessa visão, as classes podem ser determinadas entre alta, média e baixa. Ou, até
mesmo, a partir de padrões de vida, de consumo, de ideias semelhantes, de grau de
educação análogo etc. Nitidamente, é uma análise estática da realidade, em que os
critérios são rígidos (renda, profissão etc.); e, nas palavras do autor, classifica as pessoas
em determinadas “caixinhas”.
Adverte Pedrinho Guareschi (2000, p. 35-36), precisamente, para o possível
paradoxo causal, sem fim, que esta teoria pode levar:
Agora, se você perguntar: Por que há pessoas em determinadas “caixinhas”?
A resposta será: Porque ganham mais. E se perguntarmos: Por que ganham
mais? A resposta será: Porque estudaram mais (melhor formação). E se
13
Segundo Marilena Chauí (1985, p. 85-86): “[...] em termos do materialismo histórico e dialético, é
impossível compreender a origem e a função da ideologia sem compreender a luta de classes, pois a
ideologia é um dos instrumentos da dominação de classes e uma das formas da luta de classes”.
35
perguntarmos: Por que estudaram mais? [...] Alguns dizem: Porque ganham
mais.
Desditosamente, Marx faleceu antes de concluir a sua magnum opus “O
Capital”. O último capítulo por ele escrito e inacabado, organizado por Engels, tratava
das classes sociais. Para Marx (1983), no capitalismo, em última análise, a posição
social irá corresponder à posição do indivíduo na escala produtiva, que se divide em três
grandes classes14
. Ou seja, acreditar que as classes se definem por características rígidas
é também uma ideologia, uma meia verdade.
A rigor, seria incorreto referir, nos centros urbanos ao menos, à existência de
diversas classes (“a”, “b”, “c” etc., exemplificativamente). Em sentido formal e
material, existem apenas duas classes: a dos que detêm os meios de produção e a dos
que possuem apenas a força de trabalho15
. Isso, sem esquecer que a divisão entre as
classes não aparece de modo puro, havendo estágios intermediários e de transição, como
aponta Marx (1985, v. III – t. 2, p. 317):
Indubitavelmente, é na Inglaterra que a sociedade moderna, em sua estrutura
econômica, está desenvolvida ao máximo, do modo mais clássico. Contudo,
essa divisão em classes mesmo lá não aparece de modo puro. Também lá,
estágios intermediários e de transição (embora incomparavelmente menos no
campo do que nas cidades) encobrem por toda a parte as determinações de
limites.
A divisão em classes põe os indivíduos em posições distintas na escala produtiva
e, por via reflexa, na sociedade, ficando alguns submetidos à vontade de outros. Esta
desigualdade estrutural é que possibilita o fato de determinado quinhão da sociedade
poder tomar para si a tarefa do pensar coletivo. Esta tarefa corresponde à função dos
ideólogos, que são um grupo de intelectuais que desenvolvem teorias explicativas da
realidade no sentido de condicionar o senso comum.
Em suma, a segregação entre os produtores e os meios de produção cinge a
sociedade em classes que possuem interesses colidentes. O conflito é resultante da
14
“Os proprietários de mera força de trabalho, os proprietários de capital e os proprietários da terra, cujas
respectivas fontes de rendimento são o salário, o lucro e a renda fundiária, portanto, assalariados,
capitalistas e proprietários da terra, constituem as três grandes classes da sociedade moderna, que se
baseia no modo de produção capitalista” (MARX, v. III – t. 2, p. 317). 15
“A essência do sistema capitalista está, pois, na separação radical entre o produtor e os meios de
produção. Esta separação torna-se cada vez mais acentuada e numa escala progressiva, desde que o
sistema capitalista se estabeleceu; mas, como esta separação constituía a sua base, ele não poderia se
estabelecer sem ela” (MARX, 1981, p. 14).
36
posição contraditória que ocupam os sujeitos na escala produtiva, em que o capitalista
busca o maior lucro e os trabalhadores melhores condições de trabalho.
Assim, o antagonismo de classes tem movido a história em diferentes épocas,
sendo que a ideologia dominante tem sido – e será sempre – a ideologia da classe
dominante, ao menos enquanto houver esta divisão. Karl Marx e Friedrich Engels
(1982, t. 1, p. 123) deixaram esta ideia suficientemente clara em diversas
oportunidades16
, inclusive em “O Manifesto Comunista”, de 1848:
Que prova a história das ideias senão que a produção espiritual se transforma
com a transformação da produção material? As ideias dominantes de um
tempo foram sempre as ideias da classe dominante.
Fala-se de ideias que revolucionam uma sociedade inteira; com isto exprime-
se apenas o facto de que no seio da sociedade velha se formaram os
elementos duma sociedade nova, de que a dissolução das ideias velhas
acompanha a dissolução das velhas relações de vida.
A ideologia, no modo de produção capitalista, corresponde às diretrizes gerais de
sua classe dominante, outrora denominada burguesia. Para isto, basta constatar os
valores até hoje predominantes, como a liberdade, o direito de propriedade sobre os
meios de produção, o livre mercado etc.
A hegemonia de determinada classe ocorre a partir da transformação na base
social, por outro lado, toda a camada superestrutural vai se adequando mais ou menos
rapidamente às transformações infraestruturais. Com isso, revolucionam-se todos os
elementos superestruturais já mencionados no ponto passado.
A ideologia se apresenta como falseamento do real à medida que influi para que
a essência das coisas permaneça obscura. Além disso, visa impedir que as pessoas
tenham consciência real dos fatores objetivos que circundam a sua vida.
Rompendo o abstrato, Pedrinho Guareschi (2000), em “Sociologia Crítica”, traz
exemplos do cotidiano para ilustrar a teoria. Refere o autor que, conversando com uma
empregada doméstica, ela lhe disse que a pessoa rica é aquela que poupa mais. Aponta,
ainda, outra frase que faz parte do ideário comum, que é a proposição de que quem
16
Em “A Ideologia Alemã”: “As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias
dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu
poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para a produção material dispõe
assim, ao mesmo tempo, dos meios para a produção espiritual [...]. As ideias dominantes não são mais do
que a expressão ideal [ideell] das relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes
concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto
as ideias do seu domínio” (MARX; ENGELS, 1982, t. 1, p. 38-39).
37
trabalha mais e com melhor qualidade ganha mais. Decerto os exemplos constituem
uma meia verdade.
Explicando, o “trabalho é a fonte de toda riqueza”17
, sendo que, como visto, a
segregação levada a efeito no capitalismo é entre os possuidores e não possuidores dos
meios de produção. Ao apartar a classe trabalhadora dos instrumentos de trabalho, a
sociedade é dividida em classes.
A posição de classe independe do maior ou menor esforço ou do grau de
escolaridade, pois a dicotomia é estabelecida precisamente – e previamente – entre os
proprietários capitalistas e os trabalhadores, que apenas possuem a força de trabalho18
,
como já referido. Esta posição irá determinar, em última análise, os que terão acesso aos
bens de consumo, a uma educação melhor, à saúde, à cultura etc. O “trabalhar melhor”
ou “poupar mais” não têm o condão de alterar uma estrutura de produção estabelecida,
revelando, assim, o caráter derivado das ideias, típico das ideologias.
Complementando o exemplo de Guareschi, no capitalismo existe também a
ideologia de que o trabalhador é livre para escolher para quem vender a sua força de
trabalho. Ocorre que, tal visão exige cautela, uma vez que há outros aspectos que devem
ser ponderados, pois constituem, igualmente, traços distintivos da figura do trabalhador
assalariado. Caso se estabeleça um paralelo histórico entre a figura do trabalhador
assalariado com as demais classes dominadas na cadeira produtiva histórica, com base
na teoria marxiana, chega-se à seguinte conclusão:
a) Escravidão: o escravo, embora estivesse em uma condição desumana,
possuía moradia, alimentação, mais o suficiente para mantê-lo vivo e para
que pudesse ao menos reproduzir a força de trabalho;
17
Não se pode olvidar o comentário pertinente de Marx, em “Crítica ao Programa de Ghota”, ao alertar
que “O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A Natureza é tanto fonte dos valores de uso (e é bem
nestes que, todavia, consiste a riqueza material [sachlich]!) como o trabalho, que não é ele próprio senão
a exteriorização de uma força da Natureza, a força de trabalho humana” (MARX, 1985, t. 3, p. 10). 18 A força de trabalho é a energia humana depreendida à produção de bens materiais. Ou, com a precisão
de Marx: “o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade
viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso de qualquer
espécie.” (MARX, 1983, v. I, p. 139). No capitalismo, acentua Marx (1983), o trabalhador assalariado
vende a sua força de trabalho ao capitalista por um determinado período; já no regime feudal, o servo
vende apenas parte da sua força de trabalho ao senhor feudal, ao passo que ele trabalha um determinado
lapso para o senhor feudal e parte para si; o escravo, por sua vez, não vende a força de trabalho, uma vez
que ele é a própria mercadoria. E é justamente por esse motivo, como destaca o autor, que não obstante o
trabalhador assalariado tenha que, efetivamente, laborar a vida inteira para se manter, ele não poderá
vender a sua força de trabalho por toda uma vida de início. Pois, caso fizesse isso, não seria um
trabalhador assalariado, mas sim um escravo.
38
b) Servidão: o servo, ainda que vivesse sob o jugo do senhor feudal, tinha
também moradia, alimentação e não raro era até mesmo proprietário dos
meios de produção rudimentares;
A pergunta que resta a fazer é: e o trabalhador assalariado, que é dito “livre”, o
que possui? Apenas a força de trabalho, ao passo que, reitera-se incansavelmente, o
desenvolvimento do capitalismo pressupõe a separação entre os trabalhadores e os
meios de produção.
O trabalhador assalariado, ao ser despido por completo dos meios de produção,
encontra-se em uma fragilidade tal que a única forma de sobrevivência é através da
venda da única mercadoria que possui: a força de trabalho. É claro que ele irá vendê-la
àquele que pagar o melhor preço, no entanto, não com a total liberdade como propagam
os liberais. Nesse sentido, manifesta-se Marilena Chaui (1985, p. 88-89):
A ideologia burguesa, [...], irá produzir idéias [...], fazendo, por exemplo,
com que os homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou
que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham
enriquecem e os preguiçosos empobrecem. Ou, então, faz com que creiam
que são desiguais por natureza, mas que a vida social, permitindo a todos o
direito de trabalhar, lhes dá iguais chances de melhorar – ocultando, assim,
que os que trabalham não são senhores de seu trabalho e que, portanto, suas
“chances de melhorar” não dependem deles, mas de quem possui os meios de
condições de trabalho.
Logo, os interesses do capital, certamente, não são os mesmos dos trabalhadores
assalariados, embora haja mútua dependência entre eles. A classe dominante se utiliza
de diversos mecanismos ideológicos para que haja a manutenção da situação atual de
hegemonia. Uma justa indagação seria: quais são estes “mecanismos” de perpetuação da
dominação de classe?
Antes da resposta, cabe lembrar que a ideologia, com total denotação marxiana,
tem a habilidade de harmonizar e pacificar o ontologicamente contraditório, com a sua
típica característica de falseamento do real. Há ideologias espraiadas por toda a camada
superestrutural, bastando lembrar as palavras de Leão XVIII (19xx, p. 24), acerca das
classes sociais, ao apontar:
O êrro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas
natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres
para combaterem mùtuamente num duelo obstinado. Isto é uma aberração tal,
que é necessário colocar a verdade numa doutrina contràriamente oposta,
porque, assim como no corpo humano os membros, apesar da sua
diversidade, se adaptam maravilhosamente uns aos outros, de modo que
39
formam um todo exatamente proporcionado e que se poderá chamar
simétrico, assim também, na sociedade, as duas classes estão destinadas pela
natureza a unirem-se harmoniosamente e a conservarem-se mùtuamente em
perfeito equilíbrio.
Da citação extraída da “Rerum Novarum”, verifica-se, claramente, o intento de
conciliar o que é contraditório em sua essência. Isso faz da visão religiosa, ou melhor,
da própria religião uma ideologia? Por que a necessidade de uma classe se submeter ao
interesse da outra? Qual o interesse da Igreja Católica na mediação do conflito?
Neste instante, é que se põe relevância à teoria de Louis Althusser. A ideologia
furta-se de “aparelhos ideológicos” para a sua perpetuação. Estes aparelhos, segundo
Althusser (1985), são instituições privadas, que não utilizam a violência (por isso se
distingue do aparelho repressivo do Estado), mas tão somente a ideologia como
instrumento19.
A tese foi elaborada visando o Estado, entretanto, pode ser perfeitamente
ampliada, abarcando também a noção de que os aparelhos servem para a própria
preservação do capitalismo e da desigualdade de classes. Segundo o autor, o Estado
porta os seguintes aparelhos ideológicos: a) religioso; b) escolar; c) familiar; d) jurídico;
e) político; f) sindical; g) informação (imprensa etc.); h) cultural.
Os aparelhos ideológicos têm a função de reproduzir as ideologias da classe
dominante, de modo a se incutir nos mais variados meandros sociais. Aqui, citou-se
apenas o exemplo clássico da Igreja Católica, porém, a ideia que deve permanecer é que
há os mais diversos meios de propagação da ideologia, tendo a academia se ocupado
desta tarefa também.
De outro vértice, não se pode olvidar que nem sempre a ideologia foi – e será –
um reflexo invertido da base material. Theothonio dos Santos (1974, p. 42-43) refere
que:
El concepto de ideología tomado en su forma pura inicial no supone
necesariamente ningún falseamiento de lo real ni niguna racionalización.
19
Embora não constitua objeto direto de estudo, cabe ressaltar que, a adoção da teoria de Althusser no
que toca os “aparelhos ideológicos do Estado”, não pretende ignorar as críticas procedentes tecidas por
Nicos Poulantzas, na obra “O Estado, O Poder, O Socialismo”. Na oportunidade, o autor sustentou que é
errado referir à representação do Estado como meramente ideológico-repressor, pois “O Estado não
produz um discurso unificado, e, sim, vários, encarnados diferentemente nos diversos aparelhos de acordo
com a classe a que se destinam; discursos dirigidos às diversas classes. [...] O índice de ideologização do
discurso e também das práticas materiais do Estado é portanto flutuante, variável e diversificado segundo
as classes e frações de classes às quais se dirige o Estado e sobre as quais age” (POULANTZAS, 1981, p.
37; 39).
40
Ideología es em un primer momento de análisis, la expresión consciente de
intereses reales de clases y sua operacionalización en formas de acción
concreta para lograr estos intereses.
Sin embargos, en un segundo momento, y solo en un segundo momento, pues
pude que sea o no necesario, se agrega El elemento falsedad. Pues ni todas
las ideologías son falsas, ni niguna ideología es falsa, em cuanto es la
representación verdadera de los intereses.
Para elucidar, traz-se exemplo de Oskar Lange (1976), ao referir que a relação
estabelecida entre o escravo e o seu proprietário é consciente, no sentido de que aquele
tem ciência da condição que está em relação ao seu dono. Assim, pode-se afirmar que
não há, ao menos em um primeiro momento, a necessidade de uma ideologia que falseie
o real no que tange à escravidão.
Não da mesma lucidez goza o trabalhador assalariado, que não tem ciência da
sua condição, havendo, portanto, a presença da ideologia na sua relação. Lembrando
que, conforme Marilena Chaui (1985, p. 78): “A ideologia não é um processo subjetivo
consciente, mas um fenômeno objetivo e subjetivo involuntário produzido pelas
condições objetivas da existência social dos indivíduos”. Complementando, Engels
(1985, t. 3, p. 557), em carta direcionada a Franz Mehring, em 14 de julho de 1893,
asseverou:
A ideologia é um processo que, com efeito, é completado com consciência
pelo chamado pensador, mas com uma consciência falsa. As forças
impulsionadoras [Triebkräfe] propriamente ditas que o movem permanecem
desconhecidas; se não, não seria, precisamente, processo ideológico nenhum.
Ele [o pensador] imagina, portanto, forças impulsionadoras falsas ou
ilusórias. Porque o [processo] é um processo de pensamento, ele deduz tanto
o seu conteúdo como a sua forma do puro pensar, quer do seu próprio quer do
seus antecessores. Ele trabalha com mero material de pensamento
[Gedankematerial], que, sem dar por isso, toma como produzido pelo pensar
e, aliás, não investiga mais [se ele tem] uma origem mais afastada,
independente do pensar; e, com efeito, isso é para ele evidente, porque, para
ele, todo o agir [Handeln], porque mediado pelo pensar, parece também em
última instância fundado no pensar.
Segundo Luiz Roberto Lopez (1999), a formulação da ideologia cabe aos
ideólogos da classe dominante. As características essenciais da ideologia, ainda segundo
o autor, são: a) autonomia; b) imparcialidade; c) universalidade.
A ideologia assume ares de autonomia no pensamento, uma vez que os
indivíduos ignoram o fundamento de sua criação. A imparcialidade se consubstancia no
fato de que, aparentemente, a ideologia não tem parte assumida, não representando os
interesses de um grupo específico. A universalidade, por sua vez, representa a noção de
41
que as ideologias são naturais, generalizando o que é interesse próprio de um segmento
social apenas. Ou seja, os interesses de determinada classe aparecem como vontade de
todos.
Nos dizeres de Luiz Roberto Lopez (1999, p.17): “Em outras palavras, por efeito
das contingências concretas da história, a ideologia é um modo de pensar que torna
geral o que é particular, natural o que é histórico, imutável o que é transitório”. Por isso,
em a “Ideologia Alemã”, os fundadores da filosofia da práxis afirmaram que a ideologia
não tem história, pois jamais é situada no tempo e espaço.
A ideologia, portanto, é um fenômeno social que reflete parte das condições
reais de existência dos homens. Sendo que a sua tarefa primordial, no sistema
capitalista, é mascarar as relações de produção e as suas consequências sociais. São
imagens distorcidas do real, incutidas no pensamento comum, que formam
representações que fazem parte da própria realidade, projetando-se como fenômenos
compreendidos como a visão real, sem que o indivíduo perceba a sua obscura essência.
Para sintetizar o exposto, reproduz-se as completas palavras de Herbert Marcuse
(1969, p. 116-117):
Para Marx e Engels, a ideologia é uma ilusão (Schein), mas uma ilusão
necessária, resultante de uma organização social de produção que se
apresenta ao homem como um sistema de leis e fôrças independentes e
objetivas. Enquanto “reflexo” da base real, a ideologia compartilha da
verdade, mas a expressa de maneira falsa. As idéias da classe dominante
tornam-se idéias dominantes, e se arrogam uma validade universal. Mas essa
pretensão se baseia numa “falsa conscientização” – falsa porque a conexão
real das idéias com sua base econômica e, conseqüentemente, com suas
limitações e negações reais não são abrangidas pela conscientização. Um
conteúdo histórico específico aparece como universalmente válido e é
utilizado como ponto de apoio de um sistema social específico.
A ideologia, portanto, justifica e legitima ideias específicas, fazendo-as
parecer como se gerais fossem. A ideologia dominante deve ser extensiva aos
dominados. Para tanto, o conteúdo volitivo da ideia é suprimido de modo que o agente
que a adota não perceba os seus reais impulsos. A ideologia é, em outros termos, uma
necessidade à preservação da ordem econômica e social vigente.
Lembra-se, por fim, das palavras de Hegel, que ora se fazem oportunas, citadas
por Karl Marx: “Em nossa época rica em reflexões e raciocinante, não deve ter subido
muito quem não sabe apresentar uma boa razão para tudo, mesmo para o que há de pior
42
e de mais errado. Tudo o que foi estragado neste mundo, foi estragado por boas razões.”
(Hegel apud Marx, 1983, v. I, p. 210). A ideologia cria as boas razões que refere Hegel.
43
3 O DIREITO COMO APARELHO IDEOLÓGICO ESTATAL E A
IDEOLOGIA JURÍDICA
3.1 O APARELHO IDEOLÓGICO JURÍDICO E O ESTADO
No ponto passado, foram citadas as diversas formas de preservação e
propagação da ideologia dominante, através dos aparelhos ideológicos do Estado, na
formulação proposta por Altrusser. Nesse momento, a atenção recai apenas sobre um
deles, o Direito, inserindo-se no espectro de análise a busca por uma definição, bem
como atentar para a questão das fontes.
O Direito não é um fenômeno social recente, tendo variado em forma e conteúdo
ao longo da história. Mesmo assim, apesar da longa vida, ainda há enorme dificuldade
na sua compreensão. Parte desta dificuldade dá-se pelo fato de que determinada
definição é adotada e aceita de acordo com a matriz intelectual seguida, que serve de
arrimo teórico e metodológico à apreensão e entendimento deste fenômeno.
O problema da matriz intelectual é crucial para o Direito. Neste ramo do
conhecimento, diversas correntes jurídico-filosóficas disputam, no campo acadêmico,
maior adesão na explicação do fenômeno jurídico. Constituem elas ideologias jurídicas
em sentido amplo, ou seja, são corpos teóricos de elucidação de uma realidade
específica. As principais, segundo Roberto Lyra Filho (1982), são o positivismo jurídico
e o jusnaturalismo20
.
Esses dois modelos teóricos, em verdade, fizeram-se presentes em diversos
momentos históricos relevantes. O jusnaturalismo (o Direito Natural), segundo Marcus
Vinicius Antunes (1997) é a concepção jurídica mais antiga, remontando Grécia e
Roma, tendo, de certa forma, o seu apogeu nos séculos XVII e XVIII, quando serviu de
instrumento teórico para combater o absolutismo monárquico.
O fenômeno jurídico, a partir do Estado liberal, ganha feição própria, embora se
assente retomando institutos jurídicos antigos que mais se adequavam às alterações que
estavam em curso. Do ponto de vista formal, o Direito burguês se apresenta por meio de
codificações, Declarações de Direitos e Constituições.
20
Tarso Genro (1988, p. 19), na mesma linha, aponta: “O jusnaturalismo e o positivismo são as duas
grandes concepções que impregnam de forma direta ou velada o mundo do Direito em toda a
humanidade”.
44
Sob influência do paradigma do jusnaturalismo, a teoria do poder constituinte foi
elaborada na França, pelo padre Emmanuel Sieyès, na obra intitulada “O Que é o
Terceiro Estado?”. A teoria nasceu “como resposta imediata a uma necessidade política,
no momento histórico das rupturas e explosões do século XVIII, em sua complexa
transição para a ordem liberal capitalista” (ANTUNES, 2010, p. 96). Como ressalta o
autor, a teoria não nasce como um problema essencialmente jurídico, porém político.
A ideia da existência de uma assembleia específica para a redação de uma
Constituição foi formulada também por Sieyès, que dedicou um capítulo próprio, na
referida obra, para analisar a questão. Segundo ele, a Assembleia Nacional21
teria
poderes ilimitados, afora o limite por ele preconizado:
Sente-se, assim, a dupla necessidade de se submeter o governo a formas
certas – interiores e exteriores – que garantam sua aptidão para alcançar os
seus próprios fins e sua importância para separar-se dele.
Entretanto, de acordo com que critérios, com que interesses seria dado uma
Constituição à própria nação. A nação existe antes de tudo, ela é a origem de
tudo. Sua vontade é sempre legal, é a própria lei. Antes dela e acima dela só
existe o Direito natural (SIEYÈS, 2001, p. 48) (grifou-se).
De maneira curiosa, analisa Marcus Vinicius (1997) que, na passagem do século
XVIII para o século XIX, as regras de Direito passam a adotar a forma escrita, em um
processo de codificação, com base em princípios do Direito Natural, fato que dá ensejo
ao surgimento do positivismo. Segundo o autor: “Paradoxalmente, o jusnaturalismo, no
momento em que se cristaliza em regras escritas, entra em declínio e vai sendo
progressivamente substituído por uma nova mentalidade, uma nova concepção jurídica”
(ANTUNES, 1997, p. 103). Esta nova concepção jurídica é o positivismo jurídico.
Entrelaçando as escolas jurídicas22
, ainda segundo Marcus Vinicius Antunes, o
positivismo jurídico tem as suas raízes fincadas no crescente conservadorismo da nova
classe dominante. Ademais, o fenômeno da codificação se explica à medida da
necessidade de universalização do Direito, fortificando a superação do direito
costumeiro, que vigorava nos feudos. Assim, o Direito hoje vigente, em conteúdo e
21
Na esteira da lição de Marcus Vinicius Antunes (2010), refere-se que a expressão “Assembleia
Nacional Constituinte” foi utilizada por primeira vez no texto do art. 5º da Constituição Francesa de 1791,
sendo que Emmanuel Sieyès empregava simplesmente a denominação “Assembleia Nacional”. 22
“Segundo Tumanov, jurista soviético, impõe-se uma linguagem mais precisa. „Doutrina‟ é o elemento
primário. Quando se desenvolve, pode formar uma „escola‟, movida por juristas. As modificações de uma
escola podem conduzir à formação de uma „corrente‟. Uma „tendência‟ é constituída por juristas que
concordam no fundamental, embora com divergências” (TUMANOV apud ANTUNES, 1997, p. 101).
45
forma, é resultado de um processo histórico de florescimento e ascensão de uma outrora
nova classe: a burguesia.
Todo esse processo de alteração da base social que culminou na alteração da
superestrutura influenciou marcantemente o Direito e o Estado23
. Com a vitória política
desta nova classe, as primeiras declarações e os primeiros códigos burgueses foram
surgindo, reproduzindo, no plano jurídico, os acontecimentos que já haviam alterado a
estrutura social. Leo Huberman (1973, p. 162-163) detalha o reflexo, no Direito, dos
acontecimentos revolucionários na França:
[...] Depois que a revolução francesa acabou, foi a burguesia quem ficou com
o poder político na França. O privilégio de nascimento foi realmente
derrubado, mas o privilégio do dinheiro tomou o seu lugar. “Liberdade,
Igualdade, Fraternidade” foi uma frase popular gritada por todos o
revolucionários, mas que coube principalmente à burguesia desfrutar.
O exame do Código Napoleônico deixa isso bem claro. Destinava-se
evidentemente a proteger a propriedade – não a feudal, mas a burguesa. O
Código tem cêrca de 2.000 artigos, dos quais apenas 7 tratam do trabalho e
cêrca de 800 da propriedade privada. Os sindicatos e as greves são proibidos,
mas as associações de empregadores permitidas. Numa disputa judicial sôbre
salários, o Código determina que o depoimento do patrão, e não do
empregado, é que deve ser levado em conta. O código foi feito pela burguesia
e para a burguesia: foi feito pelos donos da propriedade para proteção da
propriedade.
Quando o fumo da batalha se dissipou, viu-se que a burguesia conquistara o
direito de comprar e vender o que lhe agradasse, como, quando e onde
quisesse. O feudalismo estava morto.
E morto não só na França, mas em todos os países conquistados pelo exército
de Napoleão. Êste levou consigo o mercado livre (e os princípios do Código
Napoleônico) em suas marchas vitoriosas. Não é de surpreender que fôsse
bem recebido pela burguesia das nações conquistadas! Nesses países, a
servidão foi abolida, as obrigações e pagamentos feudais foram eliminados, e
o direito dos camponeses proprietários, dos comerciantes e industriais, de
comprar e vender sem restrições, regulamentos e contenções, se estabeleceu
definitivamente.
O Estado burguês (ou liberal), ao menos em um primeiro momento,
regulamentou de maneira fiel os anseios da nova classe, fato que, segundo Noam
23
Como não se vai retomar todas as formas de aparição do Estado, busca-se nas palavras de Engels
(1985, t. 3, p. 366), proferidas na obra “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”, o
entendimento para o fenômeno: “O Estado não é, portanto, de modo nenhum um poder imposto de fora à
sociedade e tão-pouco é a <<a realidade da ideia ética>>, <<a imagem e a realidade da razão>>, como
afirma Hegel. Ele é antes um produto da sociedade num estádio determinado de desenvolvimento; é o
reconhecimento de que a sociedade está enredada numa insolúvel contradição consigo própria, que se
cindiu em oposições inconciliáveis de que ela é incapaz de se livrar. No entanto, para que essas
oposições, classes com interesses económicos em conflito, não se consumam a si próprias e à sociedade
numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade para abafar o
conflito e mantê-lo dentro dos limites da <<ordem>>; e esse poder surgido da sociedade mas que se
coloca acima dela e se aliena cada vez mais dela é o Estado”.
46
Chomsky (2007), no seu ulterior estágio de desenvolvimento, seria uma espécie de
“antiliberalismo” clássico24
. Parafraseando Feuerbach, o Estado liberal foi criado à
imagem e semelhança da burguesia. Ainda tomando a Revolução Francesa como
exemplo, Eros Grau (2006, p. 32) aponta o grau de correlação entre o Estado liberal e o
Direito:
O fato é que o Terceiro Estado, a burguesia, apropriou-se do Estado e é a seu
serviço que este põe o Direito, instrumentando a dominação da sociedade
civil pelo mercado. O Estado, que inicialmente regulava a vida econômica da
nação para atender a necessidades ditadas pelas suas finanças, desenvolvendo
políticas mercantilistas, passou a fazê-lo para assegurar o laissez faire e,
concomitantemente, prover a proteção social, visando à defesa e preservação
do sistema.
Como aparelho ideológico jurídico, especialmente nos países de civil law, o
Direito se encontra totalmente apegado à lei. Esta redução do Direito à lei, bem como a
extirpação da carga valorativa da norma, são apenas exemplos de mecanismos de pensar
o Direito como um mundo à parte da esfera social. Por consequência, o sistema
normativo tem ares de autopoiese25, em que os agentes políticos apenas cumprem a
tarefa de realizar a atividade normatizadora da sociedade, que é a expressão jurídica do
interesse coletivo.
Além disso, a visão ideológica do Estado obscurece os fatores de conflito que
dão surgimento ao ente estatal, e que fazem dele uma necessidade à preservação da
ordem. Em um viés estritamente ideológico, tanto o Direito como o Estado se mostram
como entidades que estão acima da sociedade, manifestando apenas o interesse geral,
ou, como alguns preferem, o “bem comum”. Marx e Engels (1985, t. 1, p. 72), em “A
Ideologia Alemã”, sintetizam bem o exposto:
Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante
fazem valer os seus interesses comuns e se condensa toda a sociedade civil de
uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo
Estado, adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei assentaria na
vontade, e para mais na vontade dissociada de sua base real, na vontade livre.
Do mesmo modo o direito é, por seu turno, reduzido à lei.
24
Segundo Chomky (2007, p. 12): “[...] creio que se pode dizer que as idéias liberais clássicas, em sua
essência, embora não da forma como foram desenvolvidas, são profundamente anticapitalistas. A essência
destas idéias deve ser destruída para que elas sirvam como uma ideologia do capitalismo industrial
moderno”. 25
“Com efeito, o Direito não é autopoiético, não pode ser criado do nada, nem pode ser definido a partir
de si mesmo, somente em si mesmo” (ANTUNES, 2010, p. 85).
47
A constatação de Marx e de Engels de que o Estado condensa a sociedade civil
de uma época e, por conseguinte, regulamenta todas as instituições comuns, ainda goza
de plena validade. Ilustrativamente, o estatuto jurídico máximo de um Estado, que é a
Constituição, traz para si a tarefa de normatizar condutas e institutos, que estão
presentes na sociedade civil26
. Assim, a burguesia se arroga do poder do Estado para
fazer respeitar os seus interesses de modo a que soem como interesses universais,
regulamentando diversas entidades que são comuns aos cidadãos.
O Estado, no seu estágio atual de desenvolvimento, ainda corresponde aos
anseios da sua classe dominante, condensando institutos através dos quais a ideologia
está infiltrada, sendo reproduzida e mantida. Ocorre que, por vezes, há conflitos
estabelecidos na divisão do poder político, não podendo o Estado meramente descrever
os anseios da sua classe dominante de maneira direta.
A título ilustrativo, colaciona-se as palavra de Fernando Henrique Cardoso
(1975, p. 181) ao examinar o regime militar vernáculo, que teve sede a partir de 1964:
O decisivo é mostrar que pode ressurgir no novo estado o conflito político.
Noutros termos, o estado está expressando uma aliança contraditória de
grupos. Não quero desmentir, ao mencionar esta contradição, o caráter
burguês do Estado, como é óbvio. Desejo apenas dizer que este é insuficiente
para explicar tanto as políticas que estão sendo implementadas, como as lutas
de poder.
Neste sentido, podem ocorrer, como já tem ocorrido, choques entre os
interesses de grupos da burguesia e os interesses políticos dos demais setores
que controlam o estado. A vitória de uns ou outros grupos, isolados ou em
aliança, dependerá – dentro dos limites já assinalados – do conflito político e
não pode ser deduzida, a priori, exclusivamente das determinações abstratas
de classe. [...]
A burguesia deu o contorno, o conteúdo, a aparência ao Estado liberal, no
entanto, há momentos em que este dela se distancia, sem que perca, porém, o que pode
se denominar de “núcleo rígido”. Esse modelo de Estado, como necessidade permanente
à mediação dos diversos conflitos porta, intrinsecamente, os valores burgueses27
. Ainda
26
Na atual Constituição brasileira, exemplificativamente, estão previstas as diretrizes gerais das seguintes
instituições: a) família; b) propriedade; c) sindicatos; d) igreja etc. Todas as instituições referidas são
mediadas pela figura do Estado, que utiliza o Direito como instrumento de regulamentação, concedendo
forma política a elas. 27
Alguns ideólogos liberais ao menos possuíam a sinceridade nas palavras ao tratar do Estado. Adam
Smith (1983, v. 2, p. 167) afirma: “Os ricos, em particular, necessariamente se interessam em manter essa
ordem de coisas, já que só ela é capaz de assegurar-lhes a posse de suas próprias vantagens. [...] O
governo civil, na medida em que é instituído para garantir a propriedade, de fato o é para a defesa dos
ricos contra os pobres, ou daqueles que têm alguma propriedade contra os que não possuem propriedade
alguma”.
48
assim, em determinados períodos, o conflito presente na estrutura social ganha maior
envergadura (ou poder político), pendendo para determinada reivindicação de grupo ou
de classe, o que pode ter como produto alterações superestruturais, regulamentadas
também pelo Direito, em um processo de adequação.
Em outros termos, o choque social pode se dar, às vezes, de maneira mais
acentuada, necessitando o Estado reagir para que mantenha as diretrizes gerais. Isso
explica, em grande quinhão, as diversas concessões que a burguesia ao longo da história
vem fazendo como forma de manutenção da ordem geral28
.
Buscando uma explicação para o fenômeno jurídico a partir do Estado liberal,
tendo por premissa a modificação do paradigma jusnaturalista pelo positivista, a
representação conduz à assertiva de que o Direito e o Estado apresentam certa confusão.
Aparentemente, um é produto do outro, em virtude de aquele regular este através da
Constituição, sendo que o Estado, ao seu turno, tem a capacidade de criar o Direito, por
meio de um poder autônomo. Por via reflexa, um primeiro problema surge, que pode
ser resumido em um trocadilho, pois não se sabe, ao menos partindo da representação,
se é o Direito que cria a lei ou a lei que cria o Direito.
Visando apreender o fenômeno jurídico sob a égide do positivismo, não há como
escapar da representação comum, de que o Direito é um conjunto de normas que regem
dada sociedade. Há, nessa hipótese, uma associação entre o Direito e a lei, o que é um
equívoco. Tal aparência é facilmente dissolvida, pois caso o Direito seja um conjunto de
normas, eliminando-se este conjunto normativo não mais existiria Direito. Logo, nessa
visão, a lei criaria o Direito, este sendo corolário lógico daquela.
O passo para clarear o ponto deve ser dado com a lição de Petr Stucka, posta no
primeiro capítulo da obra “Direito e Luta de Classes”, em que o autor indaga: o que é o
Direito? Refere Stucka (1988) que, não obstante a palavra tenha sido pronunciada em
larga escala, não se encontra facilmente uma resposta à questão29. A provocação do
jurista soviético é brilhante:
28
Foi o caso, por exemplo, dos direitos trabalhistas, que após intenso conflito teve como resultado a
edição de diversas regulamentações, garantindo ao trabalhador assalariado vantagens que tem por
finalidade mitigar a relação desigual travada entre ele e o capitalista. No mesmo sentido, refere-se a
função social da propriedade, que é um mecanismo de amenizar o processo autônomo de centralização da
propriedade. 29
Relembrando uma colocação oferecida logo no exórdio do trabalho, no trato prático-utilitário, os
homens manuseiam diversos institutos, que dotam complexidade, sem que, no entanto, tenham a sua
exata compreensão. O Direito pode ser estudado por longo período, inclusive é possível manejar
perfeitamente a sua técnica, resolvendo praticamente diversas questões, tudo sem dominar a sua essência.
49
Fabricava-se o direito como produto de grandes fábricas, e para a sua
interpretação e aplicação foram construídos verdadeiros templos, onde as
solenes cerimônias dos sacerdotes do direito se desenvolviam com os mesmo
métodos de uma grande produção fabril. E apesar de tudo isso, a essência do
direito continua a ser um mistério, algo incompreensível para os simples
mortais, embora tenham a obrigação de conhecer todo o direito e este seja a
norma das relações humanas mais comuns. (STUCKA, 1988, p. 15).
Ao apontar à insuficiência das definições do que seja o Direito, o autor refere à
elaborada no Colégio do Comissariado do Povo para a Justiça, que foi redigida nos
seguintes termos: “O direito é um sistema (ou ordenamento) de relações sociais
correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada
desta classe” (STUCKA, 1988, p. 16).
Embora passível de críticas, a definição de Stucka porta elementos que pendem
alguma reflexão. O primeiro deles é a referência ao critério de classe como balizador do
conteúdo jurídico. O segundo é a menção ao Direito como sistema ou ordenamento de
relações sociais, e não de normas.
O enfoque classista é preciso. O Direito burguês tem marco inicial firme tendo
em vista que é fruto direto das revoluções liberais ocorridas a partir do século XVII, que
se intensificaram no século XIX. Estas revoluções, no mais das vezes, foram
impulsionadas pelas alterações que estavam ocorrendo na base social, como já se
apontou, brevemente, no início deste tópico.
O viés classista do Direito é assumido a partir da noção de que a classe
dominante de determinada época tem o poder de influir, em maior grau, na
superestrutura social e na formação do Direito, a exemplo do referido no ponto
pretérito. Esta alusão é útil para a construção da definição de Direito, uma vez que toca
diretamente ao seu conteúdo, que habitualmente é negligenciado pelas definições que se
prendem a critérios eminentemente formais.
De outro vértice, falar do Direito como ordenamento de relações sociais atinge
um ponto até hoje obscuro à ciência jurídica. A constatação do jurista soviético é
Francesco Carnelutti, renomado jurista, na obra “A Arte do Direito”, expressou a sua frustração quando já
em idade avançada: “Isto é, pois, o direito? E este é o jurista, que quer saber o que é o direito? Não sabe,
afinal, nada de preciso. Expressa-se, em suma, mais do que como um douto como um poeta. Precisamente
aqui está a minha diferença entre minha juventude e minha velhice de jurista. O jovem tinha fé na ciência;
o velho a perdeu. O jovem acreditava no saber; o velho sabe que nada sabe. E quando o saber junta-se
com o saber que não sabe então a ciência converte-se em poesia. O jovem contentava-se com o conceito
científico de direito; o velho sente que neste conceito perde-se seu impulso e seu drama, e, portanto, a sua
verdade. [...]” (CARNELUTTI, 2005, p. 22).
50
importante porque deslocou o foco da norma jurídica, não raro tido como elemento
nuclear. Todavia, não obstante a sua importância, a crítica que pode ser mencionada,
caminha no sentido de que, ao se afastar do elemento normativo em demasia, a sua
definição ficou desprovida de forma30
.
A mesma lacuna não se faz presente na definição de Marcus Vinicius Antunes
(2010, p. 85), adotada por este trabalho, que, em sua tese de doutoramento, afirmou:
O direito, em síntese, é um sistema de regras e princípios orientado por
valores criados na experiência social, traduzindo, ao mesmo tempo, conflito e
consenso de grupos e classes, que dispõe do aparelho de estado para impor a
coerção e sanção que lhe são indispensáveis.
A definição, como ela mesmo assume, visa estabelecer uma síntese do que seja o
Direito, mas, ainda assim, traz consigo elementos que dão conta de apreender o
fenômeno jurídico atual. Extrai-se da definição que, o Direito, como forma, é
materializado em um sistema de regras e princípios, com arrimo em valores que portam
o antagonismo e a consonância dos grupos e classes (o conteúdo), mencionando à
presença do Estado na relação para fazer impor a aplicação da norma (a forma).
A mudança de foco pode parecer sutil, contudo, deve ser dada a relevância
cabível. O Direito não emerge de um processo formal de elaboração, tampouco resulta
da consciência dos legisladores. A sua fonte reside nas múltiplas relações sociais que
são estabelecidas base da sociedade, e que criam um sistema de representações ideais,
refletidas também no Direito, que exprimem o consenso e dissenso de segmentos e
classes.
Partindo da definição utilizada, a fonte do Direito não pode ser outra senão a que
emerge da realidade social e das relações que nela são estabelecidas, ao contrário da
doutrina tradicional que aponta à lei como fonte primária. Isso não significa que a lei
não seja fonte do Direito, pois pelo fato de que diversos mandamentos legais estão
impregnados na história, há, por diversas vezes, a reprodução deles nos ordenamentos
jurídicos.
De todo o exposto, constata-se que o Direito deve ser compreendido fora da
esquemática positivista, que somente consegue pensá-lo a partir da norma, que é apenas
30
Como já assentado – e fala-se, aqui, do primeiro tópico do primeiro capítulo –, a realidade, para o
materialismo-dialético, é concebida pela composição da essência e do fenômeno. Logo, uma definição de
Direito que atinja apenas a essência, olvida-se que o falso faz também parte do real.
51
a forma do fenômeno. O foco a ser concedido deve partir das relações sociais, que é
onde o Direito surge justamente para regulamentá-las. Assim sendo, a sua fonte não
pode estar em local diverso, também sendo extraída dos múltiplos vínculos que são
estabelecidos na base da sociedade.
3.2 A IDEOLOGIA JURÍDICA
O sustentado no ponto passado conduz a outro problema não menos relevante. O
Direito, ao ter as relações sociais como a sua fonte, reflete, também, os múltiplos
vínculos estabelecidos na infraestrutura da sociedade. Além disso, está sujeito a sofrer
influências, em conteúdo e forma, dos demais elementos presentes na superestrutura
social.
Assim, a investigação, que ora merece análise, circunda a correlação que é
possível estabelecer entre o Direito e a ideologia, ao ponto de se sustentar a existência
de uma ideologia jurídica. Logo, temas como o grau de influência de um noutro, bem
como qual a função dessa interpenetração, constituem mote de exame, após perpassar
por um primeiro problema.
A indagação inicial, que deve ser colocada, responde a um questionamento mais
amplo, qual seja, a possibilidade de redução do Direito à ideologia. Pachukanis (1988),
no segundo capítulo da sua obra “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, refere à
discussão teórica travada entre Stucka e Rejner. Para este, segundo Marx e Engels, o
Direito era considerado uma das “formas ideológicas”, citando diversas passagens que
comprovariam a tese, bem como fazendo menção a autores que sustentam o mesmo.
A questão não é pacífica. Na ordem dos autores que defendem o Direito como
sendo essencialmente ideológico, cita-se um primeiro exemplo. Plekhanov (2006, p. 91-
92) afirmou que:
Toda norma de direito positivo defende determinado interesse. Qual a origem
desse interesse? Representam um produto da vontade e das consciências
humanas? Não, são criados pelas relações econômicas entre os homens. Uma
vez surgidos, refletem-se de uma ou de outra maneira na consciência dos
homens. Para defender determinado interesse, é preciso ter consciência desse
interesse. Por isso, todo sistema de direito positivo pode e deve ser
considerado como um produto da consciência. Não é a consciência dos
homens que cria os interesses defendidos pelo direito; não é ela por
conseqüência que determina o conteúdo do direito; e sim o estado da
consciência social (a psicologia social) de uma época que determina a forma
que toma no cérebro dos homens o reflexo do interesse em questão. Sem
52
levar em consideração o estado da consciência social, não encontraríamos de
maneira alguma explicação para a história do direito.
Nessa história, precisamos distinguir sempre e cuidadosamente a forma do
conteúdo. Do ponto de vista da forma, o direito, como qualquer ideologia,
sofre a influência das demais ideologias, ou ao menos de uma parte delas:
crenças religiosas, noções filosóficas etc. [...]. (grifou-se).
Desta passagem, muitas lições podem ser extraídas. Plekahnov (2006) alude que
toda norma jurídica tem um conteúdo volitivo intrínseco, que é criado como reflexo da
base social, em nítido apego à formulação clássica do materialismo. Ademais, assevera
que o conteúdo do Direito sofre interferência sempre a partir da consciência social de
uma época. Por conseguinte, o Direito, a exemplo dos demais elementos
superestruturais, apenas reflete a base real, constituindo também uma ideologia que
sofre influência das demais.
Também dentre os defensores do Direito como sendo ideologia, Marcus Vinicius
Antunes, em mais de uma oportunidade, associou ambos. No artigo intitulado “Engels e
o Direito: Parâmetros e Apontamentos Para Uma Reflexão Sobre a Ideologia Jurídica
no Brasil” aludiu o autor:
Assim, o Direito, como parte dinâmica da superestrutura, é ideologia. O
aludido caráter discursivo do pensamento do pensador jurídico é também,
com certeza, manifesto. O Direito produz e reproduz relações econômicas,
mas também produz e reproduz, historicamente, pensamento filosófico, Arte,
etc. (ANTUNES, 1995, p. 414).
Na obra “Mudança Constitucional: O Brasil Pós-88”, o referido autor retoma a
ideia ao ponderar que:
A concepção que se tenha de Estado vai, naturalmente, refletir-se sobre a
visão de Direito. Direito é fato social, mas fato normativo, dotado de sanção.
[...]. E o direito é também ideologia, sempre constituída por um corpo
explicativo de idéias acerca do ser e do viver social. O Direito, a Ciência
Política, a Sociologia estão impregnados, nuclearmente, de ideologia.
(ANTUNES, 2003, p. 34-35).
Entende-se, todavia, que, o autor, ao sustentar que o Direito é ideologia, incorreu
em uma aporia. No mesmo supracitado artigo, Marcus Vinicius Antunes aceita,
expressamente, a ideia de que o Direito pode refletir fielmente a base social, consoante
se depreende do seguinte parágrafo:
53
Em outra passagem da precitada obra “Lugwig Feuerbach e o Fim da
Filosofia Clássica Alemã”, Engels procura, com raro brilho, demonstrar sua
tese de que o Direito não é puro reflexo, inerte, passivo e indiferente. O
Direito pode ser expressão boa, fiel, ou falsa, má, das condições econômicas.
Para isso, reporta-se à descrição da evolução jurídica dos três mais adiantados
países da Europa, à época, Inglaterra, França e Alemanha, já em expansão
pelos mercados internacionais.
O que não se compreende – e no artigo não fica claro –, é como poderia o
Direito, que é ideologia, ou seja, reflexo invertido, ser fiel à base, ao mesmo tempo em
que é falsa consciência? A única explicação plausível conduz à assertiva de que o
Direito não é uma ideologia em essência.
Todos os elementos superestruturais podem refletir bem ou mal as relações
econômicas. A ideologia, por sua vez, na acepção materialista-histórica, ao menos, é
somente o reflexo invertido que produz a falsa consciência. O desatar do nó reside na
circunstância de que os campos superestruturais não portam faixas estreitas de
separação.
Assim, a superestrutura dinâmica, que corresponde à base, estabelece relações
recíprocas entre os seus elementos, como não poderia ser diferente. Todo o campo
superestrutural sofre influência, em maior ou menor grau, de outras ideologias. A
conjuntura histórica específica determina, por exemplo, o maior nível de incursão da
religião, da arte etc., no Direito ou não.
O Direito possui uma multiplicidade de ideologias, que vêm de outras áreas do
conhecimento. Nos textos legais, é facilmente constatável diversas delas. Rompendo
com o abstrato, na Constituição brasileira, o preâmbulo adota, explicitamente, alguma
crença religiosa ao prever que os congressistas constituintes promulgaram a
Constituição sob a guarda de Deus.
Por oportuno, cita-se debate veiculado no Supremo Tribunal Federal, através da
Ação Declaratória de Inconstitucionalidade nº 2076, julgada em 2002, em que se
discutiu a força normativa do preâmbulo da Constituição brasileira. Assim noticiou o
site da Egrégia Corte ([2002]):
O Plenário do Supremo Tribunal Federal considerou improcedente, por
unanimidade, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2076) do Partido
Social Liberal (PSL), contra a Assembléia Legislativa do Acre, por omissão
no preâmbulo da Constituição daquele estado da expressão “sob a proteção
de Deus”.
Na ação julgada da hoje (15/8), o partido alegava ofensa ao preâmbulo da
Constituição Federal, que mantém a expressão. Para o PSL, omissão apenas
54
na Constituição do Acre tornava o estado “o único no país privado de ficar
sob a proteção de Deus”. Argumentou-se ainda que, na Assembléia Nacional
Constituinte, a emenda que visava suprimir do texto constitucional a
invocação de Deus foi derrotada na Comissão de Sistematização.
O relator da ação, ministro Carlos Velloso, sustentou em seu voto que o
preâmbulo constitucional não cria direitos e deveres nem tem força
normativa, refletindo apenas a posição ideológica do constituinte. “O
preâmbulo, portanto, não contém norma jurídica”, disse o ministro.
O preâmbulo da Constituição do Acre, alegou Velloso, não dispõe de forma
contrária aos princípios consagrados na Constituição Federal, pois enfatiza os
princípios democráticos e a soberania popular. “Só não invoca a proteção de
Deus que, posta no preâmbulo da Constituição Federal, reflete simplesmente
um sentimento religioso”.
O ministro disse ainda que a referência à proteção de Deus não tem grande
significação, tanto que as constituições de países cuja população pratica em
sua maioria o teísmo não contêm essa referência, como as dos Estados
Unidos, França, Itália, Portugal e Espanha.
Ao reforçar o voto do relator, o ministro Nelson Jobim disse que o
questionamento do PSL à Constituição do Acre lhe fez lembrar como foi
feito o preâmbulo na Constituição brasileira. O ministro Jobim afirmou não
se lembrar do nome do deputado constituinte, mas salientou que era um
político “muito inquieto”, o que fez o senador Afonso Arinos “costurar” um
acordo para que coubesse ao deputado a redação do preâmbulo.
O condicionamento do Direito por parte de ideologias não significa que o
Direito possa a elas ser reduzido. O Direito nasce das relações sociais, e elas
regulamenta, agora, caso se assuma a posição de que o Direito é tão só ideologia,
potencializando a afirmação, todas as condutas regradas pelo Direito deveriam portar
alguma falsa consciência.
A guinada para o entendimento diverso, de que o Direito não pode ser reduzido à
ideologia, deve ser dada com as palavras de Pachukanis (1988, p. 37), quando o autor
assim estabeleceu:
Não podemos também contestar o fato de que o direito é para os homens uma
experiência psicológica vivida, sob a forma de regras, de princípios ou de
normas gerais. No entanto, o problema não está em de modo algum em
admitir ou contestar a existência da ideologia jurídica (ou da psicologia), mas
em demonstrar que as categorias jurídicas não têm outra significação além da
sua significação ideológica.
Ao que se sente, o autor encontrou o ponto central da discussão. Igualar o direito
e a ideologia é afirmar que as relações sociais, regulamentadas pelo Direito, não
possuem qualquer significado além do ideológico. Tal afirmação conduz ao sustentado
por José Maria Rodríguez Paniagua (1972, p. 81):
55
La frase de M. Motta “toda ideología es una superestructura, pero no toda
superestructura es uma ideologia” debería, pues, de acurdo con esto,
modificarse en esta otra: toda ideología es una superestructura y toda
superestructura es una ideología.
Nem toda superestrutura é ideologia. Por isso, a passagem de Engels, em que
refere à possibilidade de o Direito retratar fielmente a base, é dotada de total coerência.
O reflexo das relações de produção na mente humana pode ser mais ou menos claro, em
conformidade com diversos fatores históricos, bem como da necessidade ou não de
falseamento do real.
Além disso, caso o Direito fosse somente ideologia, ao se desvendar esta
ideologia não mais existiria o conteúdo jurídico, pois o seu significado está
condicionado a uma meia verdade. É um problema lógico tão grave quanto associar o
Direito ao Estado, pois uma vez este desaparecendo, da mesma sorte gozaria o outro.
Ou seja, o cerne da questão parece circundar não a redução de um a outro, mas
estabelecer os pontos de contato, bem como as influências recíprocas que são firmadas.
Como já apontado, o Direito sofre condicionamento dos demais elementos que
integram a superestrutura, e com eles estabelece relações. Isso justifica a possibilidade
de se falar em uma ideologia jurídica, que, nas palavras de Óscar Correas (1995, p.
118), representa:
[...] a ideologia expressada no discurso jurídico, ou seja, no discurso que
acompanha o direito como no discurso de quem fala dele. Tal como o direito,
também o discurso jurídico possui ideologias. Trata-se, por exemplo, do
discurso que prescreve normas, supostamente discurso “científico”, mas
também do discurso que, referindo-se ao direito, o avalia como junto ou
injusto, conveniente ou inconveniente, ajustado ou não “a realidade”, como
costumar dizer os juristas. Igualmente se trata do discurso que, acompanha o
direito, o explica, o fundamenta, ajuda a interpretá-lo, o maquila ou,
inclusive, prescreve condutas que o poder espera que se acredite que se
produzem e não efetivamente se produzam. Isto não impede que, às vezes, de
fato fundamente as resoluções de funcionários de ideologia “não prevista”,
como os poucos juízes que, fundamentando-se na ideologia do direito
presente em alguns textos constitucionais como o “direito à moradia”,
produziram sentenças rechaçando a pretensão de desalojar os ocupantes
pobres de imóveis pertencentes a ricos investidores de bens de raiz.
A ideologia jurídica é, portanto, a materialização, em termos jurídicos (ou
normativos), da influência que o Direito sofre dos demais elementos superestruturais.
Elementos estes, que refletem a base, e que portam, inclusive, características típicas das
ideologias, ao ponto de assumir a forma e o conteúdo jurídico de algo ontologicamente
56
ideológico. O Direito reproduz no plano legal o que a ideologia firmou no plano ideal.
Ou seja, é a instrumentalização da ideologia sob a forma jurídica (normativa).
Apenas cabe tecer uma ressalva. Quando se fala em ideologia jurídica, é possível
extrair uma dupla conclusão. Uma delas permeia o fato de que o Direito sofre influência
dos demais campos superestruturais, como até aqui se expôs. Outro problema, no
entanto, são as ideologia tipicamente jurídicas.
Nem toda a ideologia presente no Direito advém das relações que estabelece
com os demais elementos superestruturais. Algumas delas são, simplesmente, os
reflexos invertidos da base material agindo sobre o Direito. Para a formação de uma
ideologia jurídica não há, a rigor, a necessidade de interferência de outro campo
superestrutural (embora haja), bastando o Direito reproduzir a falsa consciência de
determinada relação de produção.
É o caso, por exemplo, da liberdade contratual prevista no Código Civil
brasileiro. Até se pode afirmar que a ideia de liberdade representa uma crença superior
ao Direito, no entanto, aplicada às relações contratuais, nada mais é do que a reprodução
de dada relação econômica em termos jurídicos (com uma severa dose de ideologia, é
claro, jurídica).
Para entender a finalidade da existência de ideologia no Direito, faz-se
necessário deter a dimensão problemática presente na relação entre o Estado, o Direito e
a ideologia. Segundo Marilena Chaui (1985, p. 90-91):
Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de
repressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade,
fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é
o Direito, Isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais
em proveito dos dominantes. Através do Direito, o Estado aparece como
legal, ou seja, como “Estado de direito”31
. O papel do Direito ou das leis é o
de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como
legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito para o
dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem
percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumentos para o
exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam
respeitados e os dominados se revoltariam.
A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o
legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom.
Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou
31
Segundo Marta Harnecker (2000, 64-65): “[...] não se deve confundir, „Estado de direito‟ com „Estado
de direita‟. A burguesia, que advoga com tanta paixão o respeito ao Estado de direito, coloca imensos
entraves quando as forças progressistas e revolucionárias pretendem modificar esse Estado de direito,
procurando por em prática reformas da constituição que permitam uma melhor expressão dos interesses
populares [...]”.
57
seja, a dominação de classe é substituída pela idéia de interesse geral
encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do
Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída
pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, boas e válidas para
todos.
Portanto, a função da ideologia no Direito é mascarar as relações que são
estabelecidas na base da sociedade em que os indivíduos aparecem de maneira díspares
e não tendo a capacidade de influir de maneira determinante na condução da vida. Com
isso, o Direito associa-se ao Estado, fazendo parecer que um é fruto do outro, sendo que
a síntese dessa junção é manifestação jurídica da vontade geral.
A ideologia auxilia na tarefa de manter obscuras as forças que dão conteúdo às
normas jurídicas, e que fazem do Estado um órgão que representa a vontade de apenas
parte da população. A relação de exploração deve aparecer com naturalidade, sem
história, tendo o Direito o papel fundamental de equalizar e equilibrar o que é
ontologicamente distinto.
A ideologia jurídica utiliza-se de um discurso ideológico, em que as palavras
têm a aparência de conduzir a sociedade à sua transformação. Todavia, a capacidade de
transformação, não raro, encontra óbice não só nas forças materiais existentes, mas no
próprio embate político, também permeado de ideologias. Nesse sentido, Eduardo Bittar
(apud Weyne, p. 67): “[...] o direito tem uma função ideológica, que lhe é garantida por
um discurso empolado, um discurso rico de figuras simbólicas, que, no entanto, não
transforma em realidade concreta para a melhoria da própria condição do trabalhador”.
De todo o esposado, afora a digressão retro posta, constata-se que, embora não
seja possível reduzir o Direito à ideologia, decerto há estreita relação entre ambos, não
só pelo fato de estarem presentes na superestrutura social, mas também por
estabelecerem campos comuns de influência. Além disso, há a possibilidade de o
Direito desenvolver as suas próprias ideologias, quando fruto direto das relações que na
base são contraídas.
58
4 A FUNÇÃO HARMONIZADORA DA IDEOLOGIA E A TOTALIDADE
CONCRETA NO DIREITO
4.1 A FUNÇÃO HARMONIZADORA
A ação de harmonizar, no seu sentido amplo, pode ser entendida como o
exercício de dada atividade, que pressupõe o intento de estabelecer o equilíbrio entre
coisas diversas em si. Visa, nessa ordem, implantar sintonia, consonância, em objetos
que, a princípio, estão andando em linhas conflituosas e dispares.
No Direito, o ordenamento jurídico, compreendido em sua representação como o
universo de normas, deve manter um mínimo de coerência por diversos motivos.
Francesco Carnelutti (2007), em sua obra “Como Nasce o Direito”, afirmava que
diversos institutos jurídicos nascem de fora do Direito. Cita, como exemplo, a
propriedade, que, segundo o autor, seria “um fenômeno econômico antes de ser
jurídico” (CARNELUTTI, 2007, p. 12). Na mesma linha de raciocínio, situar-se-ia os
contratos.
Ainda, para o autor, o Direito teria a função de pôr ordem na economia, que
seria o terreno do “eu”, dando nítido contorno para o Direito como regulamentador de
institutos econômicos. Ao tecer tais considerações, decerto Carnelutti não tinha o
domínio da profundeza de suas palavras, pois o mero fato de institutos jurídicos não
possuírem as suas raízes fincadas no Direito, não demonstra a maior problemática
existente.
O Direito, ao regulamentar institutos exógenos – principalmente os do campo
econômico –, deixa, por vezes, de reproduzi-los fielmente, formando as ideologias
jurídicas. O conflito firmado no campo econômico, que é aceito por Carnelutti32, não
pode – ao contrário do que pensa o jurista – ser simplesmente transposto ao Direito,
caso haja a ideologia presente na relação.
32
“O lema da economia é, infelizmente, homo homini lopus [o homem, para o homem, é o lobo]; o
homem, economicamente, comporta-se diante do outro homem como um animal predador. Em vez de
deixar a cada um o que lhe tenha conseguido obter, o outro se vê tentado a arrebatá-lo dele. A guerra não
é em sua raiz mais do que este ato de arrebar. [...]
Se quiséssemos reunir numa breve fómula as razões pelas quais os homens não conseguem viver em paz
no terreno da economia, poderíamos dizer que a economia é o reinado do eu, ou seja, do egoísmo. O
terreno da economia é aquele no qual se encontra diversos egoísmos, tanto dos homens quanto dos povos.
Por isso, em si e por si, é o reinado da desordem” (CARNELUTTI, 2007, p. 15;12).
59
As projeções dos vínculos infraestruturais sobre a superestrutura social não
aparecem, no mais das vezes, de maneira límpida. Caso assim fosse, todo o conflito
presente na base iria se reproduzir, inclusive no Direito, o que afastaria a possibilidade
de existir uma ordem jurídica conexa. Assim, o Direito, mais do que meramente
regulamentar, tem que ser uma expressão que dote coerência em si, portanto,
harmônico.
A questão, porém, é como se operacionaliza essa harmonização dentro do
ordenamento jurídico. Adentrando no fundamento da ideia, cita-se as palavras de
Friedrich Engels (1985, t. 3, p. 533-534), em carta dirigida a Konrad Schmidt, em 1890:
Com o Direito [Jus], passa-se de modo semelhante: logo que a nova divisão
do trabalho que cria os juristas de profissão se torna necessária, abre-se, por
sua vez, um novo domínio, autônomo, que, em toda sua dependência geral da
produção e do comércio, possui, contudo, também uma capacidade particular
de reacção contra esses domínios. Num Estado moderno, o Direito [Recht]
tem, não apenas de corresponder à situação económica geral, de ser
expressão dela, mas também de ser uma expressão em si conexa, que não se
esbofeteie a si própria por contradições internas. E, para conseguir isso, a
fidelidade do reflexo [Abspiegelung] das relações económicas é feita cada
vez mais em fanicos. E isto tanto mais quanto é raro ocorrer que um código
seja expressão abrupta, não adoçada, não falsificada, da dominação de uma
classe: isto seria mesmo contraditório já ao <<conceito de Direito>>. O
conceito do Direito, puro, consequente, da burguesia revolucionária, de 1792
– 1796 está já falsificado, sob muitos aspectos, no Code Napoleón, e na
medida em que aí está corporizada, tem diariamente que experimentar toda a
espécie de atenuações por causa do poder crescente do proletariado. O que
não impede o Code Napoleón de ser o código que, em todas as partes do
mundo, serve de base a todas as codificações. Assim, o curso do
<<desenvolvimento do Direito>> só consiste, em grande parte, em que,
primeiro, se procure eliminar as contradições que se produzem a partir da
tradução imediata das relações económicas em princípios jurídicos e
estabelecer um sistema jurídico harmonioso, e em que, depois, a influência e
o constrangimento do ulterior desenvolvimento económico rompe sempre de
novo esse sistema e complica-o em novas contradições (de momento, falo
aqui apenas do Direito Civil).
A passagem de Engels traz um ponto que ainda carece estudo mais aprofundado,
embora se possa extrair algumas conclusões. O Direito, no modo de produção
capitalista, deve assentir, em linhas gerais, com os anseios da sua classe dominante.
Assim, especialmente no direito civil, há a reprodução fiel da base econômica, no
entanto, esta reprodução engendra contradições que devem ser harmonizadas.
Para a existência da harmonização, o ordenamento jurídico deve conter a
reprodução fiel da infraestrutura social, mas apenas de um lado, pois, de outro, há a
falsificação ideológica sob a forma normativa, que busca sopesar o contraditório. A
60
análise é extensiva ao campo do direito público, não obstante a análise de Engels tenha
recaído tão somente sobre o direito privado.
Situando o espectro de abordagem, não obstante se afirme a existência no
ordenamento jurídico de reprodução direta da base33
, o exame, agora, centra-se somente
na parte ideológica, que propicia a harmonização, bem como nas implicações jurídicas
que daí decorrem. Em termos amplos, o que se estuda é um dos modos de
operacionalização da ideologia dentro do ordenamento jurídico.
A harmonização no Direito é um movimento somático, que responde a
provocações imediatas e objetivas, o que não significa que é causal. Ou seja, é o
mecanismo de adequação das necessidades imanentes do ordenamento jurídico, para
que a ordem social, a realidade da vida, esteja representada em conformidade com a
consciência ideológica dominante.
Assim, a atividade de harmonizar o sistema normativo deve ser vista sob o
prisma de determinado período histórico, e da sua função dentro do sistema, sem que se
cogite a hipótese da necessidade eterna de determinada harmonização. Até mesmo
porque a norma jurídica, formalizadora das relações sociais, guarda correspondência
com a consciência social dominante de determinada época.
Na ordem capitalista, diversas relações são travadas tendo o elemento ideologia
como fundamental. Portanto, nada mais esperado do que o ordenamento jurídico repetir
as ideologias sociais, tendo algumas delas a função de harmonizar a mera reprodução
das relações infraestruturais.
A mutabilidade do ordenamento jurídico e, por via reflexa, da função
harmonizadora, depende de alterações que se operam no âmbito da infraestrutura da
sociedade. Em certa medida, em relação à base social, existe também a necessidade de
harmonização, para que se mantenha determinada formação social. Embora a assertiva
não constitua objeto de análise, cabe menção às palavras de Oskar Lange (1976, p. 50-
51):
A primeira e a segunda lei geral da sociologia exprimem a condição de
harmonia, de equilíbrio interno das formações sociais, as condições de
adaptação mútua das partes constitutivas de uma formação dada. A primeira
lei constata a necessidade de uma correspondência entre as relações de
produção e o caráter das forças produtivas, a segunda a necessidade de uma
33
É válido atentar que, caso não houvesse reprodução fiel da base econômica, o Direito poderia ser
reduzido a mera ideologia, pois seria composto unicamente de elementos falsos ou falseadores, conforme
estudado no ponto 3.2.
61
correspondência entre a superestrutura e as relações de produção (base
económica). Estas são, de uma certa forma, as leis da conservação das
formações sociais. Se as condições definidas por estas leis não estão
realizadas, a formação social cai numa contradição interna, as diversas partes
constitutivas deixam de se adaptar umas às outras. Então a formação social
modifica-se, transforma-se em outra.
Ademais, esta tarefa de harmonizar é cumprida, em linhas gerais, pelo próprio
Estado, conforme refere Marcuse (1969, p. 113), que adota a noção de que o ente estatal
não meramente reproduz os interesses da classe dominante:
Na teoria marxista, o Estado se relaciona à super-estrutura, na medida em que
êle não é simplesmente a expressão política direta das relações básicas de
produção, mas contém elementos que “compensam” as relações classistas de
produção. O Estado, sendo e permanecendo um Estado das classes dirigentes,
apóia a lei e a ordem universais, de forma a garantir um mínimo de igualdade
e segurança para tôda a sociedade. Sòmente em virtude dêsses elementos é
que o Estado de classe pode preencher a função “moderadora” de manter
dentro dos limites da “ordem” os conflitos de classe gerados pelas relações de
produção. E é essa “mediação” que dá ao Estado a aparência de um interêsse
universal, superior aos interêsses particulares conflitantes.
A harmonização é procedida por meio da ideologia, correspondendo à vontade
da classe dominante de falsear o real, que nada mais é do que a tradução direta das
relações econômicas. O falseamento, cabe destacar, não ocorre através da eliminação da
contradição, mas pelo ato de sopesar coisas antagônicas. Essa função é imprescindível
para que a contradição de classes se afigure compatível e controlável dentro da lógica
desejada. O Estado34, que avoca para si a responsabilidade de editar normas em caráter
geral, utiliza-se de normas ideológicas para harmonizar o conflituoso.
A harmonização, para fins didáticos e não reducionistas, pode ser analisada sob
uma dupla faceta. A primeira delas, a interna, representa a ideologia dentro do
ordenamento jurídico, em que duas ou mais normas portam conteúdo diverso acerca do
mesmo tema, como até aqui se divagou. Ou seja, há uma norma que reproduz
diretamente as condições econômicas, e vem outra, ideológica, equilibrar a existência
dela, para criar uma aparente harmonia no sistema.
A segunda, a externa, pode ser depreendida em uma interpretação extensiva da
citação de Engels retro colocada. Essa, por sua vez, abrange a necessidade de
34
Aqui, quando se utiliza a expressão “Estado”, a exemplo dos tópicos pretéritos, não se está
empregando-a para designar todas as formas de aparição deste. Para fins de cumprimento do objetivo do
estudo, seria pouco servível retomar as suas origens e o seu desenvolvimento. O modelo de Estado que se
remete é o liberal, que em sua forma, essência e conteúdo pouco mudou.
62
estabelecer equilíbrio dentro do Direito, também através da ideologia, de modo a
mitigar dada desigualdade que é estrutural. Embora não haja divergência aparente de
características entre a interna e a externa, o diferencial é que esta visa não apenas
preservar a harmonia do ordenamento em si (embora faça isso também), mas
estabelecer o equilíbrio social a partir do ordenamento.
A instrumentalização dessa última hipótese de harmonização, ocorre quando
uma ou mais normas do ordenamento jurídico são utilizadas para preencher dada
demanda social estruturalmente reprimida. O que se intenta, de fato, é extrair do
fenômeno jurídico o que a ordem econômica não pode propiciar, e, por vezes, o próprio
direito objetivo não soluciona.
Nesse caso, há também, de um lado, a reprodução fiel das relações da base, no
entanto, outra norma, geralmente de caráter mais abrangente (como o princípio o é),
atua para equilibrar a desigualdade, ponderando o sistema jurídico35
. Posta a questão em
termos materialistas, configura uma das hipóteses de reação da superestrutura em
relação à base.
Traçando um paralelo entre as formas de harmonização, pode-se afirmar que na
primeira delas, a interna, há duas normas, de igual hierarquia, que prescrevem uma
conduta ou um fato análogo, sendo que o sentido delas porta incompatibilidade lógica.
Uma delas fielmente reproduz a base, sendo que, a outra, ideológica, ameniza.
Já na harmonização externa, também existem duas normas, não necessariamente
de mesma hierarquia, e que não versam sobre o mesmo fato ou conduta,
necessariamente. No entanto, ante a inexistência de uma norma para equilibrar outra que
traz a reprodução fiel da base, recorre-se a alguma de maior abrangência para equalizar
a relação.
Impende ressaltar que, a harmonização, em ambas as hipóteses, ocorre apenas
em termos superestruturais, não tendo o condão de alterar de modo significativo
estruturas econômicas pré-fixadas. Nessa ordem de raciocínio, visa apenas mitigar, no
plano normativo superestrutural, conjunturas históricas específicas, que não acobertam
demandas imanentes. A harmonização que procede a ideologia, em verdade, é uma
forma de, por um lado, reproduzir os anseios econômicos em termos jurídicos, e, por
35
Apenas para minimamente clarear, o exemplo que se traz – e que será examinado no próximo ponto – é
o da dignidade da pessoa humana. A hipótese de harmonização se configura quando o direito objetivo não
acolhe determinada demanda coletiva, e, a fim de equilibrar a ordem jurídica, a pretensão pode ser
acolhida em nome da dignidade da pessoa humana, que, segundo alguns, é o princípio jurídico basilar do
ordenamento jurídico pátrio.
63
outro, falsear ideologicamente o conflito que se estabelece, buscando equilibrar com o
contraditório.
Quanto à forma, a harmonização ocorre através de regulamentações presentes no
direito objetivo36
. Além disso, segundo Marcus Vinicius Antunes (1997, p. 415):
As formas e os meios de harmonização, é claro, são variáveis. Como regra,
nos países do Common Law, e, mais recentemente, em parte, nos países do
sistema de Direito Codificado, o Poder Judiciário realiza essa “tarefa
harmonizadora” por meio da jurisprudência, inclusive contra legem, ou
prater legem.
Posta a questão da harmonização externa sob outro viés, é possível o
entendimento de que ela resulta de um processo de objetivação do sujeito e subjetivação
do objeto, em franca utilização da ideia de Georg Simmel37
. Nessa desordem, a forma e
o conteúdo perdem os seus papéis e invertem-se, consoante irá se demonstrar no ponto
seguinte.
Diante de todas as informações colocadas, constata-se que a harmonização é
uma das formas de materialização da ideologia no Direito. Além disso, é possível
afirmar a existência de uma dupla harmonização, embora ambas possuam, em linhas
gerais, a mesma finalidade, qual seja, manter a consonância do sistema jurídico, que não
pode, por vezes, meramente descrever as relações que na infraestrutura da sociedade são
fixadas.
36
O motivo pelo qual a forma da harmonização se dá pelo direito objetivo pode ser depreendido desta
passagem de Nicos Poulantzas (1981, p. 99): “A lei e o sistema jurídico capitalistas apresentam
igualmente, porém, particularidades no seu aspecto de materialização da ideologia dominante. A
legitimidade desloca-se em direção à legalidade [...]. A lei, já encarnação do povo-nação torna-se a
categoria fundamental da soberania do Estado: a ideologia jurídico-política em região dominante da
ideologia [...]. [...] A função de legitimidade desloca-se em direção à lei, instância impessoal, abstrata, ao
mesmo tempo em que, no seio das relações de produção, os agentes „desatam‟ e se liberam de seus elos
territoriais-pessoais. Tudo se passa como se essa lei, graças a sua abstração, formalidade e generalidade,
se tornasse aqui o dispositivo mais apto a preencher a função mor de toda ideologia dominante: a de
cimentar a unidade de uma formação social (sob a égide da classe dominante)”. 37
Segundo André Lemos (2008, p. 17): "É a vida social contemporânea, enfim, que deve ser observada,
não numa perspectiva de conceitos congelados, mas pela ótica do movimento caótico e sempre inacabado
entre formas técnicas e os conteúdos da vida social. Para Simmel, a tragédia da cultura está ligada ao
processo dialógico entre as formas e os conteúdos; entre a subjetivação do objeto e a objetivação do
sujeito. Levar em conta a dimensão técnica da vida quotidiana significa dirigir nosso olhar ao mundo da
vida".
64
4.2 A FUNÇÃO HARMONIZADORA NO DIREITO PÚBLICO E NO DIREITO
PRIVADO
No capítulo pretérito, verificou-se que a função harmonizadora corresponde a
uma necessidade de equilíbrio do ordenamento jurídico, levada a efeito através da
ideologia. Assim, o presente tópico apenas cumpre a tarefa de exemplificar, no direito
brasileiro, o modo pelo qual a harmonização é efetivamente procedida nos ramos deste,
quais sejam, o público e o privado.
A relação existente entre essas esferas do Direito tem constituído uma
verdadeira dicotomia, conforme aponta Norberto Bobbio (2003). Para o autor, é
plausível sustentar a existência de uma grande dicotomia quando se pode dividir um
universo em duas esferas, desde que todos os entes deste universo se façam presente em
uma ou noutra parte. Além disso, a definição de uma das partes pode ser feita
independentemente da outra, podendo, inclusive, quando uma é definida, a outra ganhar,
automaticamente, uma definição negativa.
De modo clássico, é relativo ao direito privado os assuntos que pertencem à
seara dos particulares, em que o Estado não deve interferir, ou ao menos não de maneira
a fazer valer os seus interesses. Pelo contrário, quando se fala em direito público, está-se
a referir pela preponderância do interesse coletivo sobre o particular, comumente
confundido com o interesse estatal.
A radical oposição entre o direito público e o privado é passível de muitas
críticas. Michel Miaille (1994) apresentou, brilhantemente, boa parte delas. Para o autor,
a divisão não é fruto de elucubrações de juristas, pois segundo ele: “Na realidade, como
vou mostrar, a separação público-privado é objectiva na sociedade capitalista: ela fala-
nos de organização concreta e real dessa sociedade” (MIAILLE, 1994, p. 152).
Conforme Miaille (1994), a dicotomia baseia-se em um fundamento primordial,
que é a separação entre o indivíduo e o grupo social, em forma de oposição. Isto é, as
finalidades e os conteúdos das relações privadas opõem-se às públicas, sendo que a
liberdade está do lado do privado e a coerção ao lado do público.
Ainda, para o autor, há dois movimentos de modificação da fronteira entre o
público e o privado. Um deles, caminha no sentido da publicização do Direito (no
Brasil, cita-se, como exemplo, a doutrina recente de constitucionalização do direito
65
privado), que seria o mais aparente. O outro se dirige à privatização, que corresponderia
ao movimento real.
Referente à publicização do Direito, buscando estabelecer laços analógicos aos
exemplos do direito francês trazidos pelo autor, reproduz-se a ideia de que o Estado tem
intervindo em setores outrora abandonados. A substituição da noção do Estado liberal
clássico pelo provinciano, conduz à necessidade de regulamentação de áreas de cunho
eminentemente social, tais como: a educação, seguridade social, cultura etc.
Além disso, como consequência, superficialmente falando, a publicização do
Direito aparece também como restrição das liberdades. Para Miaille (1994, p. 155):
“Antigamente, o director da empresa era <<livre>> nas suas relações com o operário
que empregava, o proprietário era <<livre>> nas suas relações com o seu inquilino [...].
Na sequência, o autor complementa: “ <<Vê-se>> que está liberdade foi reduzida já que
a legislação social veio a restringir quer os poderes do proprietário, quer os do patrão”.
A visão apresentada, segundo o autor, é falsa:
[...] não é porque o direito privado se tornou mais imperativo que ele se
transformou em direito público. Não houve, realmente, publicização do
direito. Vamos mesmo um pouco mais longe: quando o Estado, por
intermédio do legislador, diminui a liberdade do patrão, é para dar mais
consistência à do empregado. Não diminuiu, pois, por este facto <<a
liberdade>> no seio da sociedade.
Pela lógica inversa, Miaille (1994) aponta que sob o fundamento da
incapacidade do direito público ser eficaz nos domínios econômicos e sociais, é que o
direito privado vem ganhando terreno. Cita, ilustrativamente, que as empresas estatais,
no mais das vezes, estão submetidas ao regime de direito privado, isso sem contar os
serviços tradicionalmente públicos que passaram para o domínio privado38
.
38
Em certa medida, o Brasil experimentou o aludido com uma verdadeira privatização do Estado, por
meio de alterações legislativas de grande envergadura. Paulo Bonavides (2004, p. 660-662) relatou o
caráter privatista de cinco emendas constitucionais à Constituição de 1988: “A EC 5 pôs termo ao
monopólio estatal da exploração dos serviços de gás canalizado, permitindo, doravante, o regime de
concessão [...]. A EC 6 insere-se no esquema de desnacionalização da economia brasileira, fomentada
pelo neoliberalismo instalado no poder. Modificou o inciso IX do art. 170, que outorgava tratamento
favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte. Doravante, os benefícios
desse princípio de ordem econômica são estendidos a quaisquer empresas de pequeno porte, não fazendo
diferença sejam elas de capital nacional ou capital estrangeiro [...]. A EC 8, por sua vez, não fugiu ao
espírito que move o constituinte da reforma: o da remoção de todos os ingredientes nacionalistas da Lei
Magna, em nome de uma abertura completa, e certamente inadvertida, da riqueza nacional aos capitais
externos, absolvidos e legitimados nessa ocupação da economia brasileira com o argumento da
globalização. Essa Emenda n. 8 faz com as telecomunicações o que já se fez com a empresa brasileira, o
66
Para Miaille (1994, p. 159), com esteio na lição de Pachukanis, a separação entre
o direito público e o privado “não é, pois <<natural>>: não é lógica em si, traduz uma
certa racionalidade do Estado burguês”. Para comprovar a tese, refere o Estado
absolutista, em que o poder público era exercido pelo senhor feudal, que ao mesmo
tempo era o proprietário da terra. Nessas condições, não se justificaria uma separação
extrema, uma vez que o público e o privado se confundiriam na mesma pessoa. No
capitalismo, entretanto, como visto, o Estado aparece como instituição que dota
autonomia em relação à formação social, o que justifica a segregação.
Quase concluindo, acerca da dicotomia, alude Miaille (1994, p. 160):
Por outras palavras, a separação entre direito público e direito privado é
exterior ao indivíduo: ela separa-os em dois elementos distintos e mesmo
opostos. O homem como indivíduo burguês privado e o homem como
cidadão do Estado não é afinal senão outra formulação da distinção entre
direito privado e direito público.
Cita-se, por oportuno, os dizeres de Friedrich Engels (1985, t. 3, p. 416), que examinou
a relação entre o direito público e o privado à luz da necessidade de harmonização:
O Estado, porém, uma vez tornado poder autónomo face à sociedade, produz
logo uma ulterior ideologia. Nos políticos de profissão, nos teóricos do
direito público e nos juristas de direito privado, nomeadamente, por maioria
de razão, perde-se a conexão com os factos económicos. Porque em cada
caso individual os factos económicos têm de tomar a forma de motivos
jurídicos, para serem sancionados sob a forma da lei, e porque, ao fazê-lo, há
também evidentemente que ter em consideração todo o sistema jurídico já em
vigor, por [tudo] isso, a forma jurídica deve, então, ser tudo e o conteúdo
económico nada. Direito público e direito privado são tratados como
domínios autônomos, que têm o seu desenvolvimento histórico independente,
que são capazes em si mesmo de uma exposição sistemática e a requerem
através de consequente extirpação de todas as contradições internas.
Não obstante o apontamento das críticas tecidas por Michel Miaille e Engels,
para fins didáticos, bem como seguindo a doutrina tradicional, visando examinar uma
das formas de operacionalização da ideologia no ordenamento jurídico, adota-se a
divisão entre o público e o privado.
Começando pelo direito público, o primeiro exemplo que se traz, de
harmonização interna, foi o elaborado por Marcus Vinicius Antunes. O autor,
retomando a importância da função harmonizadora, assim pôs a questão:
monopólio estatal do petróleo, os recursos minerais, a navegação de cabotagem, conforme vimos:
escancarar a janela ao capital alienígena”.
67
A reflexão sobre a necessidade de construir um sistema harmônico de
Direito, de eliminar as contradições decorrentes da “tradução direta das
relações econômicas”, é extremamente interessante. Adiantemo-nos. O
mesmo se dá no campo do Direito Público (e nas relações deste com o
Direito Privado). No Brasil, essas tentativas de harmonização ocorrem em
diversas direções e instâncias. Por exemplo, no art. 170 da Constituição: II –
propriedade privada; III – função social da propriedade. Seriam duas
propriedades diferentes? Em verdade, as relações econômicas na produção –
as relações de produção, com trabalho assalariado – dão-se nos marcos de um
sistema de propriedade privada dos meios de produção, o que é contraditório
com o caráter social da produção (e não com uma programática função
social). Assim, a “Função Social da Propriedade” é um meio de
“harmonizar” a contradição. (ANTUNES, 1997, p. 415).
Ainda, para o autor, outro exemplo está presente no art. 173, parágrafo 4º, da
Constituição: “§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação
dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. Pois,
ao mesmo instante, assegura a livre concorrência e a livre iniciativa (arts. 170, caput e
inciso IV, respectivamente). “Ou seja, a repressão ao abuso econômico, ainda que não-
efetivo, representa as „atenuações‟ impostas por forças de fora do espectro exclusivo do
grande capital” (ANTUNES, 1997, p. 415).
Nessa mesma linha de raciocínio, pode-se inferir a previsão do caput do art. 170
da Constituição39
, que prevê a ordem econômica como fundada, de um lado, na livre
iniciativa, e, de outro, na valorização do trabalho humano. Como restou explanado no
ponto 2.3, a condição do trabalhador assalariado está em franca dissonância ao livre
exercício da atividade econômica por parte dos detentores dos meios de produção,
sendo a valorização do trabalho humano uma atenuação para a desigualdade estrutural
gerada justamente pela livre iniciativa.
Ainda no art. 170, dentre os seus incisos, o quatro e o cinco preveem,
respectivamente, a livre concorrência e a defesa do consumidor. Por um lado, tem-se o
resguardado o direito do capitalista da livre concorrência, mas, de outro, busca-se a
defesa do consumidor como meio de balancear o reflexo direto das relações econômicas
em seus destinatários.
Outro exemplo relativo à propriedade, só que rural, o art. 186 da Constituição
elenca os requisitos necessários para o cumprimento da sua função social. Dentre eles, o
inciso quatro rege: “IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
39
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
princípios: [...]”.
68
trabalhadores”. A ordem econômica assegura ao capitalista a propriedade dos meios de
produção e a livre iniciativa para o seu exercício, buscando, entretanto, que a exploração
atinja o bem-estar também do trabalhador, representando uma real “mitigação” dos
efeitos reais inerentes ao direito de propriedade rural.
Inclusive, na Constituição de 1967, já com a edição da Emenda Constitucional nº
1 de 1969, o art. 160 dispunha que a ordem econômica tinha como princípio a liberdade
de iniciativa. Porém, no inciso IV, havia o princípio da “harmonia e solidariedade entre
as categorias sociais de produção”. Escancaradamente, a segunda norma visava ao
estabelecimento de consonância em coisas que são, em si, antagônicas.
Escapando do direito público, no ramo privado é onde as relações econômicas
aparecem de maneira mais clara. Deve haver, minimamente, uma reprodução da base
econômica, uma vez que a legislação civil tem como objetivo primordial a
regulamentação do bem jurídico de maior valor, que é a propriedade. Regula, pois,
todos os atos da vida civil do “homem” e do “cidadão”, desde o momento em que é
nascituro, depois em que é incapaz de celebrar negócios jurídicos, até se tornar apto a
adquirir, negociar, e, inclusive, após a morte, transmitir os seus bens aos seus herdeiros.
Acerca do tema, dá-se relevância às palavras de Engels (1985, t. 3, p. 415):
Se o Estado e o direito público são determinados pelas relações econômicas,
também evidentemente o é o direito privado, que, essencialmente, sanciona
apenas as ligações económicas normais existentes, nas circunstâncias dadas,
entre os indivíduos. A forma em que isso acontece pode, porém, ser muito
diversa. [...]. Pode [...] tomar por base o primeiro direito mundial de uma
sociedade produtora de mercadorias, o [direito] romano, com a sua
inultrapassável incisiva elaboração de todas as ligações jurídicas essenciais
de simples possuidores de mercadorias (comprador e vendedor, devedor e
credor, contrato, obrigação, etc.).
No Código Civil vernáculo, a liberdade de contratar é ampla, não tendo os
contratantes que seguir, em regra, formas específicas para formalizarem um vínculo
obrigacional, consoante dispõe o art. 425: “É lícito às partes estipular contratos atípicos,
observadas as normas gerais fixadas neste Código”. Entretanto, o art. 421 assim prevê:
“A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do
contrato”. Veja-se que o livre exercício da atividade de contratar representa uma
realidade econômica, que é suavizada pela função social, conceito que até hoje não foi,
legalmente, explicitado no âmbito do direito privado.
69
Ainda, o Código Civil regulamenta o direito de propriedade nos seguintes
termos: “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o
direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.
Contudo, no seu parágrafo primeiro, condicionando os plenos poderes conferidos à
propriedade, ressalva:
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas.
Perpassando alguns exemplos do que se denominou de harmonização interna, a
segunda parte será centrada na análise da harmonização externa. Para tanto, o foco será
direcionado para apenas uma norma em específico, em razão da limitação espacial, bem
como porque se julgou a que mais tem sido dada relevância hodiernamente.
No ponto 3.2, quando se escreveu acerca da ideologia jurídica, ficou ressaltado
que diversos conceitos superestruturais exógenos podem ser incutidos no Direito. Lá,
um exemplo concreto foi referido, buscado na crença religiosa. Portanto, como
anteriormente firmado, conceitos filosóficos, igualmente, podem condicionar o
conteúdo da norma jurídica, que é caso da expressão “dignidade da pessoa humana”,
presente na Constituição brasileira, que ora será objeto de análise.
A dignidade da pessoa humana é um típico exemplo de ideologia, pois é um
conceito filosófico, incutido no Direito, ao ponto de se tornar uma norma tipicamente
jurídica. É claro que não basta ser norma, tampouco constituir influência de outro
campo superestrutural para ser ideológica, todavia, se trata de uma ideologia jurídica
como restará demonstrado.
Um dos maiores expoentes da doutrina da dignidade humana, o professor Ingo
Sarlet, sustenta que o conceito tem o seu fundamento na obra de Immanuel Kant. Ingo
(2008), por diversas passagens da obra “Dignidade da Pessoa Humana e Direitos
Fundamentais na Constituição de 1988”, defende que a fundamentação da dignidade da
pessoa encontra esteio no conceito kantiano de “autonomia da vontade”. Este conceito,
ao seu turno, tem a sua formulação original no livro “Fundamentação da Metafísica dos
70
Costumes” 40
, em que Kant faz uma distinção entre o preço e a dignidade41
. Ainda, de
maneira concisa, pode-se sustentar que a autonomia da vontade liga-se à liberdade que
detém todos os seres humanos, sendo que estes devem ser compreendidos como um fim
em si mesmo, e jamais serem rebaixados à condição de meio42
.
A fundamentação da dignidade humana é um tanto quanto nebulosa. Sem contar
a aparente tautologia do termo, a noção de dignidade da pessoa é compreendida
pressupondo a existência de um ser em abstrato (qualquer humano), dotado de uma
característica especial, inata, conferida pelos próprios homens e só neles presente.
Diversas críticas poderiam ser tecidas à teoria, no entanto, escaparia, em demasia, do
objeto de estudo.
Combinada ao Direito, a dignidade da pessoa humana é uma ideologia jurídica,
ao passo que é uma teoria desconexa do ambiente material. Além disso, busca a
justificativa para o Direito em conceitos superestruturais, que jamais são explicados até
a sua essência. Isto é, como se fosse possível a existência de um fenômeno desprovido
de essência, ou melhor, como se a sua essência residisse no próprio homem ideal.
A harmonização procedida pela dignidade é levada a efeito a partir da existência
de determina norma jurídica, que reproduz fielmente a base econômica, e que, por
consequência, gera alguma situação de inconformidade social. Ocorre que, o Direito,
como incansavelmente frisado, não pode simplesmente reproduzir as relações
econômicas, pois engendraria contradições ao ordenamento. Assim, diversos institutos
que são fiéis à base estão presentes no Direito, mas com uma suavização ideológica.
O problema fundamental, em termos ideológicos, é a existência de um fenômeno
social, fruto de uma estrutura desigual, que se reproduz no ordenamento jurídico, e que
40
“A própria legislação, no entanto, que determina todo o valor, por isso mesmo deve ter uma dignidade,
ou seja, um valor incondicional, incomparável, para o qual só a palavra respeito confere a expressão
conveniente da estima que um ser racional deve lhe tributar. A autonomia é, pois, o fundamento da
dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional.” (KANT, 2006, p. 66). A adoção desse
conceito por Ingo se encontra de forma implícita em toda a obra, mas de maneira direta vide as páginas:
33, 34, 35, 37, 39, 46, 53, 54, 55, 60. 41
“No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser
substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não
admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade” (KANT, 2006, p. 65). 42
No dizer de Kant: “Todos os seres racionais estão, pois, submetidos a essa lei que ordena que cada um
deles jamais se trate a si como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si” (KANT, 2006, p.
64). Ingo Sarlet (2008, p. 53-54), fazendo a releitura do conceito kantiano, sustenta: “a dignidade da
pessoa humana, compreendida como vedação da instrumentalização humana, em princípio proíbe a
completa e egoística disponibilização do outro, no sentido de que se está a utilizar outra pessoa apenas
como meio para alcançar determinada finalidade, de tal sorte que o critério decisivo para a identificação
de uma violação da dignidade passa a ser (pelo menos em muitas situações, convém acrescer) o do
objetivo da conduta, isto é, a intenção de instrumentalizar (coisificar) o outro”.
71
é contrabalançada com um fenômeno superestrutural (a dignidade da pessoa humana).
Assim, jamais se encontra a raiz que motiva o surgimento do primeiro fenômeno, pois a
sua solução se dá através de outro fenômeno superestrutural. Ou seja, a norma jurídica é
infiltrada com um conceito filosófico, de modo a mascarar, por vezes, contradições
sociais flagrantes, e que não encontram guarida no direito objetivo.
Ao que se sente, o jurista, sensibilizado com uma situação de latente
desigualdade material, ante a incapacidade de compreensão do fenômeno, busca como
subterfúgio para a não aplicação da literalidade da lei, um conceito filosófico, visando
mitigar as contradições que a infraestrutura econômica cria. Com isso, de forma alguma
se altera a ordem da base social, pelo contrário, apenas ameniza o grau de desigualdade,
gerando um equilíbrio entre a demanda social e o ordenamento jurídico, que antes não
permitia o reconhecimento de determinado “direito”.
A dignidade da pessoa humana é uma ideologia jurídica, um postulado
normativo, que não atenta para as reais causas do fenômeno (quando se trata de uma
demanda socialmente reprimida, em especial) e que, portanto, não busca compreendê-
lo. Assim sendo, jamais poderá solucioná-lo, pois não compreende a estrutura do objeto
a que pretende resguardar. Não se pretende negligenciar o efeito social aparentemente
positivo, que a aplicação de visões teoricamente progressistas pode trazer. Sob um viés
imediatista, a pretensão é resolvida, sem que, todavia, se tenha alterado a estrutura
social que gera a distorção, e que a reproduz.
Mesmo que quase tardiamente, busca-se um exemplo na jurisprudência pátria,
para elucidar o modo pelo qual a dignidade da pessoa humana atua como
harmonizadora do ordenamento jurídico. Poder-se-ia referir a exemplos que são mais
fáceis de demonstrar o sustentado, como a demanda por medicamentos, o direito à
moradia etc. Ainda assim, o caso prático veicula situação também recorrente nos
tribunais, que é a postulação do benefício de amparo social, previsto no Art. 203, V, da
Constituição:
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,
independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
[...]
V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora
de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a
lei.
72
A supracitada regra, de eficácia limitada, teve a aplicabilidade desenvolvida pela
Lei nº 8.742/1993, que, em seu art. 20, parágrafo 5º, dispôs:
Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário
mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta)
anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria
manutenção e nem de tê-la provida por sua família. [...] § 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de
deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4
(um quarto) do salário mínimo.
Para a concessão do referido benefício devem ser preenchidos, em
concomitância, alguns requisitos de ordem objetiva e subjetiva. A pessoa tem que ser
idosa43
ou com deficiência, não ter a capacidade de prover a sua própria subsistência,
tampouco tê-la provida pela sua família, e, ainda, possuir renda familiar de até um
quarto do salário mínimo per capita.
Ocorre que, no cenário brasileiro em que a exclusão social é latente, tendo como
consequência bolsões infindáveis de miséria, passou-se a questionar, no judiciário, o
limite objetivo de um quarto do salário mínimo. O limite, em verdade, foi desenvolvido
para criar um parâmetro aferidor do grau de incapacidade econômica, em que as pessoas
que se situassem abaixo do um quarto per capita fariam jus ao benefício.
O acórdão que serve de exemplo, pinçado no Superior Tribunal de Justiça,
veicula Recurso Especial Repetitivo, em que a parte autora intentou comprovar o
requisito de miserabilidade sem levar em conta o critério legal. A decisão restou assim
ementada:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. ART. 105, III, ALÍNEA C DA CF.
DIREITO PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL.
POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONDIÇÃO DE
MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE
PROVA, QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR
FOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. RECURSO ESPECIAL
PROVIDO.
1. A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário
mínimo de benefício mensal, independente de contribuição à Seguridade
Social, à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não
43
O critério etário vigente, que deve ser considerado, é o que fixa a idade em 65 (sessenta e cinco) anos,
pois a partir da edição do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003), reduziu-se a idade anteriormente
prevista, em razão de ser lei especial. In verbis: “Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco)
anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é
assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência
Social – Loas”.
73
possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família, conforme dispuser a lei.
2. Regulamentando o comando constitucional, a Lei 8.742/93, alterada pela
Lei 9.720/98, dispõe que será devida a concessão de benefício assistencial
aos idosos e às pessoas portadoras de deficiência que não possuam meios de
prover à própria manutenção, ou cuja família possua renda mensal per capita
inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a
constitucionalidade dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no
julgamento da ADI 1.232/DF (Rel. para o acórdão Min. NELSON JOBIM,
DJU 1.6.2001).
4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da
pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições
básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de
modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e economicamente
vulnerável.
5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada
a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para
prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é
apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-
se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita
inferior a 1/4 do salário mínimo.
6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento
motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de
provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per
capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de
miserabilidade do beneficiado. De fato, não se pode admitir a vinculação do
Magistrado a determinado elemento probatório, sob pena de cercear o seu
direito de julgar.
7. Recurso Especial provido.
(REsp 1112557/MG, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO,
TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2009, DJe 20/11/2009) (Grifou-se).
O precedente tratado, em verdade, traz a colisão do exercício de determinado
direito à luz da realidade social. Os postulantes pretendem demonstrar que, para aferir a
miserabilidade, o critério de um quarto do salário mínimo per capita não corresponde a
uma realidade objetiva da sociedade brasileira.
A questão se torna um pouco mais complexa à medida que o Supremo Tribunal
Federal, em Ação Direta de Inconstitucionalidade, que questionou justamente o limite
da renda, julgou-a improcedente, para mantê-lo em vigor. In verbis:
CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE
ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO
INCISO V DO ART. 203, DA CF. INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA
EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE
REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO
BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO À PESSOA PORTADORA DE
DEFICIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO. ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE
OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO. AÇÃO
JULGADA IMPROCEDENTE.
74
(ADI 1232, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Relator(a) p/ Acórdão:
Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/1998, DJ 01-06-
2001 PP-00075 EMENT VOL-02033-01 PP-00095)
Na realidade, há uma norma, de caráter constitucional, que reconhece a
existência de determinada desigualdade estrutural, ao ponto de estabelecer que seja
necessária a previsão de um benefício prestacional para atender a esses casos em
específico. E, por isso, o Estado, pressupondo a existência de miseráveis, firma, através
de legislação infraconstitucional, quem eles são através de um critério objetivo. Ao que
se observa, não há norma para contrabalançar a demanda social daqueles que se
afirmam miseráveis e percebem renda superior a um quarto, pois é um critério legal
objetivo.
Caso se seguisse a aplicação literal da lei, não haveria como acobertar tal
demanda, uma vez que não contempla tal possibilidade. Inclusive, mesmo que se
utilizasse dos métodos de interpretação usualmente aceitos, também não se chegaria ao
ponto de conceder o benefício. É um caso no qual nem os exercícios mais amplos de
exegese legal pode salvar a pretensão.
Ocorre que, existe o postulado da dignidade da pessoa humana, que age,
ideologicamente, sopesando a contradição instaurada no ordenamento, fazendo um
contraponto à lei que não contempla a demanda coletiva. É a hipótese de harmonização
externa, tendo em vista que, de um lado, há a reprodução de uma relação estrutural, bem
como uma legislação que não abarca a demanda, e, de outro, uma norma de caráter mais
abrangente que harmoniza a contradição instaurada na ordem jurídica.
Assim sendo, a exemplo do precedente, concede-se o benefício em atenção à
dignidade da pessoa humana. Fica de fora dessa análise a distorção estrutural, que faz
com que as pessoas que percebem renda acima de um quarto do salário mínimo se
autointitulam miseráveis, apenas para poder preencher o requisito legal.
Ainda, a questão poderia ser entendida sob a ótica da objetivação do sujeito e
subjetivação do objeto, como apontado no tópico pretérito. O critério objetivo, qual
seja, o um quarto do salário mínimo, passa a ser subjetivo, pois pode ser flexibilizado
pelo juiz na situação concreta. Por sua vez, o critério subjetivo, isto é, ser pessoa idosa
ou incapaz, passa a ser considerado como objetivo, uma vez que são portadores de
dignidade inata. Nesse processo, a forma passa a ser conteúdo e o conteúdo passa a ser
forma.
75
Com isso, torna-se possível harmonizar determinada demanda social em relação
ao ordenamento jurídico, em um processo de inversão do objeto e do sujeito, tudo isso
dentro da relação processual que se instaura. É, sem dúvida, uma forma de
ideologicamente proceder a um equilíbrio no ordenamento jurídico, que não seria
possível caso a dignidade não interferisse para que a lei fosse suavizada.
Assim sendo, da exposição, verifica-se que a dicotomia entre o público e o
privado responde a uma situação objetiva do modo de produção capitalista. Ademais, no
que toca a harmonização, ela existe em ambos os campos do Direito, portando a
finalidade precípua de amortizar a mera reprodução, na seara jurídica, das relações
infraestruturais, de modo a tornar o ordenamento uma expressão jurídica coesa.
Ainda, a dignidade da pessoa humana, um postulado filosófico, tem servido
como fundamento ideológico para estabelecer equilíbrio em relações de desigualdade
substancial. Enquanto se discute a violação ou não da dignidade, o mesmo sistema
econômico continua, incessantemente, produzindo as distorções, sem que haja,
minimamente, qualquer efeito prático na alteração da estrutura social. Dessa forma, toda
a elucubração intelectual não busca alterar a realidade, mas tão somente pensá-la de
outra forma44
.
4.3 O DIREITO CONCRETO
A posição da totalidade concreta, que, segundo Kosik (1995, p. 41) “compreende
a realidade nas suas íntimas leis e revela, sob a superfície da causalidade dos
fenômenos, as conexões internas, necessárias [...]”, nada mais é do que um princípio
metodológico. Aplicado ao Direito, auxilia na compreensão do fenômeno jurídico em
suas múltiplas ligações, servindo como um instrumento para desbravar este ramo do
conhecimento.
Segundo Kosik (1995), a totalidade concreta busca responder “o que é a
realidade?”. Se esta for entendida como um conjunto de fatos, a concreticidade poderia
ser entendida como a totalidade deles, e, por consequência, a realidade seria
incognoscível, ao passo que sempre é possível acrescentar algum fenômeno ainda não
apercebido pelo estudioso. Assim, a totalidade não pode significar todos os fatos,
44
“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-
lo” (MARX, 1982, t. 1, p. 3).
76
outrossim, abrange apenas a “realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou
do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser
racionalmente compreendido” (KOSIK, 1995, p. 44).
Logo, o concreto e a totalidade não são a mera totalidade de fatos ou o seu
agrupamento, significa, porém, conhecer os fatos como integrantes de um todo, de uma
estrutura dialética, não sendo imutáveis, indivisíveis etc. Para Kosik (1995, p. 49), o
princípio metodológico da investigação dialética da realidade social constitui ponto de
vista da totalidade concreta, que significa:
[...] que cada fenômeno pode ser compreendido como momento do todo. Um
fenômeno social é um fato histórico na medida em que é examinado como
momento de um determinado todo; desempenha, portanto uma função dupla,
a única capaz de dele fazer efetivamente um fato histórico: de um lado,
definir a si mesmo, e de outro, definir o todo; ser ao mesmo tempo produtor
produto; ser revelador e ao mesmo tempo determinado; conquistar o próprio
significado autêntico e ao mesmo tempo conferir um sentido a algo a mais.
Esta recíproca conexão e mediação da parte e do todo significam a um só
tempo: os fatos isolados são abstrações, são momentos artificiosamente
separados do todo, os quais só quando inseridos no todo correspondente
adquirem verdade e concreticidade.
Ainda, para o autor, a concreticidade é um processo que se inicia do todo para as
partes e vice-versa, dos fenômenos para a essência e vice-versa, da totalidade para as
contradições e vice-versa, sendo que nessas correlações os conceitos entram em
movimento recíproco e se elucidam, atingindo a concreticidade. Além disso, nas
palavras de Kosik (1995, p. 52):
Para o materialismo a realidade pode ser conhecida na sua concreticidade
(totalidade) quando se descobre a natureza da realidade social, se elimina a
pseudoconcreticidade, se conhece a realidade social como unidade dialética
de base e de supra-estrutura, e o homem como sujeito objetivo, histórico-
social. A realidade social não é conhecida como totalidade concreta se o
homem no âmbito da totalidade é considerado apenas e sobretudo como
objeto e na praxis histórico-objetiva não se reconhece a importância
primordial do homem como sujeito.
Aceitar a categoria da totalidade concreta como princípio metodológico de
conhecimento da realidade, auxilia o jurista na tarefa de conceber o Direito em suas
íntimas relações. Por um lado, não o deixa ser ludibriado por pantomimas jurídicas
idealistas, que não portam nenhuma expressão do real, senão a idealmente criada; e, por
77
outro lado, para os materialistas, ajuda a compreender o Direito não apenas como mero
reflexo invertido e inerte da infraestrutura social.
Na relação do Direito com a ideologia, que até aqui vem sido travada, a
categoria permite, por meio da multiplicidade de correlações dos fatos, a destruição da
pseudoconcreticidade jurídica, desvendando o real significado dos seus institutos. Com
isso, a representação histórica deles é revelada, em um processo de apreensão do
conteúdo e do significado dos fenômenos, que se apresentam desconexos da atividade
real do homem.
As relações ideológicas estabelecidas no Direito, bem como a função
harmonizadora da ideologia, somente exprimem a incapacidade de a ciência jurídica
compreender realmente os seus institutos enquanto for desprovida de um método
ontologicamente crítico. A diversidade de relações fatuais que devem ser firmadas para
o entendimento do fenômeno não tem constituído tarefa do jurista, cuja rotina tem se
resumido a interpretá-lo à luz do direito objetivo, como se não houvesse sentido
nenhum além da própria norma.
O resultado prático disso é o esvaziamento da capacidade de transformação do
Direito. Pois enquanto os juristas não detiverem o real conhecimento da sua ciência,
estarão apenas à serviço da perpetuação de uma estrutura desigual, que não atende aos
ditames mais prosaicos de justiça. Para Roberto Lyra Filho (1982, p. 114):
O que é “essencial”no homem é a sua capacidade de libertação, que se realiza
quando ele, conscientizado, descobre quais são as forças da natureza e da
sociedade que o “determinariam”, se ele se deixasse levar por elas.
Lembramos, com Marx, que consciência é conscientização; e também que
liberdade é libertação; isto é, consciência não é uma coisa que nós temos,
porém que vamos construindo, vamos livrando do que os nossos
dominadores botaram lá (ideologia); e liberdade também não é uma coisa que
nós possuímos; pelo contrário: ela vive amarrada e nós temos de cortas os
nós.
O movimento da pseudoconcreticidade ao concreto, rompendo a barreira
imposta pela ideologia, constitui a única forma de emancipação humana, em que o
homem se compreende como produtor da realidade e nela é produzido. Permitindo-se
uma última interdisciplinaridade, reproduz-se as palavras de Vinicius de Moraes (1983,
p. 67-73), que, através da poesia “O Operário em Construção”, descreveu o processo de
tomada de consciência de um operário, quando este conseguiu estabelecer múltiplas
ligações que a ideologia o impedia de fazer:
78
E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de
tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi
entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo
será teu.
E Jesus, respondendo, disse-lhe:
– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e
só a Ele servirás.
Lucas, cap. V, vs. 5-8.
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
De fato, como podia
Um operário em construção
Compreender por que um tijolo
Valia mais do que um pão?
Tijolos ele empilhava
Com pá, cimento e esquadria
Quanto ao pão, ele o comia...
Mas fosse comer tijolo!
E assim o operário ia
Com suor e com cimento
Erguendo uma casa aqui
Adiante um apartamento
Além uma igreja, à frente
Um quartel e uma prisão:
Prisão de que sofreria
Não fosse, eventualmente
Um operário em construção.
Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
– Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
79
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem o fazia
Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!
Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
– Exercer a profissão –
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
E um fato novo se viu
Que a todos admirava:
O que o operário dizia
Outro operário escutava.
E foi assim que o operário
Do edifício em construção
Que sempre dizia sim
Começou a dizer não.
E aprendeu a notar coisas
A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão
Que sua cerveja preta
Era o uísque do patrão
Que seu macacão de zuarte
80
Era o terno do patrão
Que o casebre onde morava
Era a mansão do patrão
Que seus dois pés andarilhos
Eram as rodas do patrão
Que a dureza do seu dia
Era a noite do patrão
Que sua imensa fadiga
Era amiga do patrão.
E o operário disse: Não!
E o operário fez-se forte
Na sua resolução.
Como era de se esperar
As bocas da delação
Começaram a dizer coisas
Aos ouvidos do patrão.
Mas o patrão não queria
Nenhuma preocupação
– "Convençam-no" do contrário –
Disse ele sobre o operário
E ao dizer isso sorria.
Dia seguinte, o operário
Ao sair da construção
Viu-se súbito cercado
Dos homens da delação
E sofreu, por destinado
Sua primeira agressão.
Teve seu rosto cuspido
Teve seu braço quebrado
Mas quando foi perguntado
O operário disse: Não!
Em vão sofrera o operário
Sua primeira agressão
Muitas outras se seguiram
Muitas outras seguirão.
Porém, por imprescindível
Ao edifício em construção
Seu trabalho prosseguia
E todo o seu sofrimento
Misturava-se ao cimento
Da construção que crescia.
Sentindo que a violência
Não dobraria o operário
Um dia tentou o patrão
Dobrá-lo de modo vário.
De sorte que o foi levando
Ao alto da construção
E num momento de tempo
Mostrou-lhe toda a região
E apontando-a ao operário
Fez-lhe esta declaração:
– Dar-te-ei todo esse poder
E a sua satisfação
Porque a mim me foi entregue
81
E dou-o a quem bem quiser.
Dou-te tempo de lazer
Dou-te tempo de mulher.
Portanto, tudo o que vês
Será teu se me adorares
E, ainda mais, se abandonares
O que te faz dizer não.
Disse, e fitou o operário
Que olhava e que refletia
Mas o que via o operário
O patrão nunca veria.
O operário via as casas
E dentro das estruturas
Via coisas, objetos
Produtos, manufaturas.
Via tudo o que fazia
O lucro do seu patrão
E em cada coisa que via
Misteriosamente havia
A marca de sua mão.
E o operário disse: Não!
– Loucura! – gritou o patrão
Não vês o que te dou eu?
– Mentira! – disse o operário
Não podes dar-me o que é meu.
E um grande silêncio fez-se
Dentro do seu coração
Um silêncio de martírios
Um silêncio de prisão.
Um silêncio povoado
De pedidos de perdão
Um silêncio apavorado
Com o medo em solidão.
Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Esse processo de conscientização, experimentado pela poesia, não atingiu de
maneira significativa o Direito, que ainda não tomou tal lucidez. Tarso Genro (1988)
conclamou os juristas à formação de uma nova filosofia do Direito, que reconheça o
82
papel de transformação da realidade que esta pode oferecer. Além disso, segundo o
autor, tanto o viés positivista quanto o que desconhece o potencial do Direito não
contribuem
[...] para a libertação do homem, a qual passa, em primeiro lugar, pela
consciência da sua alienação e, cumulada com a esta consciência, pela sua
afirmação como sujeito, como verdadeiro ditador contra as forças externas
alienantes, negando coletivamente as necessidades materiais e aprofundando
a sua individualidade, livre de todas as opressões morais, materiais e
políticas. (GENRO, 1988, p. 15).
Destruir a pseudoconcreticidade erguida no Direito significa compreender os
diversos vínculos que circundam o objeto, não o tomando à primeira vista; representa,
portanto, o ato de despir, metodologicamente, toda a sua carga ideológica. Dois
exemplos práticos podem ser úteis para a elucidação do que vem sendo exposto: o
primeiro deles é o salário mínimo, e, o segundo, o casamento.
A figura do salário mínimo, sob o aspecto puramente jurídico-ideológico, pode
ser entendida como um direito social, assegurado pela Constituição, que está acobertado
pelo manto protetor da Dignidade da Pessoa Humana. Visa, nessa ordem, suprir em
maior ou menor grau, as necessidades básicas do ser humano, como a alimentação,
moradia, lazer etc., conforme preconizado pelo Art. 7º, inciso IV, da Carta Política
vernácula.
A figura do salário mínimo observado por este enfoque, estritamente legalista,
é a sua representação. É maneira pela qual é concebido pelos juristas, que captam
apenas o aspecto fenomênico da realidade. Caso se estabeleça os vínculos estruturais, a
partir da totalidade concreta, a sua essência pode ser encontrada na necessidade vital,
presente na base da sociedade, de garantir a produção e reprodução da força de trabalho.
Nesse sentido manifesta-se Adam Smith (1983, v. 2, p. 93-94):
O homem sempre precisa viver do seu trabalho, e seu salário deve ser
suficiente, no mínimo, para a sua manutenção. Esses salários devem até
constituir-se em algo mais, na maioria das vezes; de outra forma seria
impossível para ele sustentar uma família e os trabalhadores não poderiam ir
além da primeira geração.
David Ricardo (1982, p. 81), economista inglês, ao analisar o instituto, da
mesma forma se pronunciou: “o preço natural do trabalho é aquele necessário para
permitir que os trabalhadores, em geral, subsistam e perpetuem a sua descendência, sem
83
aumento ou diminuição”. Karl Marx (1983, v. I, p. 142-143), ao que se parece, assimila
a lição de Smith, principalmente a de Ricardo, aprimorando-as:
A soma dos meios de subsistência necessários à produção da força de
trabalho, inclui, portanto, os meios de subsistência dos substitutos, isto é, dos
filhos dos trabalhadores, de modo que essa race de peculiares possuidores de
mercadorias se perpetue no mercado de mercadorias. [...]. O limite último ou
limite mínimo do valor da força de trabalho é constituído pelo valor de uma
massa de mercadorias, sem cujo suprimento diário o portador da força de
trabalho, o homem, não pode renovar o seu processo de vida, estando
portanto o valor dos meios de subsistência fisicamente indispensáveis.
O salário mínimo, compreendido apenas sob a feição ideológica, é projetado
como Direito, mas, em verdade, é uma necessidade para a preservação do sistema
capitalista. Ao se reivindicar o aumento dele, o que se busca, na verdade, é a majoração
do preço da força de trabalho, para que o trabalhador assalariado possa suprir um
número maior de necessidades além da alimentar. Pela lógica inversa, o salário mínimo
jamais será inferior ao necessário para a subsistência da força de trabalho, pois, caso um
dia isso ocorra, o sistema capitalista estaria com os seus dias contados.
Da mesma forma, a instituição do casamento, aos olhos da lei, aparece como a
comunhão livre de vontades, em que há o intuito de constituir família. Em termos
legais, a exemplo do salário mínimo, o casamento também é regulamentado pela
Constituição brasileira, no parágrafo 1º do art. 226. Por outro enfoque, consubstancia-se
em instituição de direito privado, que endossa a ideia de que há total liberdade na
manifestação entre os contraentes.
No Código Civil, acerca da liberdade de firmar o casamento, assim dispõem os
arts. 1.535 e 1.538:
Art. 1.535. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial,
juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato,
ouvida aos nubentes a afirmação de que pretendem casar por livre e
espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos: "De
acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos
receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados."
Art. 1.538. A celebração do casamento será imediatamente suspensa se
algum dos contraentes: I - recusar a solene afirmação da sua vontade; II - declarar que esta não é livre e espontânea; III - manifestar-se arrependido.
84
Friedrich Engels (1985, t. 3, p. 276-277), na obra “A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado”, teceu lúcidas considerações sobre o instituto, que se
passa a reproduzi-las:
Os nossos juristas acham certamente que o progresso da legislação vai
tirando em medida crescente às mulheres qualquer razão de queixa. Os
modernos sistemas civilizados de leis reconhecem cada vez mais, em
primeiro lugar, que o casamento, para ser válido, tem de ser um contrato
assumido de livre vontade por ambas as partes e, em segundo lugar, que
ambas as partes também durante o casamento devem estar uma perante a
outra com os mesmo direitos e deveres. [...]
Esta argumentação tipicamente jurídica é precisamente a mesma com que o
burguês republicano radical ataca e cala o proletário. O contrato de trabalho
deveria ser algo assumido de livre vontade por ambas as partes. Mas vale
como assumido de livre vontade logo que a lei equipara no papel as duas
partes. O poder que a diferente posição de classe dá a uma parte, a pressão
que exerce sobre a outra parte – a real posição económica de ambas – isso
não interessa à lei. E dentro da duração do contrato de trabalho, ambas as
partes devem ter mais uma vez os mesmos direitos, enquanto uma ou outra
renunciar expressamente. E a lei também nada pode fazer contra o facto de a
situação económica do operário o obrigar a renunciar mesmo às últimas
aparências de igualdade de direitos.
Em relação ao casamento, a lei, mesmo a mais avançada, considera-se
inteiramente satisfeita desde que os interessados declarem formalmente no
protocolo que é de sua livre vontade. A lei e o jurista não se preocupam com
o que se passa por trás dos bastidores jurídicos, onde decorre a vida real, nem
com a forma como se chega a essa livre vontade.
O que Engels pretende demonstrar é que o casamento, no sistema capitalista,
atente a critérios meramente formais de manifestação de vontade. Há, ainda, o
condicionamento afluente da base, que não permite com que as pessoas escolham as
outras analisando meramente as diversas aptidões, pois o critério econômico age de
maneira preponderante no mais das vezes. A solução para o problema, segundo Engels
(1985, t. 3, p. 285):
Assim, a completa liberdade de no contrair casamento somente poderá
verificar-se com carácter geral quando a eliminação da produção capitalista e
das relações de propriedade por ela criadas tiver afastado todas as
considerações económicas secundárias que hoje ainda exercem uma
influência tão poderosa na escolha do cônjuge. É que então já não ficará
qualquer outro motivo além da inclinação recíproca.
Afora os exemplos práticos, outra questão que cabe atentar é que a categoria da
totalidade concreta não significar negar a existência da justiça ou meramente reduzi-la
ao plano ideológico. Tampouco, significa que, para os materialistas, não seja a justiça
85
objeto do Direito45
. Pelo contrário, é justamente nesse corpo teórico que ela ganha
conteúdo, conforme aponta Roberto Lyra filho (1982, p. 114-115; 120-121):
O processo social, a História, é um processo de libertação constante (se não
fosse, estávamos até hoje parados, numa só estrutura, sem progredir); mas, é
claro, há avanços e recuos, quebras do caminho, que não importam, pois o rio
acaba voltando ao leito, seguindo em frente e rompendo as represas. Dentro
do processo histórico, o aspecto jurídico representa a articulação dos
princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de
reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem.
Quando falamos em Justiça, entretanto, não estamos referindo àquela
imagem ideológica da Justiça ideal, metafísica, abstrata, vaga, que a classe e
grupos dominantes invocam para tentar justificar as normas, os costumes, as
leis, os códigos da sua dominação.
[...]
Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se divorciam com
freqüência. Onde está a Justiça no mundo? –, pergunta-se. Que Justiça é esta,
proclamada por um bando de filósofos idealistas, que depois a entregam a um
grupo de “juristas”, deixando que estes devorem o povo? A Justiça não é,
evidentemente, esta coisa degradada. Isto é a negação da Justiça, uma
negação que lhe rende, apesar de tudo, a homenagem de usar seu nome, pois
nenhum legislador prepotente, administrador ditatorial ou juiz formalista
jamais pensou em dizer que o “direito” deles não está cuidando de ser justo.
Porém, onde fica a Justiça verdadeira? Evidentemente, não é cá, nem lá, não
é nas leis (embora às vezes nela se misture, em maior ou menor grau), nem é
nos princípios ideais, abstratos (embora às vezes também algo dela ali se
transmita, de forma imprecisa): a Justiça real está no processo histórico, de
que é resultante, no sentido de que é nele que se realiza progressivamente.
Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios
condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade
em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; [...].
Dotado do véu ideológico, o Direito não chega a negar a justiça, todavia não a
compreende. A justiça verdadeira é aquela que concebe os indivíduos em suas
condições reais de existência, e que tem a capacidade de conhecer a sua íntima essência,
sendo sabedora das necessidades vitais dos homens, bem como sabe a elas observar.
O Direito concreto tem a potência de fazer as ligações necessárias para que as
formas jurídicas possuam algum significado além do ideológico. Podendo, nessa ordem,
conceder contorno e conteúdo para que o Direito, mesmo com a sua inerente autonomia
relativa, seja mais um dos instrumentos de libertação social. Nas palavras de Márcio
Bilharinho Naves (Apud WYNE, 2006, p. 67: “o conhecimento dos mecanismos de
45
Giuseppe Lumia (2003), fazendo uma má leitura do conceito marxiano de ideologia, em tópico
intitulado “A justiça como ideologia”, apontou que o Direito, a moral, a religião etc. são ideologias, e que,
portanto, “não contêm em si nenhum valor de verdade; não são mais nadas do que superestruturas [...]”
(LUMIA, 2003, p. 141). Primeiramente, caso as ideologias não portassem nenhum elemento de verdade,
elas não seriam ideologias, mas sim mentiras. Além disso, houve uma segunda confusão, pois a justiça
não pode ser entendida como uma ideologia em essência, embora a existência de visões ideológicas dela.
86
funcionamento da ideologia jurídica é condição essencial para que as massas
trabalhadoras possam formular uma estratégia que permita a ultrapassagem efetiva do
domínio do capital”.
Com esteio na totalidade concreta, a luta do jurista é dada dentro e fora do
Direito. Fora dele, em consonância com a matriz intelectual seguida, e, dentro dele, para
que os sentidos normativos não ilustrem apenas uma ideia grandiosa, mas que permita a
concretização desse ideal. Portanto, merecem eco as palavras de Roberto Lyra Filho
(1982, p. 35):
Somente uma nova teoria realmente dialética do Direito evita a queda numa
das pontas da antítese (teses radicalmente opostas) entre direito positivo e
direito natural. Isto, é claro, como em toda superação dialética, importa em
conservar os aspectos válidos de ambas as posições, rejeitando os demais e
reenquadrando os primeiros numa visão superior. Assim, veremos que a
positividade do Direito não conduz fatalmente ao positivismo e que o direito
justo integra a dialética jurídica, sem voar para nuvens metafísicas, isto é,
sem desligar-se das lutas sociais, no seu desenvolvimento histórico, entre
espoliados e oprimidos, de um lado, e espoliadores e opressores, de outro.
Na mesma linha de envergadura situam-se as palavras de Tarso Genro (1988, p.
24-25), ao encarar o Direito sob o prisma da categoria da totalidade concreta:
Só a categoria da totalidade, dialeticamente compreendida, pode tirar o jurista
da enrascada jusnaturalista e positivista, porque só ela pode ensinar a
compreender a “natureza” do homem, como produto de muitas e complexas
determinações, e a própria norma jurídica como instância de uma dominação
já revelada, objetivamente, no processo de expropriação da força de trabalho
do produtor. A dominação do todo sobre as partes, a compreensão do simples
como integrante de uma complexidade, o entendimento de um composto
isolado como um simples relativamente a um composto maior e mais
complexo, a percepção do singular e do universal como integrantes de uma
particularidade e mesmo a visualização do particular, como momento de
revelação da universalidade e da singularidade, abrem caminho para uma
compreensão verdadeiramente científica do mundo, porque estas são as
relações e interações estabelecidas pelo próprio mundo objetivo,
independentemente da nossa vontade.
Assim, o Direito concreto é, dirão, puro idealismo. Quase um devaneio de um
materialismo cada vez mais fraco, que não tem mais capacidade de angariar vozes e
influenciar a academia com bom tom. Ainda que passível de tais críticas, é, ao menos
até então, o ramo teórico e metodológico que se propõe a compreender a realidade em
suas profundeza e complexidade, bem como de efetuar reais transformações tanto no
Direito como na justiça, de modo a torná-los concretos.
87
5 CONCLUSÃO
No processo contínuo de descoberta a que todos os seres humanos estão sujeitos,
uma mesma realidade pode se apresentar – e ser absorvida – por ângulos variados. Na
apreensão do todo, incluem-se tanto os objetos de difícil compreensão, que necessitam
um detóur, pois não são captados ou compreendidos à primeira vista, como as
representações, que são criadas em um contato inicial. Estas, podendo, inclusive, ser
transmitidas por herança histórico-cultural.
Ocorre que, na apreensão desta realidade o indivíduo não se posiciona de plano
instigando, e buscando a essência dela como se fosse o seu objeto perene. O trato do
homem com a natureza, e com os demais elementos objetivos, busca apenas a
persecução de objetivos próprios, o que as representações. Trata-se, em um primeiro
momento, portanto, de um aprendizado “prático-sensível”.
A imagem imediata criada pelo sujeito cognoscente, através da sua atividade
prático-sensível, nem sempre corresponde à realidade. Assim sendo, o mundo tal qual
aparece ao homem é pseudoconcreto, tendo como elemento típico as representações
cotidianas, presentes no pensamento comum, que são formas essencialmente
ideológicas de reprodução da realidade.
O pensamento dialético-materialista parte da representação, do facilmente
constatável, para chegar ao núcleo oculto. Nada mais é do que uma atividade
fenomenológica, em que se parte do fenômeno para a essência. A apreensão do
fenômeno e da essência constitui o conceito, e é o caminho para a desconstrução do
pensamento pseudoconcreto.
A realidade, para o materialismo histórico, não é somente a essência ou o
fenômeno, mas sim a totalidade, a junção de ambos. Para chegar até a essência é
necessário captar a sua lei de desenvolvimento. Embora não seja tarefa simples, existem
conceitos que auxiliam na missão.
A existência de um mundo pseudoconcreto demonstra a possibilidade de
surgimento da ideologia, que é um elemento tipicamente superestrutural, uma vez que
reflete de maneira invertida a base material. A ideologia é uma ilusão, tendo em vista
que é constituída por ideias que os indivíduos que a possuem ignoram ou desconhecem
a força que as impulsionaram. Na história, a ideologia dominante será sempre a
88
ideologia da classe dominante, que pode precisar ou não delas para justificar
determinada supremacia de classe.
A ideologia é produzida e reproduzida através de diversos aparelhos ideológicos
do Estado. O Direito é um deles, sendo que a norma jurídica, que é a sua forma
aparente, não raro está dotada de ideologias, o que possibilita a existência de uma
ideologia jurídica. Somente é possível se falar em ideologia jurídica em razão dos
vínculos que são estabelecidos entre os elementos superestruturais.
O Direito é um aparelho ideológico que tem como objetivo regulamentar as
relações sociais que são travadas, representando o produto do conflito e consenso de
diversos grupos e classes. A forma que o Direito irá assumir poderá variar na história,
entretanto, a partir do desenvolvimento do capitalismo, este ramo do conhecimento
experimentou os fenômenos das codificações, inclusive com o surgimento da teoria do
poder constituinte, assumindo as Constituições grau hierárquico de organização jurídica
aos Estados.
Uma das formas de operacionalização da ideologia do Direito é através da
função harmonizadora. O Direito, tendo a capacidade de reproduzir de maneira fiel a
base social, por vezes assim procede, sendo que para manter a harmonia do
ordenamento jurídico, suaviza os institutos que meramente descrevem institutos ligados
aos interesses da classe dominante.
A harmonização pode se dar em dois âmbitos distintos. O primeiro deles, o
interno, é quando duas ou mais normas portam conteúdo ontologicamente conflitivo,
todavia, estão presentes em concomitância como forma de uma equilibrar a existência
da outra. Ainda, há a harmonização externa, quando duas ou mais normas estão
colidindo, sendo que uma de maior abrangência harmoniza a contradição, dentre do
ordenamento jurídico, sendo que o foco principal é estabelecer coesão em relação a uma
demanda socialmente reprimida.
A ideologia atua harmonizando o Direito tanto no seu ramo público como no
privado, embora se tenha repisado as críticas palavras de Miaille (1994) acerca da
dicotomia. Os exemplos referidos foram pinçados na ordem econômica da Constituição
brasileira, bem como no Código Civil vernáculo. Havendo, ainda, um caso prático,
veiculando decisum prolatado pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, como forma
de demonstrar a harmonização externa.
89
Perpassando uma das funções da ideologia no ordenamento jurídico, uma última
interdisciplinaridade é estabelecida visando correlacionar a categoria da totalidade
concreta e o Direito. Com isso, asseverou-se a necessidade de estabelecimento dos
vínculos necessários para o conhecimento do objeto de análise, o que pode resultar em
um Direito despido dos idealismos e das ideologias, que o impede de ser um
instrumento de libertação social.
Já se encaminhando para as linhas finais do estudo, entende-se que o trabalho
colaborou ao menos à formação de uma consciência interdisciplinar, uma vez que o
Direito não é autopoiético. Ele nasceu e morrerá (se um dia isto ocorrer) por vontade
dos indivíduos que vivem em sociedade, sendo eles que tem a capacidade de criar e
modificar o seu ambiente material e espiritual.
Por derradeiro, sintetizando a voluntas do estudo, sem saber ao certo o seu
alcance e a sua profundidade, pede-se a vênia para reporta-se, literalmente, às palavras
de Óscar Correas (1995, p.8), proferidas na apresentação brasileira de sua obra “Crítica
da Ideologia Jurídica”:
Trata-se de uma abordagem inspirada no pensamento de Marx. Acredito que
ele apresente algumas páginas originais e espero, fervorosamente, que tenha
alguma influência em juristas que não desejam colocar os seus
conhecimentos, nem enlamear sua vida, a serviço de um sistema social que
condena a metade do mundo à miséria. De seu êxito ou de seu fracasso, serei
responsável: permitir-me-ei, contudo, o entusiasmo de acreditar que seja bem
recebido, e que contribuirá para demonstrar que o marxismo é um campo
teórico que, melhor do que qualquer outro, pode explicar – e criticar – o
direito moderno.
É a certeza do caminho correto – e da verdade – que guiou este estudo, que,
neste momento, chega ao seu ponto final. Espera-se, no entanto, que se tenha efetuado
uma mínima contribuição à perpetuação do materialismo histórico como esperança de
uma sociedade justa e igualitária, tendo o Direito como instrumento de luta para
alcançar estes objetivos.
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