A GRAVURA DE REPRODUÇÃO COMO MEIO DE SOBREVIVÊNCIA...
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A GRAVURA DE REPRODUÇÃO COMO MEIO DE SOBREVIVÊNCIA DA IMAGEM: OS ÁLBUNS DE GRAVURAS DE COLEÇÕES. ENTRE A CÓPIA E O
ORIGINAL
REPRODUCTIVE PRINT AS A WAY OF IMAGE SURVIVAL: THE COLLECTION PRINT ALBUMS. BETWEEN COPY AND ORIGINAL
Fabio Fonseca / UFU
RESUMO O presente texto tem como objetivo analisar a contribuição das gravuras de reprodução com o processo de sobrevivência das imagens. É feita a análise comparativa de uma gravura de Nicolas de Larmessin, em um álbum com reproduções de obras de arte, datado de 1729, com a obra original, uma pintura de Rafael Sanzio, de 1506, com a imagem de São Jorge e o dragão. É levantado o aspecto técnico de reprodutibilidade da gravura, e a facilidade de transportar e de arquivar esse tipo de objeto produzido em papel, como aspectos que contribuíram com a sobrevivência da imagem. O referencial teórico adotado se apoia fundamentalmente nas obras de Hans Belting e Georges Didi-Huberman. PALAVRAS-CHAVE Gravura; Gravura de reprodução; Sobrevivências; História da arte; História das imagens. ABSTRACT The aim of this work is to analyse the contribution made by the reproductive print to the survival process of the images. A comparative analysis is made between a print by Nicolas de Larmessin, part of a reproductions album, dated 1729, and the original work, a painting by Rafael Sanzio, dated 1506, with the image of Saint George and the Dragon. It addresses the technical components of reproducibility of the print, and the ease of transportation and storage for this paper produced object, as contributing factors for the survival of the image. The works of Hans Belting and Georges Didi-Huberman are followed as theoretical references. KEYWORDS Print; Reproductive print; Survival; Art History; Image History.
FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.
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A gravura de Nicolas de Larmessin, entre o original e a cópia
A partir do reconhecimento da pintura, da escultura e da arquitetura como
pertencentes ao campo das artes liberais, com a criação das primeiras academias
de arte e uma consequente valorização do estatuto social dos artistas, as obras
produzidas por essa nova categoria de profissionais passaram a ser celebradas e
cultuadas como um tipo de objeto até então inexistente: a obra de arte. Na medida
em que a reputação alcançada por alguns artistas e suas obras crescia, passou a
haver a prática de produzir álbuns com coleções de obras, reproduzidas por meio de
gravuras impressas a partir de matrizes em metal. O objetivo desse texto é analisar
a contribuição das imagens contidas nesse tipo de álbum com o processo de
sobrevivência das imagens. Mais especificamente, procura explicar como uma
reprodução de uma pintura de Rafael Sanzio, contida em um desses álbuns, pode
ter atuado no processo de sobrevivência dessa representação de São Jorge. O
álbum foi impresso em Paris na l'Imprimerie royale entre 1729 e 1742.1 A matriz para
essa gravura de São Jorge e o dragão foi feita por Nicolas de Larmessin e a cópia
está na primeira parte do primeiro tomo, na prancha 31 (Figura 1).2 A obra original
de Rafael (Figura 2) é uma pintura a óleo sobre painel, datada de 1506, com a
representação de São Jorge e o dragão, situada na National Gallery of Art, em
Washington.3
FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.
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Figura 1: Nicolas de Larmessin, segundo Rafael Sanzio - São Jorge e o dragão, 1729 Gravura a buril em papel
dimensões da prancha 63,4 x 42,5 cm dimensões da gravura 31 x 22,1 cm
Paris, Bibliothèque nationale de France, inv. IFN-6956036 Fonte: <catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb42003190j>
FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.
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Figura 2: Rafael Sanzio - São Jorge e o dragão, 1506 Óleo sobre madeira, 28.5 x 21.5 cm
Washington, National Gallery of Art, inv. 1937.1.26 Fonte: <http://www.nga.gov/content/ngaweb/Collection/art-object-page.28.html>
O álbum tem o longo título de Recueil d’estampes d’aprés les plus beaux tableaux et
d’aprés les plus beaux desseins, qui sont en France dans le cabinet du Roy, dans
celuy de Mgr le Duc d'Orléans, & dans d'autres cabinets, divisé suivant les
différentes écoles, avec un abbrégé de la vie des peintres et une description
historique de chaque tableau.4 O livro está organizado em dois tomos e contém
gravuras que reproduzem obras de arte famosas de artistas célebres.
FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.
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Essa composição da representação da luta de São Jorge com o dragão, criada por
Rafael, é repetida em uma grande variedade de imagens devocionais produzidas por
autores desconhecidos. É como se um modelo original fosse utilizado como
referência para a produção de imagens do santo. Como se a imagem ultrapassasse
sua dimensão material e se formulasse no imaginário. Para Hans Belting a imagem
não é o meio material, mas usa esse meio para tornar-se visível, podendo até migrar
entre diferentes meios. Procura distinguir a imagem do artefato (BELTING, 2005. pp.
73 – 74). Nesse sentido, entendemos a imagem como um modelo a partir do qual os
artefatos são criados. As suas variações são meios para uma mesma imagem.
A obra e a história da arte, campo de estudo e fronteiras
Quando o livro com gravuras foi produzido, uma obra já havia iniciado um campo de
estudo sobre as obras de arte; escrita pelo arquiteto e pintor Giorgio Vasari, Le vite
de' più eccellenti pittori, scultori e architettori (As Vidas dos mais Excelentes
Pintores, Escultores e Arquitetos). O livro de Vasari foi dedicado ao grão-duque
Cosme de Médici e publicado em Florença pela primeira vez em 1550, com
frequência é mencionado como a obra fundadora da história da arte. Isso porque,
até então, mesmo com a fama e prestígio social alcançada por alguns pintores, essa
atividade estava mais próxima de uma operária do que intelectual ou criativa. Os
ofícios praticados pelos biografados por Vasari, conforme o sistema de divisão dos
conhecimentos em artes liberais e artes mecânicas, eram considerados, durante a
Idade Média e no início da Idade Moderna, como artes mecânicas, ou seja, uma
atividade manual. O autor procurou elevar as atividades de pintores, escultores e
arquitetos à condição de intelectuais. Sua obra apresenta inicialmente um tratado
sobre materiais e técnicas, em seguida uma longa lista de artistas, descrevendo
seus feitos e obras (VASARI, 2011). Vasari não atribuiu à gravura a condição de
uma arte liberal, ainda assim a técnica era utilizada por pintores como meio de
expressão artística. Porém, havia desde esse momento uma distinção clara entre a
gravura artística, que é uma obra original, e uma gravura de reprodução, como é o
caso da gravura escolhida para esse estudo.
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Apesar de ter sido feita com a finalidade de reproduzir uma obra original de Rafael, e
por isso se diferir das gravuras artísticas, a gravura de Larmessin se trata de uma
nova imagem. É notavelmente semelhante quanto à organização da composição das
figuras e a representação das formas, porém é absolutamente diferente na
linguagem por meio da qual é expressa. Trata-se de uma linguagem gráfica, e não
pictórica. Nesse tipo de gravura, que reproduz uma pintura colorida, as linhas pretas,
paralelas e entrecruzadas, definem a forma, estabelecem os relevos e
profundidades, e criam uma variada gama de tonalidades de cinza. Equivalem, na
visão do gravador, às cores e aos efeitos de luz e sombra da pintura original. Logo,
mesmo se tratando de uma reprodução, o conjunto de escolhas adotadas pelo
gravador e o emprego de uma técnica para a obtenção de um resultado formal são
elementos próprios à produção da arte. Apresenta um resultado específico a partir
de um conjunto de operações e escolhas, trata-se de um objeto original.
Para Didi-Huberman a “ciência da arte” (Kunstwissenschaft) desejada por Warburg
se formulou como um questionamento sobre as imagens no âmbito de uma “ciência
da cultura” (Kulturwissenschaft). Houve uma abertura no campo dos objetos
passíveis de interessar à história da arte, pois a obra de arte deixou de ser um
objeto fechado em sua própria história e passou a ser um ponto de encontro
dinâmico de instâncias históricas heterogêneas (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 41). Por
isso a história da arte não deve se restringir apenas às imagens da arte. Mas deve
considerar um universo amplo das imagens, do qual as imagens da arte fazem
parte, com o qual elas se conectam. Como se estivessem em uma rede irregular e
assimétrica, feita de lembranças e esquecimentos, de imagens e da ausência delas.
Hans Belting discorre sobre o fim da história da arte não como o fim da disciplina,
mas como uma mudança no discurso, pois o objeto mudou e os antigos
enquadramentos se demonstraram insuficientes para abordar esse objeto
(BELTING, 2006, p. 8). O autor se refere a uma história da arte que nasceu com
Vasari. A disciplina que criou a obra de arte no Renascimento, esse objeto que
surgiu dentro de um campo próprio de expressão. Porém, mesmo que operem a
FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.
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partir de um campo autônomo de expressão e se direcionem a ele, as imagens da
arte estão conectadas com a memória coletiva e as inúmeras representações visuais
e verbais. Por isso, para estudar um tema no âmbito da história da arte, é
fundamental considerar as imagens e suas funções, como as gravuras de
reprodução.
O conhecimento catalogado
A demanda por livros de coleções de estampas foi grande e existem muitas gravuras
como essa; que tem a função de reproduzir outra imagem. Como foi mencionado, a
gravura em questão faz parte de um álbum, um conjunto maior que organiza e
apresenta um conjunto de obras de arte. A capa de apresentação do livro, além do
título, contém as informações: Tomo Primeiro. Contendo a Escola Romana. Mais
abaixo o local: a Paris, de l'Imprimerie Royale, e a data 1729 em algarismos
romanos. Há um segundo livro com a segunda parte do primeiro tomo, apenas com
imagens, além da página de abertura. O terceiro livro é o segundo tomo que se
difere por conter “a sequência da escola romana e a escola veneziana”. O livro trata-
se de uma espécie de catálogo de obras de arte. Especificamente de um conjunto
de obras localizadas na França naquele momento. Contém biografias dos artistas,
seguindo o modelo criado por Vasari, todavia se difere fundamentalmente por se
tratar de uma apresentação das obras. É composto por um conjunto de páginas
escritas, impressas tipograficamente, e um conjunto de gravuras em talho doce e
água forte.
A gravura reproduz a imagem original com uma notável precisão. Porém ela
apresenta pequenas diferenças. Não somente aquelas por se tratar de outra
linguagem, produzida por outra técnica, mas algumas alterações no desenho
original. Alguns detalhes da vegetação e dos relevos foram modificados, porém
significativamente, pode-se perceber a supressão da auréola do santo, presente na
obra original, e o acréscimo da cruz na pequena torre que aparece junto ao
horizonte. Se essa técnica de gravura possibilita a obtenção de detalhes claros e
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bem definidos, a agilidade das pinceladas soltas e seguras de Rafael não podem ser
reproduzidas. Aquilo que Vasari havia qualificado como graça, ligada à rapidez e à
facilidade de execução não é próprio para essa técnica de gravura, que envolve a
remoção do metal da superfície da matriz por um buril, deixando sulcos que definem
as linhas. É uma operação que envolve uma força incompatível com a leveza e a
facilidade próprias à pintura. Ainda assim o gravador obtém resultados que
impressionam pela delicadeza dos detalhes.
Esse tipo de gravura ficou conhecida como gravura de reprodução, ou gravura de
tradução, um objeto que se diferencia da gravura de artista. Ou seja, na primeira
entende-se que não haveria o ato criador, mas técnico, na segunda a técnica é
utilizada como linguagem expressiva. As características físicas da gravura impressa
em papel e sua possibilidade de obter várias cópias de uma imagem a partir de uma
matriz a tornavam adequada para serem usadas para esse tipo de livro.
Para Michel Melot, a gravura permite a acumulação de "tesouros”, no sentido
econômico do termo, mas sobretudo uma acumulação metódica do conhecimento.
Esse objeto “leve e autônomo” contribuiu para os estudiosos do século XVI ávidos
por constituir corpus e thesaurus. Mais ainda na primeira metade do século XVII,
quando se manifestou o gosto pelas grandes organizações enciclopédicas. Por meio
de coleções de emblemas, de medalhas ou de homens ilustres, a estampa difundiu
o espírito do conhecimento enciclopédico. O apreço por galerias gravadas conheceu
seu apogeu com o Gabinete do Rei, de Luís XIV. (MELOT, 1981, pp 32 – 33)
O Gabinete do Rei foi iniciado em 1663. Tratava-se de um gabinete de curiosidades,
algo que fazia parte do arsenal indispensável do homem esclarecido na época, o
cartão de estampas tinha um papel fundamental, era um objeto de curiosidade e
também um documento sobre a curiosidade. (MELOT, 1981, p 62) O livro com a
coleção de estampas faz parte desse pensamento enciclopédico. É uma forma de
catalogar obras de arte. É um objeto que oferece a possibilidade de um conjunto de
obras, muitas situadas em locais privados, serem conhecidas por um público maior,
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incluindo pessoas que escreviam sobre arte. E, se os gabinetes de curiosidades são
precursores dos atuais museus, esses livros com coleções de estampas são
precursores dos atuais catálogos de suas coleções e exposições. São livros com
imagens feitas a partir de um modelo, por um lado operam uma redução da imagem
original no sentido de modificá-la, de suprimir sua condição pictórica, por outro
promovem uma ampliação na sua difusão.
Apesar de ter sua função projetada até o presente, o livro de estampas se enraíza
em uma tradição de produção de livros impressos, não por sua função, pois a noção
de obra de arte era recente, mas pela técnica por meio da qual foi produzido. Desde
o século XV já se produziam livros impressos com imagens. Os textos e as imagens
eram gravados conjuntamente em blocos de madeira, dos quais se obtinham as
cópias. Esses livros em papel substituíram progressivamente os códices iluminados
e se dirigiam a um público mais amplo que do que os livros manuscritos em páginas
de pergaminho. O gravador era um profissional que não existia anteriormente e
atuou, em parte como criador, em parte como artesão.
Em 1660 o rei da França reconheceu a liberalidade da profissão de gravador, seu
caráter de obra do espírito. Além do prestígio, essa posição conferia a liberdade da
produção de estampas, não sujeitas ao controle das corporações de ofícios. Por
outro lado, a entrada na Academia significava a renúncia ao comércio. O gravador
saiu do grupo social dos comerciantes e artesãos para entrar naquele das pessoas
do espírito. Porém a gravura permaneceu, por natureza, uma indústria e um
comércio. Na Inglaterra, onde os gravadores não foram admitidos na Academia
Real, a gravura não era reconhecida como uma arte, porém era protegida como uma
indústria. (MELOT, 1981, p. 63)
O livro de recolha de gravuras tem a finalidade de catalogar um conjunto de obras.
Sua condição de objeto reprodutível e transportável promove a propagação das
imagens, mas ao mesmo tempo apresenta o patrimônio artístico de um rei e nobres
franceses. Pode ser entendido como forma de demonstrar o apreço do rei pelas
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artes, mas também como forma de divulgar e valorizar o próprio patrimônio artístico
francês.
A produção de gravuras, as matrizes
Além das dimensões, a gravura tem uma notável semelhança com seu modelo. O
gravador reproduziu a obra com grande fidelidade, tanto no que diz respeito ao
desenho das figuras, suas formas e expressões, como na tradução das cores, seus
matizes e luminosidade, em tonalidades de cinza produzidas pela justaposição e
cruzamento de linhas com maior ou menor espessura. Pode-se mesmo verificar que
a gravura apresenta uma precisão maior na definição de pequenos detalhes. De
modo que essa tradução de uma pintura em uma gravura corresponde à construção
de uma imagem em uma nova linguagem, com características bastante distintas de
seu modelo.
As diferentes clientelas – popular ou erudita – foram servidas por diferentes técnicas
(que determinam os diferentes preços) e, sobretudo por diferentes tipos de
fabricantes. Enquanto os gravadores em madeira eram recrutados entre os artesãos
e às vezes nos mosteiros, os gravadores em metal se originavam nos ateliês de
ourives e poderiam rivalizar ou mesmo se confundir com os pintores.
Consequentemente a produção de gravuras surgiu não no coração do domínio
artístico, a pintura, mas ao lado dele, como uma promessa para alguns e uma
ameaça para outros. (MELOT, 1981, p. 45) A prática da ourivesaria foi muito
desenvolvida durante a Idade Média, na produção de joias e relicários. Também foi o
período quando se desenvolveram as corporações de ofícios entre as quais os
ourives possuíam uma posição de privilegiada. Os gravadores, assim como os
ourives, atuavam em um campo diferente da pintura, mas também com a produção
de imagens.
As matrizes gravadas em buril possibilitavam a tiragem de uma grande quantidade
de exemplares. Dessa maneira o livro de coleção de estampas ampliou a visibilidade
das imagens utilizadas como modelo. Por se tratar de uma nova imagem, a matriz
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também pode ser entendida como o modelo. Uma espécie de arquétipo original a
partir do qual são produzidas as cópias que, embora semelhantes, cada uma possui
suas próprias particularidades e é um objeto único.
A gravação das matrizes à buril trata-se de um trabalho longo, que envolve um
grande conhecimento do ofício. Para exercê-lo, além do conhecimento de uma
diversidade das ferramentas e a função de cada uma delas, deveria haver a
destreza no uso desses utensílios e o aprendizado do desenho. Mesmo os
gravadores que produziam gravuras de reprodução, produziam gravuras com
criações originais na medida em que também tinham prestígio como artistas. O autor
da gravura com São Jorge, Nicolas de Larmessin era filho e sobrinho de dois
gravadores e editores de estampas homônimos, foi nomeado gravador do Gabinete
do Rei. Também ficou conhecido como Nicolas II de Larmessin. Se dedicou
principalmente às gravuras de reprodução, mas também produziu retratos da
nobreza francesa e outras obras de autoria própria. Aprendeu o ofício em sua
própria família no contexto das corporações de ofícios.
As corporações de ofícios eram associações compostas pelos próprios artesãos,
que regulamentavam os trabalhos artesanais em cada cidade. Eram diferentes das
confrarias, porém sua criação está relacionada a elas. Para Gabriel Le Bras,
mercadores e artesãos se colocavam sob a proteção de seu santo, para assistência
mútua. As primeiras confrarias profissionais de Paris apareceram na segunda
metade do século XII, e no século XIV se generalizaram no modo de organização
dos profissionais. (LE BRAS, 1956, p. 432)
Ao lado das grandes confrarias existia uma massa de pequenas associações de
artesãos. Até o fim do Antigo Regime, todo ofício, em princípio, teve sua confraria.
Ainda nesses últimos séculos, às vezes a organização religiosa precede a
profissional e às vezes ela sucede a organização profissional. As mutualidades se
fundiam sobre o patronato de um santo, e a fronteira do espiritual e do temporal era
mal definida. Por outro lado, a confraria não coincidia sempre com a corporação:
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uma corporação pode ter várias confrarias, uma confraria receber pessoas
estranhas à profissão e mestres obterem dispensa de adesão. (LE BRAS, 1956, p.
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A impressão, o livro
A impressão se constituiu como uma nova possibilidade de uso da imagem. Isso foi
possível pelo desenvolvimento das técnicas de gravação, tanto em blocos de
madeira como em chapas metálicas. Outros dois fatores foram fundamentais nesse
processo: a invenção do papel e da tinta preta para impressão. Na Idade Média,
além dos afrescos, era corrente o uso de painéis de madeira e do pergaminho, para
as imagens pintadas. Os pintores passaram a usar um tecido fixado em um chassi,
que progressivamente substituiu os painéis. O custoso pergaminho, utilizado nos
códices manuscritos e iluminados, foi substituído pelo papel, e sua fabricação em
grande quantidade possibilitou a obtenção de um suporte mais barato para as
imagens. Isso promoveu uma expansão na quantidade de imagens, não apenas nos
livros e coleções, mas também com as impressões em folhas avulsas.
Por um lado, a gravura se apoiou na tradição dos ourives para obtenção das
matrizes, por outro, se conectou com um ofício que acabava de surgir; o dos
impressores. Como fruto dessa relação uma nova tinta foi incorporada. As primeiras
impressões xilográficas utilizavam uma tinta como a medieval, mais rala, produzida à
base de água, com algum aglutinante, como ovo ou goma arábica. Essa tinta era
depositada na superfície da madeira, que não foi gravada, e transferida por fricção
manual para um papel. Isso resultava em uma qualidade preto. O preto da tinta
gráfica, porém, é muito mais intenso e escuro. Essa tinta foi obtida com o mesmo
recurso que van Eyck utilizou em suas pinturas, o óleo de linho como meio para
dissolver os pigmentos.
Nas impressões a partir de chapas metálicas, diferente das matrizes em madeira, a
tinta se deposita no sulco gravado na chapa, e não em sua superfície. É espalhada
por toda a chapa e removida da superfície, onde mantém o branco do papel. A tinta
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precisava ser suficientemente viscosa para não ser removida dos sulcos, produzir
linhas muito finas e com um preto intenso e escuro, a partir dos finos entalhes
gravados com buril. Ao ser transferida, por meio de uma forte compressão entre a
matriz e o papel, a tinta não se deposita apenas na superfície, ela se mistura com
suas fibras. Da mesma maneira que ocorre com a tinta das impressões tipográficas
utilizadas para a produção de livros.
Segundo Pastoureau, essa tinta foi desenvolvida pelos primeiros impressores, talvez
pelo próprio Gutenberg. A Bíblia de Gutenberg, impressa em 1455, já a utilizou.
Salvando pequenas diferenças nas receitas e segredos próprios de cada oficina,
essa tinta permaneceu a mesma até o início do século XIX. A adição de óleo de
linho tornou a tinta mais viscosa, o sulfato de ferro ou de cobre proporcionou um
aspecto preto e brilhante, e o uso de sais metálicos facilitou a secagem.
(PASTOUREAU, 2011, p. 115)
A difusão do livro impresso e da imagem gravada foi o principal vetor que fez com
que o branco e o preto fossem considerados como cores à parte, mais ainda a
imagem impressa com tinta preta sobre papel branco. As imagens medievais eram
quase todas policromáticas, a maior parte nos livros impressos, ou fora deles, na
época moderna, são imagens em preto e branco. Trata-se de uma revolução
cultural, não apenas no domínio dos conhecimentos, mas também das
sensibilidades. Os primeiros papéis utilizados na Europa não eram verdadeiramente
brancos, mas com uma tonalidade de bege. Com o aumento do consumo promovido
pela tipografia se tornou com melhor qualidade, mais durável, liso e, sobretudo, mais
branco. Nos manuscritos medievais a tinta preta à base de têmpera, não tem a
mesma intensidade que o preto gráfico, e o pergaminho não é branco. Nas gravuras
e nos livros impressos, há uma tinta muito preta, sobre um papel realmente branco.
Isso afetou não apenas o livro, mas principalmente a imagem (PASTOUREAU,
2011, pp. 112 - 116). Afetou até mesmo a percepção da imagem colorida ou do que
se pensou que elas seriam. Como o São Jorge de Rafael que foi reproduzido por
Larmessin. A pintura estava confinada em um único gabinete, com acesso a poucas
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pessoas, mas as suas reproduções se espalharam. As gravuras, como o álbum com
a gravura de Larmessin, tornavam público o acesso a muitas imagens. Até mesmo
aqueles que estudavam a arte recorriam às reproduções impressas apenas em
preto.
A gravura se constitui a partir de um conjunto de aptidões. A primeira é a autonomia,
flexibilidade e leveza dessa imagem. Essas qualidades são exigidas para poder
transportá-la, e acumular em casa, em cartões ou nas paredes. É um objeto de arte
móvel, que viaja facilmente. Essas qualidades fazem dela um objeto individualmente
apropriável, se opondo assim, às imagens conhecidas até então: afrescos ou
retábulos. A segunda característica é a transferência, a possibilidade de reprodução.
É um objeto multiplicável, distribuível, intercambiável. A gravura é um objeto de arte
que pode ser vendido e eventualmente susceptível de uma produção industrial.
(MELOT, 1981, p. 23)
Além de leve e fácil de ser transportada e acumulada, a possibilidade de ser
produzida em grande quantidade, fez da gravura um objeto mais barato, mais
acessível do que as caríssimas pinturas coloridas, produzidas individualmente.
Consequentemente, a matriz passou a ser um objeto de grande valor, pois poderia
produzir muito mais dinheiro do que uma pintura. Uma chapa de cobre gravada
permite a impressão de milhares de exemplares. As matrizes, em sua maior parte,
eram propriedade dos editores. Em alguns casos podiam ser utilizadas em
diferentes publicações. Alguns artistas mais renomados, porém, podiam ser
proprietários de uma oficina de gravuras, e manter o controle sobre todas as etapas
da produção, como foi o caso de Dürer ou Schongauer.
Modelo e origem
Entre a obra original de Rafael e a cópia de Larmessin, a imagem de São Jorge
passou por transformações. Não há uma linha evolutiva, suas transformações se
operam a partir de algo que se assemelha a ramificações. Essas ramificações não
partem de um único modelo, mas vários, e elas podem se entrecruzar
FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.
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estabelecendo conexões entre um universo de imagens, com formas e funções
diferentes. De acordo com Didi-Huberman, Warburg desconstruiu os modelos
epistêmicos de Vasari e Winckelmann. Substituiu o modelo dos ciclos de “vida e
morte”, “grandeza e decadência”, por um modelo cultural da história. Na qual os
tempos “se exprimiam por extratos, blocos híbridos, rizomas, complexidades
específicas, retornos frequentemente inesperados e objetivos sempre frustrados”.
Substituiu o modelo das “boas imitações” e “serenas belezas”, por um “modelo
fantasmal” da história, no qual os tempos “se exprimiam por obsessões,
sobrevivências, remanescências, reaparições das formas” (DIDI-HUBERMAN, 2013,
p. 25). Podemos considerar a pintura de Rafael como uma imagem original em
relação à gravura, porém ela mesma pode ser entendida como mais um artefato no
qual a imagem de São Jorge se faz visível.
Antes das imagens digitais, fotografias e impressões em offset, foram as gravuras de
reprodução que divulgaram e tornaram conhecidas muitas obras de arte. Como as
obras originais eram acessíveis apenas à poucas pessoas, dificilmente teriam um
processo de ampla divulgação da imagem sem as cópias, que multiplicavam um
modelo. Enquanto a pintura permanecia confinada em um gabinete, as gravuras
poderiam ser transportadas, espalhadas e alcançar lugares inimagináveis para a
obra original.
Notas
1 Recueil d'estampes d'apres les plus beaux tablaux…, 1729 – 1742, livro impresso em três tomos. Paris, Bibliothèque nationale de France. cotas nº AA-57-BOITE FOL (primeiro tomo, primeira parte), AA-58-BOITE FOL (primeiro tomo, segunda parte), AA-59-BOITE FOL (segundo tomo). Disponível em: https://gallica.bnf.fr/services/engine/search/sru?operation=searchRetrieve&version=1.2&collapsing=disabled&query=dc.relation%20all%20%22cb42001892p%22. Acesso em: 20 mai. 2019. 2 Saint Georges, 1729, gravura em buril e água forte sobre papel, 31 x 22,1 cm. Paris, Bibliothèque nationale de France. cota nº AA-57-BOITE FOL. Disponível em: https://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb42003190j. Acesso em: 20 mai. 2019. 3 Saint George and the Dragon, 1506, óleo sobre painel, 28.5 x 21.5 cm. National Gallery of Art, Washington, cota nº 1937.1.26. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.28.html. Acesso em: 20 mai. 2019. 4 Coleção de estampas segundo os mais belos quadros e segundo os mais belos desenhos que estão na França No Gabinete do Rei, naquele do Monsenhor o Duque de Orleans, e em outros Gabinetes. Dividido seguindo as diferentes escolas; com um resumo da Vida dos Pintores, e uma Descrição Histórica de cada Quadro.
FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.
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Referências
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______. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 320 p.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
LE BRAS, Gabriel. Études de sociologie religieuse. Paris: Presses Universitaires de France, 1956.
MELOT, Michel. La nature et le rôle de l'estampe. In: MELOT, M., et al. L'estampe. Genève: Albert Skira, 1981.
PASTOUREAU, Michel. Preto: história de uma cor. Tradução de Lea P. Zylberlicht. São Paulo: Senac São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.
VASARI, Giorgio. Vidas dos artistas. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 1ª. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
Fabio Fonseca
Docente do curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) na subárea de Desenho. Doutor em Teoria e História da Arte pela Universidade de Brasília (UnB), com período sanduíche no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve sua pesquisa sobre o processo de sobrevivência das imagens, procurando integrar sob um viés teórico-metodológico, a pesquisa em Teoria e História da Arte com a produção prática em Artes. Contato: [email protected]