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A GESTÃO DO TERRITÓRIO E AS DIFERENTES ESCALAS DA CENTRALlDADE URBANA· MARIA ENCARNAÇÃO BELTRÃO SPÓSITO" Territorial management and the dífterent scales of urban centralíty Urban centrality can be analyzed in two different yet interpenetrating scales: the intra-urban dimension and the scale defined by the urban network. These scales must be taken into consideration if one wants to deal with the issue of territorial management. The article discusses how changes in the technological, economic and social leveIs affect urban centrality. A new intra-urban spatial organization and a redefined urban network, both characterized by new centralities, are the results of such changes. Yet, an important dilemma still remains to be solved: How can one have an eftective participation in the process of territorial management when decision-making is, to a great extent, an exogenous variable? A centralidade urbana pode ser abordada em duas escalas territoriais: a intra-urbana e a da rede urbana. No primeiro nível é possível enfocar as diferentes formas de expressão dessa centralidade tomando como referência o território da cidade ou da aglomeração urbana, a partir de seu centro ou centros. No segundo nível a análise toma como referência a cidade ou aglo- meração urbana principal em relação ao conjunto de cidades de uma rede, essa por sua vez podendo ser vista em diferentes escalas e formas de articu- lação e configuração, de maneira a que se possam compreender os papéis da cidade central . • Texto elaborado para participação na Mesa Redonda: "Da cidade como centro de gestão do território à gestão do território da cidade" -11 Encontro Nacional da ANPEGE, Rio de Janeiro, 1;397. *' Professora do Departamento de Geografia e membro do GAsPERR (Grupo Aca· dêmico "Produção do Espaço e Redefinições Regionais") da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP - Campus de Presidente Prudente.

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A GESTÃO DO TERRITÓRIO E AS DIFERENTESESCALAS DA CENTRALlDADE URBANA·

MARIA ENCARNAÇÃO BELTRÃO SPÓSITO"

Territorial management and the dífterent scalesof urban centralíty

Urban centrality can be analyzed intwo different yet interpenetratingscales: the intra-urban dimensionand the scale defined by the urbannetwork. These scales must be takeninto consideration if one wants to dealwith the issue of territorialmanagement. The article discusseshow changes in the technological,economic and social leveIs affecturban centrality. A new intra-urban

spatial organization and a redefinedurban network, both characterized bynew centralities, are the results ofsuch changes. Yet, an importantdilemma still remains to be solved:How can one have an eftectiveparticipation in the process ofterritorial management whendecision-making is, to a great extent,an exogenous variable?

A centralidade urbana pode ser abordada em duas escalas territoriais:a intra-urbana e a da rede urbana. No primeiro nível é possível enfocar asdiferentes formas de expressão dessa centralidade tomando como referênciao território da cidade ou da aglomeração urbana, a partir de seu centro oucentros. No segundo nível a análise toma como referência a cidade ou aglo-meração urbana principal em relação ao conjunto de cidades de uma rede,essa por sua vez podendo ser vista em diferentes escalas e formas de articu-lação e configuração, de maneira a que se possam compreender os papéisda cidade central .

• Texto elaborado para participação na Mesa Redonda: "Da cidade como centro degestão do território à gestão do território da cidade" -11Encontro Nacional da ANPEGE,Rio de Janeiro, 1;397.*' Professora do Departamento de Geografia e membro do GAsPERR (Grupo Aca·dêmico "Produção do Espaço e Redefinições Regionais") da Faculdade de Ciênciase Tecnologia da UNESP - Campus de Presidente Prudente.

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As articulações, cada vez mais intensas, entre esses dois níveis deexpressão da cen!ralidade permitem a análise da gestão do território em múl-tiplas escalas. Para tal, determinantes de diferentes naturezas podem serconsideradas, mas analisaremos essas relações a partir das decisõeslocacionais dos grupos econômicos ligados à produção e à comercializaçãode mercadorias e serviços, para que possamos avaliar o papel de cidadecentral exercido por um núcleo ou aglomerado urbano no processo de gestão doterritório da cidade, por intermédio da definição da centralidade intra-urbana deseu próprio espaço, mas também da centralidade intra-urbana de outras cidades.

A análise da redefinição da central idade urbana no interior das cidadesganha cada vez mais relevância em função de quatro dinâmicas que marcamas transformações em curso:

1. As novas localizações dos equipamentos comerciais e de serviçosconcentrados e de grande porte determinam mudanças de impacto no papele na estrutura do centro principal ou tradicional, o que provoca uma redefini-ção de centro, de periferia e da relação centro-periferia.

2. A rapidez das transformações econômicas que se expressam, inclu-sive, através das formas flexíveis de produção impõem mudanças naestruturação interna das cidades e na relação entre as cidades de uma rede.

3. A redefinição da central idade urbana não é um processo novo, ruascanha novas dimensões, considerando-se o impacto das transformações atu-ais e ét sua ocorrência não apenas nas metrópoles e cidades grandes, mastambém em cidades de porte médio.

4. A difusão do uso do automóvel e o aumento da importância do lazere do tempo destinado ao consumo redefinem o cotidiano das pessoas e alónica da localização e do uso dos equipamentos comerciais e de serviços.

A extensão dessas dinâmicas impõe novas formas de centralidade euma recomposição contínua da estrutura interna das cidades, mas, sob cer-tos aspectos, uma homogeneização das territorialidades intra-urbanas emdiferentes cidades.

Há, no entanto, níveis de especificidades que devem ser estudados, apartir de cada formação socioespacial e de cada conjuntura econômica. Emoutras palavras, ao mesmo tempo em que as discussões sobre o tema po-dem contribuir para uma reflexão acerca do processo geral de redefinição dacentral idade interna nas cidades devem indicar as especificidades desse pro-cesso em cidades de diferentes portes, em diferentes países.

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A análise das determinantes econômicas do processo de redefiniçãoda centralidade intra-urbana pode contribuir para a compreensão das cone-

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xões entre a cidade como centro de gestão do território e a gestão do territórioda cidade, permitindo que se verifique que essas conexões implicam, muitasvezes, a articulação de diferentes escalas de cidade, por meio das decisõestomadas por empresas, cuja dinâmica de gestão se delibera a partir dos gran-des centros urbanos, mas inclui, em suas estratégias de atuação, decisõesque se concretizam em outros centros urbanos.

O processo de concentração econômica dos grandes grupos, que atu-am no setor comercial e de serviços e daqueles que atuam no setor da produ-ção imobiliária, implica novas escolhas em termos de estratégias econõrní-cas' e locacionais, que se expressam na estrutura urbana mudando, como jáfoi ressaltado, as relações entre o centro, as áreas pericentrais e a períteria" .

As novas estratégias u ..• articulam-se ao funcionamento dos mercadosfundiário e imobiliário, à evolução das estruturas e dos pesos das diferentesfunções econômicas e residenciais ..."3.

São três processos simultâneos e articulados. Primeiramente, há quese considerar os interesses de valorização fundiária e imobiliária de novasáreas no entorno das cidades, quer seja por meio da atribuição de uso de solourbano a territórios que não eram funcionalmente urbanos, quer seja pelaatribuição de novos usos de solo urbano, mais modernos e mais valorizados,a áreas já incorporadas aos tecido urbano.

Em segundo lugar, a concentração econômica dos grupos de distribui-ção comercial e de serviços permitiu a construção de grandes equipamentos,que atendem, em parte, às exigências colocadas pelas novas localizaçõesresidenciais e, em parte, produzem novos fluxos no interior das cidades, emfunção das novas possibilidades e formas de consumo que resultam dessanova localização.

Esses dois processos, cujos interesses articulam-se por meio de no-vas estratégias de localização dos equipamentos comerciais e de serviços nointerior das cidades, encontram, ainda, disponibilidades fundiárias e irnobiliá-rias decorrentes de uma terceira dinâmica: as transformações recentes dapolítica locacional industrial, causadas pelo que os autores consideram comouma passagem de formas de produção fordistas para formas de produçãoflexíveis. Observa-se a diminuição do número de grandes plantas industriais,

, WOLFF (1994).

2 Seria necessária a rediscussão do próprio conceito de periferia, sobretudo para acompreensão dessa dinâmica no caso brasileiro, já que o termo está fortementeassociado à presença de favelas e de loteamentos destinados às camadas de me.nor poder aquisitivo, onde predominam as dificuldades de acesso aos bens de con-sumo coletivo. Nesse texto vamos utilizar o termo periferia de forma genérica paradesignar as áreas de expansão da cidade, incorporadas ou modificadas pelas for-mas mais recentes de redefinição das cidades e não, necessariamente, articuladasde forma contínua ao tecido urbano constituído.3 CH EVALlER (1994a).

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localizadas ao longo dos grandes eixos de circulação, geralmente, nas perife-rias urbanas, e, muitas vezes, completamente externas ao tecido urbano. Poroutro lado, acentua-se a diminuição da área destinada à produção e acentua-se a apropriação ou produção de novas localizações em áreas urbanas ounão urbanas.

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Em função dessas mudanças de natureza econômica e das lógicaslocacionais é possível afirmar que há uma recomposição da estrutura urbana,que se expressa sob diferentes formas de expansão e de periferização dotecido urbano: abertura de novos loteamentos urbanos, destinados a engen-drar diferentes padrões ocupacionais; construção de grandes conjuntoshabitacionais, associados ou não à instalação de pequenos equipamentospara a realização de um consumo imediato; aparecimento de grandes equi-pamentos comerciais e de serviços (shopping centers e hipermercados) e,mesmo, de outros centros de atividades mais complexos, que incluem a pre-sença de sedes de empresas, serviços de hotelaria e espaços para a realiza-ção de eventos de toda natureza.

Há estreita relação entre tais dinâmicas. No que se refere às novasformas de expansão territorial da cidade, podemos dizer que a evolução dapolítica locacional do aparelho comercial e de serviços reproduz a tendêncialocacional da função residencial no interior da cidade, qual seja a de um cres-cimento urbano centrltuço" .

Se de um lado, a lógica de localização das novas áreas residenciaisreproduz os princípios do urbanismo de Le Corbusier para atender aos inte-resses fundiários e imobiliários que as definem, podemos dizer que a lógicade multifuncionalidade ficou relegada a um segundo plano, pois independen-temente do padrão a que se destinam essas novas formas de habitat urbanorevelam uma das faces da cidade especializada internamente, marca damonofuncionalidade que se instala, fortemente apoiada nas políticas de pla-nejamento urbano e na legislação produzida por essas políticas.

De qualquer forma, os interesses imobiliários e comerciais viabilízararno desenvolvimento de novas escalas de distribuição de bens e serviços, pormeio da instalação de grandes equipamentos na periferia das grandes cida-des, em alguns nós rodoviários e, às vezes, até mesmo nas áreas mais den-samente ocupadas das cidades, redefinindo seus usos e conteúdos> .

, Esse termo é utilizado por METTON (1992, p. 15) ao analisar as tendências daevolução comercial no centros urbanos franceses, a partir de 1975.5 Sem a disseminação do uso do automóvel e uma relativa melhoria do sistema decirculação e transporte coletivo nem as novas lógicas de assentamento habitacionalnem os interesses comerciais, fundiários e imobiliários poderiam ter se imposto deforma tão acentuada.

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IV

A tendência apontada de um crescimento urbano centrífugo expressopelas novas localizações da função residencial associadas ao processo deinstalação de novos equipamentos comerciais e de serviços na periferia oumesmo fora das cidades revela uma associação que poderia ser explicadacomo uma solução frente ao nível de isolamento e monofuncionalidade quemarca essas áreas da cidade. A idéia de que as duas lógicas levam àperiferização do tecido urbano poderia pressupor uma solução para o aumen-to das necessidades de deslocamentos no interior da cidade, face à sua ten-dência de maior especialização interna das funções.

Há, no entanto, com maior ou menor intensidade, uma espécie de di-vórcio entre as atividades terciárias e a função residencial, produzido segun-do essas lógicas, por duas razões.

Em primeiro lugar, a satisfação dessas funções, segundo essas novasmodalidades, exige grandes extensões territoriais, quer pelo nível de concen-tração necessário à produção de novas centralidades, quer pela escala dacomercialização de bens e serviços produzida pela concentração econômicadesse setor, quer pela monumental idade, intencional ou não, que se produziupor meio das novas áreas residenciais monofuncionais.

Em segundo lugar, porque a mudança da escala do pedestre para aescala do automóvel, que permitiu o fim da central idade única, não significa,necessariamente, o acesso de toda a sociedade a essas novas áreas urba-nas, a esses novos nós da central idade intra-urbana.

Sob vários aspectos, as novas localizações periféricas acentuam acomposição em mosaico que caracteriza a estruturação recente das cidades,especialmente no Brasil. Essas novas áreas parecem setores que mais sejustapõem, do que se articulam. Produz-se uma paisagem urbana recortada,com forte desequilíbrio e sem estreitas ligações entre habitação, trabalho,comércio e serviços.

Se não temos mais a continuidade da cidade compacta, se não te-mos mais uma cidade organizada, hierarquicamente, em círculos concên-tricos em torno de um centro único". se temos que questionar a idéia deuma cidade que expressa unidade ou totalidade, devemos pensar as cate-gorias de análise centro e periferia, não como dicotômicas, mas como es-paços de interpenetração? Teríamos, então, o predomínio da fluidez so-bre o luqar".

6 CHEVALlER (1994b, p.259) refere-se à idéia de sociedade pós-moderna, comoaquela da fragmentação, multinodal, da pluralidade e fluidez, em oposição às socie-dades industrial e pós-industrial, marcadas pela homogeneidade, centralidade ehierarquização.7 ROULLEU-BERGER (1989, p, 16-17).B BEAUCHARD (1993).

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A intensificação da fluidez representaria a tentativa/possibilidade deprodução da continuidade, que não existe no tecido urbano. As especializações,as diferenças, as concorrências e oposições produzidas no contexto fragmen-tário de uma cenlralidade multiplicada podem ser analisadas, como uma con-figuração que combina espaços fortemente estruturados, separados territo-rialmente por intervalos, e menos estruturados, ligados por redes múltiplas? .

vAs transformações recentes permitem-nos afirmar que há uma cres-

cente diminuição da oposição entre os interesses locacionais da indústria edos serviços no interior das cidades. As novas formas de industrializaçãosupõem outras relações entre os centros urbanos e os espaços que depen-dem de seus serviços 10. Os grandes conglomerados econômicos são admi-nistrados cada vez mais por seus interesses financeiros. O centro de atençãodos grupos que atuam no setor industrial já não é mais a fábrica, disseminadaem múltiplos espaços e formas de produção, mas a gestão produtiva, finan-ceira e de domínio tecnológico. A centralidade territorial do poder industrialaproxima-se mais e mais da centralidade que se produz pelo e para o setorcomercial e de serviços.

Essa conjugação de fatores viabilizou a instalação de shoppingcenters" , bípermcrcacos 12 e outros tipos de centros de atividades, na maiorparte das vezes, fora do tecido urbano, mas a ele integrado contextualmente,em função da localização estratégica desses equipamentos, junto às infra-estruturas de circulação, que lhes favorece o acesso!".

9 Essa idéia é apresentada por ROULLEAU-BERG ER (1989) em sua análise dasfronteiras políticas urbanas, a partir da realidade das metrópoles, mas pode, a nossover, ser estendida à análise das formas recentes de estruturação das cidades dediferentes tamanhos, onde aparecem, mesmo que em escalas diferentes, o fenômenosda continuidade-descontinuidade ou da estruturação-intervalo. A mesma dinãmica podeser analisada a partir do conceito de 'rugosidade' desenvolvido por Milton Santos.10 PINARD (1988, p.13).li Os primeiros shopping centers são estadunidenses e a proliferação desses equi-pamentos nesse país iniciou-se na década de 50. Na França essa fórmula apareceuna década seguinte e se expandiu mais entre 1971 e 1975. No Brasil, o fenômenotambém se originou na década de 60, embora os anos 80 tenham sido os de maioraparecimento desses centros. Para maior detalhamento sobre a evolução dessescentros nos EUA e na França ver KOEHL (1990) e, no Brasil, ver PINTAUDI (1989)12 Para conhecer as mudanças e repercussões da política de localização dessesequipamentos comerciais na França, ver BOUVERET-GAVER (1992).13 A ampliação da motorização torna as distâncias "menores". Não é ao acaso, queos grandes equipamentos comerciais e de serviços indicam o acesso a eles, pormeio de outdoors que informam a quantos minutos estamos desses centros. Essecálculo, é claro, toma como base a capacidade de deslocamento por veículosautomotores e não a pé.

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Sob essa perspectiva locacional, a produção territorial do urbanoextrapola a própria cidade, porque:

"... vemos acumular-se, ao longo dos grandes eixos rodoviários,por dezenas de quilômetros, uma sorte de ajuntamento urbanotranscomunal de residências, grandes conjuntos, zonas de ativi-dades, trevos, gigantescos mercas-tudo sem capacidade deintegração fora dos constrangimentos da circulação, máquina dedispersar para fora da sociedade e do centro."!"

Por outro lado, toda nova central idade produzida no interior da cidadeou fora dela, e neste caso redefinindo-a, produz um nível de polaridade, cons-titui um nó de fluxos e expressa um escolha da sociedade. Lévy assim serefere a essa questão:

"A cidade é um sistema cuja lógica repousa sobre a troca entreos diferentes tipos de valor (econômico, sociológico, político,psicológico) produzidos na sociedade. O equivalente geral es-pacial é aqui a centralidade, paga em diferentes valores eretransformada, em seguida, nesses valores não espaciais. Aconcorrência entre habitações, indústrias, escritórios, comérci-os ... é um exemplo de troca de valor da centralidade.Existem outras escolhas espaciais da sociedade que não a con-centração material: a) a dispersão em superfície com ligaçõesentre pontos asseguradas pela circulação material; b) a disper-são em superfície com ligações entre pontos asseguradas portelecomunicações (circulação imaterial). Essas diferentes esco-lhas podem coexistir na medida em que a relação custo-benefí-cio, em um momento histórico dado, não é necessariamente amesma para todos os tipos de trocas."15

VI

Essas opções não se produzem ao acaso, mas resultam de um conjun-to de decisões tomadas em diferentes esferas e escalas e aqui a discussãoda cidade como centro de gestão do território vem à tona.

Tomando, inicialmente, como referência as esferas das decisões é pos-sível observar algumas tendências:

1. As empresas industriais definem, cada vez mais, suas estratégiasde localização considerando-se a proximidade das áreas de maior densidade

14 BEAUCHARD (1993, p. 179).15 LÉVY (1986, p. 56).

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'técnico-científico-informacional', no que se refere às possibilidades de aces-so às redes de comunicação imateriais e no que diz respeito à proximidadedos centros de produção de conhecimento.

2. Essas mesmas empresas, assim como aquelas que vendem servi-ços sofisticados, priorizarão a potencialidade de ter à sua disposição umamão-de-obra qualificada e de estabelecer redes de cooperação e sinergia.

3. As empresas comerciais e as de serviços consideram mais freqüen-temente a proximidade dos grandes mercados consumidores concentradosnas grandes aglomerações e a escolha de localizações que possam ser es-tratégicas de sorte a atrair mercados consumidores de mais de uma cidade.

4. Esses interesses se combinam com aqueles de natureza fundiária eimobiliária, pois é possível readaptar antigas edificações, em termos de mo-dernização e da dotação de novos usos, bem como produzir novas edificaçõese, por intermédio delas, criar novos valores fundiários.

5. A política do poder público cria as condições necessárias paraque os interesses privados possam se efetivar, por meio de investimentosmaciços em expansão e modernização do sistema viário, implantação desistemas cada vez mais sofisticados de telecomunicações, ou mesmo, pormeio da cessão de áreas onde são instalados os grandes conjuntoshabitacionais.

Analisando-se as escalas dessas decisões, outros aspectos podem serdestacados:

1. Não há justaposição entre a escala das decisões e aquela das im-plantações e ações, pois tais decisões são tomadas nas sedes das empre-sas, progressivamente descoladas de seus territórios de produção e comer-cialização de bens e serviços.

2. Como as sedes das empresas precisam, ainda, dos benefícios dainserção em espaços metropolitanos de integração, se possível, articulados àescala global, as decisões sobre políticas de localização territorial, que inter-ferem em dinâmicas de estruturação Urbana de cidades de diferentes tama-nhos, são tomadas à distância destas, sem considerar, algumas vezes, o con-junto de outras localizações, herdadas de outros tempos e resultado de ou-tras conjugações de forças.

3. O poder público solicitado a atender aos interesses das grandescorporações também toma decisões acerca do volume de investimentos e desua localização contribuindo para uma territorialidade que se impõe, muitasvezes, a interesses de escala local e/ou regional.

4. As decisões tanto do poder público em nível federal ou estadualcomo da iniciativa privada consideram pouco a escala da cidade, ou aquelado município, onde se concentra o controle sobre a ocupação e o uso doterritório, quer no que diz respeito à legislação urbana, quer no que se refereàs políticas de criação e dotação de bens de consumo coletivo.

5. As localizações estratégicas dos equipamentos comerciais e de ser-viços, visando à aglutinação de um certo número de pequenos mercados

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consumidores (cidades médias e pequenas), que sozinhos não viabilizam umgrande investimento, trazem repercussões para as atividades econômicasdesses centros urbanos.

Essas tendências mostram, de uma forma geral, o aumento de rela-ções hierárquicas verticais entre as cidades, quando nos referimos à gestãodo território da cidade, num período em que se estabelecem progressivamen-te relações do tipo horizontal entre cidades, no que diz respeito ao domínio daprodução de bens e serviços.

O significado dessa constatação é que, se de um lado observamos adesconcentração territorial das atividades de produção e de comercializaçãode serviços, na escala da rede urbana, de outro observamos uma centraliza-ção das decisões referentes à gestão do território, via estratégias locacionaisdas grandes empresas.

Esse aparente paradoxo indica, de forma clara, a meu ver, uma recom-posição da rede urbana, que de fato significa a superação dessa configura-ção única, por meio da definição da uma estrutura de redes urbanas 16. Asrelações que se estabelecem no nível da produção e da comercialização debens e serviços não definem os mesmos fluxos do que aquelas referentes àgestão das empresas, o que inclui as decisões locacionais que se materiali-zam em diferentes escalas territoriais.

A central idade urbana pode, então, ser trabalhada cada vez mais pormeio da articulação entre suas duas escalas de expressão: a do espaço inter-no da cidade e a da expressão de suas relações com outros espaços.

Essa nova centralidade é múltipla e assim pode ser apreendida:

"Os nós das redes se multiplicam e se concentram no cruzamen-to de grandes malhas de comunicações, onde se desenvolvemos novos serviços: uma sociedade eletrônica no coração dasredes de redes, uma espécie de tribo dominante. A cidade doterceiro milênio começa nesses lugares de fortes densidades detrocas e se inventa a partir da atividade quaternária, do comérciosob todas as suas formas, e em particular da troca de bens rela-tivos à linguagem, à comunicação, à interpretação e à memória,sem esquecer a cultura do corpo e do espírito, em pouco tempo,a saúde. Esses novos lugares centrais e os serviços que lhesacompanham acarretam uma tensão entre as formas das socie-dades industrial e pós-industrial. Sob o impulso desses novos

\6 CAMAGNI (1993) destaca a diminuição progressiva da articulação das cidadesem redes hierárquicas e a tendência de organização das cidades em redes de coo-peração de diferentes tipos, o que produz zoneamentos multifuncionais e policêntricos,justamente em função dos múltiplos papéis desempenhados nas cidades articula-das em cooperação.

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nós urbanos, a ordem territorial cada vez mais dilatada ao alcan-ce das redes ou cada vez mais fechada, mais local, perde emenergia e não é mais portadora de unidade."?

VII

o desafio que se apresenta é o de pensar como podemos participar doprocesso de gestão do território da cidade, em um período em que as deter-minações de escala ampla interferem nesse processo.

Proponho-me a lançar para o debate algumas proposições que consi-dero relevantes, sem que o debate acerca dessa problemática possa, efetiva-mente, esgotar-se.

Em um período em que as decisões relativas à ordem territorial são,progressivamente, tomadas em escalas que não são, exatamente, aquelasàs quais se aplicam, é fundamental o reforço dos fóruns de debate local.

A luta pela ampliação dos espaços de discussão acerca das dinâmicasde produção e apropriação do território da cidade deve ser retomada, emboraela tenha saído um pouco da moda nos anos 90.

O encaminhamento da discussão deve considerar o caráter externo dealgumas decisões, para que se possam avaliar, sob um ângulo diferente da-quele dos anos 80, quais são as identidades e as diferenças entre os interes-ses dos atores sociais, do nível local, envolvidos no processo de produção eapropriação do território da cidade.

As alianças possíveis entre os interesses contraditórios que emergemno interior da sociedade civil e os da esfera do poder público municipal naescala do aglomerado urbano devem considerar a força dos agentes exter-nos, mas sobretudo a rapidez da mudança de seus interesses.

Essas alianças devem trabalhar para a construção de uma normativade uso e ocupação do território da cidade que contemple essas diferenças deinteresses e que seja, ao mesmo tempo, capaz de responder a cada novademanda de territorialização. Uma legislação rígida e detalhada, deixandoclaro juridicamente um conjunto de limitações para a produção e apropriaçãodo território da cidade, pode parecer um instrumento eficaz para garantir onão avanço de interesses econômicos, mas pode se constituir uma barreira àatração de investimentos econômicos em períodos de crise.

É importante garantir, potencialmente, esses investimentos, mas sal-vaguardar, minimamente, o território da cidade de decisões locacionais exter-nas que se impõem a interesses internos. Essa dinâmica não se constrói pormeio da legislação, mas de mecanismos de participação diferenciada da so-ciedade nas decisões e da intensificação do conhecimento sobre o conteúdoespacial e temporal de cada território urbano.

17 BEAUCHARD (1993, P. 185.6).

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