A Grounded Theory Segundo Charmaz-experiencias de Utilizaco Do Metodo-1

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1 A Grounded Theory segundo Charmaz: experiências de utilização do método The Grounded Theory according Charmaz: experiences in using the method Maria Irene Mendes Pedro Santos, Professora Adjunta Instituto Politécnico de Santarém - Escola Superior de Saúde Mestre, doutoranda de enfermagem pela Universidade de Lisboa Elisabete Luz, Enfermeira Mestre, doutoranda em enfermagem na ICS da Universidade Católica Portuguesa RESUMO O método da Grounded Theory insere-se na investigação qualitativa, surgindo no contexto dos estudos sociológicos de Glaser e Strauss durante a década de sessenta do século XX, no âmbito da corrente sociológica – Interaccionismo Simbólico. Com este artigo, pretendemos elaborar uma reflexão sustentada sobre este método e sua evolução, expondo as principais diferenças. Damos também a conhecer aspectos da nossa experiência enquanto utilizadoras deste modo de investigar, com base na perspectiva de Kathy Charmaz. Consideramos que a experiência adquirida, ao ser partilhada, poderá ser uma mais-valia para os seguidores do método. Palavras-chave: Interaccionismo Simbólico; Grounded Theory; Construtivismo. ABSTRACT The Grounded Theory method is a type of qualitative research, appearing in the context of Glaser and Strauss sociological studies during the twentieth century, under the sociological stream: Symbolic Interactionism. This article aims to produce a sustained reflection on this method and its evolution over time, exposing the main differences among authors. We also report on our own experience as investigators using Kathy Charmaz´s Grounded Theory perspective. We believe that our experience needs to be shared, hoping to help other researchers using the method. Key Words: Symbolic Interactionism; Grounded Theory; Construtivism

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A Grounded Theory segundo Charmaz: experiências de utilização

do método The Grounded Theory according Charmaz: experiences in using the method

Maria Irene Mendes Pedro Santos, Professora Adjunta

Instituto Politécnico de Santarém - Escola Superior de Saúde

Mestre, doutoranda de enfermagem pela Universidade de Lisboa

Elisabete Luz, Enfermeira

Mestre, doutoranda em enfermagem na ICS da Universidade Católica Portuguesa

RESUMO O método da Grounded Theory insere-se na investigação qualitativa, surgindo no contexto

dos estudos sociológicos de Glaser e Strauss durante a década de sessenta do século XX,

no âmbito da corrente sociológica – Interaccionismo Simbólico. Com este artigo,

pretendemos elaborar uma reflexão sustentada sobre este método e sua evolução, expondo

as principais diferenças. Damos também a conhecer aspectos da nossa experiência

enquanto utilizadoras deste modo de investigar, com base na perspectiva de Kathy

Charmaz. Consideramos que a experiência adquirida, ao ser partilhada, poderá ser uma

mais-valia para os seguidores do método.

Palavras-chave: Interaccionismo Simbólico; Grounded Theory; Construtivismo.

ABSTRACT

The Grounded Theory method is a type of qualitative research, appearing in the context of

Glaser and Strauss sociological studies during the twentieth century, under the sociological

stream: Symbolic Interactionism.

This article aims to produce a sustained reflection on this method and its evolution over time,

exposing the main differences among authors.

We also report on our own experience as investigators using Kathy Charmaz´s Grounded

Theory perspective. We believe that our experience needs to be shared, hoping to help other

researchers using the method.

Key Words: Symbolic Interactionism; Grounded Theory; Construtivism

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NOTA INTRODUTÓRIA

O método Grounded Theory surgiu com Glaser e Strauss no âmbito do seu estudo sobre a

morte de doentes terminais em meio hospitalar. Estes autores sentiram necessidade de

encontrar um caminho que respondesse às suas questões de investigação. Na sua obra The

Discovery of Grounded Theory - Strategies for Qualitative Resarch, (1967) os autores

referem que os resultados são obtidos através do método da descoberta, sendo esses

resultados independentes do investigador, defendendo uma perspectiva epistemológica por

alguns considerada positivista.

Porém, Strauss e Corbin, na década de 1990, defendem que a teorização, na perspectiva da

Grounded, é um acto de construção, permitindo uma certa flexibilidade. Lopes (2003) apoia

a perspectiva dos autores supracitados, evidenciando no seu artigo os passos essenciais do

método, na perspectiva dos mesmos. Esta perspectiva parece aproximar-se da visão

epistemológica construtivista, o que não é, contudo, consensual, na comunidade académica

e científica (Mills et al, 2006; Charmaz, 2008). Para esta autora não existem verdades

absolutas; a realidade não é descoberta mas sim construída pelos actores nos contextos

onde os fenómenos acontecem, ou seja, a realidade é, em si própria, socialmente

construída. Nesta lógica, os fenómenos traduzem-se em processos socialmente

construídos, nos quais o investigador assume a responsabilidade do seu papel interpretativo

e inclui as perspectivas dos participantes.

A compreensão da perspectiva evolucionista do método e o aprofundamento da experiência

que a sua utilização nos proporciona deverá ser clarificada e descrita. Assim, poderemos

reflectir sobre o contributo que o método poderá proporcionar na compreensão da

complexidade dos fenómenos humanos, tão importante para a sedimentação do saber da

disciplina de Enfermagem.

PERSPECTIVA HISTÓRICA DA GROUNDED THEORY

O Interaccionismo Simbólico constitui uma importante corrente de pensamento dentro do

paradigma interpretativo; com origem na psicologia social (com Herbert Mead, nos finais do

séc. XIX) e na sociologia (com Herbert Blumer, 1969), concebe a vida social como um

conjunto de interacções mediadas simbolicamente. Assenta nos seguintes pressupostos,

afirmados por Blumer (1969):

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• O comportamento humano fundamenta-se nos significados dos elementos do

mundo;

• A fonte dos significados é a interacção social;

• A utilização dos significados ocorre através de um processo de interpretação.

Enquanto tradição de pensamento, o Interaccionismo Simbólico não constitui propriamente

uma forma de pensar homogénea e estável (Baszanger, I., 1992). Configura, antes, um

modo de olhar o indivíduo e a sociedade que, assente em ideias gerais que constituem os

seus pressupostos deixam, contudo, desde o seu início, um amplo grau de liberdade no

desenvolvimento de olhares mais específicos e dinâmicos, o que Levine (1997) inscreve no

que designa de narrativa pluralista.

Os principais pressupostos em que se baseia são, genericamente:

- Uma visão da sociedade como produção colectiva, como o produto de transacções

operadas entre os indivíduos: do seu trabalho, das negociações, conflitos, processos de

aprendizagem, em suma, das suas interacções;

- A actividade humana elabora-se essencialmente nas relações intersubjectivas, as quais se

desenvolvem num determinado contexto e evoluem no tempo;

- A existência duma relação dialéctica entre reflexão e acção, concebendo os indivíduos

como reflexivos, criativos e activos na construção de si próprios e do seu mundo.

A estes princípios, Baszanger (1992), acrescenta ainda que “uma das facetas do

Interaccionismo é de definir um processo interpretativo (…) sempre enraízado na interacção”

(p.15), enfatizando que a acção não pode separar-se do contexto no qual se desenvolve.

Situar a emergência desta corrente de pensamento na elaboração do presente artigo, só

tem interesse na medida em que a forma de ver o mundo e a sociedade que apresenta,

oferece um contexto sócio-histórico da emergência da Grounded Theory, permitindo ao

mesmo tempo acompanhar as derivações do próprio método. Charmaz protagoniza uma

dessas derivações, assumindo-se como Construtivista (Charmaz, 2006/2008).

Na sequência das ideias já mencionadas e que caracterizam o paradigma interaccionista,

Herman (1998) precisa que o mesmo concebe a sociedade como o resultado das acções

individuais reciprocamente orientadas, cujo fluxo se faz e desfaz continuamente, entre os

membros da sociedade considerada. Assenta num conceito essencial, que é o de Acção

Social, perspectivando-a como um constructo simbólico, em que intervêm as expectativas,

as antecipações e as avaliações dos indivíduos – nesta óptica considerados como actores

(sociais), face às situações de que são co-protagonistas (Herman, 1998; Weber, s.d.). Como

refere este autor Weber (p. 44), “nem toda a classe de contacto entre os homens é de

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carácter social, mas apenas um comportamento próprio orientado, quanto ao sentido, pelo

comportamento de outros”. Esta atribuição de sentido pode acontecer em relação ao

comportamento passado, presente ou esperado como futuro, ou seja, a acção social admite

não só factos concretos mas também as expectativas dos actores relativamente a factos

ainda não ocorridos.

Ainda numa perspectiva de especificação da corrente interaccionista, Herman (1998)

identifica os principais pressupostos da mesma, nomeadamente:

- A acção social emana das pessoas, cuja conduta é largamente auto-determinada;

- Os constrangimentos do ambiente interno e externo são assimilados, interpretados e

transformados na interacção social;

- As pessoas não reagem mecanicamente às acções do outro, mas interpretam os seus

comportamentos em função do significado que lhes atribuem.

Na sua obra “A Construção Social da Realidade”, Berger e Luckman (1973), afirmam o

duplo carácter da sociedade, em termos de facticidade objectiva e significado subjectivo, o

que torna a realidade social sui generis; acrescentam também que “a adequada

compreensão da realidade sui generis da sociedade exige a investigação da maneira pela

qual esta realidade é construída” (idem, p.34), aspecto que remete para a noção de

processo, conceito fundamental da Grounded Theory.

Retomando o olhar de Herman sobre o Interaccionismo Simbólico, vemos que este método

privilegia a observação dos fenómenos sociais ao nível da expressão dos actores na sua

situação social imediata, o que em termos do estudo desses fenómenos legitima o “estar lá”,

o “observar”, testemunhando (e participando, diria certamente Charmaz), o processo de

construção da realidade social considerada.

A Grounded Theory, constituindo simultaneamente o produto e o método de investigação

que melhor se articula com a corrente Interaccionista, tem em Glaser e Strauss os seus

fundadores e mentores – apesar das diferentes direcções posteriormente adoptadas por

cada um deles.

O estudo que marca a criação do método, desenvolvido por Glasser e Strauss – the

Discovery of Grounded Theory: Strategies for qualitative Research, surgiu com o objectivo

de contestar o paradigma positivista da ciência que parte do estudo de hipóteses hipotético-

dedutivas, com base num profundo conhecimento teórico sobre a temática em estudo.

Porém, num determinado momento estes dois autores separaram-se por divergências

ideológicas, consequência da sua formação sociológica de base. Enquanto Glaser tinha

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desenvolvido os seus estudos na escola que seguia a corrente positivista, com Paul

Lazarsfeld (Universidade de Columbia), em que o investigador teria que analisar com rigor

os dados e cumprir o método de uma forma sistemática, Strauss defendia uma corrente

mais “ relacional”; nesta corrente, mais importante do que uma estrutura de análise correcta,

seria o processo de recolha de dados e a subjectividade de cada participante, estando esta

postura relacionada com o legado do Interacionismo Simbólico. Enquanto Glaser manteve a

sua visão positivista e pragmática da técnica, Strauss associou-se a Juliet Corbin e

publicaram a sua versão da Grounded Theory, na obra “Basics of Qualitative Research:

Techniques and procedures for developing Grounded Theory”. No seu livro, os autores

apresentam o método de análise e um conjunto de técnicas para desenvolver a

sensibilidade teórica e verificação da teoria emergente.

Partindo duma perspectiva ortodoxa do método, tal como apresentado pelos seus

fundadores, Charmaz vai introduzindo uma abertura e percorrendo um caminho teórico e

metodológico em que a reflexividade, a par dum escrutínio do método e de si próprio

(investigador), assumem uma importância central, enquanto princípios-base duma linha de

cariz construtivista.

Esta postura permite olhar a orientação paradigmática original não como absoluta, ou one

best way (Herman, J., 1988), mas introduz a ideia do relativismo paradigmático, em que os

paradigmas surgem como modos possíveis de conceber o mundo, relativamente diferentes,

mas não como realidades totalmente fechadas; alguns elementos paradigmáticos

apresentam-se como incompatíveis entre si, refere o mesmo autor, mas este aspecto não

constitui a regra, no conjunto dos elementos paradigmáticos e dos diferentes paradigmas;

estes são concebidos como “totalidades erráticas não saturadas que orientam os

investigadores, sem no entanto predeterminar as suas escolhas epistemológicas,

ontológicas e metodológicas” (idem, p.8).

É com esta perspectiva em mente que assumimos acompanhar Charmaz na sua evolução

do método da Grounded Theory, numa orientação epistemológica marcadamente

construtivista, cujos elementos principais, apresentados pela própria (2008), passam por: a

atenção ao contexto; o posicionamento dos actores, situações em estudo e acções; a

assumpção de múltiplas realidades; e a assumpção da subjectividade do investigador a

qual, devidamente explicitada e objectivada, constitui um recurso a mobilizar.

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PERSPECTIVAS EPISTEMOLÓGICAS DA GROUNDED THEORY: DESCOBERTA VS. CONSTRUÇÃO

Independentemente das diferentes visões epistemológicas da Grounded Theory há

elementos comuns que a caracterizam, como sejam: a lógica indutiva; a análise sistemática

dos dados, através do método de comparação constante; o desenvolvimento de teoria a

partir dos mesmos.

A partir do método original, construído por Glaser e Strauss (1967), existe uma continuidade

na linha de pensamento dos vários autores que sucessivamente o (re) constroem, desde

Glaser (1978), Strauss e Corbin (1994/98; 2008), e Charmaz (2000/06/08); mas existem

também descontinuidades, constituindo-se como diferentes abordagens que permitem

desenvolver diferentes olhares, os quais estimulam a discussão científica e consequente

desenvolvimento do próprio método.

Diversos autores apresentam perspectivas diferentes face às mudanças que se têm

verificado na Grounded Theory, designando-as de modo igualmente diferente. Isto reflecte,

antes de mais, a orientação da aprendizagem e a própria experiência com o método da

Grounded Theory. Em relação a alguns aspectos as diferenças parecem ser evidentes;

como refere Stren (2007,p.220), após a separação, Glaser e Strauss continuaram a

desenvolver o método que tinham criado em conjunto; mas fizeram-no de modo tão

diferente que Glaser terá afirmado que “a evolução de Strauss é, mais correctamente, uma

saída do método original”.

Contudo, em relação a outros aspectos, as diferenças são tão subtis que se torna difícil não

só identifica-las como sustentá-las, sobretudo quando os próprios autores sujeitos à

apreciação e crítica científica, não se revêem nas mesmas; é o que acontece relativamente

a considerar-se se Strauss e Corbin desenvolvem uma perspectiva de cariz mais objectivista

ou mais construtivista; voltaremos a este aspecto mais à frente.

Glaser mantém uma visão “purista” do método da Grounded Theory, não permitindo

qualquer intervenção do investigador. Considera que a observação não participante é a

melhor técnica de recolha de dados, na medida em que o investigador apenas observa e

não intervém; preconiza a entrada no campo da investigação, tanto quanto possível, sem

conceitos teóricos predeterminados, fazendo tabula rasa do conhecimento existente. Logo, a

teoria emerge directamente dos dados, não comprometida pelo enviesamento dos

investigadores (Charmaz, 2006; Mills et al, 2006).

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Strauss e Corbin têm uma visão mais flexível relativamente à influência do investigador na

construção da teoria, considerando a subjectividade do mesmo perante os resultados.

Mantêm a visão da descoberta propondo, no entanto, métodos de análise ou linhas

orientadoras menos rígidas do que Glaser.

A categoria central ou o processo Social Básico emerge dos dados indutivamente, tanto na

visão objectivista como na construtivista, da Grounded Theory; porém, enquanto uma

considera a influência do investigador um problema metodológico que desvaloriza a análise,

a outra valoriza a subjectividade do investigador e considera que a mesma faz parte do

processo analítico.

Mills et al (2006) apresentam um continuum das versões que a Grounded Theory tem

assumido desde que os seus criadores tomaram percursos investigativos diferentes,

classificando essas versões de clássica ou tradicional, «evolved” e construtivista; apontam,

ainda, características diferenciadoras das várias versões identificadas, relativamente à

postura do investigador no processo de pesquisa, no que se refere a: sensibilidade teórica;

codificação e diagramação; e identificação da categoria central.

Partindo desta classificação, e com base em diversos autores (Mills et al, 2006; Stern, 2007;

Lopes, 2003; Charmaz, 2006/2008; Strauss e Corbin, 2008), sistematizamos no quadro

seguinte as principais diferenças entre as primeiras duas versões assinaladas; a versão

construtivista, considerando-a protagonizada por Charmaz – sem, no entanto, lhe

atribuirmos a exclusividade deste posicionamento - será abordada autonomamente, tendo

como pano de fundo o que referem Mills et al (2006), e Charmaz (2006/2008).

Quadro Nº 1 – Diferenças entre as versões da Grounded Theory

Versão/Autor Característica

Tradicional (Glaser, 1978)

Evolved (Strauss e Corbin, 1994/98)

Sensibilidade teórica

- Entrada no campo com poucos pensamentos predeterminados ou, idealmente, como tabula rasa; - Não revisão da literatura sobre o assunto para não contaminar a análise.

- Aceita a revisão da literatura para estimular o pensamento analítico; - Recurso a técnicas de análise para estimular a reflexão e desenvolver a sensibilidade do investigador.

Codificação e Diagramação

- Os dados são vistos como uma entidade separada – do investigador e dos participantes; - Codificação:

• ferramenta analítica fundamental;

- Desenvolve métodos complexos, rigorosos e densos de codificação; - Tipos de codificação: aberta, axial e selectiva; - Paradigma de análise: condições, acções/interacções e

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• tipos: inicial, teórica e comparativa.

- Considera 18 famílias de códigos.

consequências; - Considera o uso de diagramas fundamental, desde o início da análise

Identificação da categoria

central.

- Dicotomia entre emergência e construção: uma categoria emerge de entre várias, formando um núcleo distinto, dotado de coerência própria.

- Identificada através da codificação selectiva; tem um papel central na “história”; a teoria é a conceptualização final da categoria central.

Como facilmente se verifica, há diferenças óbvias entre as duas versões comparadas;

contudo, e relativamente à grande questão actualmente em debate – o carácter objectivista

ou construtivista da linha seguida por Strauss e Corbin – esta é menos consensual. Mills et

al (2006) consideram haver “traços de construtivismo” no trabalho de Strauss e Corbin,

exemplificando com a importância que estes autores conferem à voz dos participantes, no

trabalho interpretativo, para além de assumirem a teorização como um acto de construção.

Por seu lado, Charmaz (2006) refere que a complexidade dos métodos de codificação, bem

como o paradigma de análise que Strauss e Corbin apresentam, reflectem bem um certo

“apriorismo” analítico, pouco coerente com a perspectiva construtivista.

Na última edição de Basics of Qualitative Researchi

(2008), Corbin afirma que “for Anselm,

the tecniques and procedures were more than just a way of doing research. They were his

way of learning about life” (p.x). E assume um posicionamento com base na filosofia do

pragmatismo e do Interaccionismo simbólico, aparentemente voltando às raízes

Straussianas do método.

Não é nosso objectivo discutir as diferenças (apenas) levemente afloradas; a sua inclusão

neste artigo tem apenas a intenção de situar o leitor na complexidade que envolve este

método de pesquisa, na medida em que, falar de Grounded Theory, como vimos, pode

significar modos bem diferentes de olhar e investigar o mundo social.

A PERSPECTIVA DE KATHY CHARMAZ

Apresentaremos a seguir os principais pressupostos da autora que seguimos na nossa

investigação: Kathy Charmaz, por vários autores e por ela própria considerada a principal

proponente da perspectiva construtivista da Grounded Theory.

Charmaz (2008) defende que a sua visão construtivista do método afirma-se devido aos

seguintes fundamentos:

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• A relatividade epistemológica das perspectivas do investigador, isto é, as suas ideias,

crenças e valores, bem como as práticas e o contexto da investigação, fazem parte da

pesquisa;

• A reflexividade do investigador é um princípio fundamental da pesquisa.

• As representações das construções sociais fazem parte do processo de compreensão

do mundo e do processo de investigação.

As situações em estudo são fruto das construções e das estruturas sociais que as

envolvem. A compreensão empírica do fenómeno depende das circunstâncias que

envolvem cada momento durante o processo de investigação. A realidade existe mas não

poderá ser separada de quem olha para ela, existindo assim vários olhares sobre a mesma

realidade. Num processo de investigação com base na visão construtivista da Grounded

Theory os vários olhares dos participantes poderão colidir com o olhar do investigador sobre

determinado fenómeno, e mesmo entre os olhares dos próprios participantes entre si.

Charmaz (2000/2006/2008) considera a Grounded Theory um método profundamente

interactivo, acentuando esta autora a interacção durante todo o processo de recolha de

dados, bem como na análise dos mesmos.

Utiliza o raciocínio abdutivo, isto é, quando um investigador encontra algo de novo, retorna

ao local para poder certificar-se da sua descoberta, enquanto se envolve na investigação;

para tal:

• Considera todas as teorias que poderiam explicar a sua descoberta;

• Volta ao campo e recolhe mais dados para poder testar as teorias e

• Posteriormente, adopta a interpretação teórica mais plausível (Charmaz

2006).

A abordagem clássica da Abdução (Peirce, 1958; Reichert, 2007; Rosenthal 2004, citados

por Charmaz, 2008), começa com uma descoberta surpreendente, mas os investigadores da

Grounded Theory adoptam uma abordagem interactiva quando contabilizam os resultados e

verificam as categorias induzidas. Este conceito clarifica que os utilizadores deste método

estudam as suas observações e desenvolvem abstracções sobre as quais formulam

hipóteses de trabalho, que vão novamente testar através de outras observações, oferecendo

um método de análise de dados que promove e orienta o investigador a desenvolver

interpretações criativas. Daí que o processo de abdução tem por base o processo

interactivo, de ir e vir, entre os dados e a conceptualização, que caracteriza a Grounded

Theory. Este tipo de raciocínio reconhece tanto a importância do pragmatismo sobre os

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conceitos criativos do investigador, como o significado da sua experiência na formulação do

próprio raciocínio, em si mesmo.

A análise dos dados parte da interpretação do investigador, com base na “sua” análise

conceptual do fenómeno em estudo, o que implica o conhecimento teórico existente mas

também um modo de olhar pessoal mais assumido, embora explicitado.

Charmaz (2006) adopta, como roteiro de análise, diversos níveis de codificação através dos

quais propõe a operacionalização do método de comparação constante; são eles: código

inicial, focalizado e teórico, conduzindo este último nível, quando possível, ao processo

social básico.

A autora refere que os elementos da Grounded Theory, nomeadamente: os vários níveis de

codificação, os memorandos, e a amostragem teórica, são neutros; estes fornecem aos

investigadores “linhas orientadoras” que direccionam os seus estudos, caracterizadas pela

flexibilidade.

O investigador constrói os dados a partir da sua própria visão sobre a situação, fazendo

parte da investigação; então as suas posições, privilégios, perspectivas e interacções com

os participantes afectam a investigação. Charmaz (2008) propõe a identificação da

perspectiva do investigador pelo próprio, reduzindo o seu efeito durante o processo de

recolha e análise dos dados, sendo importante não negar esta influência.

A relação entre investigador e participantes informa e enforma o próprio processo de

investigação. A(s) forma(s) como cada investigador(a) se posiciona(m) relativamente ao

objecto de investigação, as opções que toma no decorrer do processo, a forma como pensa

o próprio design de investigação, têm repercussões não só ao nível do seu

desenvolvimento, na medida em que reflectem os seus pressupostos (pessoais),

epistemológicos e filosóficos, mas também nos resultados obtidos.

Por exemplo, uma das questões que decorreram do processo reflexivo prende-se com uma

tomada de consciência crescente do carácter dinâmico, flexível e contínuo do próprio

processo investigativo, o que implica a necessidade de um auto-questionamento

permanente sobre o papel do investigador, os métodos utilizados e o conhecimento

produzido.

Estas considerações suscitam questões do tipo: por que é que estou a realizar esta

investigação? Para quem? Que implicações tem este estudo no que diz respeito ao meu

papel, quer enquanto investigadora, quer enquanto enfermeira?

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Neste contexto, a noção de reflexividade (Lincoln; Guba, 2000) assume particular relevo

para a análise e compreensão do nosso papel enquanto investigadores e,

consequentemente, da nossa interacção com os participantes.

Ratner (2002) afirma que para o desenvolvimento do conhecimento social a subjectividade é

o elemento chave que tem que estar presente para a produção científica.

A questão reside na forma como o investigador lida com a sua subjectividade e

simultaneamente constrói o conhecimento científico.

Consideramos que a explicitação das experiências que iremos relatar têm como objectivo

transmitir a forma como as investigadoras foram resolvendo este dilema e também a forma

como explicitaram os procedimentos e a lógica dos mesmos.

SEGUINDO CHARMAZ: EXPERIÊNCIAS DE INVESTIGAÇÃO

Partindo dos princípios referidos, passamos a relatar as nossas experiências de

investigação, percorrendo os principais passos do processo preconizados por este método,

nomeadamente: os diferentes níveis de colheita e análise de dados (com os respectivos

níveis de codificação); a amostragem teórica; o método de comparação constante. As

experiências relatadas referem-se a diferentes percursos de investigação, de âmbito

académico – nomeadamente, o primeiro, ao nível do mestrado, e o segundo, ainda em

curso, ao nível do doutoramento. Cremos que os diferentes níveis de formação apontados

explicam as diferenças entre ambos os relatos.

Um percurso já percorrido – no âmbito da Pós Licenciatura de Enfermagem

Comunitária

O nosso objecto de estudo foi a transição de saudável a doente das pessoas com Doença

Pulmonar Obstrutiva Crónica. A questão de investigação que direccionou o estudo foi o

modo como vivem as pessoas com DPOC. A finalidade era compreender o processo de

transição de saudável a doente da pessoa com esta situação patológica. Considerando a

natureza da questão de investigação, o método da Grounded Theory pareceu-nos o mais

indicado porque nos permite compreender o processo (de transição de saudável a doente),

partindo da perspectiva dos participantes: “researcher study how participants explain their

statements and actions”. Ghezeljeh e Amami (2009: p 18).

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A decisão pelo contexto onde poderia decorrer o estudo recaiu num hospital com o qual o

investigador mantinha relacionamentos de proximidade com os profissionais e pessoas com

DPO. O que foi facilitador do estudo. O campo das análises empíricas é circunscrito a um

espaço geográfico, social e temporal, como refere Quivy e Campenhout (1998) .Mas, como

estávamos a realizar a investigação em contexto de pós licenciatura em Enfermagem

Comunitária, considerámos também importante envolver a comunidade. Assim sendo,

decidimos incluir a associação “ Respira”, porque para além da sua localização comunitária,

representa forças de poder e de defesa dos interesses das pessoas com DPOC e outras

patologias respiratórias. Mills et al (2006: p 2) referem que “ we do not quickly or easily reach

any sort of conclusion or resolution about our own view of nature of truth and reality. We are

influenced by our history and cultural context, wihich, in turn, shape our view of the world, the

forces of creation, and meaning of truth” .Esta escolha prende-se com o facto de

acreditarmos que as pessoas com DPOC poderem ser empoderadas e capazes de gerir o

seu processo de doença.

Optámos pela selecção secundária dos participantes, ou seja, estes foram referenciados

pelos profissionais e Presidente da Associação. Os critérios de selecção das pessoas

basearam-se no diagnóstico clínico de DPOC confirmado desde o 1º ao 4º estádio (WHO,

2006) com o intuito de compreender a riqueza experiencial do processo de transição de

saudável a doente crónico, neste caso com DPOC. Consideramos que mais importante que

o tamanho da amostra é a riqueza da informação (Morse, 1994; Fortin,1999; Strubert &

Carpenter, 2002).

Decidimo-nos pela entrevista aberta como a técnica de recolha de dados, tendo em conta a

problemática em causa, os objectivos e o método. Decidimos colocar uma questão aberta

aos participantes a partir da qual estes falavam livremente sobre a mesma. Utilizando as

questões/reflexões, que surgiam de cada participante, como pistas para as entrevistas

seguintes, outras questões foram colocadas, à posteriori, para completar os códigos e

caracterizá-los. Como entrevistadores procurámos clarificar as nossas posições

relativamente ao tema. Neste sentido, consideramos que a reflexividade é fundamental, para

o que o investigador terá que saber lidar com a subjectividade de cada participante e com a

própria. Após cada entrevista realizada anotávamos num bloco tudo o que sentíamos e

pensávamos. O facto de escrevermos in loco após cada entrevista permitia-nos expor a

nossas angústias, emoções, pensamentos e valores relativamente aos relatos dos

participantes. A posteriori partilhávamos os registos com a orientadora e simultaneamente

reflectíamos sobre os mesmos. Consideramos a redacção e partilha dos registos ou notas

de campo uma estratégia de reflexividade. Após a realização das notas de campo

deixávamos passar uma a duas semanas até começarmos a ler a entrevista e finalmente

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aplicar os procedimentos analíticos, analisando os discursos dos participantes e aquilo que

a “ressonância” dos seus discursos provocava em nós; a partir da mesma, questionávamo-

nos sobre os nossos valores enquanto investigadores/ enfermeiras e simultaneamente

validávamos a nossa influência no estudo e repercussões nos achados. Paulatinamente,

fomos construindo a nossa análise conceptual dos relatos.

O processo de análise ocorreu em duas fases: a primeira de Junho a Setembro de 2008 e a

segunda de Outubro 2008 a Janeiro de 2009.

Durante a 1ª fase realizámos 10 entrevistas, (em contexto domiciliário) transcrevemos e

analisámos as mesmas, obtendo o que Charmaz nomeia de memorandos (ou memos).

Obtivemos uma grelha de codificação através dos códigos de vários níveis - inicial,

focalizado e teórico. Lemos novamente as 10 entrevistas uma a uma, comparando-as entre

si e com os dados da grelha, com o objectivo de compreender a experiência e saber como

as pessoas foram construindo os seus significados, identificando marcos/ pontos comuns

nas experiências e diferenças, com tendo sempre presente a questão de investigação.

Numa segunda fase, de Outubro a Janeiro de 2009, realizámos 12 entrevistas (nas

consultas externas de um hospital e Domicilio). Comparámos os dados entre si, analisamos

as entrevistas, uma a uma, e posteriormente comparámos com as entrevistas, realizadas na

primeira fase. Os dados das 22 entrevistas saturaram as categorias existentes, na resposta

à questão de investigação, pelo que considerámos a saturação teórica atingida.

Realizámos o esboço das grelhas de análise considerando a codificação preconizada por

Charmaz (2008). Codificação é “a categorização de excertos de dados com uma pequena

palavra que, simultaneamente, resume e valoriza cada parte dos dados” (2006: 43).

Podemos assim comparar a codificação ou os códigos aos “ossos do esqueleto humano” em

que a cada um foi atribuído um determinado nome, que inicialmente estão fragmentados

mas cujo trabalho de análise lhe confere uma determinada lógica. A codificação é, assim, a

construção da análise em si mesma; a lógica construtivista permite obter novas visões sobre

o fenómeno se formos capazes de compreender e ultrapassar a ambiguidade e

desorganização do processo Charmaz (2008).

A construção dos códigos traduziu-se em várias leituras dos dados, comparação de códigos

iniciais focalizados e axiais, construção de “mapas” de ideias ou esquemas procurando

encontrar um “fio condutor” que estabelecesse a interacção entre conceitos. O Processo

Social Básico, ou categoria integradora de todas as outras, para Charmaz (2006), será a

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14

selecção e compromisso com uma categoria central, de entre as várias categorias já

construídas, sendo uma fase de selecção e descrição geral daquilo que é mais importante e

saliente ao longo dos diferentes relatos. Nomeámos o Processo Social Básico identificado

“tornar-se doente crónico”, sendo este suportado por três códigos selectivos

caracterizadores deste processo:

• Os significados da experiência na perspectiva da pessoa com DPOC;

• As fases do processo de tornar-se doente crónico;

• Estratégias de gestão individual e colectiva do processo.

Pretendendo, com o nosso estudo, compreender o processo de transição de saudável a

doente, da pessoa com DPOC, o método da Grounded Theory proporcionou a compreensão

deste processo, numa vertente construtivista. Esta pressupõe, de acordo com Charmaz

(2006) a influência da visão do investigador enquanto fonte de enriquecimento do estudo,

permitindo desenvolver o conhecimento da complexidade humana a partir da diferença e da

unicidade do investigador e dos participantes, a partir de uma perspectiva interior do saber.

Porém, esta perspectiva construtivista cria uma tensão permanente entre a construção da

teoria partindo dos relatos dos participantes e a gestão simultânea da influência do

Investigador. A reflexividade do investigador, bem como a flexibilidade dos procedimentos

analíticos afirmada por Charmaz (2006/2008), permitem encontrar estratégias

metodológicas adaptadas a cada situação, no sentido da compreensão do fenómeno em

estudo. Não a única compreensão possível, mas aquela que melhor responde às questões

de investigação formuladas, contextual e temporalmente situadas.

Uma experiência em curso – no âmbito do doutoramento

A investigação que estamos a desenvolver tem como objecto “a integração de modalidades

terapêuticas não convencionais na prática de enfermagem”; baseia-se na Grounded Theory,

perspectivando-a quer como método (o processo de pesquisa), quer como a teoria a ser

construída (o resultado), de acordo com Charmaz (2006/ 2008).

Dos princípios já enunciados da Grounded Theory e que fundamentaram esta escolha,

realçamos a sua potencialidade para dar resposta ao quê e aos como da investigação, bem

como a pertinência que a teorização das práticas (de enfermagem) assume, face ao estádio

actual de desenvolvimento da profissão, aspecto também defendido por Monti e Tingen

(1999).

O acesso inicial ao campo fez-se pela entrevista (em profundidade), a enfermeiros que

utilizavam uma (qualquer) modalidade terapêutica não convencional, constituindo o que

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Charmaz (2006) designa de amostragem inicial, ou seja, onde se começa. Esta decisão foi

tomada com base na dispersão dos participantes por vários contextos de cuidados,

geograficamente distantes uns dos outros, bem como com o nosso desconhecimento, a

priori, do(s) contexto(s) que, pela prática dos enfermeiros, no que se referia ao problema em

estudo, se revelavam com maior potencial investigativo (Charmaz, 2006). Outro factor de

decisão não menos importante relaciona-se com critérios éticos, na medida em que

considerámos não apropriado expor os enfermeiros participantes, ao desocultar uma prática

que, por razões diversas – que a investigação nos revelará – pretendiam, pelo menos

provisoriamente, manter oculta. A amostragem teórica que, segundo a mesma autora é a

que nos leva onde queremos ir, foi sendo sucessivamente seleccionada de acordo com as

necessidades de esclarecimento, consistência e refinamento das categorias analíticas, num

empreendimento simultâneo de colheita e análise de dados, ou seja, através do método de

comparação constante. Face aos conceitos que começam a emergir, fruto dum processo de

construção em que se cruzam os dados, os significados atribuídos aos mesmos, o

conhecimento científico actual do assunto em estudo (o estado da arte), que orienta e

esclarece o modo de olhar o fenómeno… a amostra teórica permitirá que “cheguemos onde

queremos ir”: à construção efectiva de teoria fundamentada (enraízada) nos dados, sendo a

saturação teórica um indicador importante neste processo.

Assim, a amostragem teórica conduziu-nos à observação participante1

, técnica de colheita

de dados que desenvolvemos enquanto estratégia deste tipo de amostragem, seguindo as

orientações de Charmaz (2006), para quem encontrar novos participantes e/ou novos

settings para colher novos dados, no sentido de enriquecer e saturar as categorias, é um

passo fundamental no sentido da construção teórica, orientada pelo já mencionado critério

de saturação teórica, bem ao jeito da autora em referência.

Este critério (saturação teórica), vemo-lo consubstanciar-se na consolidação, densificação e

estabilização de categorias que antes se apresentavam incompletas, pouco consistentes e

até um pouco dúbias na sua conceituação.

Um elemento de particular importância da Grounded Theory e que assume, como afirma a

própria autora, uma função estruturante de primordial importância neste processo, são os

memorandos (ou memos), mais descritivos numa fase de codificação inicial,

1 Realizámos 17 períodos de observação, de Abril a Setembro de 2009, envolvendo 10

enfermeiros (a equipa completa) e 17 utentes/doentes, duma Unidade de Dor de um Hospital

Oncológico, seguindo as orientações dos seguintes autores: Spradley, 1980; Peretz, 2000; May,

2004; Flick, 2005; Charmaz, 2006.

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sucessivamente mais abstractos à medida que progredimos para níveis de codificação mais

teórica, os memos permitem questionar os dados, mapear a teoria emergente, clarificar e

relacionar conceitos, em suma, são o suporte dinâmico da teoria em construção.

Dos Early memos aos Advanced memos e, finalmente, aos Theoretical memos, o

investigador dispõe de um instrumento efectivo que lhe permite articular, no complexo

processo de construção teórica que empreende, significados, descobertas, os seus próprios

valores e crenças relativamente ao fenómeno em estudo, subjectividades e pré-conceitos,

bem à maneira construtivista proposta por Charmaz (2008), em que o rigor do método –

critério indispensável à sua cientificidade - possa ser adequadamente documentado e sujeito

ao escrutínio da comunidade científica.

Como facilmente se depreende, contudo, este não é processo linear; a complexidade de que

temos vindo a dar conta, reveste-se de dificuldades, das quais relevamos o modo de olhar

os dados, em termos analíticos: na Grounded, este processo é, em si mesmo, um modo sui

generis, que invoca e assenta em cada momento num tipo de raciocínio indutivo, na sua

expressão mais pura. Sabemos que, em termos gerais, a análise de dados no método

qualitativo segue este tipo de raciocínio, através da técnica de análise de conteúdo; no

entanto, esta técnica, de acordo com os autores que a apresentam, entre os quais Laurence

Bardin (1977/2006), Alex Mucchielli (1991) e Roger Mucchielli, (s.d.), leva-nos a um nível de

generalidade elevada, através da identificação de temas, logo num 1º nível; contrariamente

a este modus operandi, a microanálise, técnica específica do método de comparação

constante, assenta na análise linha-a-linha, numa grande proximidade inicial aos dados,

tendo os diferentes níveis de análise um nível de abstracção sucessivamente mais elevada.

Não pretendemos comparar epistemologicamente as diferenças assinaladas, no que podem

representar em termos de construção do conhecimento (Flick, 2005). Referimo-las pela

dificuldade que representou para nós, inicialmente, olhar os dados “ao contrário”, em termos

dos tempos e níveis de substantivação vs. abstracção, face a experiências de investigação

anteriores, com base na análise de conteúdo interpretativa.

Outra dificuldade a registar, tem a ver com a subtil mas profunda diferença entre os

conceitos de saturação, em termos genéricos, como entendido pelo método qualitativo, e a

especificidade da saturação teórica, tal como preconizado por Charmaz (2006), no seu

entendimento da Grounded Theory. Também neste aspecto as experiências de investigação

anteriores, se tidas em conta, foram relativizadas, no sentido da apreensão e

operacionalização cabais da saturação teórica, ainda em construção: efectivamente, de

acordo com a autora, este critério permanece em aberto até à finalização do estudo, ou seja,

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enquanto houver categorias não suficientemente estabilizadas e saturadas – face aos

objectivos da investigação - a colheita de dados continuará.

A experiência é, concerteza, uma mais-valia, pelo substracto de conhecimento a partir do

qual podemos avançar, bem como pela maior capacidade de reflexão que permite; porém,

corre-se o risco de confundir conceitos aparentemente próximos mas que se revestem de

especificidades que constituem, afinal, aspectos diferenciadores das diferentes abordagens

no âmbito de um método mais geral; é, por isso, necessária uma atitude de abertura e

flexibilidade, no sentido da construção de novas formas de fazer investigação, com o rigor e

a fidelidade ao método, que se impõem.

Registadas as dificuldades, como as ultrapassámos? Num primeiro momento, através de

leituras repetidas e em continuidade, mas com tempos de pausa que permitiam amadurecer

interpretações, suscitar novas dúvidas e voltar a olhar com um novo entendimento; a

discussão académica, quer interpares quer com a orientadora, foram também aspectos

muito importantes nesta aprendizagem, seguindo a sugestão de Morse (2007, p. 221) de

que, para fazer investigação segundo a Grounded Theory, não basta aprender nos livros, é

preciso”arranjar um orientador”.

Assumimos inicialmente acompanhar Charmaz na sua visão do método da Grounded

Theory, o que cremos ter documentado de forma sucinta mas suficiente, nas suas linhas e

opções gerais; é com a mesma disposição que afirmamos continuar este percurso de

investigação, para que seja possível experimentar o Todo proposto pela autora: o processo

(o Método) e os resultados (a Teoria ou o Processo Social Básico).

REFLEXÕES FINAIS

As autoras deste artigo partilharam um pouco da sua experiência da Grounded Theory,

percorrendo cada uma das diferentes fases e elementos do método, mas dando, no seu

conjunto, uma ideia que consideram caracterizadora do mesmo.

A experiência na utilização do método preconizado por Charmaz pressupõe, em todos os

procedimentos de codificação, o questionamento dos dados e a comparação constante,

conferindo sistematização e rigor à análise dos mesmos. O rigor do método é consentâneo

com uma certa flexibilidade, de acordo com o contexto da investigação, devendo estar

explícito no relatório todos os procedimentos de análise. O rigor da análise passa pela sua

validação e ajuizamento científicos, bem como pela submissão à crítica inter-pares.

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O método sugerido por Charmaz é fundamentalmente interactivo, perspectivando a

subjectividade do investigador como fazendo parte da investigação. Porém, o investigador

deverá ter consciência e assumir a sua influência, explicitando todo o este processo.

Consideramos que este método poderá trazer contributos à investigação do fenómeno da

complexidade humana, inerente ao saber próprio da disciplina de Enfermagem.

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i Edição póstuma a Anselm Strauss, que faleceu em 1996. Contudo, Corbin mantém o discurso no plural, afirmando: “I try to keep Anselm`vision in mind as I write (p.ix).