A Ideia de Circulacao Na Obra de Cildo Meireles
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Thaís de Souza Rivitti
A idéia de circulação na obra de Cildo Meireles
Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Artes, Área de Concentração Artes Plásticas, Linha de Pesquisa Teoria, História e Crítica da Arte da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Mestre em Artes, sob a orientação da Professora Doutoura Sônia Salzstein Goldberg.
São PauloFevereiro de 2007
Aos meus Pais
Agradecimentos
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha orientadora, Sônia Salzstein Goldberg
pelo apoio, incentivo e liberdade na condução deste trabalho. Suas intervenções públicas, aulas,
textos e as conversas que tivemos em diferentes momentos dessa pesquisa foram – e continuaram
sendo – um grande estímulo para seguir pensando sobre arte.
Agradeço também a Cildo Meireles pela disponibilidade demonstrada na entrevista
concedida em seu ateliê no Rio de Janeiro.
Gostaria ainda de agradecer a outros professores cujas contribuições durante a pesquisa
foram decisivas: Lorenzo Mammí, Vladimir Safatle, ambos do Departamento de Filosofia da
FFLCH-USP e Luiz Renato Martins, do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP.
Agradeço especialmente a Juliano Gentile, primeiro leitor, primeiro crítico, pelo apoio
constante, fundamental para que eu seguisse nessa empreitada. A João Paulo Leite devo a leitura
atenta e discussão de pontos centrais desse trabalho. A Henrique Bolfarine agradeço pelo projeto
gráfico e a Nara Rivitti pela ajuda na revisão da dissertação.
Devo parte das formulações aqui expostas às discussões travadas com os editores da
Revista Número, da qual faço parte desde 2002. Nossas atividades têm sido excelentes momentos
para pensar coletivamente sobre a arte e, muitas vezes, para além dela. Além de todos os colegas
da revista Número, devo agradecer aos amigos de sempre, Maria Emília Bordini e Wagner Miyaura
que compartilham comigo as dificuldades e prazeres de ser pesquisador no Brasil com os quais,
apesar das diferenças nas áreas de pesquisa, pude trocar experiências valiosas. Sou grata também
aos meus pais, Tânia e Evandro Rivitti que mais uma vez não mediram esforços para que pudesse
completar mais essa etapa na minha formação. Por fim, gostaria de agradecer a todos os parentes
e amigos que me ajudaram com compreensão e apoio, no momento em que esses se fizeram
necessários. E não foram poucos.
A idéia de circulação no trabalho de Cildo Meireles
Resumo / Abstract
A circulação na obra de Cildo Meireles
Resumo: O objeto do presente estudo é a produção do artista plástico brasileiro Cildo Meireles.
Analisaremos alguns de seus trabalhos que lidam de maneira mais próxima com o tema da
circulação: Através, Árvore do dinheiro, Zero dólar, Zero Cruzeiro, Zero cent, Zero centavo,
Eppur si muove e Elemento desaparecendo / Elemento desaparecido (passado iminente).
Nosso objetivo é analisar as diversas formas com que a circulação aparece em seus trabalhos:
dispersão, desaparecimento – ligado à temporalidade –, espoliação ou mesmo como seu reverso,
a interdição. Pudemos notar também como a circulação está presente como um dado central
nas transformações sociais que experimentamos com a emergência da globalização. Assim,
procuramos mostrar como a posição ocupada pela obra de Cildo Meireles relaciona-se com o
contexto social mantendo frente a ele uma posição crítica a partir do campo das artes.
Abstract: The object of this paper is the work of the brazilian artist Cildo Meireles. We analizedWe analized
some of his works that were based on the notion of circulation: Através, Árvore do dinheiro,
Zero dólar, Zero Cruzeiro, Zero cent, Zero centavo, Eppur si muove e Elemento desaparecendo
/ Elemento desaparecido (passado iminente). Our purpose was to examine critically the variedOur purpose was to examine critically the varied
forms that circulation appears in those works: as dispersion, disappearance, spoliation and even
with the opposite meaning of this expression, as interdiction. We could notice also that circulation
is an important principle of the changes in operation in the global society. We intend to show how
the position occupied by the works of Meireles are related with the social context and how they
expose a critical position from the art field.
Palavras-chave: Cildo Meireles, circulação, Pós-modernidade, globalização, arte contemporânea
A idéia de circulação no trabalho de Cildo Meireles
Índice
Introdução..........................................................................................................01
Capítulo 1:
Através.........................................................................................................05
Capítulo 2:
Pós-modernidade: esboço de um campo............................................................17
Capítulo 3:
A esfera da crítica de arte................................................................................27
Capítulo 4:
Inserções em circuitos ideológicos ....................................................................35
Árvore do Dinheiro e os Zeros...........................................................................47
Transparência e desaparecimento.......................................................................51
Conclusão..........................................................................................................58
Bibliografia..........................................................................................................66
Anexo: entrevista com Cildo Meireles.........................................................................71
1
A idéia de circulação no trabalho de Cildo Meireles
Introdução
O presente trabalho foi realizado no Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP junto
à área de pesquisa História, Teoria e Crítica de Arte. Desde o início, nos esforçamos em reunir
um material que contribuísse para a pesquisa em arte contemporânea. Daí a preocupação
com a elaboração de uma entrevista (anexo) e com o levantamento de obras e bibliografia
sobre nosso assunto, a saber, a produção de Cildo Meireles. Mas os objetivos da dissertação
não se restringem à coleta e sistematização de informações nesse campo do conhecimento.
Acreditamos que o estudo das artes constitui um campo privilegiado para enfrentarmos alguns
dos problemas e impasses da atualidade. Não que ofereça a estes soluções diretas, mas julgamos
que as obras de arte colaboram, de um modo que lhe é estritamente particular, para a reflexão
sobre alguns dilemas postos pelas transformações sociais recentes.
A complexa questão aqui subjacente diz respeito ao lugar e à posição da arte. Afinal,
por que ela ocuparia um “lugar privilegiado”? Não ignoramos a dificuldade em responder a essa
pergunta. A título de apresentação, pois pretendemos abordar essa questão mais minuciosamente
no terceiro capítulo desse trabalho, poderíamos dizer que a arte mantém um vínculo indissolúvel
com o momento e lugar histórico específico em que foi produzida ao mesmo tempo em que ela
pode iluminar algumas questões que permanecem não formalizadas em outros âmbitos. Para
sermos fiéis a essa perspectiva, a metodologia empregada nesse trabalho, que tem como base
alguns escritos de Antonio Candido e Roberto Schwarz, é sempre um contínuo vai-e-vem das
obras de arte às análises sociais, partindo, evidentemente, das obras. Quisemos com isso evitar
a segmentação do saber em áreas específicas, isoladas umas das outras. No segundo capítulo,
além de enunciar alguns pressupostos teóricos implícitos em nossas análises das obras de Cildo
Meireles, entraremos nos impasses colocados para a esfera da crítica de arte em nossa época
procurando nos posicionar em relação a eles.
Uma vez definido o objeto de interesse, qual seja, a produção de Cildo Meireles, nossa
pesquisa iniciou-se com um primeiro contato com os trabalhos do artista e com a bibliografia
disponível sobre ele, sobre o contexto da arte no período em que ele inicia sua trajetória (início
da década de 1970) e sobre às transformações sociais mais amplas do período. No que diz
respeito ao contexto das discussões de artes plásticas no Brasil, observamos que a questão da
circulação estava presente em diversos textos críticos. A aglutinação de um grupo de artistas e
do crítico Ronaldo Brito em torno da revista Malasartes, em 1975, denota a preocupação em
iniciar um espaço para debate na área de artes. Na revista há inúmeros textos que colocam em
pauta assuntos como a redução do circuito de arte a um mercado de arte, problematizando o
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fato das noções de público e consumidor se confundirem. O corpo editorial da revista, do qual
Cildo Meireles fazia parte, preocupava-se com a formação dos agentes do circuito das artes
e traduziam e republicavam textos fundamentais para a arte contemporânea internacional e
brasileira que tiveram pouca circulação no país. Mais do que isso, a Malasartes também revela
que a produção artística do país tornava-se cada vez mais atenta aos sistemas de circulação
social procurando atuar criticamente sobre eles. Achamos importante acrescentar que a década
de 1970 também é o período em que o mercado de arte brasileiro está se consolidando com a
abertura das galerias Luiz Buarque de Hollanda e Paulo Bittencourt, no Rio de Janeiro, e Luisa
Strina e Raquel Arnaud, em São Paulo.
Contudo, deparamo-nos com a necessidade de ampliar nossa análise reportando-nos
às mudanças políticas, econômicas e sociais em curso não apenas no Brasil, mas que podem
ser verificadas globalmente. São essas as transformações que abordamos em nosso segundo
capítulo que se detém sobre a pós-modernidade. Procuramos nesse capítulo entender algumas
das transformações em curso no período que Fredric Jameson define como o terceiro estágio
do capitalismo, também chamado de globalização. Traçamos assim as principais modificações
no que tange à economia, com a globalização dos mercados, à política, com a investigação
sobre o possível enfraquecimento do poder dos Estados-Nação, às novas tecnologias, que
transformam o próprio conceito de informação, às idéias filosóficas, que buscam posicionar-se
frente à modernidade, e finalmente à cultura.
Chamou-nos a atenção a persistência com que o tema da circulação foi abordado também
em trabalhos significativos de Cildo Meireles. Trata-se de obras como Através, cuja análise abre
nossa dissertação, Inserções em circuitos ideológicos - Projeto coca-cola e Projeto cédula,
Árvore do dinheiro, Zero Dólar, Zero Cruzeiro, Zero cent, Zero centavo, Eppur si muove e
Elemento desaparecendo / elemento desaparecido (passado iminente) que trataremos no quarto
capítulo. São obras que se dirigem a processos de circulação investigando o público e o lugar
da arte, obras que apontam para as relações entre cultura e economia e que têm em sua base
a problematização dos processos de circulação social, incluído o próprio circuito das artes,
mas não se restringindo a ele. Assim, a noção de circulação orientou a seleção de trabalhos de
Cildo Meireles possibilitando uma análise mais atenta de alguns trabalhos. Para reiterar, nem
toda a produção dele é examinada. A dissertação irá se restringir àquelas obras que têm uma
ligação mais direta com o tema da circulação, bastante presente em sua trajetória.
Recusamo-nos, nesse primeiro momento, a oferecer uma definição acabada de
circulação. Acreditamos que seria mais proveitoso acompanhar as diversas facetas que a idéia
adquire nos trabalhos de Meireles. Ademais a “circulação” não é vista aqui como um conceito
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no sentido rigoroso que o termo exige. O embate com trabalhos de arte representa um desafio
para a dinâmica habitual de uma pesquisa acadêmica e supõe a inversão da ordem habitual de
investigação. Assim, a circulação, idéia que orientou esse trabalho desde seus primeiros passos,
só poderá ser explicada na conclusão. Acreditamos ser possível esboçar na conclusão como
diversos elementos destacados nas análises de cada trabalho do artista individualmente podem
constituir uma posição crítica, a partir da arte. Assim, na conclusão, voltaremos à idéia de
circulação com maior propriedade após vermos como ela surge no contato com os trabalhos.
Também na conclusão trataremos de outras questões que surgiram a partir da análise dos
trabalhos e se mostraram recorrentes tais como a idéia de transparência e de desaparecimento.
Procuraremos articulá-las em conjunto para entender a posição estratégia que Cildo Meireles
constrói a partir da qual a arte transcende a si mesma aparecendo como lugar possível para o
exercício da crítica.
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Através 1983 - 1989
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Capítulo 1
Através
“Talvez haja, nesse quadro de Velásquez, como que
a representação da representação clássica e a definição do
espaço que ela abre. Com efeito, ela intenta representar-se
a si mesma em todos os seus elementos, com suas imagens,
os olhares aos quais ela se oferece, os rostos que torna
visíveis, os gestos que a fazem nascer”.
Michel Foucault,In: As palavras e as coisas
Quando uma pedra é atirada na água, ocasiona vibrações ao redor do lugar em que
caiu. Elas são transmitidas gradativamente, fazendo ondular até mesmo regiões afastadas do
centro. A instalação Através, de Cildo Meireles, guarda certa afinidade com essa imagem. Seu
centro é ocupado por uma grande bola de papel celofane. Ao seu redor, estão dispostos planos
verticais. Tais planos partem do centro e se alastram em direção às paredes da sala que acabam
por funcionar como mais uma camada do trabalho. Poderíamos mesmo dizer que as paredes
são as últimas camadas de Através, se não permanecesse a sensação de que algo da experiência
que temos com o trabalho se estende indefinidamente, modificando o modo com que olhamos
para o mundo.
Dito de outro modo, se é possível entrar em Através, não é possível sair da obra por
completo. Sua semelhança com o labirinto – pois os planos verticais de que é feita constituem
estreitas passagens que não conduzem a uma saída – é apenas um dos aspectos a serem levados
em conta. A impossibilidade de sair diz respeito antes a essa espécie de propagação do trabalho
para além de seus limites físicos. Acontece aqui uma experiência similar a que se tem com os
célebres quadros em que Cézanne pinta a montanha de Santa Vitória: uma súbita consciência
de que o modo com que olhamos para algo é o que é possível ser pintado; o monte, em si,
não está acessível (ou sequer existe, se adotarmos a idéia de que “ser é ser percebido”). Ou de
quando lemos os versos de Fernando Pessoa: “Eu vejo como via, mas por trás dos olhos, vejo-
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me vendo”1. O encontro com o trabalho é um encontro com o próprio olhar.
De início, uma confusão toma conta: não conseguimos distinguir nos planos sucessivos
quais estão na frente e quais estão atrás. Olhando bem, aliás, descobrimos mais dois ou três
planos feitos de linhas finíssimas, dispostas em seqüência, brancas, quase transparentes, que
a visão não havia conseguido discernir imediatamente. Apesar de tudo estar parado, vemos
diante de nós uma sucessão de camadas a se sobreporem como se estivessem em movimento.
Nossos olhos dificilmente se acomodam. A distância entre um ponto e outro, a profundidade
da sala, a altura dos planos: nada disso aparece com clareza. Mas notamos uma certa afinidade
entre tudo o que estamos vendo. É como se instalação tivesse um “clima” próprio. Os diversos
elementos estabelecem relações entre si: os cacos de vidro espalhados pelo chão tornam-se
intensamente esverdeados e a madeira da placa de treliça revela uma rica gama de tons que vai
do amarelo escuro ao mais pálido em contraste com a ausência de cor dos demais elementos.
Os portões de madeira feitos de tábuas grossas pintadas de preto fixam-se no espaço, enquanto
as telas brancas de nylon e filó e as persianas criam nele uma vibração. A bola de papel
celofane é branca e informe, como espuma, mas não conseguimos vê-la totalmente, pois ela
aparece enquadrada por uma tela ou grade que lhe divide em partes iguais.
A atmosfera do trabalho não vem apenas da disposição calculada dos elementos que o
compõem. O fato de a madeira, o nylon, a linha, o ferro, o papel e o plástico apresentarem-se
em planos verticais cria um termo comum entre eles. Simultaneamente, porém, observamos
esses mesmos elementos não como matéria, mas como objetos que guardam entre si certa
afinidade. Persiana, aquário, rede de tênis, alambrado, cercas de arame e de madeira não são
objetos projetados e confeccionados pelo artista. São, em sua grande maioria, produzidos
industrialmente, em larga escala e pode-se encontrá-los em locais relativamente familiares.
Têm em comum seu uso. Todos servem para separar ambientes e controlar, ou até mesmo
evitar, a passagem.
Mas aqui eles não a obstruem por completo, apenas determinam uma circulação no
interior da obra. Isso ocorre porque, ao invés de nos posicionarmos frontalmente a eles, como
ocorre habitualmente, somos induzidos a percorrê-los lateralmente. Como o olhar se mostra
insuficiente para nos dar uma clara dimensão do trabalho, de como estão de fato dispostos seus
componentes, somos impelidos a percorrê-lo, para que, fisicamente, percebamos como ele se
1 “Lembro-me de quando era criança e via, /como hoje não posso ver, /a manhã raiar sobre a cidade. /Ela não raiava para mim, /mas para a vida, /Porque então eu,(não sendo consciente)/eu era a vida. /E via a manhã e tinha alegria. /Hoje vejo a manhã , tenho alegria, /e fico triste. /Eu vejo como via, /mas por trás dos olhos,vejo-me vendo. /E só com isso, se obscurece o sol, /o verde das árvores é velho, /e as flores murcham antes de aparecidas.” Fernando Pessoa. Livro do Desassossego.Lisboa: Presença, 1990.
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estrutura. Conforme nos movimentamos, no entanto, a intenção é frustrada. Como num jogo
em que, a cada jogada, toda a situação geral se reconfigura, não há um ponto privilegiado para
apreendê-lo, não há uma visão total que dê conta da obra. Percorrendo paralelamente estes
grandes planos nos damos conta também da proximidade inevitável que temos com os seus
elementos. Como ver algo que se coloca a centímetros de distância? A impossibilidade de recuo
e ajuste de distância é patente e estamos condenados a uma visão excessivamente próxima.
Diferentemente de outros elementos de controle de passagem – um portão compacto
de ferro, um tapume ou uma porta, elementos para os quais o olhar se dirige, delimita seus
contornos claramente e consegue apreendê-los – esses objetos são reticulados, vazados,
translúcidos, por vezes quase transparentes. Instaura-se aqui um jogo entre visível e invisível
de resto já conhecido da história da arte. São inúmeros os exemplos que poderíamos lembrar,
um deles são as Combine Paintings de Rauschenberg. Nelas, o artista norte-americano agrega
à pintura materiais que não pertencem ao repertório da arte, provindos dos mais diversos
contextos, e explora suas texturas criando diferentes áreas pictóricas que interferem umas nas
outras. A cor que define essas áreas não é estática, as fronteiras são mal delimitadas e por vezes
ela invade as zonas vizinhas criando um intenso dinamismo. Os objetos acabam se ocultando
numa massa visual na qual tudo se torna indiscernível. Ao invés de mostrar, a pintura encobre,
tal como a transparência de Através que não desvela nada.
Ao caminhar pelo trabalho pisamos em cacos de vidro, o barulho provocado por
esse deslocamento enfatiza a idéia de que, a cada passo, quebramos algo, estamos sempre
numa posição nova e a anterior talvez não possa ser reconstituída. O trabalho instaura um
presente sempre reposto e nos lembra da interferência do próprio ato de caminhar. Por meio
dessa sucessão de pontos de vista tentamos recompor a totalidade do trabalho. Avançamos em
direção à bola de celofane que, ao contrário dos outros elementos que são anteparos, parece
receptiva ao olhar. Mas, quando damos com ela, não vemos nada além de uma superposição
de camadas de finos papeis quase transparentes sobrepostos. Não há ali uma interioridade a ser
descoberta, ela também é pura superfície irregular, quase quebradiça.
***
O projeto original de Através data de 1983. Foi pensado por Cildo Meireles para a
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Bienal de Sidney do ano seguinte, na qual acabou não se realizando. O artista montou a obra
pela primeira vez em 1989, na Bélgica, numa fábrica abandonada. A segunda montagem foi
feita no Palácio de Cristal, em Madri, em 2001. O palácio foi construído para ser uma estufa,
situa-se num plano um pouco mais elevado do que o parque que o rodeia e tem as paredes
e o teto de vidro, o que faz com que o exterior e o interior do trabalho se comuniquem
intensamente. Nessa montagem, a indefinição dos limites do trabalho é mais patente e o vidro
que separa o Palácio do parque faz essa mediação de forma sutil. Hoje, o trabalho é parte de um
acervo particular que está em exposição permanente no Caci, Centro de Arte Contemporânea
de Inhotim, cidade mineira próxima à capital Belo Horizonte. O artista optou por montar a obra
num espaço fechado, que lembra mais a primeira montagem na Bélgica2. Apesar de pouco vista
e analisada, é, sem dúvida, uma obra emblemática.
Sem a pretensão de fazer uma genealogia da arte moderna brasileira, podemos afirmar
que ela toma rumos particulares na década de 1960 com trabalhos de alguns dos artistas
Neoconcretos. Há, sem dúvida, uma originalidade nesta produção que dá fôlego novo para a
arte, abrindo caminhos novos. A referência aqui são os trabalhos Bichos (1960) e Obra Mole
(1960), de Lygia Clark, Ovo (1968) e Divisor (1969), de Lygia Pape, e Penetráveis (1960, data
do PN1) e Parangolés (1965), de Hélio Oiticica, para citar alguns. Grosso modo, esses são
trabalhos que demandam a participação do espectador: não basta ver a obra e compreendê-la
intelectualmente. É necessário experimentá-la, sair de uma postura contemplativa para uma
postura ativa3.
A comparação de Através com alguns desses trabalhos pode ser frutífera, no entanto,
é fácil notar também uma grande ruptura. Através é tributária desse desejo evidente nos
neoconcretos, de alargamento do que seria um racionalismo exacerbado de uma certa produção
moderna construtivista4. Mas Através, ao mesmo tempo em que retoma a noção de experiência,
2 “A primeira idéia, no Caci, foi montar “A primeira idéia, no Caci, foi montar Através num local aberto, sem nada. A montagem iria se aproximaria a da do Palácio de
Cristal, em Madri. Lá, você ficava acima da paisagem, subia alguns degraus. A questão do embate entre arte e natureza é que sempre que
você estivar nessa situação, não tem chance. No Caci, eu tinha opção, ou fazia a versão de Madri ou a primeira versão. Mas a de Madri,
que foi a que tentamos primeiro, tinha um problema sério. O vento jogava as coisas, as folhas enganchavam no trabalho e molhava. A ma-
nutenção ficava complicada. Então optei por dar um corte e sair do entorno. É uma imersão, e eu acho que para o trabalho funciona mais. É
também o caso do Desvio para o Vermelho” Cildo Meireles em entrevista concedida à autora em agosto de 2006.
3 A noção de participação em alguns dos artistas neoconcretos não pode ser confundida com a noção de interatividade presente A noção de participação em alguns dos artistas neoconcretos não pode ser confundida com a noção de interatividade presente
em alguns trabalhos de arte que simplesmente incorporam de modo mecânico uma ação já previamente definida do espectador. Sobre esse
assunto, ver: Guy Brett “Experimento Whitechapel 1”, In: Brasil experimental: arte/vida, proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contraca-
pa, 2005. E Cauê Alves, “Tem que participar?”, Revista Número Dois, nº 2, 2002.
4 “A expressão neoconcreto indica uma tomada de posição em face da arte não-figurativa �geométrica�� (neoplasticismo, construti- “A expressão neoconcreto indica uma tomada de posição em face da arte não-figurativa �geométrica�� (neoplasticismo, construti-
vismo, supremetismo, escola de Ulm) e particularmente em face da arte concreta levada a uma perigosa exacerbação racionalista.” Primeiro
parágrafo do manifesto neoconcreto , Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, março de 1959, suplemento dominical p. 4 e 5.
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toma um caminho diferente dos trabalhos desses outros artistas5. Se podemos falar que Através
é um trabalho que trata da visão, é importante lembrar que ele só o faz a medida em que trata
da cegueira. Nele, a participação, seja pelo corpo ou pela ação engajada e ética, não aparece
como possibilidade libertária.
A terceira versão de Malhas da liberdade, trabalho realizado por Cildo Meireles em
1977, é exemplar nesse sentido. Estruturado a partir de uma lei matemática, o trabalho parte de
um módulo que se expande sempre da mesma maneira formando uma grade de ferro vazada. A
estrutura da malha, geralmente fechada, aqui é cortada por um pedaço de vidro que a atravessa.
O título do trabalho é, sem dúvida, uma provocação, pois junta uma grade com a palavra
liberdade. O trabalho traz à tona questões que Através irá abordar com maior complexidade,
podendo mesmo ser visto como uma espécie de precursor deste, se tomarmos a trajetória de
Cildo Meireles como objeto de análise.
Os materiais que constituem Através estão num meio termo entre a transparência e a
opacidade, ora se mostram com clareza, ora desaparecem no espaço. Não é à toa que é um
dos trabalhos de Cildo Meireles mais refratários à fotografia. Para experimentarmos o trabalho,
temos que percorrê-lo, atravessá-lo não apenas com os olhos. A necessidade de experimentar
o trabalho corporalmente tem a ver não com a promessa de liberdade e plenitude, mas com
a negação da arte como passível de uma apreensão visual e abstrata. Dada a diversidade de
materiais e sua colocação no espaço, o trabalho recusa-se a aparecer como uniformidade
estabelecida a priori. A descontinuidade aqui é estrutural, em cada ponto de vista o trabalho
se mostra de modo diferente. O percurso que o trabalho exige faz com que sua unidade se
remeta sempre a uma duração, o tempo da experiência no interior da obra. O trabalho não é
apreensível num só golpe, recusa-se a ser, ao menos imediatamente, objeto de conhecimento.
É a partir da memória do percurso que a obra incita a junção do som dos vidros quebrados, do
volume e suposto peso da esfera central e da vibração e leveza dos planos verticais.
Seria interessante nos determos neste aparente contra-senso: a imaterialidade e
transparência da obra nos exigem uma apreensão corporal do trabalho, chamando a atenção
5 Para Lorenzo Mamm�� “Em Para Lorenzo Mamm�� “Em Através o que entra em crise é a vivência do espaço, a divisão entre interior e exterior, a fusão de corpo e
arquitetura que fora aspiração da geração anterior”. Ver: Lorenzo Mamm�� “Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporâ-
nea brasileira”, In: VI Simpósio Internacional Diálogos Iberoamericanos - reenfocando problemas y possibilidades en el arte contemporâneo.
Valencia: Fundación Astroc y Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM), 15 a 18 de maio de 2005. p. 218.
Malhas da Liberdade versão III 1976
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para o potencial do invisível nas obras de arte contemporâneas6. Essa apreensão corporal, no
entanto, se dá também pela negação: nos deparamos freqüentemente com uma interrupção da
circulação no interior da obra. Ali, tudo é obstáculo e barreira.
Parece-nos que a pop art foi o movimento que primeiro trouxe para o campo da arte
a temática da circulação. Os trabalhos de Andy Warhol partem de imagens desgastadas, cuja
circulação social foi levada ao extremo de tal modo que não passam referências a si mesmas.
São imagens provindas de anúncios publicitários, ou de jornais populares que são impressas
na tela com serigrafia e por isso podem ser reproduzidas à exaustão. Uma matriz dá origem
a inúmeras cópias, às vezes até um clichê de jornal, uma das cópias dentre uma tiragem de
milhares, é o ponto de partida do trabalho. Essa impenetrabilidade das imagens, que são
refratárias a um contato mais intenso, fica evidente pela intercambialidade de cores a que as
figuras são submetidas. Marilyn Monroe (Gold), Marlyn Moroe (Pink), Marilyn (Blue); a cor se
torna um acessório justaposto à imagem a posteriori. Ela já não tem uma relação constitutiva
com a imagem, é algo em certa medida aleatório e postiço; a escolha das cores não surge de
uma exigência interna da própria forma e passa a ser um “exercício de colorir”. A série de
Wahrol, Do it yourself de 1969 é formada por imagens parcialmente coloridas. A parte que fica
em branco é numerada, dando a entender que para números iguais, deve se usar cores iguais.
A cor e o número tornam-se intercambiáveis. A serialidade presente em muitos trabalhos
do artista também dá conta dessa imaterialidade da imagem que se separa de seu referente,
adquirindo uma espécie de autonomia: pode ser repetida à exaustão, sendo sempre a mesma
ainda que mude certas características periféricas como a cor e o tamanho.
Com a pop, entram em jogo questões como: o que diferencia o artista de outros produtores
de imagem? O que faz com que uma imagem seja considerada “obra de arte” e outras tantas
não? Questões levantadas de modo agudo pela pop e que foram abordadas pelos principais
teóricos da arte contemporânea. Arthur Danto, em seu livro Transfiguração do Lugar-Comum
toma uma pergunta como centro de sua discussão: o que diferencia os objetos de arte de meros
objetos cotidianos? De saída o filósofo analítico rejeita a teoria institucional da arte7, segundo a
qual um objeto passa a ser considerado arte quando “é aceito pelo arcabouço institucional do
6 Em entrevista concedida à autora Cildo comenta o trabalho Em entrevista concedida à autora Cildo comenta o trabalho Fist of Light (1991), de Chris Burden que foi exposto na Bienal do
Whitney Museum em 1993. Ele consistia num trailer repleto de luzes fortíssimas que se acendiam apenas quando a porta (única abertura
do trailer) se fechava: “Eis aí um exemplo clássico da dissidência da prática artística do século XX, pois é um trabalho que se funda na luz,
portanto, em última análise, na imagem. Uma coisa que afeta diretamente a questão da imagem, da percepção e, ao mesmo tempo, uma
coisa que você só poderia experimentar através da fé. Você sabia que ali onde você não estava vendo, acontecia tal coisa. Eu gosto muito
desse trabalho porque ele lida exatamente com esse novo campo que os artistas de artes plásticas estão mapeando.”
7 George Dickie. Art and Aesthetic: an institutional Analysis. Nova York: Cornell University Press 1974
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mundo da arte”. Para Danto, não há nada visível que possa diferenciar as duas coisas, mas o
caráter ontológico delas é radicalmente diverso. Se a visão não pode dar conta dessa diferença,
como, então é possível apreendê-la? Ele afirma:
“Hoje em dia, às vezes é necessário fazer um esforço especial
para distinguir a arte de sua própria Filosofia. É quase como se a
totalidade das obras de arte tivesse se condensado naquela parte
delas mesmas que sempre foi o interesse dos filósofos, de modo que
muito pouco, ou quase nada, restou para o prazer dos amantes da
arte.”8
A arte se tornou mais filosófica, o que para Danto, dada sua declarada herança hegeliana,
significa dizer que ela chegou a um estado de maior autoconsciência. O que a passagem acima
transcrita revela é que esse movimento, para Danto, seria acompanhado de uma diminuição
da fruição dos “amantes da arte”, que são, para o autor, aqueles atentos ao que haveria de
propriamente estético (ou sensível) nos trabalhos. A idéia de uma maior autoconsciência revela-
se quando os trabalhos começam a se referir à própria definição de arte. Os artistas passam a
abordar em seus trabalhos os próprios limites da arte, de dentro dela. Muitas vezes são trabalhos
mentais dirigidos a um público que conhece arte a ponto de perceber citações e apropriações
irônicas. No caso de Cildo, muito embora a ironia esteja presente em muitos de seus trabalhos,
não se pode separar a parte propriamente filosófica da obra de sua apreensão sensível.
Alguns trabalhos das vanguardas modernas já tratavam da problemática da representação.
A idéia de que o objeto de arte representa algo do mundo real cai por terra com a crise
que marca a origem da modernidade. No entanto, talvez seja com a pop que as fronteiras
entre objetos de arte e objetos cotidianos realmente se apague. Pode-se dizer que, a partir da
“espetacularização da sociedade”, termo cunhado por Guy Debord em 1967, em seu livro A
sociedade do espetáculo9, o trânsito entre representação e realidade é levado ao extremo. O
autor aponta para a seguinte relação:
8 Arthur Danto. A Transfiguração do Lugar-Comum. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.102. Arthur Danto. A Transfiguração do Lugar-Comum. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.102.
9 Guy Debord, Guy Debord, A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
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“Não é possível fazer uma oposição abstrata entre o espetáculo e a
atividade social efetiva: esse desdobramento é também desdobrado.
O espetáculo que inverte o real é efetivamente um produto. Ao
mesmo tempo a realidade vivida é materialmente invadida pela
contemplação do espetáculo e retoma em si a ordem espetacular à
qual adere de forma positiva.”10
Na contemporaneidade a distinção entre espetáculo (ou representação, se quisermos)
e realidade social é problemática, para não dizer inexistente. Segundo Debord, o espetáculo,
visão de mundo em que tudo aparece como imagem, tornou-se o modo de existência geral e
postula as relações entre pessoas e coisas.
Chama a atenção o fato de o teórico usar o termo imagem e designar o campo da arte para
formular um conceito fundamental de sua teoria. Examinando algumas passagens de seu livro A
sociedade do espetáculo vemos que a definição de imagem ocupa muitas vezes o lugar central
do termo mercadoria na teoria marxista. Segundo o autor “o espetáculo não é um conjunto de
imagens, mas uma relação social entre as pessoas, mediada por imagens”11. O espetáculo não
é produto dos avanços tecnológicos da difusão das imagens nem um certo privilégio da visão,
ele “constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade”12. Impossível não escutar aqui
os ecos da famosa frase com a qual Marx define o fetichismo: “uma relação social definida,
estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas”13.
Para Debord, “a aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde seu
caráter de relação entre homens e entre classes”14. A espetacularização assume aqui o mesmo
peso conceitual do termo fetichização: dá conta de apreender um modo de funcionamento da
sociedade. Esse modo de funcionamento que passa pela mediação da imagem interdita a ação
e remete à contemplação: não cabe questionar as formas de organização social, pois estas se
apresentam como “autônomas” e, portanto, independentes da ação dos sujeitos. “Tudo que era
10 Idem, p. 15
11 Idem. p. 14
12 Idem. p. 14
13 Marx, O Capital: Marx, O Capital: crítica a economia política. Vol.I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
14 Guy Debord, Guy Debord, A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 p. 20
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vivido diretamente tornou-se representação”15, segundo o autor, o que faz com que a própria
vida dos homens seja afirmada como simples aparência.
Mas, como acabamos de ver, a oposição entre realidade e representação, em Debord,
apóia-se em grande medida na persistência da oposição essência e aparência. Por mais que o
autor afirme que no plano concreto as duas coisas são indiscerníveis, parece-nos apropriado
notar que essa distinção ainda é mantida na teoria. Acreditamos que pode ser útil introduzir
um novo conceito que aprofunde a problemática da representação hoje. É necessário analisar
qual é exatamente essa distância que se instaura entre o sujeito e a representação que ele
vive como se fosse real (apesar de saber que é não é). Aqui um conceito que pode ser útil é o
que Adorno chama de phonyness16 que, tal como o define Vladimir Safatle, é um “termo que
designa a posição de uma falsidade que se afirma ironicamente enquanto tal”17. Voltando uma
vez mais aos trabalhos de Warhol, as imagens selecionadas pelo artista são, antes de serem
Marilyn Monroe, Elvis Presley ou Mao Tse-tung, percebidas como imagens. O trabalho não
se completaria se o público não as visse dessa forma. De certa maneira, eles são “conteúdos
previamente ironizados”, para continuar usando o vocabulário do texto acima referido. A
distância que se estabelece entre os sujeitos e uma imagem não está mais baseada numa falsa
consciência, mas numa falsa consciência esclarecida que as vê com certa ironia. Ironia esta que
não desmente aquela realidade vista como representação, e que, de certa maneira, possibilita
que se viva a representação, justamente por se ter consciência disso. Assim, viver sob o signo
da imagem não significaria tomar a representação como realidade inadvertidamente mas, antes,
tomar a representação como representação e mesmo assim viver de acordo com ela.
Uma leitura de Através também deve levar em conta que a obra mostra elementos
vistos como conteúdos sociais de interdição, o que nos remete ao campo propriamente social.
Esse jogo do que se dá ver e o que se esconde proposto pelo artista, no qual a transparência
parece operar como fator de ocultamento dos elementos no interior do trabalho, autoriza a
retomada de uma das noções da sociologia, a de ideologia, já presente em trabalhos de Cildo
como Inserções em circuitos ideológicos desde 1970. A lei, a interdição que cada um dos
objetos simboliza, não obstante sua transparência, continua a funcionar. Se antes a ideologia
era algo que dizia respeito a conteúdos ocultos por discursos ou práticas que se passavam
15 Idem. p.13.
16 Theodor Adorno, “Fernsehen als ideologie” In: Gesammelte schriftenx. Digitale bliothek Band: Apud Vladimir Safatle, “Sobre
um riso que não reconcilia: ironia e certos modos de funcionamento da ideologia”. Revista Margem Esquerda, Nº 5, São Paulo: Boitempo
Editorial, 2005, p.138.
17 Idem.
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por verdadeiros, hoje a ideologia é entendida por um dos teóricos que mais se ocupam da
questão, Slavoj Zizek, como “rede elusiva de pressupostos e atitudes implícitas que formam um
momento irredutível da reprodução de práticas �não ideológicas�� (econômicas, legais, políticas,
sexuais)”18. Zizek afirma que o discurso que diz que, a partir de 1980, vive-se numa época pós-
ideológica é, ele mesmo, ideológico – o que teria ficado claro após o ataque às Torres gêmeas
em Nova York, marcando o fim de uma ingênua utopia liberal.
“Se escutamos aos economistas de hoje, eles pretendem fazer-
nos crer que o que eles fazem é ciência, como se a ciência da
economia não tivesse nada a ver com a política, mas apenas com o
movimento dos mercados. Mas se analisamos isso de perto, há certas
pressuposições políticas, porque a economia nunca é simplesmente
pura economia. É disto que devemos convencer as pessoas: de que a
ideologia funciona precisamente quando é invisível, quando alguém
não está atento” 19 [grifo meu].
A reflexão acerca dessa idéia de invisibilidade nos interessa. Não seria exatamente a
ela que Através se dirige ao usar a transparência como constitutiva de processos de coerção? O
efeito da transparência no trabalho revela algo dessa natureza: ela confunde o olhar e enfeitiça
os sentidos. Através embaça a visão ao mesmo tempo em que seus materiais emanam clareza
e limpidez.
É possível falar em centralidade da arte em um mundo em que as relações se dão
por imagens? Como recuperar o potencial da crítica numa situação em que todos parecem
manter uma distância irônica dos conteúdos com os quais se relacionam? Alguns teóricos a
partir da segunda metade do século XX tentaram pensar o desdobramento ou superação da
modernidade, deparando-se com essas questões. Através dirige-se ao mesmo problema ao dar
voz ao discurso retórico da transparência, uma espécie de “nudez que não desmascara mais”,
para usar a expressão de Peter Sloterdijk20.
18 Slavoj Zizek (org). “O espectro da ideologia”. In: Slavoj Zizek (org). “O espectro da ideologia”. In: Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1996. p. 20 e 21
19 Slavoj Zizek. Entrevista do autor à revista Slavoj Zizek. Entrevista do autor à revista La Voz del Interior,em 14 de dezembro de 2004. Disponível em <http://www.lacan.
com/zizek-ideologia.html> em 15 de dezembro de 2005.
20 Peter Sloterdijk, Critique de la raison cynique. Paris: Christian Bourgeois, 1987. p.30. Apud Vladimir Safatle, “Sobre um risoParis: Christian Bourgeois, 1987. p.30. Apud Vladimir Safatle, “Sobre um riso
que não reconcilia: ironia e certos modos de funcionamento da ideologia”. Revista Margem Esquerda, Nº 5, São Paulo: Boitempo Editorial,
2005, p.134.
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Capítulo 2
Pós-modernidade: esboço de um campo
A essa altura já é tempo de esclarecer o que entendemos por pós-modernidade neste
trabalho. Afinal, em que sentido é possível falar numa ruptura com a modernidade? Sabemos
que a questão é uma das que mais mobiliza os debates intelectuais arregimentando adeptos em
frentes de argumentações por vezes antagônicas. Foge a nosso objetivo adentrar os meandros
de tal discussão. No entanto, não podemos nos furtar a apresentar uma definição do que
entendemos por pós-modernidade a fim de que se evite a atribuição de sentidos indevidos, a
nosso ver, em relação ao termo, visto que ele é uma das idéias-chave de nossa discussão.
Desde já é bom que se diga que no que tange a esse assunto adotamos grosso modo
a mesma posição de Fredric Jameson em seus livros Pós-Modernismo: a lógica cultural do
capitalismo tardio� e A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização�. Isso significa dizer
que o termo pós-modernismo é aqui utilizado não para designar uma ruptura completa com o
período anterior, mas um aprofundamento da lógica capitalista que nas últimas décadas atingiu
uma nova etapa em seu desenvolvimento. Trata-se, sem dúvida, de uma ruptura, mas feita no
interior da lógica do capital.
Sabe-se que Jameson recorre à teoria de Ernest Mandel para descrever o atual estágio
do capitalismo, que teve início a partir de 1945�. A primeira etapa, para Mandel, se estenderia
do século XVIII ao XIX e designaria aquilo que se conhece como colonialismo (capitalismo de
mercado), a segunda, século XX até 1945, foi o imperialismo (capitalismo monopolista) e a
terceira, que se estende até os dias de hoje, podemos chamar de globalização ou capitalismo
multinacional. Ernest Mandel, em seu livro O capitalismo tardio�, dedica-se a examinar esta
nova sociedade construída no terceiro momento da evolução do capital. Para ele, esta seria
a fase mais avançada do capitalismo em que o sistema consegue se impor de modo quase
absoluto, uma espécie de “apoteose do capital” em que a forma mercadoria se expande, a
1 Fredric Jameson. Fredric Jameson. Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1997
2 Fredric Jameson. Fredric Jameson. A cultura do dinheiro: Ensaios sobre a globalização.São Paulo: Editora Vozes, 2001.
� Em um debate realizado em São Paulo em 199�, com a presença de intelectuais brasileiros e Fredric Jameson, Paulo Arantes fez Em um debate realizado em São Paulo em 199�, com a presença de intelectuais brasileiros e Fredric Jameson, Paulo Arantes fez
uma observação em relação à apropriação da periodização de Mandel por Jameson. Segundo Arantes, Mandel afirma que o capitalismo tardio
teria início na época do pós-guerra, sendo sucedido pela política do Bem-Estar Social e que, para Jameson, é justamente com o fim dessa po-
lítica que começa o capitalismo tardio. Ver Fernando de Barros e Silva: “A viabilidade atual do marxismo”, Folha de S. Paulo, Caderno Mais!,
2�/0�/199�.
4 Ernest Mandel. Ernest Mandel. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
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ponto de não ser possível encontrar rincões em que ela ainda não tenha penetrado. Jameson
parte desse diagnóstico de Mandel sobre a última fase do capitalismo e dedica-se a verificar as
suas mudanças para além da esfera econômica.
Procuraremos, a seguir, enumerar as características desse mais recente estágio do capital
baseando-nos nos escritos de Jameson, cujo foco central é uma descrição do processo que
busca enxergar a sua coesão ao mesmo tempo em que se posiciona criticamente em relação a
ele. Também examinaremos uma série de reflexões de outros teóricos que se debruçaram sobre
a questão recentemente. Sabemos que ao fazer essa espécie de seleção incorremos nos perigos
de assumir tacitamente idéias de teóricos que não estão, em absoluto, no mesmo campo teórico
de Jameson, mas acreditamos que as observações pontuais sobre tais reflexões podem elucidar
algumas facetas da pós-modernidade.
Segundo Jameson, a globalização está vinculada, por um lado, ao surgimento das
novas tecnologias. Essas modificaram substancialmente as redes de comunicação e colocaram
para o mundo o paradigma da informatização. Quando, no entanto, a globalização é tomada
apenas segundo esse primeiro aspecto, ou seja, o da transmissão de dados, da aceleração na
circulação de informação e emergência de novas redes, deixa-se de entender que o que hoje é
aceito como informação foi modificado pela revolução tecnológica recente.
Em seu livro A condição pós-moderna�, de 1979, Lyotard se debruça sobre essa questão.
Concentrando-se na reflexão sobre o saber nas sociedades informatizadas, ele aponta uma
mudança na própria natureza do saber que passa a ter que ser traduzido em quantidade de
informação, ele não pode funcionar, se tornar operacional, de outra forma; é nessa possibilidade
de conversão que reside sua legitimação. “Com a hegemonia da informática impõe-se uma certa
lógica e, por conseguinte, um conjunto de prescrições que versam sobre enunciados aceitos
como ‘de saber’. ” �, afirma o autor. É isso que faz com que o saber assuma a configuração de
um produto e que, com isso, tenda a se tornar a principal força de produção, peça-chave na
competição mundial pelo poder. Um tipo de saber, é claro, dentro dos parâmetros da razão
instrumental, refratário a críticas e que não se dirige a si mesmo, ele apenas impulsiona a
corrida tecnológica tendo como fim último o aumento da produtividade. Diz Lyotard:
“Pode-se então esperar uma explosiva exteriorização do
saber em relação ao sujeito que sabe, em qualquer ponto que este
se encontre no processo de conhecimento. O antigo princípio
5 Jean-François Lyotard, Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.
� Idem, p. 4.
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segundo o qual a aquisição de saber é indissociável da formação do
espírito, e mesmo da pessoa, cai e cairá cada vez mais em desuso.
Esta relação entre fornecedores e usuários do conhecimento tende
e tenderá a assumir a forma que os produtores e consumidores de
mercadorias têm com essas últimas, ou seja, a forma valor”7.
No que se refere à economia, a característica principal desse estágio é a globalização
do mercado, ou seja, a ausência de fronteiras para o livre-comércio. A relação íntima entre a
unificação de mercados e o avanço tecnológico é evidente: é esse último que permite hoje um
ágil deslocamento do capital para além das fronteiras nacionais e que intensifica a virtualização
do dinheiro. As conseqüências dessa nova forma de organização dos fluxos financeiros são
conhecidas: o endividamento crescente de regiões do mundo (dívidas externas impossíveis de
serem pagas) e sua dependência cada vez maior em relação ao capital externo. A participação
dos atores nessa economia global é demarcada. Para Jameson, o surgimento das empresas
multinacionais nos anos 1970 – espécie de embrião das corporações transnacionais de hoje –
foram o primeiro sintoma de uma nova divisão do trabalho em escala global, pois há países que
servem de sedes para fábricas, com mão-de-obra barata, baixa fiscalização e baixa tributação
enquanto outros produzem tecnologia de ponta.
As indagações acerca das transformações na esfera política conduzem-nos à inevitável
questão dos Estados-nação. Para Jameson a conclusão de que esse tipo de organização de
poder estaria enfraquecido é ingênua. Ele insiste na tese da supremacia norte-americana:
“Talvez tenhamos agora um terceiro estágio, no qual os Estados Unidos adotam o que
Samuel Huntington definiu como estratégia tripartite: armas nucleares apenas para os Estados
Unidos, direitos humanos e democracia à americana e (menos obviamente) limites à imigração
e ao fluxo livre da força de trabalho. Pode-se acrescentar aqui uma quarta e crucial política: a
propagação do mercado livre por todo o globo”8.
Trataria-se, como vemos, de uma forma tardia de Imperialismo norte-americano.
Para defender sua posição o autor afirma que não há conflito entre interesses do Estado e as
corporações transnacionais. Para ele, há uma cumplicidade entre os dois termos; o que pode
7 Idem, p. 4-5.
8 Fredric Jameson, “�lobalização e estratégia política”. In Fredric Jameson, “�lobalização e estratégia política”. In A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Petrópolis: Editora
vozes, 2001. p.19.
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ser notado pelo modo como o Estado facilita e incentiva as operações das corporações.
Valeria a pena, no entanto, considerarmos brevemente a posição de Michael Hardt e
Antonio Negri, autores de Império. Para eles estaria em curso um enfraquecimento do poder
dos Estados-nação e o surgimento de estruturas supranacionais de poder:
“Os fatores primários de produção e troca – dinheiro, tecnologia, pessoas e bens –
comportam-se cada vez mais à vontade num mundo acima das fronteiras nacionais; com isso, é
cada vez menor o poder que tem o Estado-nação de regular esse fluxos e impor sua autoridade
sobre a economia”9.
Assistimos à emergência de uma nova forma de poder supremo que governa o mundo:
o Império, definido sucintamente como forma política do mercado global. No Império, não
há um centro territorial de poder, não há fronteiras ou barreiras fixas, o poder encontra-se
descentralizado e desterritorializado, uma de suas características principais é justamente sua
extensão global. Para os autores, não se trata de afirmar o desaparecimento dos Estados-nação,
mas sim de revelar a crise da soberania nacional, ao mesmo tempo em que se observa o
surgimento de uma rede organizações majoritariamente supranacionais que ocupa seu lugar.
O objeto de governo do Império é a vida social como um todo, o que nos remete à noção de
biopoder descrita originalmente por Michel Foucault. Em substituição ao poder disciplinador que
outrora formava a subjetividade, surgem novos mecanismos de controle que atuam diretamente
sobre os corpos, prescindindo das mediações institucionais.
A questão da soberania nacional atinge o estudo das artes principalmente no que diz
respeito ao nacionalismo, ou a formas de expressão locais. Ainda é possível falar em uma
peculiaridade da arte brasileira? Como fica a produção artística em países como o Brasil, que
foram sistematicamente desconsiderados pela historiografia mundial e que, repentinamente,
passaram a fazer parte do mercado internacional com o início do processo de globalização?
Como se deu esse processo? Não pretendemos dar uma resposta teórica, a nosso ver precipitada,
neste ponto da análise. Porém, trata-se de um tópico que será retomado adiante em momentos
em que, por exemplo, discutimos a inserção de Cildo Meireles no que se convencionou chamar
de arte conceitual. A própria leitura dos trabalhos do artista é fundamental para essa discussão ao
indicar o quanto sua produção diz respeito a um contexto local e o quanto se liga a fenômenos
mais gerais, que escapam dos contornos históricos brasileiros ou latino-americanos.
Tomamos emprestado a Habermas uma outra idéia que, a nosso ver, define bem um
problema central de idéias filosóficas elaboradas na pós-modernidade: trata-se da noção de
9 Michael Hardt e Antonio Negri. Michael Hardt e Antonio Negri. Império. Rio de Janeiro: Record, 2002. p.11.
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“déficit normativo”. Em O discurso filosófico da modernidade�0, Habermas situa o ponto de
inflexão da modernidade em Nietzsche, o primeiro pensador a realizar a crítica radical da razão,
utilizando seu outro: o mito. A proposta nietzscheana é a de retornar às idéias mitológicas
(Dionísio), em contraposição à abstração das idéias racionais. Dionísio é identificado como
coletividade, loucura, êxtase e finalmente “esquecimento de si”, o exato oposto do conceito de
subjetividade que definira até então a modernidade.
Para retomarmos a tradição filosófica da modernidade é importante lembrar que para
Hegel ela caracterizava-se, sobretudo, pela subjetividade, isto é, o individualismo, o direito
à crítica e a autonomia da ação. Descartes havia elaborado em sua filosofia a supremacia do
sujeito para o conhecimento e Kant radicaliza este movimento propondo uma crítica da própria
razão fundada no sujeito, por ele mesmo. Com a introdução do mito dionisíaco, a racionalidade
centrada no sujeito é destronada dando origem a um outro tipo de pensamento.
Porém, para Habermas, o projeto de Nietzsche tem problemas. Para acabar com a
ilusão da fé na verdade, Nietzsche lança mão do conceito de vontade de poder, que antes
estaria encoberto. Contudo, para sustentá-lo, também é necessário afirmá-lo como filosofia e,
portanto, como alguma forma de racionalidade. Com isso, Nietzsche acaba resvalando numa
contradição performativa: critica a razão usando os elementos da própria razão e tenta superar
os paradigmas criando um novo. Trata-se do exercício de uma crítica da ideologia que ataca
seus próprios fundamentos.
O “déficit normativo” da filosofia nietzscheana surgiria daí. Ao identificar a vontade de
poder que está presente em todas as ações e representações humanas, o filósofo acaba com a
possibilidade de criar um fundamento que oriente a ação. A perda da noção de emancipação
é conseqüência disso. Não existe mais um critério de legitimação, não se reconhecem mais
as faculdades de valoração, ou, nas palavras de Habermas: “Os desvelamentos feitos na teoria
do poder enredam-se, assim, no dilema de uma crítica auto-referencial da razão que se tornou
total”11.
Segundo Habermas, Nietzsche vai dar origem a duas correntes do pensamento
contemporâneo. Por um lado, da tradição do cientista cético que desmascara a razão e insere
o conceito de vontade de poder, surgem Foucault e Bataille. A tradição do crítico que persegue
as origens da filosofia do sujeito até os primórdios da filosofia pré-socrática desembocaria
exemplarmente em Heidegger e Derrida.
10 Jürgen Habermas, Jürgen Habermas, O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
11 Idem, p.140. Idem, p.140.
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Para Habermas, toda esta tradição filosófica pós-nietzscheana, da crítica radical à razão,
cai em contradições performativas e padece de um “déficit normativo”. Ou seja, está implícita
a impossibilidade de se retirar dela normas ou valorações. Na parte � desse capítulo nos
dedicaremos propriamente a refletir sobre as implicações de algumas linhas mestras dessas
filosofias no campo da crítica de arte. Mas podemos adiantar que a pós-modernidade é marcada,
no âmbito da filosofia, pela crítica radical à razão; isso traz para a crítica de arte uma série
de indagações sobre a pertinência e a possibilidade de realização de julgamentos estéticos
históricos e universais.
Seria preciso, ainda, nesse contexto, trazer à tona as colocações de Jameson sobre
a posição de Habermas em relação à pós-modernidade. Para ele, Habermas estaria situado
entre aqueles que reconhecem a ruptura do período atual com o modernismo, aceitando o
uso do termo “pós-moderno”, embora o enxergue como “pouco mais do que a forma do
autenticamente moderno em nossos dias e uma mera intensificação dialética ao velho impulso
modernista de inovação”12.
Poderíamos dizer, sob o risco de simplificar um pouco o debate, que Jameson acredita
que Habermas não se mantém na posição que ele considera apropriada para perceber o pós-
modernismo “uma alteração cada vez mais rápida entre os dois [modernismo e pós-modernismo]
pelo menos pode impedir que a postura celebratória ou o gesto fulminante moralizador acabem
se consolidando em seus devidos lugares”1�. A postura de Habermas poderia ser situada, segundo
Jameson, mais próxima à da moralização, uma vez que ele condenaria o pós-modernismo
por uma postura política reacionária. “Para Habermas, no entanto, o vício central do pós-
modernismo é sua função política reacionária, como expressa na tentativa generalizada de
se desacreditar o impulso modernista que ele associa ao Iluminismo burguês e ao seu espírito
ainda universalizante e utópico”, diz o autor.
É justamente na ruptura de Habermas com Adorno e Horkheimer – que viam a razão
iluminista atrelada a um projeto de dominação – que Jameson expõe sua divergência. Tal
postura levaria Habermas, segundo Jameson, a acreditar no que ele chama de “promessa do
liberalismo”, expressa pela ideologia burguesa, mesmo após o fracasso da realização delas
na história. Para levarmos a cabo essa discussão, no entanto, teríamos que nos deter sobre
a seguinte questão: Adorno e Horkheimer podem ser acusados de “déficit normativo”? Para
Habermas sim e ele argumenta a favor disso em seu livro O discurso filosófico da modernidade,
12 Fredric Jameson. Fredric Jameson. Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1997. p.84.
1� Idem, p.90. Idem, p.90.
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já mencionado. Para Jameson, parece-nos que não, como se revela em seu O marxismo tardio:
Adorno ou a persistência da Dialética14. Mas tal discussão nos afastaria do assunto central deste
capítulo. Resta-nos dizer que não nos parece contraditório utilizar, ainda que parcialmente,
esse o conceito de “déficit normativo” habermasiano e, ao mesmo tempo, concordar com
Jameson sobre a centralidade do diagnóstico de Adorno e Horkheimer.
Mas o ponto central da nossa reflexão em relação à pós-modernidade ainda não foi
abordado. Ele pode ser desenvolvido a partir da constatação não só da permanência, mas de
uma verdadeira exacerbação, na atualidade, dos mecanismos da indústria cultural, descritos
por Adorno e Horkheimer, na atualidade. Publicado como um capítulo no livro Dialética do
Esclarecimento15, de 1947, o texto “Indústria Cultural: O esclarecimento como mitificação
das massas” parte de um diagnóstico das produções artísticas no chamado capitalismo tardio.
Nesse capítulo os autores denunciam o nivelamento a que estão sujeitas tais produções que,
apesar de propugnarem o discurso da diversidade, reproduzem a padronização. A organização
fabril e a concentração econômica e tecnológica são os elementos que proporcionam a
transformação da quantidade em qualidade, tal como em qualquer outra esfera da produção.
O “ar de semelhança” entre as diversas manifestações artísticas tem sua razão. Vem do fato
de elas serem industrias, não se apresentarem mais como arte e tornarem-se negócio. Para
Adorno e Horkheimer as produções obedecem à lógica da racionalidade técnica que hoje é
a própria racionalidade de dominação. Ou seja, a técnica que levou à produção em série e à
padronização cumpre uma função maior, a saber, a de manter o “todo coeso” na medida em
que reproduz a ideologia dominante.
“A cultura sempre contribuiu para domar os instintos
revolucionários, e não apenas os bárbaros. A cultura industrializada
faz algo a mais. Ela exercita o indivíduo no preenchimento da condição
sob a qual ele está autorizado a levar essa vida inexorável. O indivíduo
deve aproveitar seu fastio universal como uma força instintintiva para
se abandonar ao poder coletivo de que está enfastiado. Ao serem
14 Fredric Jameson. O marxismo tardio: Adorno ou a persistência da Dialética. São Paulo: fundação editora da UNESP; Boitempo Fredric Jameson. O marxismo tardio: Adorno ou a persistência da Dialética. São Paulo: fundação editora da UNESP; Boitempo
editorial.1997.
15 Theodor �. Adorno e Max Horkheimer. “Indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas Theodor �. Adorno e Max Horkheimer. “Indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas”. In: Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1985.
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reproduzidas, a situações desesperadas que estão sempre a desgastar
os espectadores em seu dia-dia tornam-se, não se sabe como, a
promessa de que é possível continuar a viver.”1�
O termo “indústria cultural” designa assim a integração de consumidores passivos. É
como se a indústria engendrasse e impusesse previamente os desejos e anseios do público, que
teria apenas a “escolha” de ratificá-los. Há toda uma indústria por trás das produções artísticas
que, tornando-se cada vez mais complexa e ramificada, impõe modelos culturais apoiando-se
numa suposta demanda, demanda essa que ela mesma cria por meio da padronização do gosto
difundida nos meios de comunicação de massa e de difusão cultural. É como se os próprios
produtos determinassem seu consumo na medida em que carregam uma propaganda de si
mesmos.
Tem-se, assim, na análise do estado geral da produção e recepção dos produtos culturais,
mais do que um exemplo da lógica da mercadoria aplicada ao que se tinha como obra de arte,
tem-se um instrumento que não pode ser subestimado devido à sua dimensão na formação da
consciência dos indivíduos.
“Assimilando-se totalmente à necessidade, a obra de arte
defralda de antemão os homens justamente da liberação do princípio
da utilidade, liberação essa que a ela imcumbia realizar. o que se
poderia chamar de valor de uso na recpção dos bens culturais é
substituido pelo valor de traca; ao invés do prazer o que se busca é
assistir e estar informado o que se quer é conquistar prestígio e não
se tornar um conhecedor ”17.
Ao mesmo tempo em que marca a diferença entre a sociedade observada pelos filósofos
alemães em 1947 e a de hoje, notando que o capitalismo tardio modificou-se nesse intervalo
histórico, Jameson parece levar ao extremo tais constatações. Para ele:
“A expressão capitalismo tardio traz embutida também a outra metade, a cultural, de
1� Idem, p 14�.
17 Idem p 148.
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meu título [Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio]; essa expressão é não
só uma tradução quase literal da outra expressão, pós-modernismo, mas também seu índice
temporal parece já chamar a atenção para mudanças nas esferas do cotidiano e da cultura.
Dizer que meus dois termos, o cultural e o econômico, se fundem desse modo um no outro e
significam a mesma coisa, eclipsando a distinção entre base e superestrutura, o que para muitos
sempre pareceu em si mesmo uma característica significativa do pós-moderno, é o mesmo que
sugerir que a base, no terceiro estágio do capitalismo, gera sua superestrutura através de um
novo tipo de dinâmica.”18
Se, para Adorno e Horkheimer, “comparados a esses [setores da indústria de aço,
petróleo, eletricidade e química], os monopólios culturais são fracos e dependentes”19, em
Jameson a cultura já não se distingue dessas outras indústrias tendo um papel tão importante
quanto essas (senão ainda mais estratégico) na manutenção social, passando a ser parte da
estrutura de poder mundial. Não apenas a esfera da cultura foi colonizada pela lógica do capital,
mas agora ela cumpre um papel fundamental na expansão de seus domínios e na garantia de
sua reprodução. As mercadorias culturais fazem mais do que incentivar o consumo, abrindo
uma frente de negócios que ainda permanecia um tanto alheia à lógica econômica, elas retro-
alimentam todo o sistema de consumo. Assim, o diagnóstico de �uy Debord, segundo o qual
a cultura torna-se a mercadoria-vedete da sociedade espetacular parece cumprido20.
Otília Arantes, ao observar a nova posição da cultura na sociedade atual também
aponta para esse amálgama até então inédito entre cultura e mercado. Não que as obras de arte
modernas não fossem também mercadorias, mas segundo ela há uma “inédita centralidade da
cultura na reprodução do mundo capitalista”21. No mesmo texto, a autora ressalta a utilização
crescente de modelos culturais no funcionamento de grandes empresas (estratégias de marketing
cultural, apoios a iniciativas “artísticas”, enaltecimento da criatividade, entre outros) como
uma situação paradoxal que leva à desconstrução da cultura enquanto espaço crítico.
18 Fredric Jameson. Fredric Jameson. Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1997. p.25.
19 Adorno e Horkheimer. “Indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas Adorno e Horkheimer. “Indústria Cultural: O esclarecimento como mistificação das massas”. In: Dialética do Esclarecimento.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1985. p.115.
20 “A cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular”. �uy De- “A cultura tornada integralmente mercadoria deve também se tornar a mercadoria vedete da sociedade espetacular”. �uy De-
bord, A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 12�.
21 Otília Arantes. “A ‘virada cultural’ do sistema das artes”. Disponível em �http://���.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferen- Otília Arantes. “A ‘virada cultural’ do sistema das artes”. Disponível em �http://���.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferen-
cias/251.rtf> p. 2.
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“A cultura e a economia parecem estar correndo uma na
direção da outra, dando a impressão de que a nova centralidade da
cultura é econômica e a velha centralidade da economia tornou-
se cultural, sendo o capitalismo uma forma cultural entre outras
rivais. O que venho tentando mostrar é que hoje em dia a cultura
não é o outro ou mesmo a contrapartida, o instrumento neutro de
práticas mercadológicas, mas ela é hoje parte decisiva do mundo
dos negócios e o é como grande negócio”22
O caminho dessa dissertação, então, é a investigação as possibilidades do exercício
da crítica de arte, que se dedica à analise de obras, dentro desse contexto. O lugar ocupado
pela arte realmente não permite mais nenhuma reflexão acerca desse objeto? Ou ainda existem
trabalhos capazes de enfrentar essa situação? São essas questões que procuraremos responder à
luz do contato com o trabalho de Cildo Meireles no capítulo 4 dessa dissertação.
22 Otília Arantes. “A ‘virada cultural’ do sistema das artes”. Disponível em �http://���.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferen- Otília Arantes. “A ‘virada cultural’ do sistema das artes”. Disponível em �http://���.sescsp.org.br/sesc/images/upload/conferen-
cias/251.rtf> p.1�.
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Capítulo 3
A esfera da crítica de arte
Gostaríamos de nos centrar, nesse ponto da análise, nas mudanças na esfera da crítica
de arte, ou, mais precisamente, em alguns de seus pressupostos teóricos que foram colocados
em xeque a partir dos anos 1970. Trata-se de um período em que muitos críticos de arte passam
a rever a leitura da arte moderna feita até então e buscam novos parâmetros para analisar as
obras. Em grande medida, podemos dizer que eles foram movidos por um impulso de entender
a produção contemporânea que já não podia ser alcançada com os antigos pressupostos. Não
nos deteremos nas ponderações de autores particulares, pois cada um deles tem um percurso
próprio, denso e complexo, mas gostaríamos de traçar uma visão panorâmica mais geral das
mudanças desse período para poder situar, por fim, os pressupostos teóricos que norteiam essa
dissertação.
O primeiro aspecto que vamos abordar é o questionamento da pretensão universalista
da crítica. Muitos teóricos, a partir de 1970, apontam que, ao enunciar-se como portadora de
uma verdade universal, a crítica da arte moderna empreenderia um esforço de neutralidade
e supressão do “eu”, que vem da necessidade do julgamento ser universal e nunca referido
a alguém. Assim, ela não assumiria que o crítico fala, sempre e obrigatoriamente, de uma
perspectiva, de um determinado ponto de vista, tendo, equivocadamente, presumido sujeitos
absolutamente neutros. Nas artes plásticas, a crítica modernista foi acusada de privilegiar o
ponto de vista norte-americano e, portanto, ser comprometida com a fundação de uma História
da Arte nos Estados Unidos, fato que tem implicações diversas no que tange à própria teoria
(que se articularia desde o início com o objetivo de questionar uma hegemonia européia das
artes) e até mercadológicas evidentes.
Não é preciso fazer muito esforço para perceber que aqui os ecos do multiculturalismo
ressoam, encontrando terreno fértil. O multiculturalismo tornou-se, da década de 1970 para
cá, uma espécie de discurso politicamente correto quase inescapável: qualquer crítica a ele
é descartada por ser entendida como o ressurgimento de uma visão de fundo positivista que
pregaria que as culturas não-centrais estariam num nível de desenvolvimento inferior, que as
reivindicações de grupos específicos (como as mulheres, os homossexuais, entre outros) não
seriam legítimas. O muticulturalismo acredita ser o único discurso capaz de respeitar a diversidade
cultural e rejeitar todo preconceito ou hierarquias sociais: os que se mostram resistentes ao
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multiculturalismo são rapidamente classificados como autoritários e preconceituosos. Para o
exercício da crítica de arte, a ascensão do discurso multiculturalista representou uma grande
ruptura, pois dentro dele não é possível falar em contradição, só diferença, não é possível
emitir julgamentos definitivos, apenas parciais. As várias óticas devem ser consideradas em pé
de igualdade: afirmações ou construções teóricas só podem ser julgadas em relação ao ponto
de vista cultural de determinada produção.
Mas em que medida a crítica, ao abrir mão de uma visão universalista e partir de um ponto
de vista particular, fato celebrado com certo alívio por alguns pensadores do multiculturalismo,
não acaba se tornando uma espécie de prosa inspirada que desconsidera as especificidades do
campo das artes? O que faz uma crítica que não pode mais colocar seus objetos em relação
uns com outros, mas apenas centrar-se na singularidade de um trabalho, como se ele estivesse
sempre inaugurando algo absolutamente novo?
Nossa segunda observação refere-se ao caráter historicista que estaria presente, segundo
alguns, na metodologia da crítica modernista. De acordo com a visão hitoricista, o passado
necessariamente gera o presente sob determinados moldes e, com isso, estaria posto o mito da
história objetiva na qual só há um desenvolvimento possível para uma certa ação.
As categorias consideradas universais por boa parte da crítica da arte moderna, tais
como as masterpieces, a pintura, a escultura (ou mesmo a própria trajetória de um artista) a
partir das quais seria possível traçar uma história, são consideradas, de certa maneira, como
pré-críticas. Vejamos o que uma autora que teve sua formação na crítica de arte moderna e
depois rompeu com ela, Rosalind Krauss, diz sobre isso:
“Com o trabalho do pós-estruturalismo, essas formas
eternas, trans-históricas, que tinham sido vistas como categorias
indestrutíveis em que o desenvolvimento estético teve lugar são,
elas mesmas, abertas à análise e localização histórica”1
No mesmo texto, a autora retoma uma afirmação do crítico norte-americano Clement
Greenberg segundo a qual a arte moderna se desenvolveu a partir do passado sem nenhuma
lacuna ou ruptura e, aonde quer que termine, nunca vai parar de ser inteligível em termos de
1 “Within the work of poststructuralism, those timeless, transhistorical forms, wich had been seen as the indestructible categories
wherein aesthetic development took place, were themselves opened to historical analysis and placement” Rosalind Krauss. The originality of the Avant-garde and other modernist Myths. Cambridge: The MIT Press, 1986.p. 2.
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continuidade da arte2. Krauss vê aí uma espécie de camisa-de-força prescritiva que faz com que
os críticos vejam nas obras de arte algo já imposto de antemão com a adoção de determinado
modelo teórico. Essa seria uma prova de que os escritos de Greenberg, a que a autora recorre
para avaliar a crítica modernista à qual se contrapõe, privilegiam uma visão sistêmica fora
da arte e não estão realmente abertos às obras. Krauss parece querer dizer que há aqui uma
inversão: não é a própria obra de arte que ocupa posição central, mas um método ou sistema
dentro do qual aos trabalhos de arte restaria a função de meros exemplos que servem para
comprovar uma teoria dada a priori.
O fato de a crítica de arte ter um papel tão destacado na arte moderna geraria, para
alguns teóricos, uma perigosa inversão: ao invés dela tentar acompanhar a arte de seu tempo
ela passa a ditar como deve ser a arte do futuro. Isso coloca em xeque a autonomia da arte,
a figura do artista como central (colocando a do crítico no lugar), a prioridade do concreto,
do contato com as obras, enfim. Argumenta-se que esta concepção histórica é teleológica,
inevitavelmente.
No entanto, talvez não seja necessário pagar um preço tão alto como a recusa da lógica
histórica, como fazem alguns autores hoje, para evitar a crítica como prescrição. De fato, isso
ocorre cada vez que se fixam critérios de julgamentos tais como: a afirmação da planaridade
na pintura é pré-requisito para a qualidade de um trabalho. Inevitavelmente, no momento em
que enunciamos um critério, ele se engessa e pára de ser histórico. Afinal, o que caracteriza
a história é justamente um fluxo constante em que se desenvolvem acontecimentos. Não nos
parece preciso, nem desejável, que se abra mão da possibilidade de se fazer conexões históricas,
de se traçar uma história de categorias artísticas que percorrem largos períodos da arte para
que se evite a imposição de uma finalidade absoluta. Isso decorre da incompreensão de fundo
sobre a relação que a arte mantém com a sociedade, assunto a que voltaremos logo mais
quando abordarmos a noção de forma que adotamos nessa dissertação. Ao invés de comemorar
apressadamente a falsa liberdade de uma arte pós-histórica, é preciso considerar que a história
não é dotada de um desenvolvimento absolutamente linear e apreensível segundo o qual não é
mais necessário aguardar o dia de amanhã para saber o que acontecerá.
2 “The historical logic of this renewal was that essays like ‘Collage’ or ‘American - Type Painting’ strove to discover, while always
insisting as part of that logic that modernist art develops out of the past without gasp or break , and wherever it ends up it will never stop being
intelligible in terms of continuity of art”. Rosalind Krauss. The originality of the Avant-garde and other modernist Myths. Cambridge: The MIT
Press, 1986. p.1.
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Dentre os autores que falam em uma arte pós-histórica está Arthur Danto. Em Após o
fim da arte�, Danto diz que vivemos numa época em que a arte chegou ao fim, muito embora
isso não queira dizer que obras de arte não sejam mais produzidas, mas que suas qualidades
modificaram-se de tal modo (visto que podem até ser indiscerníveis de objetos do cotidiano)
que usar a palavra arte para designá-las talvez não seja mais possível. Esta teoria de raiz
hegeliana coloca a arte como um estágio a ser superado historicamente através de um percurso
de autocompreensão. Danto afirma que nos últimos tempos a arte tornou-se cada vez mais
dependente da teoria, que os objetos de arte tendem a desaparecer enquanto a sua teorização
tende ao infinito. Segundo Hegel, a culminação desta busca do espírito que passa pelo estágio
da arte é a filosofia. E Danto parece acreditar que a arte tenha se tornado auto-consciente,
filosófica, convertendo-se em objeto de sua própria consciência teórica. Como já afirmamos
anteriormente, o fim da arte para Danto não aconteceu com o romantismo, como supôs Hegel,
e sim nos anos 1960 com a pop art. Ela marcaria a entrada num era pós-histórica� em que a
indiferença entre arte e não arte instala-se e que as categorias se confundem e estilos aparecem
simultaneamente. Acreditamos que o melhor que podemos fazer no que diz respeito a confrontar
a idéia de uma era pós-histórica é nos atermos a uma produção, a de Cildo Meireleres. Em
que medida seus trabalhos são objetos de análise que não podem ser vistos historicamente?
Embora a referência ao trabalho de um artista não possa fazer frente a uma teoria como a de
Danto, esperamos, e esse é um assunto abordado na conclusão dessa dissertação, que alguns
aspectos da produção de Meireles possam ser vistos numa posição estratégica em relação às
transformações ocorridas na pós-modernidade, guardando com elas um vínculo estreito.
Há ainda um último ponto que gostaríamos de tratar, colocado mais explicitamente por
Yve-Alain Bois em seu prefácio do livro Painting as model, quando este se refere ao legado de
Greenberg, que nos permitirá aprofundar nossa posição em relação a algumas das questões
debatidas até aqui e esclarecer alguns pressupostos desse trabalho.
“Forma, para Greenberg, havia se tornado um ingrediente
autônomo e significado um vírus que podia ser dispensado. As
oposições conteúdo/forma e forma/matéria que governaram a
3 Arthur Danto. Arthur Danto. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo : Odysseus: Edusp, 2006.
� Danto diferencia a era pós-histórica da pós-modernidade. Os trabalhos pós-modernos, que podem ser classificados assim por Danto diferencia a era pós-histórica da pós-modernidade. Os trabalhos pós-modernos, que podem ser classificados assim por
terem características comuns, fazem parte da era pós-histórica, mas esta também compreende trabalhos usualmente classificados como
modernos: no limite, não há exclusões.
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estética idealista e dualista do Ocidente começando com Platão e
Aristóteles – e que a arte moderna como um todo havia procurado
aniquilar – estavam reconsolidadas por essa especial marca do
formalismo”�.
Acusação recorrente à crítica da arte moderna, aqui novamente referida à Greenberg,
seria exatamente a de que ela traça uma separação entre o conteúdo e a forma, em detrimento
do primeiro. Trata-se de uma afirmação controversa: afinal, em que medida a análise de conteúdo
propriamente (iconografia, referências a símbolos, formas identificáveis, ou qualquer outro
índice que remeta a um conteúdo localizável quer seja na história ou na biografia do artista)
é cabível em determinadas obras, como os quadros do expressionismo norte-americano? Não
seria o abandono dessas idéias uma exigência dos trabalhos e não da crítica?
De qualquer maneira, não desejamos responder aqui a essas perguntas, o que nos
desviaria do nosso objetivo principal, gostaríamos apenas de adentrar na polêmica levantada
por Bois, aprofundando-a. Para Bois, a distinção entre forma e conteúdo localizada em parte
da crítica modernista, em especial em Greenberg, mostra-se falsa. Diz ele:
“Não se podem separar forma e conteúdo, pois essa é uma
separação equivocada, inexistente. A forma sempre carrega um
significado, e o significado mais profundo, ou mais importante, está
sempre no nível da forma, não no nível do referente ou do conteúdo
iconológico”6.
Seguiremos o mesmo caminho apontado por Bois no que diz respeito a considerar
um equívoco adotar uma separação entre a forma e o conteúdo para analisar um trabalho de
arte. No entanto, tomaremos emprestada nessa dissertação uma noção de forma que não foi
pensada propriamente para se referir a obras de artes plásticas, trata-se da noção que aparece
nos escritos do crítico literário Antonio Candido e que é retomada por Roberto Schwarz.
Antonio Candido, em Dialética da Malandragem�, ensaio que trata do romance Memórias
� “Form, for Greenberg, had become an autonomous ingredient, and meaning a virus that could be dispensed with. The content/
form and form/matter oppositions that have governed the idealist and dualistic aesthetic of the West beginning with Plato and Aristotle - and
that modern art as a whole had sought to annihilate - were reconsolidated by his especial brand of formalism. Yve-Alain Bois, Paiting as model. Cambridge: The MIT Press, 1991. p. xix
6 “Ideologias da forma, entrevista com Yve-Alain Bois”. “Ideologias da forma, entrevista com Yve-Alain Bois”.Revista Novos Estudos Cebrap nº 76, novembro de 2006.p.2��.
7 Antonio Candido “Dialética da malandragem” In: Antonio Candido “Dialética da malandragem” In: O discurso e a cidade. São Paulo: Duas cidades, 1993.
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de um sargento de milícias�, de Manuel Antonio de Almeida, emprega o que chama de “redução
estrutural” em sua análise. A redução estrutural é definida como “processo por cujo intermédio
a realidade do mundo e do ser se torna, na narrativa ficcional, um componente de uma estrutura
literária, permitindo que essa seja estudada em si mesma, como algo autônomo”9.
Trata-se, em primeira instância, de definir como se articulam os termos “mundo real”
no qual cabem análises políticas, econômicas e sociais e a “narrativa ficcional”, criada por
um escritor. Recusando-se a tomar Memórias de um sargento de milícias como um romance
documentário strictu sensu, o que suporia uma relação de espelhamento entre os termos “real”
e “ficcional”, Candido passa a investigar a estrutura do romance. Para ele, se colocado na
chave interpretativa dos romances documentários, o romance em questão deveria ser avaliado
como sendo uma reprodução fiel da sociedade em que sua ação se desenvolve, o que não
seria adequado. A inadequação deve-se ao romance não pretender abarcar a totalidade social
em sua representação. Ele é restrito às áreas centrais da cidade do Rio de Janeiro, com breves
e esporádicas incursões ao subúrbio. Também socialmente o romance se foca na pequena
burguesia da cidade não abarcando nem a situação dos escravos nem das classes dirigentes.
Diz Candido:
“Na verdade o que interessa à análise literária é saber, neste
caso, qual a função exercida pela realidade social historicamente
localizada para constituir a estrutura da obra – isto é, um fenômeno
que se poderia chamar de formalização ou redução estrutural dos
dados externos.”10
A análise de componentes formais da obra leva Candido a descobrir uma dialética da
ordem e da desordem como princípio estrutural no plano do livro e que pode ser vista como
formalização estética de uma situação social da época. A descoberta desse “jogo dialético da
ordem e da desordem”, presente no romance, funciona como correlativo do que acontecia na
sociedade brasileira daquela época enfocando um grupo social específico: os homens livres.
Roberto Schwarz retorna a esse ensaio de Candido em seu texto “Pressupostos,
salvo engano, de Dialética da malandragem”11 no qual empenha-se em caracterizar
8 Manuel Antônio de Almeida. Memórias de um sargento de milícias. São Paulo: melhoramentos, 1961
9 Idem, p 9.
10 Idem, p. 32.
11 Roberto Schwarz. “Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem”. In: Roberto Schwarz. “Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem”. In: Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras,
1989.
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pormenorizadamente os pressupostos metodológicos que estariam por trás da análise de
Candido. O método de Candido, segundo Schwarz, visa apreender a forma estética de uma
obra, forma entendida aqui como estrutura comum à arte e à sociedade. Talvez seja necessário,
mais uma vez, esclarecer que essa passagem da arte para a sociedade, da ficção à realidade,
como falamos anteriormente, não é um mero espelhamento, não se baseia na fidelidade a um
determinado contexto histórico. Antes, refere-se à capacidade de uma obra de arte sedimentar
em sua forma conteúdos sociais que estruturam a sociedade e que muitas vezes não puderam
ser ainda claramente identificados e problematizados fora do âmbito da arte. Forma e conteúdo
são, desse modo, inseparáveis. Para Schwarz, “Assim, a junção de romance e sociedade se faz
através da forma. Esta entendida como um princípio mediador que organiza em profundidade
os dados da ficção e do real, sendo parte dos dois planos”12. Evidentemente, se a forma está
presente na obra é porque foi de alguma maneira intuída e objetivada pelo artista, mesmo que
ele não se dê conta da formação dela no processo social. Como afirma Schwarz, “a matéria
do artista mostra assim não ser informe: é historicamente formada e registra de algum modo o
processo social a que deve sua existência”13.
O método dialético a que Schwarz se refere seria capaz de levar ao encontro da forma
estética de determinada obra. Seria necessário um primeiro momento de imersão no trabalho
para que se possa compreender como ele se estrutura. Nesse ponto, as análises de Candido
e Schwarz não nos auxiliam muito uma vez que se reportam a obras literárias. Seria preciso
trazer a questão para o campo das artes visuais. O que deve ser observado em um trabalho de
arte? Quais os componentes a que um crítico deve se mostrar atento? Acreditamos que essa
pergunta não tem uma resposta. Porque, em primeiro lugar, cada obra demanda um tipo de
aproximação específica e normatizar esse procedimento de aproximação é impossível, uma vez
que ele é referido a casos particulares. Ademais, isso sequer seria desejável, sob o risco de
incorrermos naquele enrijecimento de pressupostos que tratávamos ao falar de certa crítica da
arte moderna que se tornaria esquemática e fechada à história.
Schwarz define como ponto de partida metodológico a observação e análise das obras
à luz dos conhecimentos do crítico. Mas, note-se bem: nem os conhecimentos do crítico são
sobrepostos à obra (pois assim ela funcionaria como uma espécie de exemplo de uma teoria
dada a priori) nem é possível supor um crítico absolutamente neutro ou ingênuo. Por um lado,
12 Idem, p. 1�1
13 Roberto Schwarz “As idéias fora do lugar” In: Roberto Schwarz “As idéias fora do lugar” In: Ao vencedor as batatas : forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1977. p. 20.
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os conhecimentos prévios do crítico informam a análise, mas ao mesmo tempo, o trabalho
também modifica a visão do crítico ampliando-a, complexificando-a ou mesmo desautorizando-
a. Assim, não há preponderância de uma sobre outra. Para Roberto Schwarz, Antonio Candido
busca justamente o encontro entre realidade e literatura: “ler o romance sobre fundo real e
estudar a realidade sobre fundo de romance”1�. O método constituí-se assim num intenso “vai-
e-vem” entre as obras analisadas e as reflexões do crítico.
Acreditamos, assim, que o método exposto por Schwarz tendo como base o ensaio
de Candido nos permite enfrentar alguns dos dilemas em que a crítica de arte contemporânea
viu-se envolvida. Ao mesmo tempo em que o ponto de vista em que o crítico fala não é
ocultado, pois já é pressuposto que ele opera com conhecimentos prévios diante de uma obra,
isso não limita nem relativiza sua análise. Trata-se de uma posição a ser construída frente a
cada trabalho respondendo a suas particularidades. Assim ainda é possível falar em coerência,
argúcia e pertinência de determinada análise estética. Com relação ao perigo historicista que,
de certa maneira, ronda aqueles que utilizam conexões históricas e categorias estabelecidas
historicamente na análise de um trabalho, podemos falar que, se o ponto de partida for
verdadeiramente dialético o resultado da crítica não pode ser previsto ou dado de antemão,
não há como determinar como a arte deve ser. A história não se apresenta como uma camisa-
de-força, pois a todo momento o crítico deve acompanhar as prerrogativas das obras. Por
fim, a subordinação da forma ao conteúdo (ou vice-versa) parece ser impossível já que, como
dissemos, deste ponto de vista as duas coisas são uma totalidade coesa e inseparável.
1� Roberto Schwarz. “Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem”. In: Roberto Schwarz. “Pressupostos, salvo engano, de Dialética da Malandragem”. In: Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras,
1989. p. 1�0
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Capítulo 4
Inserções em circuitos ideológicos
Projeto Coca-Cola é a primeira parte do trabalho Inserções em circuitos ideológicos
iniciado por Cildo Meireles em 19701. Ele consiste na inscrição de frases em vasilhames de Coca-
Cola que seriam devolvidos à circulação. As frases – elaboradas pelo artista – foram decalcadas
nas garrafas umedecendo-se o papel onde haviam sido previamente impressas e pressionando-
o contra o vidro. A tinta branca vitrificada era a mesma usada pelo fabricante da bebida na
impressão da marca do refrigerante. Assim, as inserções apareciam camufladas. No casco vazio,
eram quase imperceptíveis. Quando a garrafa era novamente preenchida, na fábrica, o texto
tornava-se aparente. Cildo chegou a transferir para algumas garrafas a sua proposta:
INSERÇÕES EM CIRCUTOS IDEOLÓGICOS
1_Projeto Coca-Cola
Gravar nas garrafas opiniões críticas e devolvê-las à circulação
C.M. 5-70
Uma das frases escolhidas pelo artista foi:
yankees go home!
que ele decalcou em diversos vasilhames.
As garrafas que receberam o decalque com instruções para a realização do trabalho
remetem-nos a obras de vertentes conceituais�, especialmente às que têm como elemento principal
um texto com instruções como, por exemplo, Afirmação 017 (1968) de Lawrence Weiner que
consiste na seguinte frase: “Dois minutos de tinta spray diretamente sobre o chão, com uma
lata comum de tinta aerossol”. Colocar lado a lado os trabalhos de Weiner e Meireles pode soar
estranho, mas trabalhos menos conhecidos de Meireles – como Estudo para Tempo, Estudo
para Espaço e Estudo para Tempo / Espaço, todos de 1969, que são folhas sulfite datilografadas,
1 Inserções em circuitos ideológicos têm início em 1970 e continuam a ser feitas ao longo dos anos subseqüentes.
� �� �� Projeto Coca-Cola participou, junto com o Projeto cédula, da mostra Information, uma das primeiras exposições apresentando
obras de vertentes conceituais que teve como curador Kynaston McShine no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1970.
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Inserções em circuitos ideológicos Projeto coca-cola
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parecem indicar que a comparação não é descabida�. Em Estudo para o Tempo, Cildo sugere,
com outras palavras, a seguinte ação: sentar na areia, fazer um buraco com as mãos e observar até
que o vento o preencha novamente. Sem dúvida, podemos afirmar que há uma grande diferença
entre as ações propostas: Weiner cita um material industrial, a tinta spray, e Cildo recorre à areia;
enquanto Weiner propõe uma ação que dura segundos, a de Cildo tem duração imprevisível,
mas muito mais lenta. Por outro lado, não podemos deixar de observar que há nos dois casos
um mesmo procedimento fundamental: a descrição de uma ação que aparece como um tipo
de convite ao público. Esse mesmo convite encontra-se em Projeto Coca-cola; nele também se
verifica uma espécie de deslocamento na própria definição de obra de arte que nos faz perguntar,
afinal, onde ela está. A obra de arte é a garrafa depois de feita a intervenção do artista? ��u é a
realização da ação que ela propõe? Por mais que hoje possamos ver com clareza a facilidade
com que o sistema das artes incorporou esse tipo de manifestação, colecionando as garrafas
de Inserções em circuitos ideológicos como qualquer outra obra, é preciso observar que no
momento em que ela surge seu status de obra de arte não era consensual.
Há uma grande polêmica em torno da classificação de Cildo Meireles como um artista
conceitual, sobretudo porque não há uma definição clara para o termo. Gregory Battcock, em
La idea como arte4, afirma que há uma ampla gama de atividades artísticas passíveis de serem
classificadas como conceituais. Para ele, há, na arte conceitual, uma “ausência de orientação
formal acadêmica”. Ele inclui na lista de arte conceitual trabalhos da land art como os de Michael
Heizer e Robert Smithson, trabalhos que operam por deslocamento, trazendo material de um
lugar para outro�, trabalhos que investigam “componentes essenciais da comunicação artística”,
como os de Kosuth e do grupo Art & Language. �� termo arte conceitual, para o autor, estende-se
para fora do campo das artes visuais e pode ser aplicado à coreógrafa Yvonne Rainer, aos filmes
de William Anastasi e à música de John Cage. Para Battcock, o que a produção desses artistas
tem em comum seria “o repúdio aos aspectos burgueses da arte tradicional”, que se atestaria,
de imediato, na recusa dos artistas em fazer da arte um objeto de consumo. Isso implicava
também que as categorias tradicionais utilizadas para abordar uma obra de arte não poderiam ser
aplicadas a esses trabalhos: “aspectos técnicos como o valor da cor, o desenho, a composição e
a profundidade pictórica convertiam-se em instâncias absolutamente inúteis ao serem aplicadas
� Para reforçar a pertinência da comparação, vale lembrar que Cildo Meireles e Lawrence Weiner realizaram em �000 uma exposi- Para reforçar a pertinência da comparação, vale lembrar que Cildo Meireles e Lawrence Weiner realizaram em �000 uma exposi-
ção conjunta “The souther cross + as far as the eye can see” no Kolnischer Kustverein, em Colônia, na Alemanha.
4 Gregory Battcock. Gregory Battcock. La Idea como arte – documentos sobre el arte conceptual. Barcelona: editorial Gustavo Gilli, 1977.
� Aqui talvez seja o caso de lembrar trabalhos de Cildo Meireles como Aqui talvez seja o caso de lembrar trabalhos de Cildo Meireles como Mutações geográficas:Fronteira Rio/ São Paulo (1969).
Nele, o artista colocando-se no limite entre os estados cavava um buraco no Rio e outro em São Paulo e trocava seu conteúdo.
Estudo para Espaço/Tempo
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à nova forma artística”.6
Para nós, hoje, é evidente que o caráter “anti-burguês” dessas produções não passou de
uma aspiração da época. Sabe-se o quanto trabalhos conceituais contribuíram para a ampliação
do mercado das artes e que são comercializados muitas vezes a preços tão altos quanto os
trabalhos modernos. Também a crítica de arte, muito embora tenha sido obrigada a renovar parte
de seu vocabulário e repensar seus critérios de avaliação para tratar dessa produção, foi importante
para a compreensão e legitimação da arte conceitual, de resto, uma categoria estabelecida na
história da arte recente. Essa sedimentação da arte conceitual deu-se paralelamente a esforços
para alargar seu escopo e incluir trabalhos de artistas de outros países, e não apenas dos Estados
Unidos e da Inglaterra7. Mari Carmen Ramirez, Peter ��sbourne, entre outros, são teóricos que
defendem a existência de uma arte conceitual na América Latina.
Mas o fato é que características que costumam ser atribuídas à arte conceitual estão presentes
em Projeto Coca-Cola. Entre elas, já mencionamos o uso de textos que incitam determinada ação
e deslocam o foco do trabalho do objeto para uma ação ou descrição de procedimentos. Mas
além desses, destacaríamos mais dois procedimentos que nos parecem centrais. �� primeiro seria
a instauração de uma nova relação como público que, no caso brasileiro, já havia acontecido
pelo menos uma década antes com os artistas neoconcretos. Já comentamos a centralidade
do conceito de participação para essa geração que, de certa maneira, desejava por meio dela
retirar o público de um estado de alienação. Pode-se dizer que a geração de Meireles incorpora
criticamente a noção de participação. Com isso queremos dizer que um trabalho como Inserções
em circuitos ideológicos não se dirige a um sujeito que, como acontecia em alguns trabalhos
neoconcretos, sai de uma condição alienada e recupera sua consciência crítica após a experiência
artística. Aqui, o público é a massa: homogeneizada, dispersa, eminentemente voltada para o
consumo. �� desafio dos artistas pós-1960 talvez resida em lidar com a crescente massificação e a
impossibilidade de dirigir-se a um sujeito centrado. Ainda assim, a tentativa parece ser a de retirar
o público da passividade, mas a idéia de participação mostra-se, para essa geração, encoberta
por mecanismos de ação e reação, automáticos, dentro da lógica do consumo que originalmente
queria evitar.
A segunda característica diz respeito ao que o próprio artista chama de “tendência da obra
6 Gregory Battcock, . Gregory Battcock, . La Idea como arte – documentos sobre el arte conceptual. Barcelona: editorial Gustavo Gilli, 1977. p.9
7 Esse movimento de revisão que visa incluir países como o Japão, a Austrália, a Rússia, o Brasil e a Argentina no conjunto de Esse movimento de revisão que visa incluir países como o Japão, a Austrália, a Rússia, o Brasil e a Argentina no conjunto de
países em que a arte conceitual surgiu resultou na exposição Conceitualismo Global, realizada em Nova York em 1999.
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a se volatilizar”. A formalização de um trabalho como Inserções em circuitos ideológicos já não
ocorre de acordo com padrões da estética tradicional, mas em função de uma almejada posição
em relação ao sistema das artes e seus componentes: o público, a instituição, o artista. A obra não
apenas se instala no museu, mas amplia seu trânsito social circulando nos refrigerantes. Assim, o
trabalho vai ao encontro da dissolução implícita no termo “público da arte”, problematizando-a.
Paralelamente ao questionamento sobre o lugar da arte encontramos a pergunta sobre o público
da arte, que teria se tornado uma abstração.
É interessante observar que, quando Cildo Meireles rejeita o rótulo de artista conceitual,
o faz justamente por localizar nesta vertente um excesso de retórica verbal. Ao mesmo tempo, o
artista sempre afirma a importância que o texto de Ferreira Gullar, Teoria do não-objeto�, teve para
toda a sua geração. A volatilização de seus trabalhos parece se relacionar mais ao “não-objeto”
de Gullar do que à arte desmaterializada das vertentes conceituais que vêem na existência da arte
objetual um problema.
“A expressão não-objeto não pretende designar um objeto negativo
ou qualquer coisa que seja o oposto dos objetos materiais com
propriedades exatamente contrárias desses objetos. �� não-objeto
não é um antiobjeto mas um objeto especial em que se pretende
realizada a síntese de experiências sensoriais e mentais: um corpo
transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente
perceptível, que tende à percepção sem deixar resto”9
��s trabalhos de Cildo, embora não estejam mais no campo de análise fenomenológico,
pois desconfiam da possibilidade de serem integralmente transparentes, não fazem coro à
tendência “antiobjeto” que marcou as correntes ligadas à idéia da “desmaterialização da arte”10.
São, ao contrário, objetos cuidadosamente escolhidos ou elaborados pelo artista. As garrafas de
Coca-Cola que o artista elege para intervir não são uma mercadoria qualquer. De alguma maneira
elas tornaram-se espécie de emblema da mercadoria no mundo que rumava para a globalização.
É importante ressaltar que, ao invés de “desmaterializar” o trabalho em busca de uma relação
menos fetichizada com a arte, Cildo traz ao museu o objeto-fetiche por excelência.
8 Publicado pela primeira vez no suplemento dominical do Jornal do Brasil em 19 de dezembro de 19�9. Publicado pela primeira vez no suplemento dominical do Jornal do Brasil em 19 de dezembro de 19�9.
9 Ferreira Gullar. “Teoria do não-objeto”, Ferreira Gullar. “Teoria do não-objeto”, Malasartes, vol.1. 197�. p.�6.
10 Lucy Lippard. Six years: The desmaterialization of the Art Object from 1966 to 1972. Londres: Studio Vista, 197�.
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Quando pensamos na outra inscrição feita pelo artista nas garrafas, a frase “yankees go
home!”, não há como não lembrar das palavras de ordem que, na época em que o trabalho foi feito,
eram usadas nas passeatas contra a ditadura realizadas nas principais cidades brasileiras. Curta,
simples, fácil de lembrar, convoca à ação. Mas tal descrição também se assemelha ironicamente a
um slogan da publicidade. A frase acaba funcionando como um substituto dos slogans elaborados
pela própria empresa: “Coca-Cola / isto faz um bem” (década de 19�0 a meados de 1960) “Coca-
Cola / isso é que é” (década de 1970) “Dá mais vida” e “Abra um sorriso” (ambos lançados em
1979), entre inúmeros outros. Este fato apaga ainda mais as fronteiras entre arte e mercadoria,
entre slogans de produtos e frases de efeito da esquerda, mais ao gosto da arte pop do que da arte
conceitual, talvez.
Alguns críticos, como Ronaldo Brito, chamaram a atenção para o procedimento da inserção,
que consistiria em utilizar-se de objetos fabricados, muito marcados por sua circulação social,
e colocar neles um corpo estranho, invertendo assim o sinal de sua “mensagem”. Essa leitura
diz que os circuitos veiculam apenas a sua própria ideologia, mas que, também, são passíveis
de receber inserções capazes de contradizê-la. A inserção, ao mesmo tempo, funcionaria como
uma explicitação do discurso original veiculado pelo objeto coca-cola, discurso que permanecia
oculto. ��u seja, as garrafas de refrigerante, mesmo antes da inserção, não eram simplesmente
meros recipientes, mas celebravam a cultura norte-americana, propagavam um estilo de vida. Mas
é com a inserção, que marca posição contrária a isso tudo, que seu discurso original aparece.
�� procedimento crítico da obra consistiria também em revelar a carga ideológica dos produtos
consumidos cotidianamente. Como a mensagem inserida se camufla na garrafa – o artista emprega
a mesma tinta da marca Coca-Cola e registra a mensagem em letras pequenas, na horizontal,
discretamente – a intervenção não é detectada com facilidade pelos mecanismos de controle. Uma
mudança menos sutil no produto poderia fazer com que as “inserções” não circulassem. Ronaldo
Brito comenta o mecanismo da inserção da seguinte maneira: “�� desejo é interferir no andamento
do Sistema mediante uma esquisita manobra: aparecer como zero, ponto cego da hierarquia,
imponderável dado que a máquina não registra e não calcula.”11
Achar “pontos cegos”, em que o sistema se mostra vulnerável, de modo a poder operar
sobre eles: esse procedimento foi amplamente comentado. �� crítico e curador de arte Paulo
Herkenhoff compara a ação de inserção com táticas de guerrilha que foram utilizadas neste
11 Ronaldo Brito. “Freqüência Imodulada”, In: Ronaldo Brito. “Freqüência Imodulada”, In: Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 1981 p.1�.
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período1�. A palavra estratégia, usada em inúmeros textos para referir-se ao Projeto Coca-Cola,
alude a um contexto bélico que está na origem do termo1�.
Sem dúvida, a interpretação feita por esses críticos, muitas vezes no calor da hora, colocava
em cena alguns dos principais pontos levantados pela obra: o procedimento da inserção, a
utilização de circuitos já existentes e a centralidade da noção de ideologia para o trabalho. Mas
é o próprio artista que nos dá uma chave de interpretação que talvez seja mais interessante. Diz:
“na ação de inserção é a velocidade que me interessa especificamente; trata-se de verificar a real
velocidade do processo”14. Temos aqui a menção clara aos processos de circulação social. No
momento da inserção há uma paralisação do próprio sistema. A velocidade das trocas é atingida,
tornando a circulação tangível. Interferir na velocidade do processo é mostrar que a abstração da
circulação pode ser objetivada por trabalhos de arte. É, mais uma vez, o artista quem fala:
“Lembre-se de que o trabalho não é o que vemos numa
exposição em um museu. Não são as cédulas ou as garrafas de
Coca-Cola. Estes objetos são apenas relíquias. �� trabalho mesmo
não tem materialidade. E é efêmero. Só existe quando alguém está
interagindo com ele”1�.
�� momento da interação do público com o trabalho é a possibilidade de inversão do
controle da circulação. Uma brecha temporal aberta na ordem dos acontecimentos. Mesmo
assim, sabendo que os objetos – as garrafas com as inserções – quando colocadas em um museu
não correspondem exatamente ao trabalho, a tendência fetichista intrínseca ao sistema das artes
rapidamente as toma como peças de coleção, investindo-as de um caráter especial.
�� fim da autoria surge aqui de maneira não menos irônica. Não custa lembrar que é o
próprio artista que decide expor as garrafas, menos de um ano depois de sua criação, na mostra
Information de arte conceitual. E que hoje esse trabalho é imediatamente identificado como um
1� Herkenhoff afirma: “A proposta de Cildo em Herkenhoff afirma: “A proposta de Cildo em Inserções... poderia ser comparada, no plano político, à estratégia clandestina do
líder brasileiro Carlos Marighela: manifestações populares de rua em reação a uma rede de repressão”. “Um gueto labiríntico: A obra de
Cildo Meireles”, In: Cildo Meireles. São Paulo: CosacNaify, 1999. p.48.
1� Ver: Ronaldo Brito. “Freqüência Imodulada”, In: Ver: Ronaldo Brito. “Freqüência Imodulada”, In: Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funarte, 1981 e Wilson Coutinho. “A estratégia
de Cildo Meireles”, Arte hoje, ano �, nº 1�, junho, 1978, por exemplo.
14 Cildo Meireles. “Inserções em circuitos ideológicos”, In: Cildo Meireles. “Inserções em circuitos ideológicos”, In: Cildo Meireles. São Paulo: CosacNaify, 1999. p. 11�.
1� “Remember that the work is not what we see in a museum exhibition. It’s not the bank notes or the coca-cola bottles.This objects
are only relics. The work itself has no materiality. And it is ephemeral. It only exists when someone is interacting with it”. John Alan Farmer
“Through the labyrinth: An Interview with Cildo Meireles” Art journal. �000.�000.
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dos mais importantes de Cildo Meireles, constando na maioria dos livros e catálogos dedicados a
ele. É como se, mais uma vez, todos os esforços para a dissolução da autoria fizessem água frente
à sede mercadológica do sistema das artes, mostrando a ingenuidade da proposição “todos se
tornam autores”.
A pergunta acerca da inserção como ação – ela se dá no domínio da arte ou avança
em direção ao domínio da política? – é, de certa maneira, inescapável. Em 1970, o crítico
Frederico Morais organizou uma exposição que durou apenas um dia chamada Nova Crítica16, na
Petite Galerie, no Rio de Janeiro. A exposição consistia numa espécie de comentário do crítico
sobre os trabalhos de Cildo Meireles, Theresa Simões e Guilherme Vaz. Em resposta ao trabalho
apresentado por Cildo na exposição “Agnus Dei”17, o Projeto Coca-Cola, Morais colocou 1� mil
garrafas do refrigerante na galeria, sendo que apenas uma parcela ínfima delas apresentava as
inserções propostas pelo artista. A principal crítica de Morais ao Projeto Coca-Cola parecia ser a
falta de proporção entre a escala industrial da fabricação do refrigerante e a ação individual de
inserir comentários críticos em uma garrafa.
Embora o próprio artista reconheça que havia um grau de utopia nesse projeto, a
desproporção apontada por Morais não pode ser considerada um problema para o trabalho. Seu
sucesso não pode ser medido em termos de uma suposta eficiência social. Ele se endereça mais
propriamente à esfera da arte e é bem sucedido à medida em que aponta os vínculos cada vez
mais estreitos da obra de arte com as demais mercadorias, ao mesmo tempo em que problematiza
as tentativas recentes de romper com aquilo que Battcock chamou de caráter burguês da arte.
Tanto a autoria como o caráter de “objeto especial” acabam por retornar à obra de arte mostrando
que os limites dessas ações pensadas por alguns dos artistas conceituais são mais estreitos do que,
à primeira vista, se pôde pensar.
Com isso não estamos querendo dizer que não há uma vontade política nesse trabalho. ��
crítico de arte Rodrigo Naves, em um texto curto e inusitado (Cildo é constantemente comparado
a Duchamp e Warhol, mas raramente aos construtivistas), tenta caracterizar a direção política
dos trabalhos de Cildo. “Há em Cildo Meireles uma vontade política, negativa e cética, é certo,
que o traz mais para o lado de Gropius. Só que a tentativa da Bauhaus de conferir reflexividade
16 Uma declaração de Francisco Bittencourt nos dá a dimensão do entusiasmo com que a exposição de Morais foi aclamada no Rio Uma declaração de Francisco Bittencourt nos dá a dimensão do entusiasmo com que a exposição de Morais foi aclamada no Rio
de Janeiro, à época: “Essa exposição-comentário que adotava as mesmas táticas dos artistas criticados foi muito mais que a simples tentativa
de inaugurar uma nova crítica, pois o crítico estava ali não como opressor do artista, mas em pé de igualdade com ele (...) A nova crítica foi
repetida com uma exposição de artistas jovens paulistas que ocupou o MAM no ano seguinte”. Francisco Bittencourt. Depoimento de uma geração, Galeria de arte Banerj, 1986. p. 17 e 18.
17 “Agnus Dei: Thereza Simões, Guilherme Vaz e Cildo Meireles”, Petite Galerie, Rio de Janeiro, 1970. “Agnus Dei: Thereza Simões, Guilherme Vaz e Cildo Meireles”, Petite Galerie, Rio de Janeiro, 1970.
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e razão ao caos do cotidiano converte-se na total impossibilidade de ordenar a barbárie” e, mais
adiante,
“Contudo, tanto no drama social-democrata de Gropius
quanto no ceticismo anárquico de Cildo Meireles encontramos
uma inteligência comum no que diz respeito à identificação de uma
universalidade que determina a vida moderna. Gropius queria ordená-
la pela forma, Cildo Meireles, ao contrário, revela o fetichismo e a
abstração que estão na base do processo”18.
Talvez em 1986, com o distanciamento de alguns anos, tenha sido possível enxergar o
que fora considerado um fracasso em 1970 (a desproporção do trabalho em relação à escala
industrial) como uma resposta à utopia dos construtivistas.
�� Projeto cédula, segunda parte das Inserções em circuitos ideológicos, realizado também
em 1970, consistia na inserção de comentários críticos, por meio de carimbos, em cédulas de
dinheiro em circulação. A ação da inserção é a mesma; trata-se de um desdobramento do Projeto
Coca-Cola.
�� artista carimbou em notas de um cruzeiro e um dólar as instruções do trabalho (escrita
em português na moeda brasileira e em inglês na moeda norte-americana), tal como fez no
Projeto Coca-Cola:
INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS
2 – PROJETO CÉDULA
Gravar informações e opiniões críticas nas cédulas e devolvê-las à circulação
C.M. 5/70
Também usou a frase:
yankees go home!
18 Rodrigo Naves. “Preto sobre branco”, Rodrigo Naves. “Preto sobre branco”, Revista galeria, nº �, 1986 p.18.
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E uma outra que perguntava:
Which is the place of the work of art?
Esta última escrita em inglês tanto na versão que utilizava o cruzeiro quanto na que utilizava o
dólar. Mas a inscrição mais famosa, nas cédulas de um cruzeiro, foi:
QUEM MATOU HERZOG?
Uma referência ao jornalista Wladimir Herzog que foi encontrado morto em sua cela em 197�19.
A versão oficial declarava que Herzog havia se enforcado, mas todos sabiam que ele fora torturado
até a morte pela polícia.
A escolha do dinheiro como suporte desse segundo projeto aprofunda a dissolução do
trabalho na circulação social. Lembremos que frases escritas em cédulas de dinheiro tais como
jogos, frases jocosas, piadas, correntes e ditos populares já eram prática comum no Brasil. De
certo modo o dinheiro já era utilizado como suporte de mensagens anônimas. �� que o artista faz
é apropriar-se desse circuito, assim, as inserções se misturam a esses comentários de anônimos.
�� uso do carimbo é outro elemento que vale destacar. A frase “yankees go home!”,
também já abordada anteriormente, assume, nesse projeto que utiliza o carimbo, sua faceta de
automatização e repetição exaustiva. Distante de uma remota avaliação política que, poderíamos
supor, estaria em sua origem, aqui ela se apresenta como mero bordão mecanicamente
reproduzido.
Já a frase “Which is the place of the work of art?” é uma provocação, uma pergunta que
traz em si sua resposta. Cildo Meireles afirmava que as inserções em circuitos visavam avançar as
idéias de Marcel Duchamp: “As Inserções em circuito ideológicos tinham esta presunção: fazer
o caminho inverso ao dos readymades. Atuar no universo industrial. Não mais o objeto industrial
colocado no lugar do objeto de arte, mas o objeto de arte atuando no universo industrial.”�0. E
o que ocorre quando a arte entra nesse universo? Em grande medida é capturada por ele, mas
há algo que resiste? Imprimir essa frase nas cédulas significa também investigar a possibilidade
de existência da arte e a que demandas ela atende numa sociedade dominada pela anestesia.
19 O Projeto cédula surge em 1970 e prossegue por alguns anos, não tendo um fim determinado.
�0 Cildo Meireles.“Inserções em circuitos ideológicos”, In: Cildo Meireles.“Inserções em circuitos ideológicos”, In: Cildo Meireles, São Paulo: CosacNaify, 1999. p. 109 e 110.
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Perguntar-se sobre a capacidade de resistência da arte quando ela encontra-se dissolvida, imiscuída
nos circuitos cotidianos, imersa nas relações de consumo protagonizadas pelo dinheiro.
“Quem matou Herzog?” é a outra frase carimbada pelo artista. Decididamente, não se
trata de inquirir quem seria o responsável pela morte do jornalista, como pode parecer pelo
“quem” utilizado na frase. Pouco importava saber o nome do carrasco e sim denunciar uma
estrutura de poder autoritária que usava a tortura como uma prática comum. Mas a pergunta
formulada dessa maneira já indica o que o assassinato de Herzog poderia se tornar, ou mesmo,
já havia se tornado. Tal como numa trama policial tratava-se de desvendar um mistério, saber
quem era o culpado. Assim, banalizando-se o “assunto”, põe-se às claras o mecanismo pelo qual
a espetacularização dos fatos sociais substitui o interesse político desse fato.
Árvore do dinheiro e os Zeros
Em Árvore do Dinheiro (1969), cem notas de um cruzeiro dobradas ao meio são empilhadas
e envolvidas por um elástico de borracha utilizado em bancos. A pilha de dinheiro foi colocada
numa base de madeira, à maneira de um pedestal, numa referência ao mobiliário de museus. ��
pedestal, ao mesmo tempo, está no lugar do tronco de uma mítica Árvore do Dinheiro – fonte
inesgotável de renda, objeto do desejo por excelência nas sociedades de consumo. �� preço da
obra, segundo legenda colocada na base de madeira�1, foi fixado em dois mil cruzeiros. Fora da
galeria, o mesmo “objeto” vale cem cruzeiros.
Em primeiro lugar, temos que notar que colocar um maço de notas num pedestal vai além
de uma possível afirmação (ou denúncia) de que a sociedade está calcada em valores mercantis.
�� dinheiro na obra tem sua função social subvertida ao tornar-se parte de uma obra de arte. Preso
ao pedestal ele perde sua possibilidade de deslocamento, sua mobilidade, o que é imprescindível
para a mercadoria que funciona como equivalente universal. É claro que, mesmo apresentando-
se preso e com sua função pretensamente anulada, não deixamos de vê-lo simbolicamente
como dinheiro. �� que se pode comprar com essa quantia? – não paramos de nos perguntar.
Mentalmente trocamos o dinheiro por diversas outras coisas que pudessem ser compradas com
ele. Podemos imaginá-las no lugar do dinheiro, em cima do pedestal, convertendo-se também em
obras. Ao que tudo indica, mesmo parado, ele continua circulando.
A situação da arte, num momento em que diversos elementos que tradicionalmente não
faziam parte da esfera artística entram em cena, mostra-se um ponto sensível capaz de demonstrar
com maior agudeza a lógica da intercambiabilidade, revelando uma faceta menos libertadora da
�1 �� texto da legenda que faz parte da obra é: “Título: cem notas de 1 cruzeiro. Preço: dois mil cruzeiros”. �� texto da legenda que faz parte da obra é: “Título: cem notas de 1 cruzeiro. Preço: dois mil cruzeiros”.
Árvore do Dinheiro
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situação social geral. �� trabalho coloca em evidência uma circulação descontrolada - da qual é
impossível manter-se fora – e que funciona mediante a lógica da intercamibiabilidade absoluta.
A própria obra afirma que nem o valor das notas em conjunto, nem o valor que a obra
enuncia compreendem o seu valor. Mesmo que ela seja efetivamente vendida seu valor não seria
subsumido ao preço. A todo momento, oscilamos diante de duas fortes tendências: olhar para
a pilha de notas como se ela estivesse no lugar de uma obra de arte que teria sido vendida e
olhá-la como uma obra de arte específica. Nessa segunda perspectiva, o trabalho tem um notável
rigor formal. As notas originalmente retangulares foram dobradas ao meio para que figurassem
quadradas e a base, também quadrada, funcionasse como uma moldura. �� maço, preso com
elástico de borracha em forma de cruz, de resto como apareciam no manejo bancário, faz uma
alusão à simplificação formal de algumas obras modernas que se reduzem a linhas horizontais e
verticais: a famosa grade modernista. Além disso, a cruz, símbolo de espiritualidade, contrasta
com os processos materiais associados às relações que envolvem dinheiro.
�� dinheiro, como material, mostra-se maleável e sem resistência. Pode-se dobrá-lo,
amarrá-lo com elásticos, empilhá-lo. Mostrá-se igualmente maleável na esfera simbólica: espécie
de referência que aponta para um infinito número de referentes possíveis. Mas o trabalho instiga
uma dúvida, que nos conduziria ao caminho inverso, será que tudo é passível de converter-se
em dinheiro? �� trabalho nos mostra que é possível dar forma ao dinheiro, fazer a partir dele, algo
informe e evasivo, uma obra de arte.
As obras Zero Cruzeiro, zero centavo (1974 -1978 ��) e Zero dólar e zero cent (1978-
1984) também lidam com essa questão. Mas, ao contrário do maço de dinheiro que, em Árvore
do dinheiro, está aprisionado num pedestal (o que, como vimos não o impede de circular) aqui
o dinheiro consegue manter sua função social mesmo anunciando-se sem valor.
As cédulas de Zero cruzeiro e Zero Dólar são litografias produzidas com as dimensões
e cores habituais de cédulas em circulação na época e com um papel muito semelhante ao
papel-moeda. É Paulo Herkenhoff, em seu texto Arte é money, que descreve os detalhes: “As
obras de Cildo Meireles são cédulas verazes com seus fundos de segurança, cartelas, corandel,
efígies e outros elementos gráficos da estampa monetária. A cédula Zero Dólar foi realizada com
a participação de João Bosco Renaud, gravador e designer gráfico de cédulas monetárias para a
Casa da Moeda do Brasil”23. As notas de Zero Cruzeiro traziam estampadas figuras de índios e
�� Tal como Tal como Zero Dólar e Zero Cent, as datas indicadas aqui dizem respeito ao momento de idealização da obra e sua efetiva reali-
zação.
�� Paulo Herkenhoff Paulo Herkenhoff Arte é money. Bienal de gravura de Curitiba, Curitiba,199�. p.16.
Zero Dolar1978-1984
Zero Centavo1974-1978
Zero Cruzeiro1974-1978
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pacientes de hospitais psiquiátricos. As cédulas de Zero Dólar mostravam a figura do Tio Sam,
com o dedo apontado para frente, tal como o personagem figurava nos cartazes de recrutamento
de pessoal para o exército norte americano durante a Guerra de Secessão. No verso da nota de
dólar, há uma imagem da Casa Branca, residência dos presidentes norte-americanos e o símbolo
de poder dessa nação.
As leituras correntes desses trabalhos�4 identificam as notas com pinturas, por serem
bidimensionais e as moedas de Zero cruzeiro (com uma alegoria da República de perfil, tal como
se via nas moedas de cruzeiro) e Zero cent (nas quais vemos a águia, pássaro símbolo do Estados
Unidos também usada nas moedas da época, e uma garrafa de coca-cola) com esculturas, ou
relevos, termo talvez mais apropriado. De fato, devemos atentar para as aproximações entre
as cédulas originais e os trabalhos de arte: ambas são feitas com procedimentos sofisticados da
gravura, são assinados (pelo artista ou pelo presidente do Banco Central), põem em circulação
imagens cuidadosamente escolhidas e são objetos que funcionam como paradigmas de valor.
Essas leituras deixam escapar, entretanto, o fato desses trabalhos operarem por imitação,
usando como referentes as cédulas e moedas verdadeiras. Há um preciosismo em sua confecção,
uma ambição à perfeição, uma vontade de passarem como se fossem notas verdadeiras. E não
são? Afinal, resta saber se o fato de se anunciarem como valendo zero muda alguma coisa no
trânsito social dessas mercadorias. �� artista conta que a idéia inicial era fazer os exemplares de
Zero Cruzeiro circularem vendendo-os em camelôs no centro do Rio de Janeiro, o que acabou
não se realizando��. �� trabalho foi então vendido em galerias de arte o que pouco ou nada muda
na direção inicial do projeto. �� que importa saber é que apesar do não-valor declarado e, nesse
caso, talvez por causa dele, as cédulas e moedas tornam-se um tipo especial de valor. Tudo se
passa como se elas pudessem se liberar da última determinação que lhes resta (valer �, 10 ou 100
cruzeiros) e passar a ser pura encarnação de valor.
Transparência e desaparecimento
Em Eppur si muove (1991), mil dólares canadenses passam por inúmeros processos de
troca cambial (por francos franceses e libras esterlinas, retornando ao dólar após cada troca) até
que, no final, sobram apenas quatro dólares e alguns centavos�6. As transações são registradas
�4 Ver Paulo Herkenhoff “Um gueto labiríntico: A obra de Cildo Meireles” In: Ver Paulo Herkenhoff “Um gueto labiríntico: A obra de Cildo Meireles” In: Cildo Meireles São Paulo: CosacNaify, 1999.
�� Ver anexo: entrevista concedida à autora em agosto de �006. Ver anexo: entrevista concedida à autora em agosto de �006.
�6 Se partirmos apenas da observação do trabalho, não sabemos da existência dessa quantia inicial que foi trocada. Essa informação Se partirmos apenas da observação do trabalho, não sabemos da existência dessa quantia inicial que foi trocada. Essa informação
é dada pelo artista à críticos que comentam a obra. Ver: Nuria Enguita e Vicente Todolí. Cildo Meireles. Valencia: Instituto Valenciano de
Arte Moderna, 199�. p. 111.
Eppur si muove1991
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em recibos que fazem parte do trabalho. �� processo todo é apresentado usando três cofres
transparentes com o tradicional formato de porquinho, colocados lado a lado.
�� primeiro cofre, se descrevermos o trabalho da esquerda para direita, exibe a quantia final
de dinheiro resultante das sucessivas trocas. �� segundo exibe documentos (notas fiscais, recibos)
que registram cada etapa de transformação. Mostram, presume-se, pois o cofre não permite
uma visualização integral dos papéis, a quantia recebida e a devolvida após cada transação. No
terceiro cofre vemos, novamente, as mesmas notas e moedas que restaram após as sucessivas
trocas.
A disposição dos cofres sugere uma seqüência narrativa, mas eles não contam uma história
com começo, meio e fim. Há uma ruptura nessa lógica. É preciso problematizar essa ausência
do ponto de partida: os mil dólares iniciais já não estão lá, foram trocados e se dispersaram.
Mas por que apresentar na obra quantia final repetida em dois dos cofres? É possível falar em
cópia e original, quando se trata de dinheiro? Como decidir onde está o verdadeiro resultado
da operação: no início ou no fim�7? Há um déficit temporal envolvido aqui: seria impossível
apresentar ao mesmo tempo a quantia investida e a resultante.
Dirigindo-nos ao cofre central, surge uma nova pergunta: qual é o estatuto daqueles
recibos guardados? Eles também são “valor”, como o dinheiro depositado nos demais? Todo
cofre, sabemos, guarda algo que não pode ser exposto: seja dinheiro, documentos, segredos de
Estado... Este cofre guarda a resposta a uma pergunta que permanece em segredo: o que de fato
aconteceu com a soma inicial de dinheiro?
Finalmente, no último cofre, nos perguntamos: esse valor de quatro dólares e alguns
centavos – sendo o verdadeiro resultado ou o simulacro dele – está efetivamente parado? É o
valor final da transação? Desde 1991, data da criação da obra, para cá, o dólar canadense pode
ter se desvalorizado ou se valorizado. Seu valor varia de lugar para lugar e de tempos em tempos
ao sabor da flutuação cambial. É um valor final, embora não permanentemente o mesmo.
�� título da obra, Eppur si muove, cuja tradução para o português é “no entanto se move”,
é a frase final do discurso de Galileu quando foi obrigado pela Igreja a desmentir a teoria sobre o
movimento da Terra. A idéia de uma mobilidade problemática também está presente no trabalho:
se o dinheiro historicamente nasce para facilitar as trocas, a mobilidade faz parte de sua essência.
Situação paradoxal quando percebemos que, a cada troca, ele se dissipa. É essa tendência própria
do sistema de circulação do dinheiro que o trabalho tematiza.
�7 Leituras apontam que o terceiro cofre conteria o dinheiro que não foi trocado, mas isso não fica claro na exposição do trabalho. Leituras apontam que o terceiro cofre conteria o dinheiro que não foi trocado, mas isso não fica claro na exposição do trabalho.
Ver: Moacir dos Anjos “A indústria e a poesia” In Arte e ensaio, ano XI, nº 11, �004 e Nuria Enguita e Vicente Todolí. Cildo Meireles. Valência: Instituto de Valenciano de Arte Moderna, 199�.
Elemento desaparecendo/Elemento
desaparecido(passado iminente)
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A transparência do trabalho contrasta com a opacidade que envolve os processos
financeiros nesse trabalho. Se o valor financeiro, ou preço, aparece em outros trabalhos com
precisão (como em Árvore do dinheiro, em que o preço da obra foi fixado em dois mil reais)
aqui as trocas financeiras mostram seu lado mais sombrio. Cada cofre suscita perguntas difíceis
de responder. Não se explica como, apenas trocando o dinheiro, sem efetivamente gastá-lo,
ele praticamente acaba. Sabemos que as casas de câmbio e os bancos cobram impostos e taxas
administrativas: é aí que o dinheiro foi gasto. �� que o trabalho evidencia é que o dinheiro,
meio de troca por excelência, não pode, ele mesmo, ser apenas trocado. Toda troca de dinheiro
implica dispersão.
Embora tudo no trabalho seja transparente: o vidro de que são feitos os cofres, o
detalhamento – por meios da exposição de recibos – das trocas financeiras, a exposição do
montante final, há uma opacidade que permanece. �� fica às claras é o desaparecimento do
dinheiro. Poderíamos mesmo dizer que a questão central do trabalho é o desaparecimento que a
transparência da obra tenta demonstrar, mas sem sucesso.
Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido (passado iminente), de �00�, tem alguns
pontos em comum com Eppur si muove a começar por seu título que contém o verbo “desaparecer”
e que indica uma estranha temporalidade ao usar a expressão “passado iminente”. Normalmente
usamos o adjetivo “iminente” para nos referirmos ao futuro, para algo que irá acontecer em
breve, mas o artista, aqui, opta por usá-lo associado ao passado: trata-se de um passado que
está a ponto de se concretizar. Tal como em Eppur si muove, as atenções se concentram numa
temporalidade que não pode ser exposta atualmente. No caso de Eppur si muove seria impossível
apresentar simultaneamente o montante inicial e final, e a obra estrutura-se a partir da noção de
intervalo e Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido (passado iminente) faz menção a
um ponto, imperceptível, em que o presente torna-se passado.
Apresentada na 11 Documenta de Kassel, em �00�, a obra consistiu na implementação de
uma pequena fábrica de picolés na cidade alemã. �� artista contratou funcionários para vender e
fabricar os picolés, fez seus uniformes e fez até uma logomarca para o produto que foi estampada
nos carrinhos e na roupa daqueles que vendiam o picolé. Durante a exposição, os carrinhos
de sorvete circulavam pela cidade, em pontos próximos aos espaços da mostra. ��s picolés, que
eram vendidos ao público pelo preço de um euro, eram de gelo sem qualquer sabor adicional. A
renda obtida foi usada para pagar os custos do trabalho.
Depois de retirar o papel que envolvia o picolé podia-se ler num dos lados do palito
a frase: “elemento desaparecendo” e, uma vez consumido o picolé, o palito mostrava a frase
completa: “elemento desaparecendo / elemento desaparecido”. A expressão “passado iminente”,
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já comentada, parece se referir ao tempo que demora para a frase aparecer totalmente, o momento
em que o gerúndio torna-se passado, o tempo para que o picolé de água acabe. Mas, a rigor, o
que designaria o termo “passado iminente” senão o presente? Há uma ironia que faz com que
voltemos ao uso do termo iminente, geralmente associado a um tipo de projeção trágica para
o futuro. A obra parece sugerir é que estamos a beira de um passado que pode virar tragédia: a
passado não está parado, consolidado e estanque, mas ele também se transforma.
�� crítico Moacir dos Anjos em seu texto Cildo Meireles a Indústria e a poesia enfatiza
o vínculo desse trabalho com Inserções em circuitos ideológicos e Inserções em circuitos
antropológicos�8. Aqui também haveria uma inserção, a frase crítica inscrita no palito, além da
forte referência a um circuito criado na cidade. Mas também aproxima-o de Eppur si muove, da
seguinte maneira:
“Demonstrando os mecanismos de perda de valor associados tão-
somente a trocas monetárias entre equivalentes, Eppur si muove
antecipava, num grau de abstração maior, o que o trabalho feito
para a Documenta 11 iria tratar como algo inerente a sua própria
constituição física e empresarial e, também, como comentário sobre
um fato específico: o gradual desaparecimento de um elemento
necessário à vida causado por seu uso desregulado”�9
�� que o autor parece apontar é justamente esse desaparecimento comum aos dois
trabalhos, enquanto o primeiro trata do desaparecimento do dinheiro o segundo elabora uma
obra que desaparece, o picolé de água (ou, se quisermos, a própria fábrica de picolés e seu
sistema de vendas, que têm a duração da Documenta). �� picolé de água assim diria respeito
tanto à condição da arte (parte de uma empresa, inserida no circuito-mercado e sendo desfrutada
mediante relações de consumo) e quanto à escassez da água como recurso natural.
Não faltaram leituras ecológicas do trabalho, interpretando-o apenas por este viés. Mas,
para nós, interessa mais pensar o que ele coloca para o campo das artes. Ele expõe a crescente
aproximação entre a esfera do mercado e do grande circuito internacional de arte, do qual a
Documenta é parte. Estrutura-se com base em processos empresariais como a contratação de
�8 Há dois projetos conhecidos que integram Há dois projetos conhecidos que integram Inserções em circuitos antropológicos. Token é uma instrução para a fabricação de
fichas para máquinas e metrô usando linóleo ou barro. �� outro projeto é Black pente que consiste na introdução no mercado de pentes com
dentes largos, mais apropriados para o cabelo crespo.
�9 Ver Moacir dos Anjos “A indústria e a poesia” Ver Moacir dos Anjos “A indústria e a poesia” In Arte e ensaio, ano XI, nº 11, �004. p. 76
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pessoal, a compra de máquinas e a elaboração de um programa visual para a empresa. Mas há
algo de amador nesse “negócio”. ��s picolés, feitos em três diferentes formatos, o que revela o
caráter artesanal do processo de fabricação, os carrinhos com sua tecnologia quase obsoleta:
pesados e um pouco difíceis de manejar, lembram fabriquetas de comerciantes de pequenas
cidades do interior ou do litoral brasileiro�0. Seria um comentário a Kassel, cidade alemã pequena
e provinciana que é sede de um dos mais badalados eventos artísticos do mundo?
A relação que esse trabalho mantém com o público ironiza o sempre presente desejo de
consumo criando uma possibilidade (falsa, como se vê) de adquirir uma obra de arte por apenas
um euro. Mas o que o público leva, efetivamente? �� residual desse trabalho chega próximo
ao zero, se não fosse o palito que pode ser conservado. As frases ali presentes recordam que o
trabalho é o processo: a circulação dos carrinhos espalhados pela cidade, a instalação de uma
fábrica, o ato da venda e do consumo. �� trabalho é uma seqüência de ações que acontecem num
determinado período. Entra em cena, novamente, um desaparecimento, presente em inúmeras
obras de Cildo Meireles. Neste caso, também cercado por uma forte transparência: a água
(símbolo de transparência e pureza por excelência), as explícitas relações de consumo, a clareza
na distribuição do dinheiro obtido com a venda (todo revertido para custear o trabalho). Mas,
mais uma vez, tal transparência não possibilita a apreensão dos objetos que escapam, derretem
ou simplesmente somem.
�0 Não custa lembrar que, no Brasil, o hábito de fabricar e vender em casa pequenos sorvetes, chamados popularmente de gelinhos, Não custa lembrar que, no Brasil, o hábito de fabricar e vender em casa pequenos sorvetes, chamados popularmente de gelinhos,
é comum. Principalmente em lugares mais afastados dos grandes centros comerciais.
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Conclusão
Em capítulos anteriores procuramos analisar alguns trabalhos de Cildo Meireles à luz das
transformações em curso na pós-modernidade. Gostaríamos agora de retornar a essas análises
tomando-as em conjunto. Não ambicionamos uma visão total da produção do artista, mesmo
porque fizemos um recorte muito específico em sua trajetória; tampouco acreditamos que será
possível enquadrar num esquema rígido as questões de que tratamos em diferentes obras. Apesar
disso, cabe-nos, numa conclusão, procurar vínculos e verificar em que medida alguns aspectos
levantados nas análises das obras do artista podem configurar uma posição forte face à pós-
modernidade.
Circulação: eis um tema recorrente em nossa análise. Insistimos desde a Introdução na
importância da definição desse recorte na produção de Meireles por acreditarmos que a circulação
é estrutura e tema de alguns de seus principais trabalhos. Entendida como fluxo, movimento,
deslocamento, ela também surge quando nos dedicamos a pensar as transformações em curso em
nossa época. Muito embora tenhamos procurado não resumir a globalização a apenas um de seus
aspectos mais aparentes, a aceleração das trocas comerciais e culturais que tendem a abranger
o mundo todo, sabemos que as transformações no modo e na velocidade de circulação (de
informações, mercadorias e pessoas) é algo importante para descrevermos este processo. Assim,
a problemática da circulação seria comum aos trabalhos e à análise social mais ampla que nos
esforçamos em realizar ao caracterizarmos a pós-modernidade.
Presente em Inserções em circuitos ideológicos como dissolução, em Eppur si muove
como dispersão, em Elemento desparecendo / elemento desaparecido (passado iminete) como
desaparecimento relacionado à temporalidade, e em Através (ainda que em sentido oposto)
como interdição, a circulação assumiu diferentes facetas ao longo de nosso percurso. Em todos
esses trabalhos, o deslocamento, a velocidade, a motricidade e a temporalidade implícita numa
ação foram considerados elementos fundamentais em nossa leitura. Se nos concentrarmos na
temporalidade que alguns dos trabalhos sugerem, vemos a noção de intervalo e de interrupção de
um fluxo contínuo em Inserções em circuitos ideológicos, a dificuldade de determinação precisa
de um instante – quando o presente torna-se passado? – em Elemento desaparecendo / elemento
desaparecido (passado iminente) e a explicitação da impossibilidade de se reter o tempo no
espaço em Eppur si muove (onde está a som inicial de dinheiro que originou o trabalho?).
Algo que corrobora com a centralidade da noção de circulação nos trabalhos que analisamos
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é a presença tão marcada do dinheiro como material (presente de fato ou apenas como signo,
como no caso, por exemplo, de Zero Cruzeiro e Zero Dólar) em muitos deles. O dinheiro é o
meio circulante por excelência, seu trânsito é interrupto e atinge lugares distantes, ele penetra
no tecido social assumindo a função fundamental de realizar trocas comerciais. Ele pode ser
descrito mesmo como uma espécie de encarnação da mobilidade que não encontra fronteiras
impenetráveis ou limites para sua ação�. Notadamente, para além disso, em alguns de seus
trabalhos o dinheiro assume perversamente não apenas a função de realizar as trocas comerciais
mas surge como possibilidade de socialização.
A circulação, além de estar pressuposta nos materiais escolhidos pelo artista – o dinheiro
e as garrafas de refrigerante, por exemplo – é também modo de funcionamento do trabalho
que não raras vezes envolve-se dentro de um circuito pré-existente, faz referência a um circuito
estabelecido ou mesmo instaura um novo. O questionamento da circulação brotaria do interior
dela mesma, os trabalhos realizam a tentativa verificar a velocidade do movimento de dentro
dele.
Tomemos Elemento desaparecendo / elemento desaparecido (passado iminente): o sorvete
tem de derreter para que a obra complete seu ciclo; ao mesmo tempo, no final, ela não está mais
ali. Da mesma forma, o retorno da garrafa modificada para o circuito de refrigerantes é essencial
para o Projeto coca-cola; esse movimento de pulverização e dissolução é tão importante quanto o
das inserções de mensagens. Em muitos dos trabalhos selecionados observamos uma consumação
quer seja pelo tempo, pelo esforço, por causas insondáveis; não raras vezes o consumo, na sua
acepção mais corriqueira.
A circulação é constitutiva do trabalho, é a sua forma, se quisermos. Ao mesmo tempo,
ela freqüentemente remete a acontecimentos como a corrosão, o desgaste, a espoliação, o
desaparecimento, a dissolução. Mas, ao se estruturar a partir de movimentos dessa ordem, ao
trazer para o interior da forma estética esse esvanecer, o que se apresenta como dispersão pode
emergir como presença. Posição estratégica esta, a de colocar-se dentro do movimento para poder
abordá-lo. Sem negar o potencial corrosivo e destrutivo muitas vezes imanentes à circulação, o
trabalho consegue erguer-se a partir dela.
A transparência é um segundo ponto em que desejamos nos deter. Já discutimos a
recorrência de materiais transparentes nos trabalhos de Cildo Meireles que analisamos: os cofres
de vidro, os vasilhames de coca-cola, os anteparos de Através e mesmo o picolé de gelo da obra
� Trataremos adiante da desestabilização da noção valor que encontramos em trabalhos de Meireles. Deste ponto de vista também Trataremos adiante da desestabilização da noção valor que encontramos em trabalhos de Meireles. Deste ponto de vista também
a escolha do dinheiro parece significativa: ele é o termo de comparação entre coisas diferentes, sua razão de ser está calcada na capacidade
de medir o valor de cada coisa e fazer com que elas se tornem equivalentes.
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apresentada na Documenta de Kassel, em 2002. Mas, da mesma maneira que perceber o uso
do dinheiro não basta para comentar a circulação presente nos trabalhos de Cildo, achamos que
também aqui não basta ressaltar a apropriação de materiais transparentes. Há uma certa idéia de
transparência que é constitutiva dos trabalhos.
Notamos uma constância no uso da transparência: ela não esclarece os processos
presentes nos trabalhos, embora dê a impressão – falsa – de fazê-lo. A transparência sempre está
em evidência, ela é o modo de aparecer das obras, mas os trabalhos conservam algo como um
segredo interno que permanece não enunciado. Em Eppur si muove, por exemplo, não apenas
os cofres são transparentes, mas estão dispostos de modo a sugerir uma leitura linear, seqüencial
evidente e clara. No entanto, a leitura fluida é interrompida quando nos damos conta de que a
soma de dinheiro depositada em um dos cofres não participou do processo de trocas. A dispersão
do dinheiro não é explicada, embora a transparência dos cofres e a sugestão de uma leitura linear
estejam presentes. Em Através, a transparência constitui a própria obra, feita de materiais que
não obstruem por completo a visão. Comentado Através, Lorenzo Mammì afirma: “A poderosa
presença física que essa instalação proporciona a quem a percorre é uma corporeidade recuperada
por um excesso de negação”2. Esse “excesso de negação” relaciona-se à interdição do movimento
dentro da obra e ao fato de a transparência de seus elementos não oferecer resistência à visão.
O contato corporal, duplamente negado, retorna como afirmação. A transparência intrínseca aos
objetos que compõem Através acaba por funcionar como manifestação física que não pode ser
abstraída. Aquilo que se caracteriza por deixar passar a luz torna-se materialidade. Mais uma vez,
ali onde a clareza era enunciada, onde a correspondência era dita absoluta e onde não havia
ambigüidade, instaura-se uma certa opacidade.
No Capítulo �, também foi analisada a maneira como a transparência hoje se apresenta
como discurso hegemônico na esfera social. Todo discurso produzido atualmente, nas mais diversas
áreas, se diz transparente e “livre de ideologia”. A imprensa respalda sua atuação propagando
um discurso de neutralidade, a economia recorre aos números, linguagem que poucos dominam,
mas que carrega a idéia de precisão e exatidão e as decisões políticas cada vez mais transfiguram-
se em discussões técnicas. Tal clareza e nitidez podem ser, no entanto, vistas como o próprio
modo de operação da ideologia hoje.
2 Lorenzo Mammì. “Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea brasileira”. In: Lorenzo Mammì. “Encalhes e desmanches: ruínas do modernismo na arte contemporânea brasileira”. In: VI Simpósio Internacio-nal “Diálogos Iberoamericanos - Reenfocando visiones. Problemas y posibilidades en el arte contemporâneo”. Valencia de �5 a �8 de maio
de 2005. Fundación Astroc y Instituto Valenciano de arte Moderna (IVAM).
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Há ainda uma outra característica presente nos trabalhos que examinamos. Ela diz respeito
à recorrência dos termos valor, avaliar e validar em nossas análises. Podemos dizer que alguns
trabalhos de Cildo Meireles provocam uma desestabilização valorativa. Em Árvore do dinheiro
isso é nítido: estão em jogo os processos de validade (“isto é arte?”), de valorização (dentro do
espaço expositivo, visto como obra de arte, o trabalho vale mais que fora) e de avaliação (como
lidar com o valor simbólico de uma obra de arte, visto que ele não é passível de conversão
imediata em valor monetário?). Da mesma forma, em Elemento desaparecendo / elemento
desaparecido (passado iminente), o valor simbólico, relativo à cultura, convive com o valor da
água, elemento natural, e ambos entram em relação com o valor da mercadoria disponível para
venda. Não podemos afirmar que o valor da água seja, sobretudo, simbólico. Ele também não é
apenas mercantil. Surge um outro tipo de valor, ligado à natureza, a processos biológicos vitais
que, como a arte, resiste a ser contabilizado facilmente.
Os procedimentos de avaliação, se entendidos como colocar as coisas em níveis hierárquicos
definidos, são problematizados pelos trabalhos de Cildo. Há uma interdição da comparação, que
não permite que o processo se complete. Existe um valor que não pode ser medido, que não pode
ser quantificado. E este valor está sempre sub judice, sua validade permanece em suspensão. Seria
válido determinar que aquelas cem notas de um cruzeiro, colocadas em cima de uma pedestal
em Árvore do dinheiro, valessem dois mil cruzeiros?
Esses trabalhos chamam a atenção para um valor residual que a máquina não computa,
que as teorias não explicam e de que a matemática não trata. Mais uma vez, entra em questão
um certo vício dos processos cognitivos, um vício talvez semelhante ao da visão colocado em
questão em Através.
As tensões entre global e local
Se é certo que os trabalhos de Cildo não têm mais como uma questão central a investigação
de uma identidade nacional, mas tratam de processos mais universais, seria o caso de nos
perguntarmos se, ainda assim, há algo neles que diga respeito uma experiência local.
É difícil não ver em trabalhos como Inserções em circuitos ideológicos ecos da repressão
do regime ditatorial no Brasil. O trabalho investiga o controle inerente a circuitos já estabelecidos
e procura burlá-los. Mas, como também já foi dito, o trabalho não se resume a isso e talvez esse
não seja o aspecto mais importante para sua compreensão. Mesmo em relação a contextos de
países à época “democráticos” a obra não perde seu interesse: o controle exercido nos meios
de circulação não depende da existência de uma ditadura. Mas a repressão desse regime pode
ter feito – e aí entramos no terreno movediço das especulações – com que Cildo atentasse para
Glove Trotter�99�
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isso com mais facilidade. O fato é que seus trabalhos não se dirigem a questões locais, mas
inevitavelmente partem delas.
Aqueles que, por ventura, se dedicarem a pensar o Brasil a partir dos trabalhos do artista
certamente chegarão em algum lugar. Mas acreditamos que há perguntas mais interessantes
a fazer aos trabalhos como, por exemplo, o modo como as noções de centro e periferia são
desconstruídas em alguns deles ou o modo como eles dão a ver o processo de globalização com
todas as suas ambiguidades. Talvez os trabalhos de Cildo mais exemplares a esse respeito estejam
fora da seleção que fizemos, são trabalhos como Babel (200�-2006), em que uma gigantesca torre
é construída com rádios antigos e novos sintonizados cada um numa estação diferente e como
Glove Trotter (200�) instalação na qual uma malha de aço recobre bolas de diferentes tamanhos
e cores colocadas no chão�. Neste último, as esferas – formas nos remetem ao globo terrestre e a
outros planetas – estão interligadas pela malha aço, a mesma malha que acaba por indiferenciá-
las. As características de cada esfera ficam mais apagadas, não vemos detalhes de sua superfície,
apenas alguns reflexos coloridos a partir dos quais inferimos sua cor. A única característica que
as distingue é o tamanho, que podemos ver apesar da malha. O peso dessa cobertura fixa as
esferas em seus lugares, evitando que se movimentem: as posições estão demarcadas. Aqui,
o que interliga, paralisa; o grande, embora seja mais saliente, é mais pesado e menos móvel.
Dentre os trabalhos que analisamos mais detidamente, como Eppur se muove também se dirige,
ainda que indiretamente, a essa des-hierarquização e, mais ainda, a uma indiferenciação cultural
que estaria na base da globalização. Basta pensarmos no automatismo implícito nas trocas
monetárias entre o dólar canadense, a libra esterlina e o franco. A obra foi realizada antes da
implantação do Euro, moeda única da comunidade européia, numa época em que cada moeda
guardava um lastro mais forte com a cultura de seu país. No entanto, as trocas impessoais,
mecânicas e automáticas fazem com que a remissão ao país de origem desapareça. É como se,
de alguma forma, as diferenças culturais entre o Canadá, a Inglaterra e a França cedessem ao
peso da intercambilidade do dinheiro. Como se a lógica monetária dentro da qual tudo parece
ser intercambiável, prevalecesse sobre a história particular.
Seria preciso, por fim, retomarmos questões já abordadas anteriormente como a do fim
da arte. Há inúmeras correntes de pensadores que se posicionam nesse campo. Ora o fim da arte
é celebrado, visto como libertário e ora é visto sinal do final dos tempos. Sabemos que um dos
autores que colocou a questão de modo sério, sem deixar-se levar por extremos, construindo
� Ver: Moacir dos Anjos. Ver: Moacir dos Anjos. Cildo Meireles / Babel. Rio de Janeiro: ARTEVIVA, 2006; Museu da vale do Rio Doce.
A idéia de circulação no trabalho de Cildo Meireles
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uma argumentação rigorosa, sistemática e aprofundada, foi Arthur Danto. Por isso, tomaremos
seus escritos como ponto de apoio para nossa argumentação nessa parte final da dissertação. A
tese do fim da arte, como já dissemos, é sustentada por um giro em direção à filosofia identificado
nos últimos trabalhos modernos, anunciando o início de uma era pós-histórica para o autor.
Centremo-nos novamente em um de seus principais argumentos para vermos como, de certo
modo, ele é incompatível com a análise que fizemos de alguns trabalhos de Cildo Meireles:
“De todo modo, o visual desapareceu com a chegada da filosofia à
arte: era tão pouco relevante para a essência da arte como o belo.
Para que a arte exista nem sequer é necessária a existência de um
objeto e, mesmo que hajam objetos em galerias, eles podem se
parecer com qualquer coisa”�
Pudemos ver como o questionamento da arte, de seu lugar na sociedade, é central para
Meireles, orientando boa parte de sua produção, o que talvez fizesse dele um artista que se ocupa
filosoficamente da questão “o que é a arte?” ou “quais os limites da arte?”. No entanto, em seus
trabalhos, essas perguntas não se voltam exclusivamente ao campo das artes, dirigindo-se a uma
esfera mais ampla. Poderíamos mesmo dizer que elas expressam, a partir da arte, conteúdos
sociais que, de outra maneira, permaneceriam não formalizados. A idéia de uma arte que se volta
para essas questões – mais filosóficas, para Danto – pressupõe o descarte de conteúdos extrínsecos
a ela, submergindo numa espécie de auto-reflexão; não é o que ocorre, definitivamente, nos
trabalhos de Meireles. Temos, ao contrário, um intenso “vai e vem”: a arte dirige-se à totalidade
social buscando posicionar-se nela ao mesmo tempo em que expressa a coerção social que visa
delimitar um campo para arte.
Além disso, as obras de Cildo Meireles sempre exigem a presença do espectador. Não
valeria, portanto, a formulação de Danto segundo a qual “para uma investigação acerca do que é
arte seria necessário um giro da experiência sensível até o pensamento”5 . Em seus trabalhos não
se pode estabelecer essa dicotomia entre experiência sensível e pensamento.
Muitos de seus trabalhos, como Através e Elemento desaparecendo / elemento desaparecido
(passado iminente) são apreendidos num período de tempo – a duração da experiência que se
tem com a obra. Eles acontecem no tempo, sendo acessíveis depois apenas pela memória. Sobre
� Arthur Danto, Arthur Danto, Después del fin del arte: el arte contemporáneo y el linde de la historia. Buenos Aires: Paidós, 200�. p. �8.
5 Idem, p.�5. Idem, p.�5.
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usão
isso, o artista afirma: “Creio que a única possibilidade de permanência de uma obra é por meio da
memória. A transitoriedade do tempo não nega essa permanência, que aumenta de acordo com
o poder que exerce sobre a memória coletiva do público”6.
Já falamos como essa noção fundamental, a de experiência sensível, não se dá pelo
caminho da visão exclusivamente. Os trabalhos de Cildo Meireles normalmente exploram outros
sentidos; é o que Kaira Cabanas chama de sinestesia em seu texto “Awareness within anaesthesia”�
em que analisa algumas obras do artista.
Para nós, é interessante ressaltar como a sinestesia, a confusão entre os sentidos que o
termo descreve, é parte importante da produção do artista, o que já afirmamos sobre Através e
que serve para muitos de seus trabalhos. Essa troca entre os sentidos – muitas vezes aquilo que é
afirmado por um é negado por outro – faz com que a obra apareça de forma descontínua e que o
público não raro se veja numa situação em que é difícil fazer uma síntese mental das informações
recolhidas pelos sentidos.
Isso nos conduz a uma outra questão interessante na qual não poderemos nos deter e
vamos apenas indicar. Já afirmamos o destaque que a posição do sujeito tem nas obras de Cildo,
visto que elas ativam a percepção de modo quase perverso: o que resulta desta ativação não é um
conteúdo positivo. A confusão que a experiência incita leva, antes, a duvidar de nossa capacidade
de apreensão, dos instrumentos de que dispomos, das categorias com as quais operamos. Nesse
sentido, caberia dizer que seus trabalhos instigam a pensar uma subjetividade (entendida como
modo de ser do sujeito) capaz de se livrar de um certo adestramento dos sentidos e do pensamento.
Uma subjetividade que possa lidar com o resto, com aquilo que permanece inatingível. Assim,
podemos ver como seus trabalhos mantêm algumas condições essenciais para a articulação da
arte como a de experiência – a arte vinculada a um campo sensível em expansão – e de sujeito,
embora significativamente transformadas. A experiência não tem um poder revelador assim como
o sujeito perde sua capacidade de organização e sintetização.
Os trabalhos de Cildo Meireles resistem ao fim da arte. Por meio das análises das obras de
Meireles realizadas nessa dissertação, acreditamos poder afirmar que eles constituem uma posição
crítica possível a partir do campo da arte. Seus trabalhos não dependem de um sistema artístico
constituído, pois não se trata de pensar apenas a arte. Os trabalhos de Cildo Meireles analisados
aqui tomam a indagação acerca do que é a arte para pensar uma condição que a ultrapassa.
6 Nuria Enguita. “Entrevista a Nuria Enguita”, In Nuria Enguita. “Entrevista a Nuria Enguita”, In Cildo Meireles. São Paulo: CosacNaify, �999. p.��6.
� Kaira Cabanas “Awareness within anaestheisa” In: Parachute contemporary art magazine. Nº ��0, Montreal: Abril de 200�.
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Anexo
Entrevista com Cildo Meireles
Entrevista realizada em agosto de 2006 no ateliê de Cildo Meireles, no bairro de Botafogo, Rio
de Janeiro.
Foi no catálogo da exposição “Babel”1, de 2006, a primeira vez que vi imagens de suas
obras mais conceituais, como Estudos sobre o espaço, Estudos sobre o tempo e Estudos sobre
o espaço/tempo.
Várias das minhas obras se fundam na oralidade. Esses são trabalhos de 1969.
Foram esses trabalhos que o curador da “Information”, Kynaston McShine, viu?
Sim, pois ele viu o “Salão da Bússola”�. Tinha um Canto e dois Espaços Virtuais [todas de
1967/68], essa série de Estudos sobre o espaço, tempo e espaço/tempo e tinha Volumes Virtuais
[1968] e Caixas de Brasília [1969]. Esse salão ficou conhecido como o “salão do etc”. Porque,
pelo regulamento, cada artista poderia inscrever até dois trabalhos nas categorias pintura,
desenho, escultura, gravura e etc. Eu lembro que inscrevi uma escultura (Espaços virtuais), três
gravuras (Estudos sobre o espaço, tempo e espaço/tempo), em desenho os Volumes virtuais e
no “etc” Caixas de Brasília. Eu e outros artistas da exposição resolvemos tomar o “etc” como
categoria.
Como você vê sua relação com a arte conceitual? Parece-me que não podemos pensar na
arte conceitual no seu trabalho sem considerar também, simultaneamente, a Teoria do não-
objeto do Ferreira Gullar.
A arte conceitual era algo que estava no ar. Hoje em dia, cada vez mais, isso está sendo
reformado e analisado novamente. Naquele momento havia um interesse em ver o que estava
acontecendo em outros lugares, a América do Sul é um caso. Os artistas estavam trabalhando
num certo campo de experiência.
Eu usei uma vez como epígrafe de um texto a frase de um dominicano que era também
1 Exposição realizada entre ��� de junho e 17 de setembro de �����6 no Museu Vale do �io �oce, em Vila Velha, Espírito Santo, com Exposição realizada entre ��� de junho e 17 de setembro de �����6 no Museu Vale do �io �oce, em Vila Velha, Espírito Santo, com
curadoria de Moacir dos Anjos.
� Exposição coletiva realizada no Museu de Arte Moderna do �io de �aneiro em 1969. Exposição coletiva realizada no Museu de Arte Moderna do �io de �aneiro em 1969.
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paleontólogo e, na metade da vida, migrou para a arqueologia. Ele tem um livro publicado
do qual tirei a frase: “o primeiro homem é sempre uma multidão”. Às vezes, uma idéia, uma
modificação, começa a ocorrer simultaneamente em diversos pontos. Ele achava que havia
uma maturação coletiva, geral, inconsciente, e dizia que, num certo momento, ela começava a
pipocar, como a água que não ferve só num ponto. Com a arte conceitual, é difícil dizer o que
apontava para isso: o Velásquez com As meninas (1656)? Em certo momento, reflexões propostas
em diferentes trabalhos afetaram a história até aquele ponto. Teria que pesquisar para saber
exatamente que turbulência na história [ocasionou isso]: o readymade, o [Piero] Manzoni, ou
outra coisa. Tem um artista, contemporâneo do Manzoni, que eu sempre busco ver o trabalho:
o [Vicenzo] Agnetti. É um artista que pretendia uma obra sem objeto. Seguramente havia outros
artistas, que talvez nós nem cheguemos a ter notícias, que estavam trabalhando para expandir
essa fronteira. �e repente, são essas variantes que estão localizadas fora do momento histórico
em que a arte conceitual formalmente apareceu e fora do lugar que foi atribuído como seu local
de aparecimento: Estados Unidos e Europa. O texto do Gullar é altamente antecipatório para
uma série de coisas que viriam a acontecer.
Mas tenho a impressão de que no seu caso houve uma influência direta por você estar
num contexto em que a arte moderna, ou pelo menos o primado da visão, já estava sendo
discutida há algum tempo.
�e uma certa maneira o século XX tem muito disso: discutir o lugar da visão nesse processo de
feitura de objetos de arte. A questão plástica independeria da exclusividade da visão. Eu posso
pensar imediatamente nos móbiles do [Alexandre] Calder. Eles isolam ou fixam, para usar uma
terminologia de laboratório, o que a escultura não pode prescindir nunca: massa e densidade.
Você não pode fugir desse defrontamento com o peso. O Calder pegou esse peso e o tematizou,
o trabalho dele é isso. Tem que checar, mas eu acho que pesar é o radical latino de pensar,
pensar vem de pesar. Latim é uma realidade que é parte da minha vida. Eu estudei no ginásio
latim e francês, aí no meio do ginásio cortaram latim e entrou inglês...
Você se interessa por línguas?
Sim, mas precisa de disciplina, como jogar futebol, senão chega na hora e erra.
Tenho observado um interesse de alguns teóricos em identificar o começo da reflexão sobre
o circuito das artes no Brasil. O texto do Ronaldo Brito, “Análise do circuito”, publicado
na revista Malasartes em 1975 é um marco. Seu trabalho também, no começo, envolve de
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forma bem explícita a noção de circuito.
Seguramente tem a ver sim. O trabalho é de 197��, estava na “Information”, eu fiz em abril, no
final de abril. Na verdade, o Inserções em circuitos ideológicos começou com um texto.
O texto “Cruzeiro do sul”?
Não, o texto “Cruzeiro do sul” é o que está no catálogo da “Information”. Eu o fiz no trem,
indo para Do corpo à terra�, uma exposição pioneira em Belo Horizonte. Foi uma das três ou
quatro exposições de arte conceitual, quer dizer, uma parte da minha produção poderia ser
classificada como tal, mas acho que isso não serve para todos os trabalhos. Foi a primeira vez
que um grupo de artistas muito jovens – eu, que tinha acabado de fazer �� anos, [Artur] Barrio,
Luiz Alphonsus e Teresa Simões - teve passagem de trem leito, ida e volta, hotel, alimentação
e mais um dinheiro para produzir um trabalho novo.
Eu estava lendo uma entrevista, acho que do Walter de Maria, que contava sobre um trabalho
que era uma linha telefônica, um aparelho de telefone no local da exposição. Ele ligava de vez
em quando, durante o período da exposição, para quem estivesse perto atender. Mas no final
ficou acertado que quem pagaria a conta era o museu e eles não tinham dinheiro. Sabendo
disso, o artista só ligava a uma da manhã, quando tinha certeza de que não teria ninguém para
atender.
Mas foi na ida para essa exposição, Do corpo à terra, que eu fiz esse texto, o “Cruzeiro do sul”,
porque tinha que entregar logo. Na volta, em abril de 197��, no primeiro fim de semana aqui no
�io, eu saí com amigos, fomos para Barra. A Barra ainda não existia, só essa parte aqui perto
que a gente costumava ir conversar. Tinha um restaurante de madeira, perto do canal, onde a
gente sempre parava para comer alguma coisa. Um amigo me contou uma história envolvendo
a Coca-cola e quando eu cheguei em casa eu escrevi esse texto. Assim, praticamente direto,
para ilustrá-lo, eu pensei na Coca-cola. Se você passar um caroço de azeitona [pelo gargalo
de] uma garrafa de Coca-cola jamais se conseguirá tirá-lo por meios mecânicos: [o processo de
lavagem industrial] não entrava fio, era tudo jato de água e tal.
Aí me interessava estabelecer uma discussão no interior da História da Arte com o que eu
considerava que era a coisa mais importante que já havia acontecido até então, os readymades
� Evento organizado por Frederico Morais no Parque Municipal de Belo Horizonte, em 197��, como parte da Semana da Inconfi- Evento organizado por Frederico Morais no Parque Municipal de Belo Horizonte, em 197��, como parte da Semana da Inconfi-
dência. Na ocasião, apresentou a obra Tiradentes: totem-monumento ao preso político, na qual dez galinhas amarradas a uma estaca são
queimadas vivas.
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do [Marcel] �uchamp. Não me interessava repetir aquilo. O que acontece é o seguinte, no
readymade você desloca alguma coisa do mundo industrial para o espaço da arte. E, na
verdade, a intenção de Inserções em circuitos ideológicos era exatamente o contrário: você
pegar uma coisa que saísse de um indivíduo e conseguir que isso tivesse uma circulação muito
grande, numa macro-escala, numa macro-estrutura, fosse industrial ou institucional, pois uma
é metáfora da outra. A garrafa de Coca-cola é uma metáfora da cédula, só que era muito mais
complicado você ficar falando de cédula, quer dizer, passava por produção, distribuição e
controle de informação basicamente. Portanto, dizia respeito a outros fatores que eram sócio-
políticos, censura, controle de informação. [A idéia] era procurar um mecanismo que fosse
eficiente nessas circunstâncias, mas, sobretudo na origem, era dar voz ao indivíduo. Assim,
não era que o sentido fosse inverso ao do readymade, mas a direção era outra. A gente não
estava trabalhando a mesma coisa. O prolongamento do gesto do artista, da vontade do artista,
recuperava aquilo [qualquer objeto] para uma instância [artística]. Isso já estava demonstrado à
exaustão naquela altura. Você poderia aplicar isso a qualquer coisa. Mas o que me interessava
era que, ao trabalhar nessa direção, você deslocava também a função daquele trabalho no
corpo social. Ele não era mais uma prática artística, mas o exercício de um modo de expressão
com um grau de liberdade, face às circunstâncias, muito alto. Tinha um grau de eficácia, podia
fugir desse controle que eu chamo de mecanismos de controle centralizado, que é o caso da
televisão, do rádio, do jornal, que atinge um público muito grande e que, ao mesmo tempo, é
facilmente controlável.
[Com relação ao �onaldo Brito e a Malasartes] o que aconteceu foi o seguinte: determinado
dia em 1974, eu recebi um recado (eu ainda não tinha telefone) de uma jornalista que pediu
para eu ligar que ela estava fazendo uma matéria para um jornal e queria falar comigo. Eu
liguei e a Heloísa Buarque de Holanda disse que queria conversar comigo para uma matéria
no Opinião. Ela foi até minha casa, fez a matéria e voltou. No outro dia, recebi outro bilhete
pedindo para eu ligar para ela. Liguei e ela disse que o editor tinha gostado e que pediu para
ampliar a matéria, a entrevista. Ela fez uma matéria grande de capa, não tinha foto (era slide),
sobre artes plásticas e o editor era o �onaldo Brito. Foi assim que eu o conheci. A Malasartes
foi logo em seguida, 74, 75...
Mas a discussão sobre o circuito já estava no ar: destinatário da obra, lugares em que ela
circula, mercado...
Claro, a questão da autoria, do espaço do objeto de arte (qual é o lugar em que ele é colocado).
�e qualquer forma, as Inserções em circuitos ideológicos precedem a Malasartes. Eu mostrei
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o trabalho em 197��, no �io, e em SP, em 7�, numa exposição de Aracy Amaral. Não tive
nenhum feedback do trabalho, não saiu uma linha no jornal. A repercussão foi a exposição do
Frederico Morais “Introdução a uma nova crítica”4. Fiz um trabalho também com esse título
que era uma cadeira cheia de pregos. A idéia era fazer um comentário sobre os ninhos do Hélio
Oiticica (1969) e o Cadeau do Man �ay (1974).
Mas é interessante que, nesse momento de discussão sobre o sistema, você tenha feito
uma obra que fala tão diretamente sobre a crítica (Introdução a uma nova crítica, 1970),
que praticamente aponta uma distância quase intransponível entre a linguagem verbal e a
plástica.
Na exposição do IVAM5, em Valência, uma crítica escreveu uma matéria que terminava com
um comentário de que era estranho ver trabalhos que, nos anos 197��, tinham uma função e
aplicação pública num museu. �epois, eu tive que explicar para ela que a [garrafa de] coca-
cola e a cédula não são trabalhos. O que você está vendo lá é um exemplo, não é uma série,
uma edição. Pode até, em determinado aspecto, ser considerado uma memória, um suvenir,
mas é, sobretudo, um exemplo. O trabalho mesmo está fundado na idéia de um não-objeto,
preocupação que já estava atravessando o século XX. O não-objeto é uma contribuição do
Gullar para a discussão dessa idéia maior de ausência que, no fundo, está em toda base da
metafísica na filosofia.
Como é essa técnica do decalque pela qual as frases eram transpostas para as garrafas?
É um adesivo. Na época, eu levava a garrafa de vidro ao forno (8����º) e a tinta vitrificava. Então,
ela se misturava com a própria marca. Quando a garrafa está vazia, ela quase desaparece.
[Escolhi] a Coca-cola porque tinha essa carga simbólica, essa ambigüidade entre matéria-prima
e símbolo.
Mas não parece uma coisa fácil para qualquer pessoa que está ali, tomando uma coca-cola,
fazer...
Poderia ser. Mas, para mim, a Coca-cola é uma metáfora do projeto cédula.
4 Em 197��, o crítico Frederico Morais organizou a exposição “Nova Crítica” na Petite Galerie, no �io de �aneiro. Em resposta ao
Projeto coca-cola, de Meireles, Morais colocou 15 mil garrafas do refrigerante na galeria e apenas uma ínfima parte delas continham inser-
ções.
5 Exposição realizada no Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM), em 1995, com curadoria de Nuria Enguita. Exposição realizada no Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM), em 1995, com curadoria de Nuria Enguita.
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Em Inserções em circuitos ideológicos – projeto coca-cola, a frase mais famosa inserida
numa garrafa do refrigerante foi “yankees go home”. É como se, naquele tipo de suporte,
apenas um slogan funcionasse...
Tinha que ser ultra-sintético. Em geral, as [garrafas] que circularam mais continham a própria
instrução do trabalho, para que alguém reproduzisse a partir daí, embora haja outros tipos
de inserções que eu fiz. No trabalho em sua plenitude a autoria teria que ser necessariamente
oculta. A história do objeto de arte marca o início da noção de autoria quando, na Idade Média,
ele sai do espaço coletivo e entra numa embalagem portátil, que cabe nas casas. Aparece a
questão da propriedade. A obra de arte já está existindo no interior de uma propriedade, não
está mais no espaço coletivo, não é mais afresco, foi realmente “adequada”. No fundo, isso
tem menos a ver com a idéia de �enascença do que com a �evolução Burguesa. [A noção de
autoria] pertence muito mais ao universo de valores da revolução burguesa do que ao ideário
renascentista. A autoria era uma coisa muito difusa num momento da História da Arte. Esse
aspecto das Inserções em circuitos ideológicos me interessava por tocar na questão da autoria,
do espaço. Esse trabalho é uma espécie de grafite, porque a característica desse sistema é a
circularidade. A Coca-cola já é também uma metáfora de nossa Brahma, mas na Brahma as
inserções ficavam mais evidentes.
Como você vê a obra de Frederico Morais, dirigida à Inserções em circuitos ideológicos, que
integrou a exposição “Nova Crítica”?
Eu vejo como uma homenagem. Foi a única crítica que a exposição teve e, de uma certa
maneira, acho que ele pretendeu didatizar o que seria a compreensão dele sobre o trabalho.
Um chão coberto com garrafas de coca-cola aponta para uma desproporção em termos de
escala, que tornaria quase invisível o objeto. Você estaria na posição do público em relação
ao trabalho, apenas um ou outro teria a curiosidade de pegar a garrafa certa e ver. Talvez isso
acabe apontando para um grau de ineficiência imediato, mas que não me preocupava. Se for
comparar a eficácia potencial do trabalho desses dois projetos [Coca-cola e Cédula] a cédula
tem uma eficácia muito maior. É fundado em moedas de baixo valor, que circulam mais e que
cumprem prioridades muito maiores que o refrigerante, que atinge apenas uma parcela da
população e é muito mais limitado nesse sentido.
Qual é a relação “metafórica” que você afirma que Cédula mantém com Coca-cola?
A idéia é a mesma: um indivíduo utiliza um sistema de circulação que está operando e, a partir
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daí, insere uma crítica, uma opinião.
Você acha que o circuito condiciona a inserção que cabe ali?
Em termos. Um nazista pode usar o mesmo sistema para fazer proselitismos, poderia ser
uma paisagem, uma coisa abstrata. Claro que quando fiz o trabalho eu estava pensando em
informação, circulação, distribuição e controle de informação. A questão também é que eles
funcionavam como uma espécie de contra-informação em relação ao que já estava lá. Para
um marchand tanto faz vender tela impressionista ou abstrata, ele está vendendo tela num
determinado formato, numa determinada embalagem. A Coca-cola está veiculando sua própria
ideologia. Você está bebendo o líquido, mas está consumindo também uma ideologia.
Através (1983-89) está sendo montada no Brasil pela primeira vez no Caci, Centro de Arte
Contemporânea de Inhotim, em Minas Gerais. Como foram as montagens anteriores e como
você está pensando esta, mais definitiva, já que a obra agora faz parte de um acervo?
A primeira idéia, no Caci, foi montar Através num local aberto, sem nada. A montagem se
aproximaria à do Palácio de Cristal, em Madri. Lá, você ficava acima da paisagem, subia alguns
degraus. A questão [do embate entre] arte e natureza é que sempre que você estiver nessa
situação [expondo num local aberto] não tem chance. [No Caci] eu tinha opção, ou fazia a
versão de Madri ou a primeira versão [numa fábrica abandonada em Kortrijk, na Bélgica].
Mas a de Madri, que foi a que tentamos primeiro, tinha um problema sério. O vento jogava
as coisas, as folhas enganchavam no trabalho e molhava. A manutenção ficava complicada.
Então optei por dar um corte e sair do entorno. É uma imersão, e eu acho que para o trabalho
funciona mais. É também o caso de Desvio para o Vermelho [1967-84].
Mas ainda assim o trabalho se expande para fora, pois acaba incluindo as paredes, uma vez
que elas também são obstáculos planos.
A idéia do trabalho é essa, uma espécie de labirinto feito com objetos de interdição simbólica
ou concreta e a parede é um objeto de interdição, o maior deles.
Qual é a relação entre Inserções em Circuitos Ideológicos - ICI, Antropológicos - ICA (1970)
e Inserções em jornais (1971)?
A história é mais ou menos essa: as primeiras inserções foram feitas em jornais, são as Inserções
em jornais. A primeira era Clareira, na qual acabaram até colocando meu nome errado
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gigantesco, “Gildo Meireles”. Ao fazer as primeiras Inserções eu percebi exatamente o que
era, mas, é claro, estava fazendo alguma coisa que a cabeça estava agenciando, relações que
chegaram a um tipo de conclusão que seriam as Inserções em Circuitos Ideológicos, aquela
coisa de “o primeiro homem é uma multidão”.
Uma [das coisas sobre a qual estava pensando] era que a questão do impacto da arte feita no
jornal é a do controle centralizado de informação. Você atinge um público grande, mas está
limitado pela facilidade de controle que esse circuito tem. No regime ditatorial isso é fatal. E
aí eu fiz as ICI e depois as ICA. A diferença básica é que as ICI utilizam um meio circulante já
existente, nas ICA (Token e Black pente basicamente) você confecciona coisas. �e uma certa
maneira, [o trabalho] é acadêmico em relação às ICI porque volta à questão da arte. Você
confecciona coisas que não estavam lá e coloca isso em circulação na expectativa de modificar
algo, influenciar o comportamento das pessoas.
Como você vê a aproximação desses trabalhos com o real, sua inserção no cotidiano?
O Token eu comecei fazendo em Nova York, era uma ficha de metrô. [Na época] você andava
pelas ruas e tinha aquele linóleo que as pessoas colocavam no chão dos apartamentos, era
raro o quarteirão que não tinha alguém reformando e jogando fora aquilo. Então, sempre que
eu queria, ia para a rua, andava um pouco e pegava vários deles com uma ferramenta circular
dessas de sapateiro que trabalha com couro, você dava uma pancada com um martelo e tinha
uma ficha. O sistema de fichas é baseado em dois vetores: o tamanho e o peso. Mas imagine
todas as catracas do metrô, depois de um certo tempo o peso desregula, não tem uma aferição
precisa, então o que prevalece é o volume. E a idéia era utilizar um material gratuito, fabricar
essas fichas, usar, distribuir e que as pessoas também fizessem. Porque tudo isso é baseado
num gráfico, o sistema Estado de graça: uma oposição entre anestesia – a sociedade industrial
– e a consciência. E o cruzamento disso era a repetição. A consciência aplicada à paisagem
anestesiada daria como retorno o estado de graça, uma brincadeira com o Estado que cobra
impostos, que custa isso e aquilo. Era um estado baseado em outro tipo de relação que não fosse
essa da exploração do trabalho (na verdade, o aviltamento do trabalho em função do capital).
Quem tem o capital tem tudo, quem tem a força de trabalho não tem nada. Eu fiz fichas de
telefones aqui e, depois, Black pente, em que a idéia era fazer pentes para afro-descendentes.
Pegar um modelo paradigmático de pente e reproduzir, fabricar e distribuir a um preço de
custo, na expectativa de que isso, de certa maneira, ajudasse a modificar um comportamento.
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Por que você quis procurar outros circuitos, se a arte mesmo estabelece um circuito próprio?
Isso tem a ver com um certo desejo de ação no real?
Em um de meus textos eu falava que o circuito das artes era dispensável. É claro que eu não
perdi de vista o fato de que aquilo tinha que sobreviver, de que aquilo tinha que dialogar e
se confrontar com a própria história do objeto de arte. Eu não podia achar que era uma coisa
inteiramente fora disso. Tem outros trabalhos que talvez se refiram ao circuito das artes. Um
deles é Cruzeiro do sul [1969/7��], já de uma outra maneira. Árvore do dinheiro [1969] lida
com essa diferença entre valor simbólico e valor real, ou entre material e objeto de arte, e a
instauração de valor. E tem outros trabalhos. Toda a série de Ouro e paus [198�], e de uma
maneira sintética os zeros [Zero dóllar, 1978-84, Zero cent, 1984, e Zero cruzeiro e Zero
centavo, 1974-78].
Como os Zeros circulavam? Eram vendidos ou distribuídos?
No início eu queria vendê-los. Pensei em fazer uma distribuição por avião na praia, uma
chuva de dinheiro. Cheguei a procurar camelôs para [que eles vendessem o] Zero cruzeiro
em 1978. Cheguei até o chefe dos camelôs, no �io. A gente negociou e fez um teste: ficamos
tomando cerveja enquanto estavam vendendo [o trabalho]. E vendeu rápido, em vinte minutos
um camelô vendeu 5��. O chefe me chamou para conversar, fomos para o escritório dele, um
prédio em construção na rua Buenos Aires cheio de bagulho, tudo que era vendido nas ruas
tinha ali um estoque. Ele me disse: “Isso me interessa sim, vamos começar com � milhões”. Eu
falei que precisava falar com meu advogado e ele marcou um encontro no dia seguinte, para
acertar alguns detalhes. No dia seguinte, quando eu cheguei, o cara falou: “Olha, a gente não
vai poder fechar o negócio”. Eu pensei que tinha dançado. Ele tinha condição de, em um dia,
fazer a mesma coisa. Mas não, o cara era policial. [O que aconteceu foi que] tinha um camelô,
um senhor, que era o cara que criava o que eles chamavam de “bola”. A bola é o jingle para
vender, a frase que os camelôs falam. Era um senhor negro, de cabelos brancos, uns 5�� anos,
que era muito bom nisso. E eles tinham se reunido, mas chegaram à conclusão de que a bola
para esse trabalho, para esse produto, tinha que ser algo como “veja a que ponto chegou o
nosso dinheiro” e ele disse que não podia fazer isso, que ia dar problema, porque ainda era
1978, [o governo] Geisel... Ele começou a implicar. Eu achei que ele ia me dar um balão.
Voltei para o Luiz Buarque de Holanda, que era meu advogado e amigo, mas o cara não fez
nada. Acho que estava com medo mesmo. Em alguns momentos eu dei uma certa quantidade
de Zero dóllar para uma galeria que tinha participado da produção e estava com dificuldades.
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O chefe dos camelôs, por ser também policial, deve ter ficado com medo mesmo: é quase
uma moeda falsa!
O Zero cruzeiro eu fiz inteiro, é um layout, eu nunca fiz a arte final. �á o Zero dóllar foi feito,
na verdade, por uma pessoa que fazia dinheiro. Um amigo meu que nem sei se devo dizer o
nome, é um gravador fantástico, meio renascentista. Ele mesmo, na época, tinha problemas
por causa de seu emprego [na casa da moeda], tinha medo de ser seqüestrado. O papel não é
o de segurança, mas é mesmo muito próximo.
Esses então seriam os trabalhos que você acha que mais se aproximam de uma reflexão sobre
o circuito das artes?
O próprio Camelô, de certa maneira, se refere ao sistema das artes. Todo trabalho gira em torno
da edição de 1 milhão de coisas. Na verdade, Camelô é uma edição que vende uma edição.
Eles são mil e vendem 1 milhão de barbatanas e 1 milhão de alfinetes. Então, cada camelô
vende mil. É um trabalho de 1998, fiz para a [Galeria] Luisa Strina.
A história me acompanha, é baseado numa história real. Estava morando em Goiás e vinha
com meu pai para o �io pelo menos uma vez por ano. Passava sempre pela [rua] Araújo Porto
Alegre, que fica em frente ao Teatro Municipal, entre o Museu Nacional e a Biblioteca. Aquela
calçada do Museu Nacional, que na época ainda era Escola Nacional de Belas Artes, era um
local onde eu ia muito porque meu pai encontrava comerciantes naquela área. E havia alguns
camelôs que me intrigavam muito: um que tinha um pequeno tabuleiro e vendia só alfinete
de cabelo, outro que vendia barbatana, que se usava muito para colarinho de camisa. Eu
achava espantoso que alguém pudesse viver vendendo aquelas insignificâncias e que por traz
delas tinha chaminés, pessoas fazendo aquilo, tinha todo um complexo produtivo. Em outras
palavras, eu pensava em como a pessoa podia morar, comer, comprar cadernos para os filhos,
esse tipo de coisa e, ao mesmo tempo, com um objeto que era o grau zero do objeto industrial,
um dos objetos mais simples que existia: um alfinete e uma barrinha de plástico. E tinha um
terceiro camelô que vendia uma marionete de elástico, as pernas e braços eram elástico, corpo
em papel cartão, papelão.Tinha uma linha que era da cor da pedra que tem no Museu Nacional
de Belas Artes (tem dois metros de pedra lá, uma espécie de rodapé gigante). O cara bota [as
marionetes] ali, naquela curva, e fica no alto. Quando chegava criança, era pura mágica.
No começo dos anos 199��, eu estava pensando em fazer um trabalho, queria fazer alguma
coisa que tivesse 1 milhão de elementos. Cheguei à conclusão de que seria uma malha de aço,
a mesma que eu usei depois no Glove Trotter [1991], com mil furos nos lados, � X � metros
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aproximadamente, e um alfinete em cada furo, que daria um milhão de alfinetes. Eu estava
com um grande amigo meu, o Alfredo Fontes. A gente estava testando cola, aí ele morreu e
eu parei a coisa. Em meados dos anos 199��, estava pensando nessa história dos três camelôs
e resolvi fazer essa edição com 1 milhão de alfinetes, 1 milhão de barbatanas, e criar um
boneco, um camelô, que venderia as duas coisas. Saiu na contracapa de uma [revista] Arte e
ensaio. A edição final era com mil camelôs, cada um com mil alfinetes e barbatanas cada. �e
alguma maneira esse trabalho comenta o sistema das artes. Como Eppur si muove [1991], mas
aí já mais calcado na economia. Uma coisa que também tangencia o Inserções em circuitos
antopológicos é o trabalho [apresentado] na �ocumenta, Elemento desaparecendo/elemento
desaparecido [������]. Tem uma parte do trabalho que é nitidamente o circuito.
Esse trabalho para a Documenta foi feito pensando numa cidade como Kassel, com suas
proporções, seus circuitos estabelecidos?
Eu pensei justamente numa cidade brasileira do interior, numa economia daqui, não da
Alemanha. Queria que o trabalho funcionasse mesmo como uma fonte econômica temporária,
que tivesse uma efetividade por esse ângulo também. Em Kassel a gente vendeu uns 7�� mil
picolés. No final, deu para cobrir os custos. Uma parte do dinheiro foi para o pessoal que estava
trabalhando e outra parte foi para ressarcir a compra do equipamento.
Como foi pensada a logomarca do trabalho, presente na embalagem, na roupa dos
vendedores?
Fiz com uma amiga minha, Mônica. Eu queria fazer a gota, fizemos a embalagem, confeccionamos
as bobinas, como uma embalagem de picolé. Quando eu fiz a primeira �ocumenta, em 199�,
eu comia sanduíche, salsichas na rua, em vários lugares, mas, quando eu voltei em ������,
depois da Comunidade Européia, só um ou outro lugar desses [permanecia aberto]. Essa foi
a nossa dificuldade, porque eles queriam fazer o trabalho lá em Kassel. Eu achei ótimo, só
que com as novas normas da Comunidade [Européia], sobretudo na Alemanha, ficou difícil
comercializar qualquer produto ligado à alimentação porque a legislação é rigorosa. Mas
finalmente conseguimos a autorização.
Em março eu estava por aqui, tranqüilo, achando que as coisas já estavam acontecendo por
lá e me ligaram. Eu tive um mês para fazer tudo daqui do Brasil começando do zero porque
justamente lá eles só conseguiram máquinas que faziam dois milhões de picolés por dia, tudo
era numa escala assim.
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O picolé é um objeto que vai se desmaterializando quando retirado do freezer, que acaba
fazendo as vezes do museu.
A gente mostrou na exposição de Strasbourg esse trabalho, mas compramos um freezer mesmo,
transparente, e os picolés, que eram remanescentes da �ocumenta, ficavam dentro. A gente
podia fazer esse trabalho contratando uma fábrica (se não na Alemanha, em Portugal, na
Ucrânia) e de lá receberíamos isso pronto, era só distribuir. Mas tivemos que fazer todo o
processo. O trabalho é, sobretudo, isso. É claro que ele se refere à questão da água. Agora
mesmo, a ONU quer usar esse trabalho para algo como “Ano mundial da água”. Eu tinha só
que autorizar, mas perdi a carta...
Você não acha que essa leitura ecológica do trabalho é perigosa?
Eu não me importo. A questão da água é realmente grave, é uma coisa que estamos lidando
de uma maneira completamente displicente para a grandiosidade do fato. Certas coisas se
superpõem a outras. Estamos num período em que os conflitos são de natureza econômica,
biológica e religiosa. Mas eu acho que sempre existem coisas mais gerais, mais graves, que
acabam se superpondo. Seguramente, a água é uma delas. A questão demográfica é outra. Não
vamos resolver a questão da água se não encararmos a demográfica e nenhum governante vai
conseguir, do jeito que está, criar empregos novos a cada ano na quantidade necessária.
Esse trabalho da �ocumenta vem de uma história que já estava na minha cabeça, como a dos
camelôs. Eu me lembro que fui tomar um café com o Okui Enwezor, o curador da �ocumenta,
num hotel em que eu estava hospedado em Madri e ele, passando pela cidade, aproveitou para
conversarmos sobre o projeto. Estávamos a pé indo ver Através no local em que estava sendo
montada, fomos conversando e a uma certa altura, a propósito não sei de que, eu me lembrei
da história. Em 1974, estava na casa da minha avó fazendo Sal sem carne [1975]. Fiquei
hospedado lá, na periferia de Campinas, em Goiás, uma cidade que era posto de troca de burro
e cavalo, tem trezentos anos, é muito anterior a Goiânia, e minha avó morava no campo. A
gente morou um ano lá, tenho várias memórias ligadas à casa dela, era mato mesmo, o vizinho
mais próximo estava a 5���� metros, só que, claro, a explosão urbana [modificou a cidade hoje].
Na casa, em determinado lugar, à direita, quando você saía da varanda, a uns 5���� metros,
[via] uma rodoviária [que haviam construído]. Um dia, depois do almoço, eu decidi ir até essa
rodoviária. Quando me aproximei eu achei uma coisa estranha: uma porção de carrinhos de
venda de picolé como existem milhares no interior do Brasil, um ao lado do outro iguaizinhos,
mesma cor e tudo, e um garoto adolescente, criança, sentado. Achei estranho, mas logo pensei
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“isso é normal”, porque são crianças brincando de ônibus estacionado na rodoviária. Quando
eu me aproximei mais vi uma outra coisa estranha: os picolés, isso eu vi pela primeira vez no
interior, ao invés de dois preços eles tinham três. Tinha os de 1,5�� que era leite, 1,���� que era
fruta e aí perguntei: “vem cá, e esse de ��.5��?” O menino me respondeu: “Esse é só água”.
Eu fiquei com aquilo na cabeça até esse dia lá em Madri em que contei essa história para o
Okui ele falou para desenvolver isso. O que interessa nesse trabalho é justamente verificar a
velocidade, uma coisa que você está testemunhando enquanto acontece. É claro que você
pode transpor para uma coisa mais geral, fazer uma leitura ecológica, não me importa. Para
mim, em última análise, aquilo vai se referir ao fato de ver uma coisa se convertendo em outra
na sua frente, desaparecendo.
A noção de ideologia faz parte de seus trabalhos pelo menos desde Inserções em circuitos
ideológicos. Trata-se de uma noção que tem sido revista pelas Ciências Humanas desde
então. Você acha que é possível falar em ideologia em uma obra como Através?
Tem trabalhos que você faz e convive com eles anos, décadas. Faz um desenho, daqui um
mês, dois meses, modifica, faz outro desenho, fica montando o trabalho na cabeça porque não
tem condições de executar naquele momento. E sempre acaba executando [a obra] contra o
relógio. Tem trabalhos que você faz depois de anos e, quando fica pronto, te dá menos do que
você pensava. Tem trabalhos que você pensa que estão dominados e, quando ele está pronto,
aponta para coisas que você não tinha considerado. No caso de Através isso aconteceu. �epois
de colocar todo esse repertório de elementos de interdição: grade de prisão, um aquário,
arame, tudo aquilo que é usado para interditar simbolicamente ou concretamente, no momento
em que finalmente pude conviver com o trabalho, ele começou a apresentar aspectos que
seguramente informaram sobre a sua feitura, mas que não tinham emergido para a consciência.
Só para dar um exemplo, ele é de 198�, começou com o papel celofane a partir dessa idéia
de um campo, um território em que o olhar sempre passasse a despeito de outras condições.
Mas aí você começa a pensar... A gente morou dos meus 8 até os 1�� anos em Brasília. Quando
a gente foi morar nessa casa, que minha mãe mora até hoje, era a fundação da casa popular,
as primeiras casas construídas no plano piloto, blocos de seis e oito casas, em 1958, 1959,
196��. A porta ficava aberta. No �io de �aneiro você vê a superposição de grades, cercas, coisas
do tipo. Então, de repente, você está andando em Através e lembra do Brasil, de como essas
cidades foram ficando.
Alguns teóricos apontam para uma questão, a de que a nossa relação com o mundo,
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hoje, se dá através de imagens. Essa mediação estaria em toda parte incluindo as relações
intersubjetivas. Você acredita que isso influenciou a história recente da arte? É possível
pensar na arte como resistência a essa tendência?
Pensar essa produção da qual nós estamos falando como Artes Plásticas já é, em si, uma espécie
de, eu não diria resistência, mas dissidência, desse projeto maior em relação a imagem, seria
um desvio desse projeto. Eu acho que o século XX, de alguma maneira, foi muito isso. Há um
momento em que arte e religião pareciam ser a mesma coisa. A fronteira entre arte e religião, eu
estou falando em termos de imagens (as imagens nas cavernas), tudo parecia intrincadamente
relacionado. Não podíamos estabelecer o que era procedimento religioso ou ritualístico numa
inscrição rupestre. Mas, depois de algum tempo, começa a ficar claro o que era religião, o que
era uma excreção, uma preocupação com a inutilidade, ou seja, com essa disfunção. Mais
tarde, dando um salto, você está na Grécia, em que arte e arquitetura são parecidas, quase a
mesma coisa. Passa um tempo você tem um distanciamento histórico e fica claro quais eram
as questões de arquitetura e quais eram as questões de Artes Plásticas na Grécia. Saltando
um pouco mais, temos a arte como representação do real. Chega a fotografia e, com ela, esse
lado documental que parecia ser atributo da prática naturalista. Com isso, a arte já se desloca.
Só que a documentação não conseguia explicar inteiramente as questões que Velásquez, em
As meninas, por exemplo, tentou abordar. E acho que uma das coisas que, no século XX,
ficou muito clara é [a relação entre] arte e visão. Em alguns momentos, a prática artística se
aproximou e até reiterou ou potencializou a questão da imagem; o dadaísmo é um movimento
em que a instância de vida, de existência, de alguns trabalhos é a fotográfica, imagética.
Tem muitos trabalhos que foram feitos para serem reproduzidos, para só existirem como uma
reprodução numa página de revista. Mas, ao mesmo tempo, já havia pessoas trabalhando a
questão da imagem de uma outra maneira. O �uchamp é um exemplo clássico disso. Essa
imagem [Monalisa], tal como vinha sendo enfatizada e cultuada, já não é mais a mesma
imagem da Monalisa referida no trabalho de �uchamp. Estamos falando de coisas diferentes.
A imagem puramente não é mais a questão essencial. [A questão que levantava �uchamp]
dizia muito mais da própria história do objeto de arte, daquela peça ou do procedimento que
independeria de uma imagem específica. Em suma, aquela imagem não tinha mais uma imagem
absoluta. Você pode fazer uma coisa que seja completamente invisível.
Tem um artista que eu gosto muito, Chris Burden. Fui ver a Bienal do Whitney6 porque eu vi
que ele ia estar lá. Quando cheguei, comecei a procurar o trabalho dele e não encontrava.
6 �eferência à obra �eferência à obra Fist of Light (1991), de Chris Burden, exposta na Bienal do Whitney Museum, Nova York, em 199�.
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�o elevador eu vi uma plaquinha em que se lia: “fora de serviço”. Vi um trailer todo de inox,
fechado, sem janela, só tinha uma porta no fundo, era a única entrada que estava aberta e
tinha uma pequena escada. Você subia, podia entrar, visitar e, no interior desse trailer, só havia
lâmpadas: no chão, nas paredes e no teto, fortíssimas. No momento em que você fechava a
porta, todas as lâmpadas acendiam. Nenhum ser vivo poderia ficar dentro depois que a porta
fechasse por causa do calor. E o problema é o seguinte, se alguém pudesse ficar lá dentro e
observar o que estava acontecendo, poderia pegar um cubo todo de pigmento preto, feito pelo
[artista indiano] Anish Kapoor, massivamente preto, colocar ali e iria ver esse cubo inteiramente
branco, tal a quantidade de luz. É claro que estava fora de serviço, pois para refrigerar o interior
desse trailer precisava de um sistema de refrigeração equivalente ao de um hotel de 15 andares.
Isso fazia um barulho enorme e a direção do Whitney disse que era um sufoco tão grande que
ninguém conseguia trabalhar direito. Mas, abstraindo isso, imaginando que a coisa estivesse
funcionando, eis aí um exemplo clássico da dissidência da prática artística do século XX, pois
é um trabalho que se funda na luz, portanto, em última análise, na imagem. Uma coisa que
afeta diretamente a questão da imagem, da percepção e, ao mesmo tempo, uma coisa que
você só poderia experimentar através, vamos dizer, da fé. Porque aquilo de fato acontecia ali.
Você sabia que ali onde não estava vendo, estava acontecendo tal coisa. Eu gosto muito desse
trabalho porque ele lida exatamente com esse novo campo que os artistas de artes plásticas
estão mapeando. Um outro artista que eu gosto muito é o [Walter] �e Maria. E gosto muito do
Orson Welles, eu acho que Guerra dos mundos é um dos grandes projetos do século XX. Mas
aí menos pela coisa da imagem que nesse caso vem de uma tradição da imagem fundada na
literatura, na novela, na narrativa ligada à palavra. Quando você está ouvindo rádio, sempre
ocorre a produção de imagem, pois ele tem esse poder. No caso de Guerra dos mundos, acho
interessante por esse apagamento de fronteiras entre realidade e ficção, entre arte e realidade,
acho que Welles conseguiu desfazer essa fronteira.
Retomando aquela frase “Não estou aqui representando uma nacionalidade”, de Information,
gostaria de saber se isso ainda precisa ser muito reafirmado quando você trabalha fora?
Por incrível que pareça, talvez isso precise ser reafirmado. �esde muito longe eu sempre tive
uma ojeriza pela idéia de nação. Eu acho que, no final das contas, esse é um erro estratégico
da humanidade: participar de qualquer coisa que reforce a idéia de fronteira, geográfica (ou de
qualquer tipo). Em alguns momentos, fiz trabalhos que falam mais explicitamente sobre isso.
Infelizmente, volta e meia precisamos reiterar isso.
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Você viveu o fenômeno da internacionalização da arte brasileira, que se teve seu auge na
década de 1980. Como você vê isso?
Até 1988 era muito complicado ser um artista brasileiro porque sua posição não tinha visibilidade
nenhuma. Qualquer cara que faz Artes Plásticas durante três anos já sabe o caminho das
pedras, você já sabe exatamente o que as pessoas gostam. Quem tem um trabalho interessante,
nesse sentido, é a dupla de russos Komar & Melamid que tem aquela enquete que eles fizeram
[para saber] qual a tela ideal, “qual você mais gosta?”. A imagem que as pessoas menos gostam
é o [Piet] Mondrian, e a que elas mais gostam é uma paisagem com montanha, árvores e água,
uma coisa meio idílica. Há �5 anos, nos anos 197��, eu comecei a pensar a propósito disso num
trabalho, que eu nunca consegui fazer. A idéia é que fosse um país, mas um país tão exíguo
que só pudesse ser operado de fora, não teria lugar para ninguém dentro dele. É um pouco o
que eu ainda penso sobre a questão do território. O território aparece também no Obscura Luz
[198�], uma das legendas era exatamente o malabarista. Ele inventa uma maneira de falar do
território ao mesmo tempo apagando essa idéia porque, na verdade, ele tem duas mãos nas
quais cabem três coisas ou mais. Aí entraria a questão do tempo, você teria um território no
tempo.
Então hoje você é visto como um artista e não como um artista brasileiro, nas exposições
mundo afora?
Tem algumas exposições que foram fundamentais para essa passagem.
Como Os mágicos da terra?7
Essa foi uma exposição muito polêmica, muito contestada na época, porque ali tinha dois ou
três brasileiros. Para mim o erro ali foi o mesmo da Bienal: não era uma exposição para ter
acontecido tudo ao mesmo tempo, no mesmo local, mas teria sido mais produtivo se ela tivesse
aquilo mais espalhado, mais um programa do que um evento.
Mas [a passagem ocorreu], sobretudo, a partir da exposição do PS1 em 1988. É claro que em
“Information” havia 1���� artistas e 4 brasileiros, nas circunstancias um numero até grande. Mas,
a partir da exposição no PS1, uma série de fatores se precipitou. Eu acho que houve o próprio
esgotamento do sistema das artes hegemônico que estava buscando a Ásia e, em determinado
momento, a produção brasileira. A produção latino-americana de uma maneira geral, é o
7 Les magiciens de la terre 18 de maio a 14 de outubro de 1989 Paris Centre Georges Pompidou curadora de jean - Hubert Martin
A idéia de circulação no trabalho de Cildo Meireles
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caso também da Argentina, começou a chamar atenção e ter visibilidade. Em ��� anos mudou
radicalmente, mas isso [ainda] não foi suficiente para livrar inteiramente a produção brasileira
de clichês, ou de desejos de clichês.
A gente viveu uma revolução nos últimos ���, �5 anos. Na informática isso é real se imaginarmos
o que era a vida das pessoas há ��� anos. Agora, culturalmente falando, a coisa é mais lenta do
que essa instantaneidade proposta pela rede, pela internet. A gente só vai verificar isso ao longo
dos anos. As coisas todas estão mudando. Hoje em dia raramente há uma boa exposição de
artes plásticas que não tenha o trabalho de um brasileiro. Eu acho legal que é uma produção
diversificada, tem pessoas mais velhas, mais novas. Está havendo uma continuidade interessante
de padrão. Quando, em 1975, eu falava que uma lista dos 1�� melhores artistas dos últimos
��� anos (de 1955 a 1975, para não incluir a minha geração) que não tivesse pelo menos dois
artistas brasileiros, essa lista era discutível, falavam que isso era coisa de Policarpo Quaresma.
“Vamos falar sério”, as pessoas diziam. Eu estava vendo o que a gente estava fazendo e, com
o mínimo de acesso ao que estava sendo feito fora, eu via que era bom. Por exemplo, por
acaso, peguei o catálogo da “Information”, esses dias. Foi um trabalho [Inserções em Circuitos
Ideológicos] que eu gostei e que não teve nada aqui no Brasil fora o chão do Frederico. Na
“Information” acho que não saiu nenhuma review, não teve a mínima menção. E eu tinha
certeza de que esse era um trabalho que estava bem, que se segurava. �entro da exposição
ele não estava aquém, era realmente interessante. Mas acho que é um pouco isso: as coisas
demoram um tempo para se tornarem um bem comum, linguagem. Hoje na feira hippie você
vai comprar telas pintadas de uma maneira impressionista, o que era tema na segunda metade
no século XIX .