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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS - CEJURPS CURSO DE DIREITO A FUNDAMENTAÇÃO METAFÍSICA DA PROPRIEDADE NA FILOSOFIA DO DIREITO DE IMMANUEL KANT RAFAEL PADILHA DOS SANTOS Itajaí , 15 de maio de 2006

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

A FUNDAMENTAÇÃO METAFÍSICA DA PROPRIEDADE NA FILOSOFIA DO DIREITO DE IMMANUEL KANT

RAFAEL PADILHA DOS SANTOS

Itajaí , 15 de maio de 2006

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

A FUNDAMENTAÇÃO METAFÍSICA DA PROPRIEDADE NA FILOSOFIA DO DIREITO DE IMMANUEL KANT

RAFAEL PADILHA DOS SANTOS

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como

requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Professor MSc. Josemar Sidinei Soares

Itajaí , 15 de maio de 2006

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AGRADECIMENTO

O escrito que espraia por estas páginas é uma

pequena centelha de uma breve caminhada

acadêmica aninhada nas coisas do Espírito!

Chegado o momento do agradecimento, me vejo

em apuros, dado o tanto de gratidão que sinto por

vários! Todavia, por não pretender esgotar a lista,

e pela certeza de existirem outros meios de

expressar a gratidão, me faço tranqüilo!

Agradeço ao meu pai, Raimundo Francisco dos

Santos, à minha mãe, Maria Eurídice Padilha dos

Santos, e ao meu irmão Fernando Padilha dos

Santos, pelo suporte e prestimosidade!

Agradeço ao Grande Maestro, Acadêmico

Professor Mestre Josemar Sidinei Soares, pela

afinação, pela melodia, pelo sacro!

Agradeço ao Professor MSc. Onorato Jonas

Fagherazzi, filósofo da generosidade, da amizade

e do vinho!

Agradeço aos amigos e profissionais do escritório,

dr. Luiz Alberto Spengler, dr. Luciano Dib Simão e

dr. Jean Luiz Roepcke, por me ajudarem a romper

barreiras e abrir estradas!

Agradeço à Direção e Coordenação do curso de

Direito, nas pessoas do Professor MSc. José

Carlos Machado e do Professor MSc. Osmar Dinis

Facchini, pela concórdia e pela competência!

Agradeço aos Professores da Universidade do

Vale do Itajaí, pelas luzes do Direito, da própria

vivência e dos ensinamentos!

Agradeço à Professora MSc. Maria da Graça Melo

Ferracioli, que de tanta graça transborda alegria e

carisma; ao Professor Dr. Álvaro Borges de

Oliveira, por acreditar, oportunizar e apoiar; à

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Professora Dra. Cláudia Rosane Roesler, pela

índole e pela presença; à Professora MSc.

Fernanda de Salles Cavedon, pelo exemplo de

empenho e retidão. Àqueles outros Professores

que deixei de nomear, a certeza da admiração e

respeito!

Agradeço aos colegas, integrantes do Grupo de

Pesquisa Filosofia do Direito, por todo o projeto!

Cito as presenças do amigo Matheus Piazzon

Tagliari, do amigo Nelson Natalino Frizon, do

amigo Roberto Wöhlke, da amiga Fernanda Joos

Blanck, da amiga Thais Leite, da amiga Daniele

Cristine Bittencourt, da amiga Bruna Manuela

Adriano, da amiga Nakita Verônica Gheller, da

amiga Janara das Graças Pires Andreon, da

amiga Haydée Fernanda Loppnow.

Agradeço aos Professores da Universidade

Estadual de Londrina, Prof. Dr. Gilvan Luiz

Hansen, pelo brio, pelo esclarecimento e pelo

humor, e ao Prof. Dr. Aylton Barbieri Durão, pelo

obséquio e pelos ensinamentos!

Agradeço aos funcionários e servidores da

Universidade do Vale do Itajaí, pela disposição e

pela boa vontade!

Estendo os agradecimentos à terna passagem

daqueles por quem cá e acolá cruzei!

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DEDICATÓRIA

Dedico este singelo estudo à Grande presença na

minha vida acadêmica, que, empunhando a

batuta, moveu-a no ar e milagrou música, luz,

vida...

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de Direito, que assumo total responsabilidade pelo

aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o

Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí , 15 de maio de 2006.

Rafael Padilha dos Santos Graduando

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale

do Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Rafael Padilha dos Santos, sob o

título A Fundamentação da Metafísica da Propriedade na Filosofia do Direito de

Immanuel Kant, foi submetida em __/__/__ à banca examinadora composta pelos

seguintes professores: ___________________ (______), ___________________

(______), ___________________ (______), e aprovada com a nota ____

(________________).

Itajaí , ___ de maio de 2006

Josemar Sidinei Soares Orientador e Presidente da Banca

____________________ Coordenação da Monografia

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ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que o Autor considera estratégicas à

compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.

Aquisição Original

“Mas a aquisição original é a que não é derivada daquilo que é de outrem.”

(KANT, 2003a, p. 103).

Ciência Jurídica (jurisscientia)

“[A Ciência Jurídica significa] o conhecimento sistemático da Doutrina do Direito

Natural (ius naturae) [...]” (KANT, 2003a, p. 75).

Condição Jurídica

“Uma condição jurídica é aquela relação dos seres humanos entre si que encerra

as condições nas quais, exclusivamente, todos são capazes de fruir seus

Direitos.” (KANT, 2003a, p. 150).

Contrato Originário

“O ato pelo qual um povo se constitui num Estado é o contrato original. A se

expressar rigorosamente, o contrato original é somente a idéia desse ato, com

referência ao qual exclusivamente podemos pensar na legitimidade de um

Estado.” (KANT, 2003a, p. 158).

Direito

“O direito é [...] a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser

unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal da liberdade.” (KANT,

2003a, p. 76).

Direito Adquirido

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Direito adquirido é aquele que requer um ato estabelecendo um direito. (KANT,

2003a, p. 83).

Direito Inato

“Um direito inato é aquele que pertence a todos por natureza, independentemente

de qualquer ato que estabelecesse um direito;” (KANT, 2003a, p. 83).

Direito Natural

“[...] direito natural, o qual se apóia somente em princípios a priori [...]”. (KANT,

2003a, p. 83).

Direito Positivo

“[...] direito positivo (estatutório), o qual provém da vontade de um legislador.”

(KANT, 2003a, p. 83).

Direito Privado

Por Direito Privado Kant entende o Direito existente no estado de natureza, como

um Direito pré-estatal (KANT, 2003a, p. 88).

Direito Público

“O direito público é, portanto, um sistema de leis para um povo, isto é, uma

multidão de seres humanos, ou para uma multidão de povos que, porque se

afetam entre si, precisam de uma condição jurídica sob uma vontade que os una,

uma constituição (constitutio).” (KANT, 2003a, p. 153).

Direito Real ou Direito a uma Coisa (ius reale, ius in re)

“[...] um direito a uma coisa é um Direito ao uso privado de uma coisa da qual

estou de posse (original ou instituída) em comum com todos os outros [...].”

(KANT, 2003a, p. 106, grifo do autor).

Direito de Propriedade

“Pela expressão direito de propriedade (ius reale) deveria ser entendido não

apenas um direito a uma coisa (ius in re), mas também a soma de todas as leis

que têm a ver com coisas que são minhas ou tuas.” (KANT, 2003a, p. 106).

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Doutrina do Direito

“Denomina-se doutrina do direito (ius) a soma daquelas leis para as quais é

possível uma legislação externa.” (KANT, 2003a, p. 76).

Estado

“[...] o conjunto dos indivíduos numa condição jurídica, em relação aos seus

próprios membros, é chamado de Estado (civitas)”.(KANT, 2003a, p. 153).

Estado de Natureza

“Uma condição que não é jurídica, isto é, uma condição que não encerra justiça

distributiva, é chamada de estado de natureza (status naturalis).” (KANT, 2003a,

p. 150).

Estado Civil

“[...] uma sociedade sujeita à justiça distributiva.” (KANT, 2003a, p. 150).

Justiça

“Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de

acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de

cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei

universal.” (KANT, 2003a, p. 76).

Justiça Comutativa

“[...] justiça que tem validade entre as pessoas em seus intercâmbios mútuos

(iustitia commutativa) [...]” (KANT, 2003a, p. 141).

Justiça Distributiva

“[Justiça Distributiva significa] o que é formulado como direito.” (KANT, 2003a, p.

142).

Lei Permissiva

“[...] permissão, porém, [contém] um [fundamento] da contingência prática de

certas ações; por conseguinte uma lei permissiva conteria necessitação para uma

ação à qual ninguém pode ser forçado [...]” (KANT, 1989, p. 348).

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Liberdade Civil

“[...] o atributo de obedecer unicamente a lei à qual deu seu assentimento.”

(KANT, 2003a, p. 156).

Liberdade Externa

“[...] independência de ser constrangido pela escolha alheia [...]” (KANT, 2003a, p.

83).

Metafísica dos Costumes

“[A Metafísica dos Costumes contém] os princípios que determinam a priori e

tornam necessários o fazer e o não fazer.” (KANT, 2001, A841/ B869, p. 663, grifo

do autor).

Objeto de minha Escolha

“Mas um objeto de minha escolha é aquele para o qual disponho de capacidade

física de usar como me agrade, aquele cujo uso está em meu poder (potentia).”

(KANT, 2003a, p. 92).

Posse

“A condição subjetiva de qualquer uso possível é a posse.” (KANT, 2003a, p. 91).

Posse em Comum

“A posse de todos os seres humanos sobre a Terra que precede quaisquer atos

de sua parte que estabeleceriam direitos (posse constituída pela própria natureza)

é uma posse original em comum (communio primaeva), que jamais pode ser

provada.” (KANT, 2003a, p. 107).

Posse Física

A Posse Física, também chamada de sensível, ou empírica, ou fenomênica,

implica uma mera relação física do indivíduo com a coisa, em virtude de ele estar

em contato direto e empírico com o objeto.

Posse Jurídica

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“[...] a posse será apenas uma relação de uma pessoa com pessoas, todas elas

obrigadas, no que respeita ao uso da coisa, pela vontade da primeira pessoa, na

medida em que sua vontade se conforma ao axioma da liberdade externa, com o

postulado de sua capacidade de empregar objetos externos de escolha, e com a

legislação da vontade de todos pensada como unida a priori. Isto, então, é posse

inteligível de uma coisa, ou seja, posse por mero direito, ainda que o objeto (a

coisa que possuo) seja um objeto sensível.” (KANT, 2003a, p. 113).

Posse Jurídica Definitiva

“[...] posse encontrada numa condição civil real [...]” (KANT, 2003, p. 102).

Posse Provisoriamente Jurídica

“A posse em antecipação e preparação para a condição civil, que pode ser

baseada somente numa lei de uma vontade comum, posse esta que, por

conseguinte, se harmoniza com a possibilidade de uma tal condição, é posse

provisoriamente jurídica.” (KANT, 2003a, p. 102).

Postulado

“[...] uma proposição teórica mas indemonstrável enquanto tal, na medida em que

ele é inseparavelmente inerente a uma lei prática que vale incondicionalmente a

priori.” (KANT, 2002a, p. 198).

Princípios Práticos a priori

“[...] leis de uma causalidade da razão pura para determinação da escolha,

independentemente de quaisquer condições empíricas (da sensibilidade em geral)

e revelam uma vontade pura em nós na qual conceitos e leis morais têm sua

fonte.” (KANT, 2003a, p. 64).

Propriedade

“[Propriedade significa que] alguma coisa externa é minha se eu fosse lesado ao

ser perturbado no meu uso dela, ainda que eu não esteja de posse dela (sem me

apoderar do objeto).” (KANT, 2003a, p. 95, grifo do autor).

Vontade Unida do Povo

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“[Vontade Unida do Povo significa a] união da escolha de todos capazes de

empreender relações práticas mútuas [...]”. (KANT, 2003a, p. 108).

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SUMÁRIO

RESUMO .............................................................................................................XV

INTRODUÇÃO......................................................................................................16

CAPÍTULO 1.........................................................................................................20

A DOUTRINA METAFÍSICA DO DIREITO NA FILOSOFIA PRÁTICA DE IMMANUEL KANT................................................................................................20 1.1 A METAFÍSICA DOS COSTUMES ........................................................................... 20 1.2 A DOUTRINA DO DIREITO ...................................................................................... 24 1.2.1 A FACULDADE DE DIREITO E A FACULDADE FILOSÓFICA .............................................................. 26 1.2.2 A JUSTIÇA PARA O JURISTA ....................................................................................................... 31 1.2.3 O CONCEITO FUNDAMENTAL DE JUSTIÇA: A LIBERDADE EXTERNA ............................................... 32 1.2.4 O CONCEITO DE DIREITO ............................................................................................................ 34 1.2.4.1 Os elementos constitutivos do conceito de Direito.............................37 1.2.5 O DIREITO EM SENTIDO ESTRITO................................................................................................. 39

CAPÍTULO 2.........................................................................................................42

A DIVISÃO DOS DIREITOS .................................................................................42 2.1 A SISTEMÁTICA DA DOUTRINA DO DIREITO ....................................................... 42 2.2 DIVISÃO DOS DIREITOS ENQUANTO PRECEITOS SISTEMÁTICOS: O DIREITO NATURAL E O DIREITO POSITIVO............................................................................... 43 2.2.1 AS ESPÉCIES DE JUSTIÇA PERTENCENTES AO DIREITO NATURAL: JUSTIÇA COMUTATIVA E JUSTIÇA DISTRIBUTIVA..................................................................................................................................... 46 2.3 A DIVISÃO DOS DIREITOS ENQUANTO FUNDAMENTO LEGAL RELATIVAMENTE AOS OUTROS: DIREITO INATO E DIREITO ADQUIRIDO............. 50 2.4 O DIREITO PRIVADO E O DIREITO PÚBLICO........................................................ 53

CAPÍTULO 3.........................................................................................................57

A POSSIBILIDADE DE SE FUNDAMENTAR A CATEGORIA JURÍDICA ..........57 3.1 A CARACTERIZAÇÃO DO ESTADO DE NATUREZA............................................. 57 3.2 A PASSAGEM DO ESTADO DE NATUREZA PARA O ESTADO CIVIL: O CONTRATO CIVIL.......................................................................................................... 60 3.3 O PRESSUPOSTO DA POSSE NO ESTADO DE NATUREZA................................ 63 3.4 ESCLARECIMENTOS SOBRE A PROPRIEDADE: O MEU E TEU EXTERNOS, A POSSE E A DISTINÇÃO ENTRE POSSE EMPÍRICA E POSSE JURÍDICA.................. 65 3.5 O POSTULADO DA RAZÃO PRÁTICA.................................................................... 67 3.5.1 O POSTULADO DA RAZÃO PRÁTICA E SUA COMPATIBILIDADE COM A LIBERDADE EXTERNA E O DIREITO ............................................................................................................................................. 69 3.5.2 O POSTULADO DA RAZÃO PRÁTICA COMO LEI PERMISSIVA ........................................................... 71 3.5.3 A LEI PERMISSIVA NA OBRA À PAZ PERPÉTUA ............................................................................ 72 3.5.4 A LEI PERMISSIVA NA OBRA A METAFÍSICA DOS COSTUMES E O PAPEL DO POSTULADO DA RAZÃO PRÁTICA NO ESTADO DE NATUREZA ..................................................................................................... 75 3.6 A DISTINÇÃO ENTRE POSSE EMPÍRICA E POSSE JURÍDICA A PARTIR DOS JUÍZOS ANALÍTICOS E SINTÉTICOS A PRIORI .......................................................... 78

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3.6.1 OS JUÍZOS ANALÍTICOS E SINTÉTICOS NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA ............................................. 79 3.6.2 O DIREITO À POSSE EMPÍRICA: JUÍZO ANALÍTICO A PRIORI ........................................................... 81 3.6.3 DA POSSIBILIDADE DA POSSE JURÍDICA: JUÍZO SINTÉTICO A PRIORI ............................................. 82

CAPÍTULO 4.........................................................................................................85

A FUNDAMENTAÇÃO DA PROPRIEDADE........................................................85 4.1 A DIVISÃO DA AQUISIÇÃO DE ALGUMA COISA EXTERNA QUE É MINHA OU TUA ................................................................................................................................ 85 4.2 OS PASSOS PARA A FUNDAMENTAÇÃO DA PROPRIEDADE............................ 88 4.2.1 O DIREITO REAL COMO UMA RELAÇÃO ENTRE PESSOAS: A REJEIÇÃO DA TEORIA DO TRABALHO PARA FUNDAMENTAR A PROPRIEDADE................................................................................................. 89 4.2.2 A POSSE EM COMUM ................................................................................................................. 95 4.2.3 DA PASSAGEM DA POSSE EM COMUM PARA A POSSE PRIVADA: A AQUISIÇÃO ORIGINAL E A REJEIÇÃO DA TEORIA DA OCUPAÇÃO PARA FUNDAMENTAR A PROPRIEDADE ......................................................... 99 4.3 A FUNDAMENTAÇÃO DA PROPRIEDADE: A VONTADE UNIDA DO POVO ...... 106 4.4 A DEDUÇÃO ANALÍTICA DA PROPRIEDADE COMO PROVA DOS JUÍZOS SINTÉTICOS A PRIORI SOBRE O DIREITO ............................................................... 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................116

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS............................................................119

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RESUMO

A Propriedade é categoria pertencente ao Direito Privado,

sendo concebido por Kant como um Direito Natural e Adquirido. Como um Direito

Natural, a Propriedade Privada é um Direito que se apóia somente em princípios a

priori, e, enquanto Direito Adquirido, depende de um ato jurídico para ser

estabelecida como Direito. Este ato jurídico exige a idéia de uma Vontade Unida

do Povo, a única capaz de garantir uma obrigação efetiva, fornecendo assim a

condição para poder observar-se uma Posse Jurídica definitiva. Na presente

pesquisa, objetiva-se, partindo da filosofia prática de Immanuel Kant, estudar a

fundamentação filosófica da Propriedade. O método utilizado é o indutivo, já que

parte do particular, pela abordagem sobre a Metafísica dos Costumes e a

Doutrina do Direito, passando pela divisão dos Direitos que sistematiza a obra A

Metafísica dos Costumes, e, ainda, pela cogitação da possibilidade de pensar o

meu e teu externos desde o estado de natureza, montando os entendimentos que

culminam, no geral, com a formulação do conceito de Propriedade como um juízo

sintético a priori bem como a apresentação dos passos para a fundamentação da

Propriedade e a prova do juízo sintético a priori sobre o Direito. Os entendimentos

são construídos pela pesquisa bibliográfica. O estudo da fundamentação da

Propriedade a partir do pensamento kantiano, permite constatar que os juízos

sintéticos a priori são aptos a demonstrar a realidade objetiva prática da Posse

Jurídica. Referido juízo apresenta a posse de um objeto desvinculada de

elementos empíricos, como uma ligação inteligível do sujeito com o objeto

possuído. Propõe uma ampliação do conhecimento a partir da Posse Física, ao

expurgar desta última tudo que há de empírico, o que permite pensar a posse de

um objeto ainda que o sujeito não esteja na Posse Física dele. Por fim, importante

salientar que a Teoria da Propriedade kantiana assimila a posse definitiva como

possível apenas na condição civil, sob a Vontade Unida de Todos, concebendo no

estado de natureza apenas uma posse provisória, com presunção jurídica de ser

convertida em definitiva. Deste modo, faz como fundamento da Propriedade a

Vontade Unida do Povo.

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INTRODUÇÃO

Não sem arroubo ao pensamento filosófico mais refinado, se

abre a Teoria da Propriedade de Immanuel Kant, por trazer entendimentos

imprescindíveis para se decifrar sua filosofia do Direito, política e da história; por

desvelar a razão prática jurídica e as categorias jurídicas mais fundamentais; por

problematizar e responder pontos primaciais à filosofia do Direito; por conceder os

pilares de superação ao antigo Direito Natural acrítico; além de fornecer as bases

em que se ergue todo o sistema jurídico kantiano.

Na obra A Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant,

publicada em 1797, época em que o filósofo de Köenigsberg vive sua maturidade,

a Teoria da Propriedade se revela como o momento mais autêntico da obra. É

abordada não como uma filosofia moral do iluminismo, mas como uma Ciência

Jurídica.

Neste norte, a presente Monografia tem como objeto a

filosofia jurídica de Immanuel Kant, no tocante ao Direito Privado, na parte em que

é tratado sobre a Propriedade e seu fundamento. É uma temática que possui

ampla discussão na atualidade, tendo em vista que a filosofia jurídica de

Immanuel Kant representa o ancoradouro às teorias e pensamentos de maior

relevância que emergiram na contemporaneidade.

Para a presente monografia foram levantadas as seguintes

hipóteses:

� Desde o estado de natureza seria possível admitir-se objetos

externos do arbítrio que são meus e teus.

� O postulado da razão prática seria uma lei permissiva que

explicaria a possibilidade de se possuir um objeto como meu e

teu no estado de natureza.

� A fundamentação da Propriedade se daria a partir da idéia da

Vontade Unida do Povo.

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� Os juízos sintéticos a priori fariam presença na filosofia jurídica de

Immanuel Kant, o que poderia ser observado com clareza a

partir das proposições concernentes à Propriedade.

O objetivo da análise é estudar os fundamentos da

Propriedade apresentados por Immanuel Kant em sua Teoria da Propriedade,

seguindo pelo lastro do sistema filosófico racional elaborado por este filósofo.

Deste modo, pauta-se pela razão prática, a qual dá valor incondicional,

necessário e universal a seus princípios e conceitos práticos, revelando

enunciados concernentes à Propriedade que se caracterizam pela exacerbada

riqueza conceitual e pela sustentação principiológica. Neste vértice, o objetivo se

estende à apresentação da possibilidade de possuir um objeto externo do arbítrio

mediante formulação de um juízo sintético a priori, bem como à prova de juízos

sintéticos a priori sobre o Direito.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase

de Investigação foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados

o Método Cartesiano, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente

Monografia é composto na base lógica Indutiva. Nas diversas fases da Pesquisa,

foram acionadas as Técnicas, do Referente, da Categoria, do Conceito

Operacional e da Pesquisa Bibliográfica.

No corpo da pesquisa, principia-se, no Capítulo 1,

apresentando a base onde está assentada a Doutrina Metafísica do Direito de

Immanuel Kant, traçando o panorama do pensamento jurídico deste filósofo

alemão. Nesta senda, é abordado sobre o plano da obra A Metafísica dos

Costumes, inclusive seus precedentes dentro da filosofia de Kant e as influências

de outros filósofos para sua elaboração. O enfoque é convergido à Doutrina do

Direito de Immanuel Kant, o que é realizado, com o escopo de contextualizar os

entendimentos, a distinção entre a Doutrina do Direito Positivo - própria do jurista-

e Doutrina do Direito Natural - que se destina o filósofo. Partindo-se desta

distinção, o estudo é delimitado na Doutrina do Direito Natural. É neste Capítulo,

outrossim, que as categorias Direito, Justiça e Liberdade Externa são trabalhadas,

eis que basais à Ciência Jurídica.

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No Capítulo 2, tratando da divisão dos Direitos apresentados

na Doutrina do Direito, parte-se dos critérios empregados por Kant para efetuar

referida divisão. Nesta oportunidade, é apresentado que a divisão dos Direitos se

dá: a) como preceitos sistemáticos, em Direito Natural e Direito Positivo; b) como

fundamento legal relativamente aos outros, em Direito Inato e Direito Adquirido.

Cabe notar que a divisão em Direito Privado e Direito Público aparece como uma

divisão suprema do Direito Natural. Dentro do pensamento kantiano, a divisão em

Direito Privado e Direito Público requer a admissão do estado de natureza, e, por

isso, neste Capítulo é plantada a questão se é possível alguém ter Direitos no

estado de natureza.

No Capítulo 3, tratando de averiguar como Kant pensa a

posse no estado de natureza, é exposto, primeiro, como é entendido o estado de

natureza e o papel do Contrato Originário para legitimar o Estado e instaurar o

estado civil. Nesta ocasião, é apontado que o estado civil apenas recobre de

garantia as leis referentes ao meu e teu externos, sem estabelecer ou determinar

novos Direitos a respeito. Por isso, já no estado de natureza é preciso admitir a

possibilidade de objetos externos que são meus e teus. O estudo se dirige, então,

à apresentação do postulado da razão prática enquanto uma lei permissiva, por

permitir que objetos da escolha sejam possuídos no estado de natureza,

autorizando uma Posse Jurídica provisória, e por impor a obrigação de que a

aquisição original deve ser respeitada e, outrossim, consentir com a dedução do

dever de saída do estado de natureza e o ingresso no estado civil. Neste mesmo

Capítulo, é abordado sobre a distinção entre Posse Física e Posse Jurídica, onde

é analisado o juízo concernente ao Direito à Posse Física, como analítico a priori,

e o juízo sobre a possibilidade de uma Posse Jurídica, como sintético a priori.

No Capítulo 4, é tracejado o desenrolar do pensamento

kantiano até a fundamentação da Propriedade. Por isso, é iniciado com a

definição do Direito Real enquanto uma relação entre pessoas; depois, é

apresentada referida definição com o suporte na idéia de uma Posse em Comum,

a única que permite pensar que o Direito a uma Coisa não se trata da relação de

uma pessoa com um objeto, mas com todas as demais pessoas; neste ensejo,

ainda, é colocada a passagem da Posse em Comum para uma posse privada,

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onde aproveita-se para abordar sobre a aquisição original; por fim, é exposto

sobre a Vontade Unida do Povo, enquanto a idéia que funda a Propriedade e o

próprio Direito de Propriedade. Como desfecho do Capítulo, em poder dos

conceitos até então elaborados, é analisada a prova de um juízo sintético a priori

sobre o Direito.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos

destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões

sobre a fundamentação metafísica da Propriedade no pensamento de Immanuel

Kant.

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CAPÍTULO 1

A DOUTRINA METAFÍSICA DO DIREITO NA FILOSOFIA PRÁTICA DE IMMANUEL KANT

1.1 A METAFÍSICA DOS COSTUMES

Immanuel Kant, em sua obra A Metafísica dos Costumes

(Die Metaphysik der Sitten), publicada em 1797, apresenta um sistema metafísico

da fundamentação do Direito pela liberdade, como seguimento à arquitetônica da

razão prática encetada nas suas obras Fundamentação da Metafísica dos

Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten), publicada em 1785, e Crítica

da Razão Prática (Kritik der Praktischen Vernunft), publicada em 17881.

A Crítica da Razão Prática, ao oferecer uma crítica do uso

prático da razão, serve de propedêutica à obra A Metafísica dos Costumes.

Ambas são correlatas à filosofia prática e, enquanto a Crítica investiga a

faculdade da razão e proporciona conceitos básicos formados pelo esforço

investigativo da faculdade prática da razão – o exercício crítico-, a Metafísica

recepciona tais conceitos, inserindo-os em um sistema dos princípios práticos a

priori. Disto segue que A Metafísica dos Costumes tem, como um de seus

objetos, trabalhar os conceitos básicos já desenvolvidos na obra Crítica da Razão

Prática.

Para a compreensão do significado da categoria Metafísica

dos Costumes, que serve de título à obra, é interessante iniciar a análise pela

acepção dos vernáculos “Metafísica” e “Costume”. No penúltimo capítulo da

Crítica da Razão Pura, ao versar sobre A Arquitetônica da Razão Pura, Kant

(2001, A 841/ B 869, p. 662-663) expõe que a palavra Metafísica, em seu sentido

geral, significa: “[...] todo o sistema da razão pura (ciência), todo o conhecimento

1 Em atenção à característica sistemática da filosofia transcendental kantiana, é possível contemplar que a A Metafísica dos Costumes recepciona os conceitos já elaborados pelo filósofo alemão na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática.

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filosófico (tanto verdadeiro como aparente) derivado da razão pura, em

encadeamento sistemático [...]”. Referido encadeamento sistemático pode ser

dividido de acordo com os usos da razão, se especulativo ou prático. No caso do

emprego da razão especulativa, tem-se a Metafísica da Natureza2, e, no caso do

emprego da razão prática, tem-se a Metafísica dos Costumes3.

A palavra Costume, do alemão Sitten, corresponde à palavra

latina mores, e, inclusive, à palavra grega ethos, das quais defluem tanto a moral

quanto a ética, significando maneiras e modos de vida regrados, pelos quais há

determinado proceder da conduta humana. Explica Bobbio (1997, p. 50):

Como ‘costumes’ em geral Kant entende toda aquela

complexidade de regras de conduta ou de lei (no sentido mais

geral da palavra) que disciplinam a ação do homem como ser

livre.

Partindo destes dois conceitos (Metafísica e Costume),

pode-se verificar que Metafísica dos Costumes significa o sistema dos princípios

práticos a priori abstraídos pela razão humana, e que são naturalmente seguidos

na realização das ações racionais. Referindo-se à Metafísica dos Costumes,

esclarece Kant (2001, A841/ B869, p. 663, grifo do autor) que ela contém: “[...] os

princípios que determinam a priori e tornam necessários o fazer e o não fazer.”

Sua importância é ditada por Kant (2003a, p. 16) ao explicar:

Uma Metafísica dos Costumes é, pois, indispensavelmente

necessária não só por motivos de ordem especulativa, para

investigar a origem dos princípios práticos que residem a priori na

nossa razão, mas também porque os próprios costumes ficam

sujeitos a toda a espécie de perversão, enquanto falte esse fio

condutor, norma suprema de seu exato julgamento.

2 A Metafísica da Natureza é conceituada por Kant (2001, A 841/ B 869, p. 663) ao afirmar que contém “[...] os princípios da razão, derivados de simples conceitos (portanto com exclusão da matemática), relativos ao conhecimento teórico de todas as coisas;” Kant possui uma obra intitulada A Metafísica da Natureza.

3 Ao expurgar o que é empírico, enquanto exigência da própria Metafísica, Kant pretende verificar de quanto é capaz a razão pura, e de quais fontes ela mesma retira seu ensinamento a priori.

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É de se ressaltar que, antes de iniciar a elaboração da obra

A Metafísica dos Costumes, Kant confeccionou alguns escritos, de filosofia da

história, política e da religião, que fornecem elementos anunciativos de sua

filosofia do Direito. São os textos a seguir alinhavados: a) Idéia de uma história

universal de um ponto de vista cosmopolita (Idee zu einer Allgemeinen

Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht), de 1784, texto que serve de marco inicial

à filosofia da história alemã, no qual Kant assinala que é possível perceber um

propósito da natureza atuante como um fio condutor que promove a progressiva

ingerência das manifestações da liberdade da vontade na espécie humana, como

que prenunciando a possibilidade da determinação histórica da ação humana por

leis naturais universais; b) Resposta à pergunta: O que é Esclarecimento?

(Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?), de 1784, onde Kant explana

sobre a liberdade de pluma e se pauta pelo lema: Sapere aude!, significando:

“Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento [...]” (KANT, 1784b, p.

11), o que remete à idéia de que o público deve se submeter apenas à orientação

da própria razão, ao invés de procurar sempre por um tutor, como ocorre, por

exemplo, ao ser buscada a tutela da religião ou do Estado; c) A religião dentro

dos limites da simples razão (Die Religion innerhalb der Grezen der blossen

Vernunft), de 1793, que corresponde a uma teologia filosófica, onde Kant fala de

uma moralidade suprema, de uma providência que garante o progresso moral da

espécie humana, o que é verificado pelo próprio aumento da legalidade nas

relações externas, eis que o dever cumprido por uma coerção externa consente

com que o homem, gradualmente, se eduque ao cumprimento da lei moral,

evoluindo em direção à moralidade; d) Sobre a expressão corrente: isto pode ser

correto na teoria, mas nada vale na prática (Über den gemeinspruch: das mag in

der theorie. Richtig sein, taugt aber nicht für die praxis), de 1793, é um texto onde

são trabalhados diversos temas pertinentes ao universo jurídico, como, por

exemplo, sobre o Direito Público e Privado, o Direito de Resistência, a coação, a

Liberdade Externa; e) À Paz Perpétua (Zum Ewigen Frieden), de 1795, onde são

apresentadas as condições para a Paz, sendo configuradas instituições políticas e

apresentados importantes conceitos, como os de Constituição Republicana e

Liberdade Exterior, além de fornecer elevada contribuição para a regularização

das relações jurídicas internacionais, ao falar do Direito das Gentes e do Direito

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Cosmopolita; f) Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade (Über

ein vermeintes Recht aus Menschenlibe zu lügen), de 1797, onde Kant tece

comentários sobre o Direito enquanto regulador da política.

Todavia, não se pode perder de vista que o arcabouço

conceitual do texto A Metafísica dos Costumes exige o retorno às obras: Crítica

da Razão Pura (Kritik der Reinen Vernunft), de 1781; Fundamentação da

Metafísica dos Costumes e Crítica da Razão Prática. Na Crítica da Razão Pura já

é possível verificar um traço inaugural de sua filosofia do Direito, quando Kant

(2001, A316/ B373, p. 310-311, grifo do autor) expõe:

Uma constituição, que tenha por finalidade a máxima liberdade

humana, segundo leis que permitam que a liberdade de cada um

possa coexistir com a de todos os outros (não uma constituição da

maior felicidade possível, pois esta será a natural conseqüência),

é pelo menos uma idéia necessária, que deverá servir de

fundamento não só a todo o primeiro projecto de constituição

política, mas também a todas as leis, e na qual, inicialmente, se

deverá abstrair dos obstáculos presentes, que talvez provenham

menos da inelutável natureza humana do que de terem sido

descuradas as idéias autênticas em matéria de legislação.

Ao escrever a obra A Metafísica dos Costumes, Kant a

dividiu em duas partes, uma que trata dos Princípios Metafísicos da Doutrina do

Direito (Metaphysische Anfansgründe Rechtslehre) e, a outra, que versa sobre os

Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude (Metaphysische Anfangsgründe der

Tugendlehre). Leciona Pascal (1985, p. 146): “O ponto de vista do direito refere-

se ao acordo da ação com a lei, ou seja, à legalidade; o ponto de vista da virtude

diz respeito ao acordo do móvel com a lei, isto é, à moralidade propriamente dita.”

No presente trabalho, o enfoque incide, mormente, sobre a

Doutrina do Direito (Rechtslehre), correspondente à primeira parte da obra A

Metafísica dos Costumes. Com os Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito,

Kant desenvolve uma fundamentação racional do Direito para, assim, expor os

produtos que a razão pura pode, por si só, apresentar na ceara jurídica. Por

conseguinte, a Doutrina do Direito trata do uso prático da razão pura na matéria

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do Direito, daquilo que é prático segundo as leis da liberdade, constituindo um

sistema de princípios a priori do Direito.

No conteúdo de sua Rechtslehre, pode-se verificar algumas

influências de autores clássicos, dos quais se destaca Platão (427-348 a.C.),

Aristóteles (384-322 a.C.), Hugo Grotius (1583-1645), Samuel Pufendorf (1632-

1694), Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704), David Hume

(1711-1776), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Detendo-se em tal conteúdo,

é de se reconhecer que a Rechtslehre possui um texto deveras denso e pouco

navegável, comportando um texto sem arestas e exacerbadamente técnico, com

elevado grau de dificuldade, exigindo do leitor concentração e o exercício analítico

da intelecção. No entanto, uma vez alcançado o condão proposto pelo filósofo de

Königsberg, depara-se com um texto original, de imensas contribuições ao

pensamento filosófico e que, com boas razões, pode ser considerado, se não o

maior, um dos maiores clássicos da filosofia do Direito.

1.2 A DOUTRINA DO DIREITO

Como já exposto, é a Doutrina do Direito a sede em que

Kant elabora seu sistema de fundamentação racional para o Direito, abarcando os

princípios e conceitos a priori concernentes à esfera jurídica. Nestes termos, é na

Doutrina do Direito onde se encontra, por exemplo, o conceito da categoria

Direito, que não pode ser alcançado de outra forma senão a partir da razão, a

única que pode conceder validade universal ao conceito, evitando, desta forma,

cair na tautologia a que remeteria uma concepção empírica da palavra.

O conceito de Doutrina do Direito é exposto por Kant (2003a,

p. 76) ao afirmar: “Denomina-se Doutrina do Direito (ius) a soma daquelas leis

para as quais é possível uma legislação externa.” Para esmiuçar este conceito, é

necessário decompô-lo partindo-se da seguinte interrogação: Quais seriam estas

leis, mencionadas por Kant, para as quais é possível uma legislação externa?

Respondendo: são as leis externas (leges externae) em geral, que correspondem

a leis obrigatórias para as quais existe a possibilidade de existir uma legislação

externa (KANT, 2003a, p. 67).

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Dependendo do tipo de reconhecimento dado à obrigação,

as leis externas podem ser: leis naturais ou leis positivas. As leis externas

naturais são aquelas reconhecidas como obrigatórias a priori, por preverem

princípios práticos a priori; já as leis externas positivas somente obrigam na

medida em que estão previstas em uma legislação externa positivada (KANT,

2003a, p. 67).

Deste modo, a Doutrina do Direito engloba tanto as leis

naturais quanto as leis positivas. Quando estas leis estão prescritas em uma

legislação externa, tem-se a Doutrina do Direito Positivo. Já a Doutrina do Direito

Natural, corresponde à Rechtslehre, desenvolvida na obra A Metafísica dos

Costumes, pela qual são perseguidos os princípios a priori da razão prática

voltados ao Direito. É quando tem-se a Ciência Jurídica (jurisscientia), a qual não

versa sobre o conhecimento das leis positivas ou à sua aplicação, mas, ao invés,

significa “[...] o conhecimento sistemático da Doutrina do Direito Natural (ius

naturae) [...]” (KANT, 2003a, p. 75).

Na Doutrina do Direito Natural, o conceito de Direito é

concebido como “[...] um conceito puro que se baseia na prática (aplicação a

casos que surgem na experiência) [...]” (KANT, 2003a, p. 51). No que compete ao

Direito, a Doutrina do Direito se volta tão somente a apresentação de princípios e

conceitos, sem tocar em sua aplicação aos casos da experiência. Verifica-se,

assim, que Kant não chama para si a competência de deduzir o Direito Positivo a

partir de fundamentos racionais. Se volta à Doutrina do Direito Natural, onde os

limites estão circunscritos à fundamentação racional de conceitos e princípios de

modo que, se nela eventualmente aparecem elementos empíricos, não é com

intuito de fundamentação do Direito, mas apenas para delimitar a esfera de

aplicação do Direito.

Segue-se, então, que sua Doutrina do Direito Natural não

corresponde a um Sistema Metafísico do Direito, posto que, se assim fosse, como

um sistema racional, procuraria efetuar todas as divisões possíveis, ao que teria

de incluir os casos da experiência sobre os quais o Direito se aplica. Contudo,

seria um empreendimento impossível, já que não é possível reduzir todos os

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casos empíricos a uma divisão completa. Além disso, no caso de tal

empreendimento ser tentado, não poder-se-ia admitir a integração de conceitos

empíricos ao sistema. Por isso, como não é possível o sistema mesmo, mas

apenas uma aproximação dele, Kant prefere denominar a primeira parte da obra

A Metafísica dos Costumes de Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito

(KANT, 2003a, p. 52).

Importante, agora, balizar o terreno pertencente aos

Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito, o que é realizado a partir da

distinção entre Doutrina do Direito Positivo e Doutrina do Direito Natural, distinção

esta que será elaborada no item seguinte, partindo da abordagem sobre a

faculdade de Direito e da faculdade filosófica.

1.2.1 A faculdade de Direito e a faculdade filosófica

A obra A Metafísica dos Costumes é o exemplo de um

trabalho que foi elaborado a partir do exercício de uma faculdade filosófica

racional, pois expõe um sistema racional do Direito, apresentando conceitos e

princípios partindo de vertentes puramente intelectuais. Quanto à faculdade de

Direito, não se ancora na razão, mas na autoridade do governo.

Em relação à faculdade de Direito, a faculdade filosófica

serve para desenvolvê-la e lhe ser útil, de modo que a atividade do jurista não

está livre de exame filosófico. Verifica-se, assim, que o jurista e o filósofo

possuem, cada qual, uma esfera de atuação que os distingue, mas uma totalidade

que os aproxima.

O jurista erudito (Iurisconsultus) é o conhecedor da Doutrina

do Direito Positivo, ou seja, da soma das leis positivas. Quando o versado em

Direito (Iurisconsultus), além de conhecer as leis positivas também sabe sobre

sua aplicação aos casos da experiência, denomina-se jurisperito (Iurisperitus), e

tal conhecimento do jurisperito é a jurisprudência (jurisprudentia) (KANT, 2003a,

p. 75).

O jurista, em sua profissão, deve se pautar no que está

legalmente prescrito, não lhe incumbindo apresentar a demonstração racional da

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sua verdade ou mesmo procurar fundamentar racionalmente uma antinomia da lei

com a razão. Por isso, no caso do jurisconsulto e do jurisperito, o critério da

Justiça não assenta na razão, mas na lei, como ensina Kant (1993, p. 27):

O jurista erudito não busca as leis que garantem o meu e o teu

(se, como deve, proceder como funcionário do governo) na sua

razão, mas no código oficialmente promulgado e sancionado pela

autoridade suprema.

Assim, ao jurista não é dado fazer o uso público de sua

razão, por não lhe ser consentido contradizer a legislação civil. O uso público da

razão significa: “[...] aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz perante o

grande público do mundo letrado.” (KANT, 2003b, p. 13, grifo do autor). Com

efeito, não é facultado ao jurista exercer o raciocínio público, mas apenas fazer

cumprir o comando legal, que corresponde ao uso privado da razão, conceituado

por Kant (2003b, p. 13, grifo do autor) ao expor: “Chamo uso privado àquele que

alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele

confiado.”

Deste modo, a profissão do jurista exige que sempre se

oriente pelas leis oficialmente promulgadas, para que as finalidades públicas não

sejam destruídas. Se o jurista procurasse contestar e raciocinar contra o governo,

estaria o desrespeitando e promovendo a subversão do povo, conforme aduz

Kant (1993, p. 33): “[...] os funcionários da Justiça, se cedessem à tentação de

dirigir ao povo as suas objecções e dúvidas contra a legislação [...] civil, instigá-lo-

iam assim contra o governo.”

Isto não significa que a pessoa do jurista não pode ser

esclarecida, pois existe a possibilidade do campo da liberdade subjetiva do

conhecedor do Direito aumentar, o que ocorre quando ele se coloca na posição

de cidadão de todo o mundo, ou seja, quando não está no exercício da sua

profissão. Comenta Heck (2000, p. 54): “Para o filósofo crítico, o jurista só é

esclarecido quando faz uso público de seu entendimento, na contramão de toda e

qualquer doutrinação, voltado à liberdade pública e não à mera tutela do povo.”

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Por conseguinte, é possível ao jurista fazer o uso público de

sua razão sem que sofra conseqüências nas suas atividades como membro

passivo, o que ocorre quando se coloca na posição de cidadão-jurista, ou seja,

quando está à parte de suas atividades profissionais, passando a dirigir a palavra

ao público letrado, publicando textos no sentido de apresentar seus

entendimentos, exercendo, então, a faculdade filosófica.

Deste modo, precavendo-se de uma leitura precipitada, é

necessário firmar que Kant não propõe uma obediência cega e perene dos

juristas ou das pessoas em geral ao Estado, mas, ao invés, procura erigir a

liberdade de pensamento e a liberdade de pluma, permitindo ao cidadão

manifestar-se por escrito no uso público da razão. Conforme enuncia Kant (1984,

p. 70, tradução nossa):

Em toda comunidade tem que haver uma obediência, sob o

mecanismo da constituição estatal segundo leis de coação

(referidas ao todo), mas ao mesmo tempo um espírito de

liberdade, posto que cada um, no tocante ao dever universal dos

homens, aspira a ser convencido pela razão de que essa coação

é conforme ao Direito, a fim de não cair em contradição consigo

mesma4.

Esclarecendo melhor a liberdade de pluma, importa destacar

que os textos produzidos pelo uso público da razão não são textos dirigidos ao

povo, mas aos eruditos. E não é escrito por qualquer um, mas por uma pessoa

letrada e sábia. Portanto, é algo sobre o qual o povo praticamente não terá

notícia, e, mesmo que viesse ao seu conhecimento, não haveria maiores

conseqüências, pois o povo, conforme ensina Kant (1993, p. 33):

[...] se resigna a pensar que sofismar não é afazer seu e, por isso,

se considera obrigado a ater-se apenas ao que lhe é anunciado

pelos funcionários para tal nomeados pelo governo.

4 En toda comunidad tiene que haber una obediencia, bajo el mecanismo de la constitución estatal según leyes de coacción (referidas al todo), pero al mismo tiempo un espíritu de libertad, puesto que cada uno, en lo concerniente al deber universal de los hombres, aspira a ser convencido por la razón de que esa coacción es conforme al derecho, a fin de no caer en contradicción consigo misma.

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O que ocorre, em decorrência do uso público da razão, é a

possibilidade de uma oposição entre a faculdade filosófica e a de Direito, para

promover o esclarecimento (Aufklärung) e mudanças paulatinas, que, por isso,

não precisam passar por uma revolução popular para acontecer. O

esclarecimento (Aufklärung) aproxima os funcionários do governo para a verdade.

Assim, esses funcionários, segundo Kant (1993, p. 33):

[...] mais bem elucidados também quanto ao seu dever, não

encontrarão escândalo algum na modificação da sua exposição,

pois é apenas uma melhor compreensão dos meios para o mesmo

fim; e tal pode muito bem acontecer sem ataques polêmicos e

apenas causadores de perturbação, dos métodos de ensino até

então em vigor, com a mais íntegra persistência da sua

substância.

Por conseguinte, a faculdade filosófica submete a exame

todas as disciplinas, e não é limitada pelo governo, pois seu compromisso é com

a totalidade das articulações do pensar e agir do homem. Neste sentido, a

faculdade de Direito, com relação à faculdade filosófica, conforme preceitua Kant

(1993, p. 32):

[...] deve aceitar as suas objecções e dúvidas, que ela

publicamente expõe - o que decerto elas poderiam achar oneroso

porque, sem semelhante crítico, teriam podido permanecer sem

perturbação no seu domínio uma vez adquirido, seja sob que título

for e, não obstante, imperar aí de modo despótico.

Na obra A Metafísica dos Costumes, a faculdade filosófica

procede estruturando racionalmente princípios e conceitos, para, deste modo,

construir um sistema da razão que fundamenta a Justiça pelas abstrações

racionais, e não pela lei promulgada. Por isso, ao contrário do que faz o jurista em

sua profissão, que tem de se ater ao que é estabelecido como Direito (quid sit

iuris), ou seja, naquelas disposições legais sujeitas a variações e transitoriedades

no seu conteúdo no decorrer do tempo, ou então na aplicação do Direito aos

casos oferecidos pela experiência, o filósofo procura se fixar propriamente na

fundamentação do Direito (quid jus), confiando na razão como critério de

desvelamento do que é imune aos fluxos e refluxos do tempo, legitimando, a partir

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daí, os princípios a priori do Direito (KANT, 2003a, p. 75-76). A propósito, leciona

Höffe (2005, p. 234):

Como ciência independente da experiência, a Filosofia do Direito

não pode substituir nem o legislador nem o juiz ou erudito em

Direito. Por outro lado, estes dependem do filósofo, a saber, da

fundamentação de princípios a priori do Direito, em que a

constituição e as leis se provam como racionais.

Neste sentido, importa relevar que a distinção das questões

quid juris? e quid jus?, que mais tarde é retomada por Hegel em sua filosofia, é

colocada por Kant para expor que o jurista se questiona sobre a solução de

Direito ao caso da experiência, enquanto que o filósofo procura o significado do

Direito, “[...] como defini-lo e também o que é justiça, a idéia do direito, a solução

que deveria existir idealmente e para a qual convirá dirigir-se o legislador.”

(VILLEY, 1977, p. 20).

Na atuação entre o filósofo e o jurista é possível observar a

distinção entre o Jusracionalismo e o Positivismo Jurídico. Contudo, não há que

se qualificar o pensamento kantiano como positivista. Kant propõe princípios

práticos jurídicos a priori ao Direito Positivo, sem isolar, de um lado, os

imperativos morais e, de outro, o Direito. Neste sentido, o normativismo

descritivista kelsiano, não se confunde com a concepção metafísico-racional

kantiana. Ora, a Ciência Jurídica de Kelsen, diferentemente de Kant, volta-se às

leis positivas, descrevendo e conhecendo as normas jurídicas, bem como as

relações constituídas, condizentes à aplicação destas normas. É o que se

depreende das palavras de Kelsen (1998, p. 78):

[...] a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem forma

alguma de justificar – quer através de uma Moral absoluta, quer

através de uma Moral relativa – a ordem normativa que lhe

compete – tão-somente- conhecer e descrever.

Para Kant, à Ciência Jurídica incumbe o conhecimento da

Doutrina do Direito Natural e, esta última, é responsável por fornecer um conceito

universal para o Direito e constituir a base para qualquer produção possível de

leis positivas. A Doutrina do Direito Natural, pautada na razão prática, que é

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legiferante, não tem o sentido de apenas conhecer o Direito, mas também de

produzir leis racionais, enquanto conceitos e princípios a priori do Direito. Para

Kelsen, ao contrário, a Ciência Jurídica deve apenas descrever e conhecer as leis

positivadas, sem prescrever nada, já que apenas a autoridade jurídica pode fazê-

lo. Exsurge a distinção de que, enquanto a Ciência Jurídica de Kant procura

conhecer os conceitos e princípios a priori do Direito, sendo racional, a Ciência

Jurídica de Kelsen procura conhecer as normas jurídicas, sendo empírica.

Do exposto, importa relevar, de acordo com o pensamento

de Kant, que é trabalho do filósofo fornecer resposta à questão: “O que é

Justiça?”. O jurista não conseguiria fazê-lo, a menos que se abstivesse dos

princípios empíricos que fiam sua profissão. De outro lado, Kant não pensa que o

papel do jurista possa ser ignorado ou substituído pelo do filósofo. Por isso, é

necessário não perder de foco que a Doutrina do Direito Positivo compete ao

jurista, enquanto que a Doutrina do Direito Natural compete ao filósofo, sendo que

ambas não podem ser compreendidas como antagônicas entre si.

1.2.2 A Justiça para o jurista

O jurista faz como critério do justo e injusto o que está

disposto na lei positiva, colocando os princípios empíricos na base de sua

Doutrina do Direito. Neste ponto, torna-se forçoso se precaver de uma

interpretação errônea que poderia conduzir ao entendimento de que a Ciência

Jurídica está lastreada em princípios empíricos e em leis positivas coercitivas.

Para evitar esta leitura equivocada é imperioso compreender que Kant, ao dizer

que o critério do justo e injusto do jurista reside na lei positiva, pretende atentar ao

fato de que o jurista não deve se exceder no exercício de suas funções a ponto de

romper com o que é ordenado pelo Estado, pois, se o fizesse, restaria sucumbido

o estado civil. Elucida Kant (1993, p. 27-28):

De facto, os decretos é que primeiramente fazem que algo seja

justo, e indagar se também os próprios decretos são justos é algo

que os juristas têm de rejeitar como absurdo. Seria ridículo

pretender subtrair-se à obediência perante uma vontade externa e

suprema sob o pretexto de que esta não se harmoniza com a

razão.

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Neste norte, não é possível perder de foco que, partindo-se

da Doutrina do Direito Positivo nunca se conhecerá o que verdadeiramente é o

Justo e o injusto, sendo que qualquer tentativa neste sentido está fadada a gerar

tautologias, como é o caso do dizer: “se deve fazer o que se deve fazer”; ou a

remeter ao que as leis de algum país prescrevem ou já prescreveram (KANT,

2003a, p. 76). Assim, com relação à Doutrina do Direito Positivo sempre

permanece oculto o critério geral de determinação do que é Justo e injusto e, por

isso, apregoa Kant (2003a, p. 76): “Como a cabeça de madeira da fábula de

Fedro, uma Doutrina do Direito meramente empírica é uma cabeça possivelmente

bela, mas infelizmente falta-lhe cérebro.” Referido cérebro é conferido pela

faculdade filosófica, proposta por Kant na obra A Metafísica dos Costumes,

responsável por formular o conceito de Justiça.

1.2.3 O conceito fundamental de Justiça: a Liberdade Externa

A Justiça se expressa quando a ação de um indivíduo pode

coexistir com a liberdade do outro, de acordo com uma lei universal. Falar-se que

uma ação está de acordo com uma lei universal é o mesmo que falar que está de

acordo com a razão jurídico-prática, posto que é esta quem confere

universalidade à lei. Esta é a concepção da Justiça como uma exigência do

Direito. Com relação à Ética, a Justiça é concebida como a máxima de ação que

impõe a necessidade de agir em consonância à Liberdade Externa, conforme diz

Kant (2003a, p. 77, grifo do autor): “Que eu constitua como minha máxima agir

justamente é uma exigência que a ética me impõe.” Tratando da Justiça como

exigência jurídica e ética, expõe Kant (2003a, p. 76):

Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de

todos de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a

liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade

de todos de acordo com uma lei universal.

De modo geral, pode-se afirmar que a Justiça é a perfeita

fruição da Liberdade Externa pelo indivíduo, para que assim não haja a invasão

da mesma Liberdade Externa do outro, engendrando um clima de harmonia entre

todos e permitindo a estabilidade na vida em sociedade. Por conseguinte, a

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Justiça exige a retirada dos obstáculos que impedem a expressão da Liberdade,

pois, como alerta Bobbio (1997, p. 73):

É necessário, para que brilhe a Justiça com toda a sua luz, que os

membros da associação usufruam da mais ampla liberdade

compatível com a existência da própria associação. Motivo pelo

qual seria justo somente aquele ordenamento em que fosse

estabelecida uma ordem na liberdade.

Neste sentido, para a correta compreensão da Justiça,

impende ressaltar o significado de Liberdade Externa. Pela sua concepção de

Liberdade Externa, Kant pretende demonstrar a condição para existir,

concomitantemente, Liberdade e convivência, de acordo com a razão,

constituindo uma comunidade da Liberdade.

A busca da convivência pela Liberdade e de acordo com a

razão, primeiro, não seria possível no caso de se pensar em alguns na posição de

senhores, subjugando outros, na condição de escravos, pois a Liberdade, para

estes últimos restaria prejudicada; segundo, também não seria possível no caso

de se pensar em uma Liberdade ilimitada, eis que a suscetibilidade para sujeição

e a conseqüente violação da Liberdade permanece. Resolvendo este problema,

conjugando a convivência e a Liberdade sem contradições, Kant apresenta sua

concepção de Liberdade Externa como o uso externo do arbítrio, que coexiste

com a Liberdade de todos, de acordo a uma lei universal (HÖFFE, 2005, p. 238-

239). Destarte, o conceito de Liberdade Externa, conforme concebido por Kant

(1984, p. 42, tradução nossa), diz que:

[...] cada um tem Direito a buscar sua felicidade pelo caminho que

lhe aprouver, desde que ao aspirar semelhante fim não prejudique

a liberdade de todos os demais, de poderem coexistir com a

liberdade de cada um segundo uma lei universal possível (isto é,

com tal que não prejudique esse Direito do outro)5.

5 [...] cada uno tiene derecho a buscar su felicidad por el camino que le parezca bueno, con tal que al aspirar a semejante fin no perjudique la libertad de los demás que puede coexistir con la libertad de cada uno según una ley universal posible (esto es, con tal que no perjudique ese derecho del otro).

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A injustiça expressa justamente o contrário, por

corresponder a uma ação que fere o outro na sua Liberdade, como ensina Kant

(2003a, p. 77): “[...] tudo que é injusto é um obstáculo à liberdade de acordo com

leis universais.” Assim, a injustiça é o posicionamento de impedimentos à

Liberdade Externa, do que resulta uma ação que se choca com a Liberdade de

outro, causando um conflito na relação externa. Explica Kant (2003a, p. 77):

Se, então, minha ação ou minha condição pode geralmente

coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei

universal, todo aquele que obstaculizar minha ação ou minha

condição me produz injustiça, pois este obstáculo (resistência)

não pode coexistir com a liberdade de acordo com uma lei

universal.

Para rechaçar a injustiça, e trazer garantia à obrigação

expressa no princípio universal do Direito, Kant enlaça ao conceito racional do

Direito a faculdade de coagir, a partir de argumentos eminentemente racionais.

Não é possível desconsiderar que, aqui, se impõe o problema fundamental do

Direito e do Estado, que envolve o questionamento da possibilidade em se admitir

a conciliação entre a Liberdade e a coerção, tendo em vista que a coerção parece

já espelhar uma violação da Liberdade. A resposta de Kant a esta problemática

representa, na história da filosofia, uma demonstração teórica da compatibilidade

entre coerção e Liberdade, que faltava até então. Para analisar esta questão,

parte-se ao conceito de Direito.

1.2.4 O conceito de Direito

O fato do Direito ser proposto para a práxis, não impede que

seu conceito seja puro e válido a priori. Contudo, como já foi mencionado (1.2),

uma Doutrina do Direito terá, necessariamente, que se valer de elementos

empíricos gerais, os quais aparecem apenas para apresentar o âmbito de

aplicação do Direito, mas nunca para sua fundamentação conceitual e

principiológica. Os elementos empíricos podem ser encontrados, mormente, no

Direito Privado, como, por exemplo, quando é dito que existem objetos sobre os

quais é possível haver um título de aquisição, que há mulher, marido, filhos etc.

(HÖFFE, 2005, p. 234).

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Na obra A Metafísica dos Costumes, a condição de

aplicação do Direito não receberá uma abordagem que pondera questões

antropológicas, ou mesmo aquelas de que trata a filosofia da história. Destarte,

Kant não procede como Thomas Hobbes, que adota um pessimismo

antropológico, concebendo o homem em uma “[...] guerra de todos contra todos

[...]” (HOBBES, 1993, p. 55), além de se esforçar, como dá prova sua obra

Leviatã, em apontar as causas da discórdia que existem na natureza humana

(HOBBES, 2000, p. 94-98). Kant se centra no ponto decisivo da aplicação do

Direito, que é a Liberdade Externa, tendo o resto como dispensável, como

preleciona Höffe (2005, p. 236):

Como o Direito se orienta para a Liberdade Externa, numa

perspectiva social, todos os aspectos internos, a saber,

necessidades e interesses, só possuem relevância jurídica se eles

determinam a ação e se manifestam na Liberdade Externa.

Portanto, o conceito de Direito formulado por Kant é a priori

e se refere à Liberdade Externa, possuindo: a) um elemento normativo e apriórico,

pelo fato de ser um conceito puro; b) e um elemento descritivo em sentido amplo,

por se referir à Liberdade Externa. Acrescenta Höffe (2005, p. 235):

Visto que o conceito de Direito resulta somente do vínculo do

elemento normativo com o elemento descritivo, Kant evita tanto a

falácia naturalística, que quer definir a moralidade em termos de

conceitos puramente descritivos, como a falácia normativista, que

quer deduzi-la unicamente de reflexões normativas.

A condição para que o Direito seja aplicado é imposta pelo

elemento descritivo do Direito. Neste vértice, importante salientar que o fato do

Direito se ocupar com a Liberdade Externa, significa que procura estabelecer a

convivência entre as pessoas, voltando-se apenas ao uso externo do arbítrio.

Com efeito, o conceito de Direito deve conter, antes de qualquer experiência

possível, a possibilidade do estabelecimento da coexistência entre as pessoas.

Fundamentando-se na Liberdade Externa, ao Direito acompanha um Princípio

Universal, que diz: “[...] age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio

possa coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei universal [...]”

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(KANT, 2003a, p. 77, grifo do autor). É o chamado de Princípio Universal do

Direito, pois provém da razão prática e impõe uma obrigação a todos. A partir

dele, a razão dispõe “[...] que a liberdade está limitada àquelas condições em

conformidade com sua idéia e que ela pode também ser ativamente limitada por

outros;” (KANT, 2003a, p. 77).

Quando se está tratando do conceito de Direito, tal Princípio

Universal do Direito não deve ser encarado como o motivo da ação, como faz a

Ética, mas em relação ao uso externo do arbítrio, sendo irrelevante cogitar sobre

a intenção que moveu a ação. Por isso, sendo um Princípio que concerne apenas

à conformidade do ato exterior em referência às leis jurídicas, propugna a

legalidade, entendida por Kant (2003a, p. 72) como: “A simples conformidade ou

não conformidade de uma ação com a lei, independentemente do motivo para

ela.”

Na concepção racional de Direito, a compatibilidade das

ações de acordo com a Liberdade Externa, é um mandamento da razão prática

em seu uso jurídico, traduzido no Princípio Universal do Direito. Este Princípio é

responsável por conceder o critério de legitimidade às leis positivas, do que se

segue que, no caso de estas não garantirem a coexistência em conformidade a

leis universais, são contrárias à razão jurídica prática.

Tal Princípio, na Doutrina do Direito, equivale ao imperativo

categórico na Doutrina da Virtude. Ele obriga seu cumprimento, por parte de

todos, de acordo com a legalidade, da mesma forma que o imperativo categórico

obriga o seu cumprimento, por parte do indivíduo, de acordo com a moralidade

(HÖFFE, 2005, p. 239-240). Portanto, o conceito de Direito resulta da razão

prática e do Princípio Universal do Direito, como esclarece Höffe (2005, p. 241):

“[...] Kant não deriva o Direito do princípio da moralidade pessoal, da liberdade

interna ou da autonomia da vontade, senão da razão prática pura e do seu critério

da legalidade universal.”

O conceito de Direito comporta três elementos, que não

devem ser entendidos isoladamente, mas em sonante harmonia: primeiro, volta-

se apenas à relação externa, isto é, às relações práticas entre as pessoas;

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segundo, significa a relação estabelecida entre o arbítrio de um, com o arbítrio de

outro; terceiro, não leva em consideração as finalidades que cada arbítrio quer

alcançar, mas apenas a forma da relação ocorrer, isto é, que a ação de um possa

ser unida à Liberdade do outro, de acordo a uma lei universal (KANT, 2003a, p.

76). Assim, o conceito racional de Direito, apresentado por Kant (2003a, p. 76), é

o seguinte: “O Direito é [...] a soma das condições sob as quais a escolha de

alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal da

liberdade.”

1.2.4.1 Os elementos constitutivos do conceito de Direito

Analisando mais profundamente os três elementos que

compõem o conceito de Direito, é possível afirmar, a começar pelo primeiro

elemento, que o conceito de Direito toca às relações intersubjetivas, de uma

pessoa com relação a outra, na medida em que ambas influenciam-se

mutuamente. É uma primeira abordagem, deveras ampla e que, isolada, não

alcança o conceito do Direito, até mesmo porque nem todas as relações inter-

pessoais são relações jurídicas, como ocorre, por exemplo, no caso de

beneficência ou nos atos de crueldade. Não obstante, é relevante para expressar

o âmbito a que pertencem as relações jurídicas, qual seja, às relações práticas de

um homem com relação ao outro.

O segundo elemento, que vem se unir ao primeiro, dispõe

que as relações jurídicas devem ser compostas pela relação do arbítrio de uma

pessoa com o arbítrio de outra, desconsiderando-se uma relação instituída pelo

arbítrio de uma pessoa e a aspiração de outra, ou entre duas aspirações. Para a

compreensão deste ponto, importa considerar a noção de arbítrio e aspiração. Os

seres humanos possuem a faculdade de fazer ou deixar de fazer o que melhor lhe

apraz, de sorte que, mediante esta faculdade, se a pessoa possui consciência da

capacidade de realizar seu objeto por ação própria, tem-se o arbítrio. No caso da

ação não estar unida à consciência de produzir o objeto, tem-se a aspiração, isto

é, a aspiração é entendida como a representação de um objeto, sem associar-se

a perspectiva deste objeto ser efetivamente alcançado (KANT, 2003a, p. 62).

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Em posse destas noções, cumpre enfocar que, quando não

há a relação entre arbítrios, não é possível configurar-se uma relação jurídica,

como ocorre, por exemplo, com a beneficência e a crueldade. No caso da

beneficência, significando “[...] a máxima de fazer da felicidade dos outros o

próprio fim [...]” (KANT, 2003a, p. 296), a pessoa promove “[...] com os próprios

meios a felicidade de outros seres humanos necessitados, sem esperar algo em

retorno [...].” (KANT, 2003a, p. 296). Quem é beneficente age de acordo com seu

arbítrio ao ofertar ajuda, enquanto que o necessitado tem apenas a aspiração de

receber o auxílio. Por isso, neste caso, não há uma relação jurídica, mas apenas

o cumprimento de um dever ético. Quanto ao ato de crueldade, tem do lado do

sujeito ativo o arbítrio, enquanto do lado do agente passivo, não há nem o arbítrio

nem a aspiração, ao que, outrossim, não é possível falar-se em uma relação

jurídica, mas na violação de um dever ético.

A relação entre arbítrios impõe a noção de responsabilidade

dos próprios atos, em razão dos envolvidos terem consciência de que, ao

encetarem aquela relação, possuem a capacidade de alcançar o objeto de sua

aspiração. Por isso, ensina Rohden (1992, p. 129) que o Direito:

[...] implica uma relação entre arbítrios, e não do arbítrio de um

com o desejo de outro, porque este, enquanto inconsciente de sua

capacidade de realização da ação, não teria condições de

responsabilizar-se por seus atos e portanto de contrair contrato.

O terceiro elemento diz que, na relação entre arbítrios, o

Direito não considera o fim que cada um almeja alcançar com o objeto da

aspiração, isto é, não se ocupa com a matéria do arbítrio de cada um, mas

simplesmente com a forma da relação jurídica proceder. Ao se ocupar com a

forma, o Direito procura assegurar a Liberdade Externa, ou seja, se preocupa que

a ação de uma pessoa possa se conciliar com a Liberdade do outro, de acordo

com uma lei universal da Liberdade. Um exemplo, citado pelo próprio Kant,

considera o caso de um contrato de compra e venda, onde o Direito não

considera os benefícios que cada parte terá no cumprimento do contrato, mas

apenas com os aspectos formais que devem revestir esta relação (KANT, 2003a,

p. 76). É neste terceiro elemento que está a origem da doutrina moderna do

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formalismo jurídico, depois desenvolvida pelos “[...] filósofos neo-kantianos do

Direito, como Stammler e Kelsen na Alemanha, e Del Vecchio, pelo menos na

primeira fase de seu pensamento.” (BOBBIO, 1997, p. 70).

1.2.5 O Direito em sentido estrito

Segue-se à tarefa jurídica do Direito em garantir a Liberdade

Externa, a admissão, com amparo na própria razão, da coerção. Se uma ação é

contrária à Liberdade Externa, uma outra conduta que exerce efeito contrário a

esta primeira ação vem promover a Liberdade Externa. Esclarece Kant (2003a, p.

77): “A resistência que frustra o impedimento de um efeito promove este efeito e é

conforme ele.” Por isso, no magistério de Leite (1996, p. 56): “[...] Kant postula

que ao conceito de direito, como condição da coexistência da liberdade externa

dos indivíduos, está necessariamente atrelado o caráter coativo deste.”

O Direito reúne as condições sob as quais a Liberdade de

um se torna compatível à Liberdade de todos os demais, de acordo a uma lei

universal, de sorte que toda ação que atua em sentido contrário à Liberdade

Externa é contrária ao Direito. Por conseguinte, a coerção, que vem se opor à

ação contrária à Liberdade, apresenta-se como legítima e, ainda mais, em

compatibilidade à Liberdade Externa. Expõe Kant (2003a, p. 77, grifo do autor):

Conseqüentemente, se um certo uso da liberdade é ele próprio

um obstáculo à liberdade de acordo com leis universais (isto é,

injusto), a coerção que a isso se opõe (como um impedimento de

um obstáculo à liberdade) é conforme à liberdade de acordo com

leis universais (isto é, é justa).

A justificativa da coerção, em Kant, se limita à coerção que

se opõe à injustiça. Ao juntar a coerção ao conceito racional do Direito, tem-se o

Direito estrito, que recebe a denominação de “Estrito” por não ter nada de Ético

combinado, ou seja, por ser completamente externo. O Direito Estrito é entendido

por Kant (2003a, p. 78) como “[...] a possibilidade de um uso inteiramente

recíproco de coerção que é compatível com a liberdade de todos de acordo com

leis universais.”

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Com efeito, o Direito não deve ser concebido como

comportando dois elementos: de um lado, a obrigação decorrente do Princípio

Universal do Direito e, de outro, a competência de alguém submeter os demais,

coercitivamente, ao cumprimento da obrigação. Ao revés, deve constituir-se uma

coerção recíproca universal que reúne a obrigação e a coerção como um mesmo

elemento. Neste norte, conforme expõe Kant (2003a, p. 78): “Direito e

competência de empregar coerção, portanto, significam uma e única coisa.”

Por isso, é possível falar-se que a vontade jurídica é

heterônoma. As vontades autônoma e heterônoma constituem critério

fundamental de diferenciação entre a Ética e o Direito, de sorte que foi Kant o

primeiro filósofo a trazer à baila referida distinção, ao dizer que a vontade ética é

autônoma e a vontade jurídica é heterônoma.

A autonomia da vontade significa, segundo Kant (2003b, p.

70): “[...] a constituição da vontade, graças à qual ela é para si mesma a sua lei

(independentemente da natureza dos objetos do querer).” A vontade que busca a

lei nela própria, que fornece a si mesma sua lei, é uma vontade pura, é a própria

razão prática, e a lei buscada é a lei moral.

Quanto a heteronomia da vontade, é aquela que encontra a

lei para se conduzir fora dela, no objeto da aspiração, que irá, desta forma,

determiná-la. Em outras palavras, a heteronomia consiste na sujeição da vontade

a condições subjetivas, por uma determinação extrínseca. Explica Kant (2003b, p.

71):

Quando a vontade busca a lei, que deve determiná-la, em

qualquer outro ponto que não na aptidão de suas máximas para a

sua própria legislação universal, quando, portanto, passando além

de si mesma, busca essa lei na natureza de qualquer dos seus

objetos, o resultado é sempre a heteronomia.

Embora incompatível ao dever ético, que segue pela

autonomia da vontade, a heteronomia da vontade não é incompatível ao dever

jurídico. Neste caso, a vontade é determinada pelo temor à coerção, que se torna

seu determinante externo. Neste sentido, a coerção aparece como imprescindível

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para que o dever jurídico seja cumprido. No escólio de Reale (1999, p. 659, grifo

do autor):

O Direito é eminantemente técnico e instrumental. Toda norma

jurídica é instrumento de fins, que se não situam no âmbito da

norma mesma; não há nenhuma finlidade intrínseca ou inerente à

própria regra: sua finalidade é a segurança geral, a ordem pública,

a coexistência harmônica das liberdades etc.

Pelo exposto, verifica-se que o Direito preceitua o

cumprimento dos deveres jurídicos, desconsiderando a motivação do sujeito para

cumpri-los, por não levar em conta os impulsos que levaram o sujeito a praticar a

ação, mas apenas a relação externa, os fatores extrínsecos. Afora isso, não se

importa com os fins que se pretende alcançar com a relação jurídica, mas apenas

que, nesta relação, nenhum dos envolvidos tenha sua Liberdade Externa lesada,

e nem venha lesar a de terceiros. Coloca, outrossim, que as relações jurídicas

compõem-se pelo arbítrio dos envolvidos, e não entre um arbítrio e uma

aspiração. Demonstra preocupação em assegurar a Liberdade Externa, ao que é

permitido servir-se da coerção para a consecução de sua finalidade. Verifica-se,

assim, que o Direito limita o princípio da moralidade sob três aspectos, conforme

elucida Habermas (2003, p. 140):

Segundo Kant, o conceito do Direito não se refere primariamente

à vontade livre, mas ao arbítrio dos destinatários; abrange a

relação externa de uma pessoa com outra; e recebe a autorização

para a coerção, que um está autorizado a usar contra o outro, em

caso de abuso. O princípio do Direito limita o princípio da moral

sob esses três pontos de vista.

Assim, o Direito não parte da liberdade relativa à vontade

autônoma, mas da liberdade que rege as relações externas entre os arbítrios.

Além disso, a coerção a que se refere, não é a coerção interior, ou seja, a

autocoerção pela qual a razão prática resiste a um arbítrio afetado

patologicamente, mas a coerção exterior, o único motivo que pode ser exigido

para a determinação da ação em conformidade à legislação exterior.

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CAPÍTULO 2

A DIVISÃO DOS DIREITOS

2.1 A SISTEMÁTICA DA DOUTRINA DO DIREITO

A divisão dos Direitos, na obra A Metafísica dos Costumes, é

realizada por Kant em sua Introdução à Doutrina do Direito. Nesta parte da obra,

consta o título Divisão da Doutrina do Direito, oportunidade em que é

apresentada, em sua parte B, a Divisão geral dos Direitos, onde Kant expõe a

divisão dos Direitos de acordo com dois critérios: como preceitos sistemáticos,

quando são divididos em Direito Natural e Direito Positivo; como faculdades

morais de obrigar outros, a saber, como fundamento legal relativamente aos

outros, quando são divididos em Direito Inato e Direito Adquirido. É possível

adiantar que, com relação ao Direito Natural, é possível conferir uma divisão

suprema, que se dá em Direito Privado e Direito Público.

Para a compreensão da Doutrina do Direito, é fundamental

observar as divisões dos Direitos e as articulações que possuem entre si,

contextualizados pelo estado de natureza e o estado civil. Referido estudo permite

desvelar importantes questões levantadas por Kant em sua filosofia jurídica e

política, podendo ser realizado, de modo mais apropriado, apenas a partir da

Doutrina do Direito, pois é somente nela, dentro do sistema filosófico de Kant,

que é desenvolvido o Direito Privado.

Na sistemática da Doutrina do Direito, Kant destina a

primeira parte, chamada Primeira Parte da Doutrina do Direito, e que vem logo

após a Introdução à Doutrina do Direito, a considerações sobre o Direito Privado.

O Direito Público é tratado na Segunda Parte da Doutrina do Direito. Esta

sistemática, diferente da adotada por Hobbes e Rousseau, que tratam primeiro do

Direito Público, para, apenas depois tratar do Direito Privado, vem reforçar a

posição ocupada pelo Direito Privado em seu pensamento jurídico.

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2.2 DIVISÃO DOS DIREITOS ENQUANTO PRECEITOS SISTEMÁTICOS: O

DIREITO NATURAL E O DIREITO POSITIVO

Enquanto preocupado em desvelar os princípios a priori do

Direito, Kant depara-se, conforme já mencionado alhures, com a necessidade de

elaborar uma doutrina sistemática dos princípios jurídicos a priori, em

contraposição a uma empírica. Tal proposta traz em seu bojo a distinção entre um

Direito Racional e um Direito Empírico. Portanto, a divisão geral dos Direitos,

quando os Direitos são encarados como preceitos sistemáticos, é realizada em: 1-

Direito Natural, que é o Direito não-estatutário, apoiado somente em princípios a

priori, constituindo um sistema de leis jurídicas racionais; 2- e Direito Positivo ou

estatutário, que é aquele que advém da vontade de um legislador, exigindo uma

legislação positivada determinando-o no tempo e no espaço, podendo, por isso,

ser verificado apenas no estado civil (KANT, 2003a, p. 76).

No Direito Natural, encontram-se as leis naturais, que são os

próprios princípios práticos a priori, os quais podem ou não constar em uma

legislação externa, posto que, apesar de exteriores, não recebem sua

obrigatoriedade da legislação externa, mas da própria razão. Em outras palavras,

o Direito Natural obriga a todos de modo a priori e incondicionalmente por meio da

razão de cada um.

O Direito Natural fornece o fundamento ao Direito Positivo,

por responder à questão: “o que é Direito?”. O Direito Positivo se atém à questão:

“o que é de Direito?”, e, por isso, não pode apreender o que é justo e injusto6.

Portanto, o Direito Natural não se volta aos fatos particulares, como faz o Direito

Positivo, mas ao fundamental, ao que é universal e necessário. Ademais, não

procura determinar a matéria do arbítrio, os fins particulares de cada um,

conforme explica Nour (2004, p. 23):

Kant considera tirania que a razão, que pode legislar apenas

sobre o que é necessário e universal, invada o domínio particular;

é tirânico o Direito Natural que dita a um povo o que é o bem-estar

6 Ver: SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de Justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. Belo Horizonte: UFMG, 1986. p. 272-282.

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e a prosperidade, pois estes são fins particulares de cada povo,

ou seja, fins contingentes que a razão, com sua pretensão de

universalidade, não pode determinar.

Kant concede ao Direito Natural o revestimento de um

Direito Racional, do que resulta, através de um método rigoroso, uma correção e

esclarecimento do antigo procedimento da Escola de Direito Natural, realizando

uma transavaliação racional ao que aquela Escola considerou como histórico,

como ensina Del Vecchio (1979, p. 127): “É costume designar estas correcções

metodológicas dizendo: com Kant, acaba a Escola do Direito Natural (Naturrecht)

e começa a Escola do Direito Racional (Vernunftrecht).” Mais adiante, afirma

ainda Del Vecchio (1979, p. 127):

A Kant no campo da Filosofia do Direito cabe o mérito de ter

afirmado o valor puramente racional (regulador) dos princípios do

Direito Natural, e, por conseguinte, de ter acabado com a

confusão entre o histórico e o racional.

Já o Direito Positivo, se distingue por conter leis positivas,

caracterizadas pela obrigatoriedade proveniente, não da razão, mas de uma

legislação externa. É um Direito empírico, correlato às leis positivadas e que são

transitórias e diversas, variando de local para local. Por isso, enquanto o Direito

Natural provém da razão, o Direito Positivo advém da vontade do legislador.

Contudo, o Direito Natural concede, como aduz Kant (2003a,

p. 75): “[...] os princípios imutáveis a qualquer legislação do Direito Positivo.”

Assim, as leis naturais sempre precedem as leis positivas. Mesmo sendo possível

cogitar uma legislação externa que tenha apenas leis positivas, há necessidade

de uma lei natural para fundamentá-las, ao estabelecer a autoridade do legislador

em obrigar outros mediante seu arbítrio (KANT, 2003a, p. 67).

É possível afirmar, portanto, que Kant não pretende fazer da

condição civil um estado onde exista apenas o Direito Natural, nem um estado

onde impere apenas o Direito Positivo. Por conseguinte, não propõe nem um

sistema jurídico fundado em um jusnaturalismo dogmático, nem um positivismo

dogmático desvinculado dos fundamentos e princípios da Justiça. O que Kant

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pretende é erigir o entendimento de que o Direito Racional é necessário para

fornecer o critério e legitimação ao Direito Positivo. Deste modo, esclarece Nour

(2004, p. 5):

[...] por um lado, o Direito Positivo deve encontrar seu critério de

Justiça e seu fundamento no Direito Natural; por outro, uma

comunidade não pode reger-se apenas pelo Direito Natural, que

deve assim fundar um Direito Positivo.

Não obstante, surge a seguinte indagação: o que prevalece

no caso da lei positiva entrar em descompasso ao Direito Natural? Nesta

hipótese, Kant defende que a lei positiva deve, mesmo assim, ser obedecida, e,

mais ainda, que é um imperativo obedecer à autoridade atualmente no poder

(TERRA, 1995, p. 96). Portanto, Kant não acolhe a validade racional ou a

legitimidade da Resistência enquanto Direito. A razão nega o Direito de

resistência principalmente porque, como ensina Hansen (2003, p. 138):

Não se pode resistir à autoridade do legislador porque a

universalização da máxima da desobediência implicaria na

eliminação da própria legislação e do [sic] todo o Direito, inclusive

de um possível Direito de resistência.7

Kant é avesso às revoluções, ao levante popular, e

propugna, em seu lugar, o Esclarecimento (Aufklärung), a partir do qual o homem

pode sair de sua menoridade, ou seja, daquele estágio em que o indivíduo é

incapaz de fazer uso de seu entendimento sem a orientação de outrem (KANT,

2003b, p. 115). Entende ser melhor o caminho das reformas do que o das

revoluções, tendo como lema: “Sapere aude! Tem a ousadia de fazer uso de teu

próprio entendimento [...]” (KANT, 2003b, p. 115). Sustenta que os movimentos

revolucionários não produzem mudança de mentalidade, pois não passam de

ações violentas que apenas fazem o poder mudar de mãos, conforme explica

Kant (2003b, p. 117):

7 Para maiores considerações a respeito, ver: HANSEN, Gilvan Luiz. Facticidade e validade da desobediência civil no Estado Democrático de Direito. 2003. Thesis (Doctorate in Philosophy). p. 133- 139.

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Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo

pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, mas

jamais produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar.

A revolução conduz ao estado de natureza, destrói os

fundamentos do Estado e, por isso, é contrária tanto ao Direito Positivo quanto ao

Direito Natural, eis que este último preceitua a saída do estado de natureza e a

entrada no estado civil, além de conter os princípios a favor da Constituição civil.

Por isso, Kant propõe uma obediência ativa, traduzido no princípio da razão

prática que afirma: “[...] o poder legislativo presentemente existente deve ser

obedecido, seja qual for a sua origem.” (KANT, 2003a, p. 161).

2.2.1 As espécies de Justiça pertencentes ao Direito Natural: Justiça

Comutativa e Justiça Distributiva

O Direito Natural corresponde a um Direito cognoscível a

priori pela razão, não sendo encontrado apenas no estado de natureza, mas

também no estado civil. No Direito Natural é possível verificar duas espécies de

Justiça: a Justiça Comutativa (iustitia commutativa), em que o julgamento ocorre

de acordo como a matéria pode ser conhecida a priori a partir da razão privada

das pessoas, tendo validade entre os homens em seus intercâmbios mútuos,

podendo ser verificada desde o estado de natureza (KANT, 2003a, p. 141); e a

Justiça Distributiva, em que o julgamento ocorre de acordo como a matéria pode

ser conhecida a priori a partir da decisão que promana de um Tribunal, o que é

contemplado apenas no estado civil8 (CAYGILL, 2000, p. 106). Enquanto a Justiça

Comutativa volta-se ao que é a Justiça em si mesma, “[...] isto é, como todo ser

humano tem que julgá-lo de sua parte [...]” (KANT, 2003a, p. 142), a Justiça

Distributiva volta-se ao que é a Justiça ante um Tribunal “[...] isto é, o que é

formulado como direito.” (KANT, 2003a, p. 142).

Existem quatro casos nos quais a Justiça Comutativa e a

Justiça Distributiva fornecem soluções contrárias entre si, sem que nenhuma das

soluções esteja incorreta. Isto é possível em razão de serem soluções observadas

8 A partir daqui já pode ser vislumbrados argumentos que estabelecem o Direito Natural não apenas no estado de natureza, mas também no estado civil.

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em âmbitos diferentes: uma de acordo ao Direito Privado, no estado de natureza;

e, a outra, de acordo ao Direito Público, no estado civil. Os casos são os

seguintes: a) o contrato de doação (pactum donationis); b) o contrato de

empréstimo (commodatum); c) a reivindicação (vindicatio); d) a prestação de

juramento (iuramentum). Referidos casos merecem ser aqui trabalhados, para se

precaver contra a confusão muito usual entre os jurisconsultos, os quais

costumam confundir aquilo que é justo em si (Justiça Comutativa) com o princípio

jurídico adotado pelo Tribunal, através do qual este é autorizado a administrar a

Justiça a cada um e julgar (Justiça Distributiva).

A começar pelo contrato de doação, ocorre quando uma

pessoa (doador - donans) promete doar um objeto, mediante aceitação (donum)

do outro (donatário - donatarius). Surge, aqui, a seguinte questão: é possível, no

caso do doador não cumprir a promessa, ser coagido a fazê-lo? A resposta

fornecida pela Justiça Comutativa, diz que não é possível presumir que o doador

pretenda ser forçado a obedecer referido contrato no caso de não cumpri-lo, em

uma espécie de renúncia gratuita da própria Liberdade. Já a Justiça Distributiva -

quando se está no estado civil e a matéria é submetida a um Tribunal- diz que ao

donatário deve ser concedida a oportunidade de coagir o doador a cumprir o

avençado. É o que deve ocorrer, segundo princípios racionais, pois o Tribunal

procede verificando apenas a existência da promessa pelo doador e a respectiva

aceitação pelo donatário, rejeitando a análise da ocasião do doador ter consentido

ou não com a coerção contra si, na hipótese do descumprimento. Este é o

princípio da Justiça Distributiva, o qual somente negaria a coerção contra o

doador se este fizesse constar expressamente no contrato que, na hipótese de se

arrepender de efetuar a doação, não quer ser coagido a cumprir a promessa

(KANT, 2003a, p. 142-143). Comenta Kant (2003a, p. 143): “O tribunal adota este

princípio porque, de outra forma, sua sentença em torno dos Direitos se tornaria

infinitamente mais difícil ou mesmo impossível.”

O outro caso, compete ao contrato de empréstimo ou

comodato, que ocorre quando alguém, denominado comodatário

(commodatarius), usa gratuitamente o que pertence a outrem, denominado

comodante (commodans). A questão que surge aqui é a seguinte: supondo a

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ocasião do objeto do comodato, em posse do comodante, sofrer algum dano, em

uma possível perda da coisa ou de sua utilidade, quem deve arcar com os custos

da perda? A Justiça Comutativa diz que o ressarcimento deve ser efetuado pelo

comodatário, pois ele, ao pegar uma coisa emprestada de outra pessoa, deve

assumir os danos que, porventura, ocorram com a coisa em seu poder. Não se

deve presumir que os prejuízos de eventuais acidentes sejam suportados pelo

comodante, posto que este consentiu com o uso da coisa, mas não com sua

destruição. Quanto à Justiça Distributiva, diferentemente, preconiza que quem

deve arcar com o encargo é o comodante, em razão de no contrato nada ter ele

disposto sobre sua isenção de suportar quaisquer danos decorrentes de possíveis

acidentes (casus) que a coisa está suscetível de sofrer. O que ocorre é que o

Tribunal se detém sobre o que é certo, de sorte que é ao comodante que incumbe

se precaver contra eventuais prejuízos sobre a coisa emprestada, colocando,

expressamente, a certeza de que não possui responsabilidade pelos danos que o

comodatário venha realizar no uso da coisa. Não o fazendo, a sentença

pronunciará que o dever de suportar o dano é do comodante (casum sentit

dominus), pois a certeza que existe é que a Propriedade do objeto é do

comodante, e não do comodatário (KANT, 2003a, p. 143-144). Por isso, conforme

expõe Kant (2003a, p. 144):

Esta sentença será, com efeito, dada com base em diferentes

fundamentos a partir exclusivamente do decreto da sã razão, uma

vez que um juiz público não pode envolver-se em pressuposições

quanto ao que uma parte ou outra pode ter pensado.

No caso da reivindicação do perdido, na suposição de

alguém ter adquirido uma coisa de boa-fé (bona fide) de uma outra pessoa que se

apresenta como seu proprietário, quando, na realidade, não o é, mesmo tendo

sido respeitadas rigorosas formalidades no ato de compra e venda, a questão que

exsurge é: a pessoa que adquiriu a coisa e que está em sua posse atual deve ser

ou não excluída pelo proprietário anterior sobre qualquer Direito a essa coisa?

Segundo a Justiça Comutativa, as aquisições dos seres humanos entre si deve

ser precedida de uma investigação, por parte do adquirente, sobre quem é o

verdadeiro dono da coisa, eis que o princípio da Justiça Comutativa diz que

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adquirir de alguém que não é o real proprietário da coisa é algo nulo e sem efeito.

Por isso, sem saber quem é o verdadeiro proprietário, o adquirente terá apenas

um Direito Pessoal a uma coisa (ius ad rem), permanecendo como proprietário

putativo (dominus putativus), de sorte que, aparecendo outra pessoa como seu

real proprietário, documentando sua Propriedade, restará ao adquirente apenas

dizer que fruiu legalmente dos benefícios da coisa até aquele momento, por estar

de boa-fé, seguindo-se a devolução ao legítimo proprietário. Diversa é a posição

da Justiça Distributiva, que segue o princípio consistente em tomar como regra a

legitimidade da posse pela forma como é transferido e aceito o que está na posse

de outrem, ou seja, pela formalidade do ato jurídico de troca (commutatio),

valendo como Direito Real ao adquirente. Kant (2003a, p. 147) fornece o seguinte

exemplo:

Um cavalo, por exemplo, que alguém coloca à venda num

mercado público regulamentado por normas das autoridades,

torna-se minha propriedade se todas as regras da compra e venda

forem rigorosamente observadas (mas de uma tal maneira que o

verdadeiro proprietário retém o direito de apresentar uma

reclamação contra o vendedor com fundamento em sua posse

anterior não perdida do animal).

Deste modo, na Justiça Distributiva, sendo o ato de

transferência realizado de acordo com rigorosas formalidades, como a venda

regulamentada em mercado público, a investigação sobre o real proprietário não é

necessária, até mesmo porque é inviável descobrir quem foi o proprietário

originário da série dos proprietários putativos que adquiriram o Direito sobre a

coisa, uns dos outros. Por isso, pela Justiça Distributiva, o Direito à coisa pelo

adquirente é tratado como um Direito Real e não como um Direito pessoal,

permanecendo ele como o novo proprietário do objeto.

Por fim, o último caso é o da aquisição de garantias por

juramento (cautio iuratoria), garantia esta que tem por esteio as crenças do

jurador, posto que este presta o juramento de modo a ser verdadeiro e fiel no

cumprimento da promessa por temor a um poder divino onisciente, que penaliza e

se vinga daqueles que não cumprem o juramento. Neste sentido, coloca-se a

seguinte questão: é admissível uma lei que obrigue alguém a prestar juramento, a

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ponto de fazer do testemunho da pessoa prova hígida para o Direito? Neste caso,

segundo a Justiça Comutativa, não é admissível que o juramento de uma pessoa

seja suficiente para dar veredicto de verdade ao que é afirmado. Não aceita a

obrigação de que, pelo juramento, o testemunho de uma pessoa se torne veraz,

com força probatória vinculante. Todavia, na Justiça Distributiva, não havendo

outros meios de produzir prova da verdade, é necessário servir-se deste

expediente, levando em conta a religião que as pessoas possuem, de modo a

compeli-las a dizer a verdade sob pena de sentirem a coerção espiritual (tortura

spiritualis). Portanto, é dado ao Tribunal explorar a superstição dos homens, para

que a autoridade judicial seja favorecida, pois existem casos que, sem contar com

o juramento: “[...] uma corte não estaria suficientemente em posição de apurar

fatos mantidos em segredos e pronunciar a sentença correta.” (KANT, 2003a, p.

148, grifo do autor).

Em todos os quatro casos aqui expendidos, pode-se verificar

que não é possível descurar da distinção daquilo que a razão privada de cada

pessoa diz e, de outro lado, o que deve ser pronunciado por um Tribunal. Além

disso, importante salientar que, referidos casos demonstram que, contrariamente

a interpretação equivocada de alguns comentadores9, com a passagem do estado

de natureza para o estado civil não ocorre a simples recepção do Direito Natural e

sua colocação sob uma condição jurídica. Ao contrário, no estado civil, como dão

prova os casos citados, pode o Direito Natural julgar diferentemente do que fazia

no estado de natureza.

2.3 A DIVISÃO DOS DIREITOS ENQUANTO FUNDAMENTO LEGAL

RELATIVAMENTE AOS OUTROS: DIREITO INATO E DIREITO ADQUIRIDO

Dando prosseguimento ao estudo da divisão geral dos

Direitos, ela pode ser realizada, outrossim, considerando os Direitos como

faculdades morais de submeter outros a obrigações, ou seja, como fundamento

legal relativamente aos outros, como titulum para submeter os demais a

9 Cita-se, por exemplo, a posição de Norberto Bobbio, ao interpretar que, com a passagem do estado de natureza ao estado civil há a mera formalização pública do Direito Natural, sem qualquer outra alteração de sua substância. Cf. BOBBIO, 1997, p. 119-124.

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obrigações. Neste caso, é realizada a divisão superior dos Direitos10 em: 1- Direito

Inato, que é aquele que pertence a todos por natureza, não dependendo de um

ato jurídico para ser estabelecido como Direito; 2- e Direito Adquirido, que é

aquele que requer um ato jurídico para poder existir, podendo ser tanto um Direito

Natural como Positivo (KANT, 2003a, p. 83).

Referindo-se ao ato jurídico, esclarece Rohden (1992, p.

124): “O caráter jurídico de um ato significa que ele procede de uma razão prática,

como forma de uma possível vontade comum.” Por não exigir um ato jurídico, o

Direito Inato não precisa de uma Vontade Unida do Povo para constituir-se como

Direito, representando o que é internamente meu ou teu (meum vel tuum

internum), ou seja, a Liberdade; ao contrário, o Direito Adquirido requer uma tal

Vontade, e representa o que é externamente meu ou teu. O Direito Adquirido traz

consigo a exigência de leis institucionalizadas previamente fundamentadas.

Falar-se em Direito Inato é o mesmo que falar-se em Direito

Humano, pois pertence a todos devido à própria condição de ser humano,

independendo do momento histórico e cultural, do ordenamento jurídico vigente,

da organização política. Coloca Dutra (2005, p. 73): “Este direito é inato porque

cada pessoa o tem simplesmente em virtude de sua existência, não necessitando

de qualquer ato para estabelecê-lo.” Existe apenas um único Direito Humano, a

Liberdade Externa, conforme aduz Kant (2003a, p. 83):

A liberdade (independência de ser constrangido pela escolha

alheia), na medida em que pode coexistir com a liberdade de

todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único Direito

original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade

destes.

Do princípio da Liberdade Inata podem ser deduzidas (como

fossem integrantes da divisão de algum conceito superior de Direito) duas

competências: a Igualdade Inata, que consiste em poder obrigar aos outros até o

ponto em que se pode, por sua parte, ser obrigado; e a Independência, onde a

10 A divisão superior envolve um conceito dividido, de modo que as partes em que é dividido não rompem com a integridade e continuidade da totalidade do conceito, ou seja, não é uma divisão feita com saltos (divisio per saltum). (KANT, 2003a, p. 71).

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pessoa está autorizada a fazer aos outros qualquer coisa que em si mesma não

reduza o que é deles, enquanto não quiserem aceitá-la. Portanto, a Liberdade

Externa pontua que cada homem é simultaneamente igual e independente em

relação ao arbítrio impositivo de qualquer outro (KANT, 2003a, p. 84).

Estes três Direitos, de Liberdade, Igualdade e

Independência, também são utilizados por Kant, em geral, quando trata do

fundamento do Direito Público, onde recebem novo sentido, passando a se referir

ao estado civil. Kant formula diferentes posições para estes três Direitos, como a

que apresenta na obra À Paz Perpétua, em uma nota de rodapé, ao tratar do

primeiro artigo definitivo à Paz Perpétua; e a que apresenta na obra Sobre a

expressa corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática, em

sua segunda Seção, quando trata da relação da teoria com a prática no Direito

político. A última formulação para estes três Direitos, é exposta na sua obra A

Metafísica dos Costumes, ao se referir aos atributos que os cidadãos (cives)

possuem no que toca aos Direitos, quando explica Kant (2003a, p. 156, grifo do

autor):

[...] liberdade legal, o atributo de obedecer unicamente a lei à qual

deu seu assentimento, igualdade civil, o atributo que lhe permite

não reconhecer entre os membros do povo ninguém que lhe seja

superior dotado da faculdade moral de obrigá-lo juridicamente de

um modo que o impossibilite, por sua vez, de obrigar o outro e, em

terceiro lugar, o atributo da independência civil, graças ao qual

deve sua existência e preservação aos seus próprios Direitos e

poderes como membro da coisa pública (república) e não ao

arbítrio e um outro indivíduo componente do povo.

Havendo como Direito Inato apenas um Direito único e

original (a Liberdade), como um conceito que, em uma divisão superior, se divide

na Igualdade e Independência, não há necessidade de tratar de sua divisão na

Doutrina do Direito. Por isso, a divisão inserida na Doutrina do Direito trata sobre

o que é externamente meu ou teu, voltando-se ao Direito Adquirido, ao qual não

cabe apenas um único Direito, mas uma variedade deles agrupados em três

ramos: Direitos Reais, Direitos Pessoais e Direitos Pessoais de Natureza Real.

Por isso, na parte sobre Direito Privado da Doutrina do Direito é considerado

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apenas o meu e teu externos (Propriedade Privada), e não o meu e teu internos

(Liberdade) (KANT, 2003a, p. 84).

2.4 O DIREITO PRIVADO E O DIREITO PÚBLICO

Depois de apresentar a divisão geral dos Direitos (Direito

Natural e Positivo; Direito Inato e Adquirido) na parte B da Introdução da Doutrina

do Direito, intitulada Divisão geral dos Direitos, ainda nesta parte B, no subtítulo

Da divisão da moral como um sistema de deveres em geral, Kant irá tratar da

divisão superior do Direito Natural, a qual subordina as divisões anteriormente

realizadas e conduz à divisão em Direito Privado (natürliche Recht) e Direito

Público (öffentliche Recht).

A divisão superior do Direito Natural, portanto, não é

realizada em termos de Direito Natural e Direito Social, pois já no estado de

natureza existe uma condição social, em que se verifica, por exemplo, sociedades

conjugal, paternal, domésticas em geral, entre outras11. O que não existe no

estado de natureza é uma condição civil e, como o Direito Natural é observado

tanto na condição de natureza como na civil, a divisão do seu conceito deve ser

entre Direito Privado e Direito Público.

Por Direito Privado Kant entende o Direito existente no

estado de natureza, como um Direito pré-estatal (KANT, 2003a, p. 88). Já o

Direito Público é aquele existente no estado civil, sendo um Direito estatal que se

caracteriza como um conjunto de leis que necessitam ser promulgadas para

produzir um estado jurídico (KANT, 2003a, p. 153).

Cumpre relevar que a divisão entre Direito Natural e Direito

Positivo, não equivale à divisão entre Direito Privado e Direito Público, até mesmo

porque Kant trabalha o Direito Privado e o Direito Público como uma divisão

superior do Direito Natural. Quanto ao Direito Positivo, é encontrado no Direito

Público, na medida em que este é observado no âmbito das leis positivas. É o que

elucida Terra (1995, p. 94) ao lecionar:

11 É preciso destacar que uma sociedade civil verifica-se apenas em um estado civil. Cf. KANT, 2003, p. 88.

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O direito natural (Naturrecht) engloba tanto o direito privado

(direito natural em sentido estrito) quanto o direito público. A

distinção entre direito natural e direito positivo não se confunde

com a distinção entre direito natural privado e direito público

(direito civil). O direito público pode ser visto tanto no plano das

leis racionais, e portanto do Naturrecht, quanto no plano das leis

positivas.

Na Doutrina do Direito, Kant não trabalha com o Direito

Positivo no Direito Público, até mesmo porque esta é tarefa do jurista. Irá tratar

sobre o Direito Natural, o qual, por não se perder com a chegada do Direito

Público, pode, muito bem, ser um Direito Estrito (KANT, 2002b, p. 73). Com a

chegada do estado civil, nem mesmo pode-se dizer que o Direito Privado se perca

completamente, pois seu caráter persiste no Direito Público, conforme elucida

Barbieri Durão (2002, p.318, tradução nossa):

Evidentemente, o direito privado não se suprime tão logo se

constitua o estado civil; os direitos privados se convertem em

direitos públicos, sem perder o caráter de direito privado, porque

estão submetidos à coerção da justiça distributiva. Todo direito

para Kant, portanto, é direito público no estado civil, ainda que

uma parte siga sendo também direito privado sancionado pela

vontade unida do povo.12

Quando trata do Direito Privado, segundo elucida Caygill

(2000, p. 103): “Kant discute, em primeiro lugar, a noção de um Direito a algo

externo e, depois, os modos de obtenção de tais Direitos, seja por aquisição

original, seja por contrato.” Já em referência ao Direito Público: “[...] Kant

considera o Direito interno de um Estado, o Direito de nações e o Direito

Cosmopolita, todos no contexto de sua mais ampla tese política a favor de um

estado e constituição ‘republicanos’.” (CAYGILL, 2000, p. 103).

Com base no que foi até aqui analisado, pode-se afirmar que

tanto o Direito Privado quanto o Público encontram seus princípios no Direito

12 “Evidentemente, el derecho privado no se suprime tan pronto como se constituya el estado civil; los derechos privados se convierten en derechos públicos, sin perder el carácter de derecho privado, porque están sometidos a la coacción de la justicia distributiva. Todo derecho para Kant, por lo tanto, es derecho público en el estado civil, aunque una parte de él siga siendo también derecho privado sancionado por la voluntad unida del pueblo.”

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Natural. No entanto, enquanto no Direito Privado encontra-se exclusivamente o

Direito Natural Inato e o Direito Natural Adquirido, no Direito Público encontra-se o

Direito Natural Inato e Adquirido e o Direito Positivo. No caso do Direito Público, o

Direito Natural é garantido e fornece o fundamento e princípios ao Direito Positivo.

O Direito Positivo, por sua vez, pertence ao Direito Público, na medida em que

este é observado no plano das leis positivas, sendo que é sempre um Direito

Adquirido.

A Propriedade Privada aparece como um Direito Privado,

Natural e Adquirido, de sorte que, se concebida enquanto meu e teu externos,

compõe o Direito Real, o Direito Pessoal e o Direito Pessoal de Natureza Real.

Todavia, a Propriedade Privada não é o único Direito Privado existente, pois no

estado de natureza existe ainda o Direito Inato de liberdade, conforme

anteriormente assinalado, havendo, por isso, duas fontes ao Direito Privado.

Se apresenta aqui um escolho ao qual Kant precisa resolver

para poder seguir o curso de sua filosofia e sustentar o Direito Privado e o Direito

Público. É um problema concernente à possibilidade de haver Direito Adquirido no

estado de natureza, tendo em vista que, como foi anteriormente assinalado, o

Direito Adquirido requer um ato jurídico prévio, o que pode ocorrer apenas no

estado civil, por uma garantia estabelecida pela Vontade Unida do Povo. Tal

problemática é observada ao se considerar que o Direito Natural Adquirido é

concebido por Kant, enquanto Direito Natural, como já vigente no estado de

natureza e deduzido a partir da razão prática, e, enquanto Adquirido, na exigência

de uma vontade universal representada na vontade do legislador e expressa na

constituição legal-pública como ato jurídico (BARBIERI DURÃO, 2002, p. 309).

Deste modo, o problema se traduz na seguinte interrogação: Como é possível um

Direito Natural Adquirido (ou, em outras palavras, um ato jurídico) desde o estado

de natureza?

Este problema possui ainda um segundo aspecto a ser

considerado, o qual é bem delimitado por Barbieri Durão (2002, p. 73), ao

assinalar que, pretendendo Kant fundamentar o Direito de Propriedade como

Direito Natural Adquirido, a partir de uma Vontade Unida que se constitui apenas

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com a entrada no estado civil, retoma as teorias de Hugo Grotius e Samuel

Pufendorf. Não obstante, ao fazê-lo, depara-se com a crítica de John Locke

destinada a estes dois jusnaturalistas, pois como é possível ao homem sobreviver

no estado de natureza sem que eles possam ter a apropriação e o uso de nada,

mesmo estando tudo disponível a todos? Poder-se-ia cogitar, em contraposição a

Locke, que no estado de natureza há apenas a apropriação e uso das coisas sem

nenhum Direito a elas, de modo que somente surge o Direito com o Contrato

Social. Contudo, este argumento não seria aceitável, tendo em vista que para os

pensadores dos séculos XVII e XVIII o estado natural é um estado jurídico,

precisando haver um Direito Natural que correspondesse à Propriedade para que,

desta forma, se possibilitasse o uso das coisas no estado de natureza.

Salienta-se, ainda, um terceiro aspecto do problema, que diz

respeito à inexistência, no estado de natureza, da coerção como garantia ao

Direito, e, conseqüentemente, a inviabilidade de poder considerá-lo como um

estado jurídico. Deste modo, o Direito Público se identifica com o Direito no

sentido estrito, cabendo responder à questão de como o Direito Adquirido,

exigindo o Direito Público e o estado civil para existir, possa já se encontrar no

estado de natureza.

Deste modo, apresentam-se três aspectos de um mesmo

problema que está reunido em uma única questão: como é possível estabelecer

Direitos no estado de natureza? Existe a premência de solução para esta

questão, pois, do contrário, a construção do Direito Privado e Público de Kant

perderia todo seu crédito, tendo em vista que o Direito Natural Adquirido, no

Direito Privado, define a legitimidade e os limites da posse das coisas exteriores,

e, no Direito Público, trata da vida social dos indivíduos numa comunidade

juridicamente ordenada (ABBAGNANO, 2000, p. 148). Afora isso, atingir tal

definição é crucial para a sustentação da possibilidade de um Direito das Gentes

e de um Direito Cosmopolita. A resolução deste problema, conforme o trabalha

Kant, será analisado no Capítulo que segue.

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CAPÍTULO 3

A POSSIBILIDADE DE SE FUNDAMENTAR A CATEGORIA JURÍDICA

3.1 A CARACTERIZAÇÃO DO ESTADO DE NATUREZA

O estado de natureza (status naturalis) não é um dado

histórico, mas uma idéia da razão que funda, a priori, a necessidade de um poder

coercitivo em harmonia com a liberdade de todos, o que pode ser alcançado

apenas em um estado civil. Por isso, sua idéia torna um dever incondicionado o

ingresso no estado civil, pois no estado de natureza ninguém está seguro contra a

violência recíproca. Ao conceituar o estado de natureza, pronuncia Kant (2003a,

p. 150): “Uma condição que não é jurídica, isto é, uma condição que não encerra

justiça distributiva, é chamada de estado de natureza (status naturalis).”

O estado de natureza, para Immanuel Kant, é uma condição

provisória que deve dar passagem ao estado civil. Diz-se provisório porque é um

estado de guerra, onde não há Justiça Distributiva, ou seja, não existe um juiz

competente para proferir uma sentença quando há um litígio. Segue-se que, no

estado de natureza, não existe um poder legítimo de coerção e,

conseqüentemente, não há segurança sobre o que cada um detém como seu.

Elucida Bobbio (1997, p. 88):

Dizendo que o estado de natureza é provisório, Kant quer dizer

que, segundo a sua mesma constituição, ou seja, pela falta de

uma coação organizada e, portanto, de uma garantia comum das

respectivas liberdades externas dos indivíduos singulares, não

está destinado a durar. É um estado cujo destino é levar ao

estado civil, o qual somente pode durar uma vez organizado o

poder coercitivo.

Por isso, no estado de natureza se verifica uma perene

ameaça de hostilidades. Mesmo aventando-se a hipótese de referida hostilidade

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não se concretizar na prática, sua simples ameaça já é suficiente para esvaziar

qualquer certeza sobre a proteção, contra a violência, da posse de cada um.

Ainda mais, deve-se acentuar que no estado de natureza encontra-se manifesta a

máxima de violência dos seres humanos, bem como a maldade que os impele a

se lesarem mutuamente, o que perdura enquanto não for instaurado o estado

civil13. Deste modo, é um estado que não possui as condições para arvorar a Paz

entre os homens, conforme expõe Kant (1989, p. 32):

O estado de paz entre os homens que vivem lado a lado não é um

estado de natureza (status naturalis), que antes é um estado de

guerra, isto é, posto que nem sempre uma eclosão de

hostilidades, contudo [é] uma ameaça permanente destas.

No estado de natureza é autorizada a coerção contra aquele

que ameaça de coerção, pois ninguém precisa esperar até o momento de ser

lesionado para, apenas então, esboçar qualquer reação. Da mesma forma, não

há obrigações recíprocas, pois não é proporcionada a certeza de que cada um

não irá violar a posse do outro, conforme aduz Kant (2003a, p. 151): “Ninguém é

obrigado a abster-se de violar a posse alheia se o outro não lhe proporcionar igual

certeza de que observará a mesma abstenção em relação a ele.” Segue-se,

então, que não havendo segurança sobre aquilo que cada um possui como seu,

impera uma liberdade anárquica.

No estado de natureza não é possível haver garantias ao

que é meu e teu, e, conseqüentemente, torna-se precária a Posse Jurídica de um

objeto externo do arbítrio, tendo em vista que, como no estado de natureza cada

um segue seu próprio critério, todos estão vulneráveis uns diante dos outros. Em

outras palavras, não havendo Justiça legalizada no estado de natureza, isto é, um

Tribunal ao qual todos possam recorrer quando se sintam prejudicados, o estado

de natureza pode ser entendido como um estado sem garantias de Justiça

(PILON, 2002, p. 47).

13 Esta afirmação implica, servindo-se das palavras de Arendt (tradução nossa): “[...] que um homem malvado pode ser um bom cidadão no seio de um bom Estado.” No original: “[...] que un hombre malvado puede ser un buen ciudadano en el seno de un buen Estado.” ARENDT, Hannah. Conferencias sobre la filosofía política de Kant. Traducción de Carmen Corral. Buenos Aires: Paidós, 2003e. p. 40.

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Além disso, havendo a intenção em permanecer no estado

de natureza, isto é, na hipótese das partes envolvidas em um litígio quererem

permanecer no estado de natureza, colocam-se em condições de igualdade, de

modo que, neste caso, não há como se cogitar na injustiça de um indivíduo frente

ao outro. Assim, não se afirma que uma parte é injusta e outra não, até mesmo

porque não existe um Tribunal que julgue com força de Direito (rechtskräftig). O

que ocorre é o ímpeto de cada qual em afirmar seu próprio Direito pela força, do

que resulta a falta de garantias à posse de cada um. A injustiça que se verifica em

tal hipótese, reside na própria intenção das partes em permanecer no estado de

natureza, que já é, por si só, um estado de injustiça. Como observa Kant (2003a,

p. 152):

Dada a intenção de estar e permanecer nesse estado de liberdade

externamente anárquica, os seres humanos não causam, de

modo algum, injustiça mútua quando se hostilizam, uma vez que o

que é válido para um é válido também, por seu turno, para o outro,

como se por mútuo consentimento (uti partes de iure suo

disponunt, ita ius est). Mas em geral causam injustiça no mais

elevado grau, desejando ser e permanecer numa condição que

não é jurídica, isto é, na qual ninguém está assegurado do que é

seu contra a violência.

Portanto, aqueles que têm a intenção de permanecer no

estado de natureza cometem a injustiça em seu mais alto grau, pois, além de

desejarem se manter em uma condição na qual a Propriedade não é garantida,

“[...] eliminam qualquer validade do próprio conceito de direito e tudo conduzem à

violência selvagem que aparenta legalidade e, assim, subvertem o direito dos

seres humanos enquanto tais.” (KANT, 2003a, p. 152). Agora, cumpre sublinhar

que não é a experiência quem ensina ser o estado de natureza um estado de

violência, mas sim a própria razão, como leciona Kant (2003a, p. 154):

[...] por melhor predispostos e acatadores da lei que pudessem ser

os homens, ainda assim está assentado a priori na idéia racional

de uma tal condição (aquela que não é jurídica) que antes de uma

condição legal pública ser estabelecida, indivíduos humanos,

povos e Estados jamais podem estar seguros contra a violência

recíproca, uma vez que cada um detém seu próprio direito de

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fazer o que parece certo e bom para si e não depender da opinião

alheia a respeito disso.

Assim, para que não haja renúncia ao conceito de Direito, do

Direito Privado procede o postulado do Direito Público que preconiza: a

necessidade de saída do estado de natureza; a união de todos sob uma coerção

legal externa; e a entrada em um estado civil, onde as determinações provêm da

lei emanada de um poder legítimo. Referido postulado recebe seu fundamento de

modo analítico, partindo-se do conceito de Direito nas relações externas, por

oposição à violência (KANT, 2003a, p. 151). O postulado do Direito Público é

formulado por Kant (2003a, p. 151) ao dizer:

[...] quando não podes te furtar a viver lado a lado com todos os

outros, deves abandonar o estado de natureza e ingressar com

eles num estado jurídico, isto é, uma condição de Justiça

Distributiva.

Do exposto, fica evidente que a Paz segura e duradoura

somente pode ocorrer mediante o Direito, com a entrada em um estado civil e a

instauração de uma Constituição Republicana. Referida superação do estado de

natureza corresponde ao primeiro estágio, realizado pelos indivíduos entre si, com

a formação do Direito Público Interno (Staatsbürgerrecht). Não é o único estágio,

pois, depois, torna-se preciso que as relações dos Estados entre si seja

submetida a condições jurídicas, pelo Direito das Gentes (Völkerrecht), fundado

sobre um federalismo de Estados livres; em outro nível, é necessário estabelecer

as condições jurídicas para as relações dos Estados e indivíduos entre si, pelo

Direito Cosmopolita (Weltbürgerrecht).

3.2 A PASSAGEM DO ESTADO DE NATUREZA PARA O ESTADO CIVIL: O

CONTRATO CIVIL

A saída do estado de natureza se dá com a união de todos

aqueles que interagem entre si, para, assim, firmarem um Contrato Originário

(contractus originarius ou pactum sociale) com o intuito de ingressar em uma

Constituição civil (constitutionis civilis). Pelo Contrato Originário é efetuada a

coligação de todas as vontades particulares e privadas em uma vontade geral e

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pública, visando submeter seu Direito a leis públicas de coerção para promover a

determinação e garantia daquilo que cada um tem como seu. O Contrato

Originário é o ato pelo qual o povo ingressa no estado de natureza e legitima o

Estado, como ensina Kant (2003a, p. 158):

O ato pelo qual um povo se constitui num Estado é o contrato

original. A se expressar rigorosamente, o contrato original é

somente a idéia desse ato, com referência ao qual exclusivamente

podemos pensar na legitimidade de um Estado.

Pelo Contrato Originário todos realizam a renúncia de sua

liberdade selvagem e sem lei, para se apegar a uma Liberdade Civil. A Liberdade

Civil significa: “[...] o atributo de obedecer unicamente a lei à qual deu seu

assentimento.” (KANT, 2003a, p. 156). Portanto, apesar de na Liberdade Civil as

pessoas estarem sob o império da lei, não provam redução da Liberdade, eis que

são leis emanadas de sua própria vontade, entendida esta enquanto Vontade

Unida do Povo. Afirma Kant (2003a, p. 158):

E não se pode dizer: o ser humano num Estado sacrificou uma

parte de sua liberdade externa inata a favor de um fim, mas, ao

contrário, que ele renunciou inteiramente à sua liberdade

selvagem e sem lei para se ver com sua liberdade toda não

reduzida numa dependência às leis, ou seja, numa condição

jurídica, uma vez que essa dependência surge de sua própria

vontade legisladora.

O Contrato Originário não significa um fato histórico, como

se os antepassados um dia tivessem realmente se reunido e pactuado. Ao

contrário, é uma idéia da razão e, por isso, o Estado não fica na dependência de

alguma notícia segura, na história, da efetiva realização do Contrato, para se

legitimar. Sendo o Contrato Originário uma idéia da razão, significa que o Estado

está fundado e legitimado na Vontade Unida do Povo, como expõe Kant (1984, p.

56, tradução nossa):

Se trata, ao contrário, de uma simples idéia da razão, que tem

uma realidade (prática) indubitável enquanto obriga todo o

legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem ter sido

emanadas da vontade coletiva de um povo inteiro, e a considerar

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todo o súdito, enquanto quer ser cidadão, como se ele tivesse

assentido pelo seu sufrágio a semelhante vontade. Com efeito,

esta é a pedra de toque da legitimidade de toda lei pública14.

Sem a pretensão de ser exaustivo, é possível afirmar que,

com a instauração do estado civil (status civilis), é criado o Direito Público, o

Estado (civitas), a condição jurídica, a associação civil (unio civilis). O estado civil

significa: “[...] uma sociedade sujeita à Justiça Distributiva.” (KANT, 2003a, p.

150). O Direito Público, já conceituado no Capítulo 2 (2.4), é: “O conjunto das leis

que necessitam ser promulgadas, em geral a fim de criar uma condição jurídica

[...]” (KANT, 2003a, p. 153). Quanto a condição jurídica: “[...] é aquela relação dos

seres humanos entre si que encerra as condições nas quais, exclusivamente,

todos são capazes de fruir seus Direitos.” (KANT, 2003a, p. 150). Já o Estado é:

“[...] o conjunto dos indivíduos numa condição jurídica, em relação aos seus

próprios membros [...]” (KANT, 2003a, p. 153). No que toca à associação civil, é

aquela que: “[...] garante o que é meu e teu mediante leis públicas.” (KANT,

2003a, p. 88). Releva o seguinte ensinamento de Bonavides (1996, p. 112), ao

dizer:

Quando ocorre a passagem do status naturalis ao status civilis, o

Estado então se constitui, aparece o Direito Público como Direito

estatuído, provido de aparelhagem técnica, de órgãos que

permitem ao princípio da autoridade positivar-se socialmente.

Ademais, é apenas no estado civil que se verifica a Justiça

Pública. A Justiça Pública é o princípio formal que possibilita a condição jurídica

sob a idéia de uma vontade universalmente legisladora. A Justiça Pública é

dividida, no que tange à possibilidade, ou à realidade ou à necessidade da posse

de objetos de acordo com as leis15, em: Justiça Protetiva (iustitia tutarix), quando

a lei trata da ação que, internamente, é justa, para o que é considerada sua forma

14 “Se trata, al contrario, de una simple Idea de la razón, pero que tiene una realidad [Realität] (práctica) indudable en cuanto obliga a cada legislador a que dé sus leyes como si éstas pudieran haber emanado de la voluntad colectiva de todo un pueblo y a que considere a cada súbdito, en tanto éste quiera ser ciudadano, como si hubiese contribuido a formar con su voto una voluntad semejante. Pus ésta es la piedra de toque de la legitimidad de toda ley pública.”

15 Aqui é possível verificar novamente a importância da Propriedade no sistema filosófico kantiano, eis que a divisão da Justiça Pública está totalmente pautada na idéia de Propriedade.

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(lex iusti); Justiça Comutativa (iustitia commutativa), responsável por apontar

quando uma posse é jurídica, ou seja, enuncia qual objeto, quanto sua matéria, é

legalizável (lex iuridica); Justiça Distributiva (iustitia distributiva), quando há uma

decisão de um Tribunal, pautando-se nas leis públicas, para ditar ao caso

particular o que é de Direito (lex iustitiae) (KANT, 2003a, p. 150).

O Contrato Originário tem em comum com os demais

contratos, a união de homens visando uma finalidade; sua peculiaridade está no

princípio da sua instituição, que faz da própria união de muitos homens a

finalidade que os contratantes devem ter. Deste modo, surge a determinação da

razão, pela qual apenas através do Contrato Originário o homem pode gerar leis

para todos, sob a chancela da Vontade Unida do Povo.

3.3 O PRESSUPOSTO DA POSSE NO ESTADO DE NATUREZA

A passagem do estado de natureza a uma condição jurídica

é um dever incondicionado e primordial, traduzido no postulado do Direito Público,

já citado anteriormente (3.1). Ao tratar desta passagem, faz parte central da

argumentação de Kant a preocupação com que sejam fornecidas garantias à

Propriedade. É algo tão evidente que, para enredar seu sistema filosófico do

Direito, Kant procura se desembaraçar de quaisquer dificuldades que pudessem,

porventura, comprometer sua fundamentação da Propriedade.

Neste sentido, para a compreensão da fundamentação da

Propriedade, situando-a em terreno seguro, é necessário partir da efetivação do

Estado. Não obstante, o Estado, para ser logrado, depende com que as pessoas

tenham a compreensão de que necessitam ter o Direito da posse legitimado. Por

isso, importa, nesta altura dos estudos, continuar com os entendimentos

correlatos ao estado de natureza, onde, então, é preciso cogitar se há

possibilidade, já neste estágio, das pessoas adquirirem e terem algo como seu.

No caso de não ser admitida qualquer possibilidade de

alguém adquirir algo já no estado de natureza, se tornaria impossível a passagem

para uma condição civil, não existiriam deveres de Direito, o Direito Privado

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restaria esvaziado e o próprio postulado do Direito Público se tornaria inócuo. São

as palavras de Kant (2003a, p. 155):

Na hipótese de nenhuma aquisição ter sido reconhecida como

jurídica, mesmo em caráter provisório, antes do ingresso na

condição civil, a condição civil ela mesma seria impossível, pois

no que toca à sua forma, leis que concernem ao que é meu ou teu

no estado de natureza contêm a mesma coisa que prescrevem na

condição civil, porquanto a condição civil é pensada somente por

conceitos puros racionais.

Analisando este excerto, é preciso notar a pretensão de Kant

em demonstrar a possibilidade de se ter algo, em caráter jurídico, desde o estado

de natureza. Kant se vê forçado a admitir uma tal posse, que serve de

antecipação e preparação a uma efetiva posse no estado civil, em razão do

estado civil não criar leis do que é meu e teu, mas apenas concretizar as

condições para aplicação do Direito Natural já existente no estado de natureza.

Em outras palavras, a condição civil, no que toca àquilo que cada um tem como

seu, não modifica o teor do Direito Natural já existente desde o estado de

natureza, mas apenas junta a ele uma garantia, não alterando a substância das

leis do que é meu e teu, mas apenas a forma, o modo de proteção daquilo que

cada um tem como seu. Segue-se, portanto, que o Direito Público não contém

deveres externos do que é meu e teu diferentes daqueles existentes no Direito

Privado. Por isso, explica Kant (2003a, p. 102):

[...] uma Constituição civil é precisamente a condição jurídica pela

qual o que pertence a cada um é apenas assegurado, porém não

realmente estabelecido e determinado. Qualquer garantia, então,

já pressupõe o que pertence a alguém (a quem ela assegura).

O pressuposto de uma posse com contornos jurídicos já no

estado de natureza conduz a seguinte circunstância: no caso do sujeito que

possui um objeto ser afetado na sua posse, entrando em conflito com outros, há

total permissão em constranger todos aqueles com quem entra em conflito a

ingressar com ele em uma condição civil. A alternativa de forçar os demais a

entrar em um estado civil se deve ao fato de, no estado de natureza, não existir

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garantia para o que é meu e teu, algo que poderá ser provido apenas em uma

condição jurídica, como explana Kant (2003a, p. 154-155):

Daí, cada um poderia compelir o outro, mediante força, a deixar

esse estado e ingressar numa condição jurídica, pois embora

cada um possa adquirir algo externo assumindo o seu controle ou

por meio de contrato de acordo com seus conceitos do direito,

essa aquisição permanecerá apenas provisória enquanto não

encerrar a sanção da lei pública, uma vez que não é determinada

pela justiça (distributiva) pública e assegurada por uma autoridade

que torne efetivo esse direito.

Ante o exposto, é preciso apresentar, no seguimento do

estudo, de que modo Kant aborda a juridicidade existente no estado de natureza

e de que modo esta juridicidade consente com a possibilidade de uma posse com

moldes jurídicos, já no estado de natureza.

3.4 ESCLARECIMENTOS SOBRE A PROPRIEDADE: O MEU E TEU

EXTERNOS, A POSSE E A DISTINÇÃO ENTRE POSSE EMPÍRICA E POSSE

JURÍDICA

Partindo da abordagem anterior é necessário, de incipiente,

estabelecer o significado para meu e teu externos, o que permite visualizar a

condição para que uma pessoa possa dizer que algo é seu, ou seja, que tem a

posse de dado objeto. Na Parte I da Doutrina do Direito, intitulada Direito Privado

no tocante ao que é externamente meu ou tem em geral, Kant (2003a, p. 92), logo

em sua primeira colocação, expõe o significado do que é juridicamente meu, ao

afirmar: “É juridicamente meu (meum iuris) aquilo com o que estou de tal forma

ligado que o seu uso por parte de outrem sem meu consentimento me

prejudicaria.” Depreende-se desta assertiva que aquilo que é juridicamente meu

requer uma ligação do sujeito com o objeto16. Contudo, referida ligação deve ser

esclarecida, para que o sentido da afirmação seja devidamente dimensionado.

16 Desde já, cumpre ressaltar que a ligação do sujeito com o objeto não deve ser entendida como uma relação do sujeito com o objeto. Pensar em uma relação do sujeito com o objeto é uma noção errônea, rechaçada por Kant, como será detalhado no Capítulo 4. Na realidade, o que ocorre é o uso do objeto, devido a ligação física ou inteligível que se tem com ele. No caso da

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A ligação do sujeito com o objeto é o que permite o uso de

referido objeto, correspondendo a uma condição subjetiva denominada de Posse.

É o que expõe Kant (2003a, p. 91) ao dizer: “A condição subjetiva de qualquer

uso possível é a posse.” Tal ligação pode ser entendida de duas formas: a) como

um elo físico do indivíduo com seu objeto, ou seja, como uma Posse Física; b)

como uma conexão inteligível ou jurídica, ou seja, como uma Posse Jurídica. No

caso da Propriedade (juridicamente meu), fala-se da ligação inteligível, pois é esta

a única que capacita pensar um prejuízo causado contra o proprietário, mesmo

quando ele não se encontra na Posse Física e atual do seu objeto. Por isso, a

noção de Propriedade exige a noção e distinção entre Posse Física e Posse

Jurídica.

A Posse Física, também chamada de sensível, ou empírica,

ou fenomênica, implica uma mera relação física do indivíduo com a coisa, em

virtude de ele estar em contato direto e empírico com o objeto. É o que leciona

Guyer (2000, p. 244, tradução nossa), ao afirmar: “Posse física ou detenção é o

contato físico que o sujeito tem de um objeto ou a ocupação física de algum lugar

[...].”17 Partindo-se da posse empírica, ao se deparar com o juízo “Um objeto é

exterior a mim”, pode-se entender apenas que o objeto é exterior em razão de se

localizar em um espaço ou tempo distinto daquele do sujeito possuidor. Por isso,

são computados elementos empíricos, quais sejam, espaço e tempo18 (KANT,

2003a, p. 91).

A Posse Jurídica, denominada também de inteligível, ou

racional, ou noumênica, implica uma relação inteligível do indivíduo com a coisa,

tendo em vista que a posse só pode ocorrer quando há um elemento racional

(Vontade Unida do Povo) dando-lhe autorização. A Posse Jurídica ocorre quando

um indivíduo é prejudicado pelo uso de uma coisa por outrem, ainda que ele não

Propriedade, referido uso é possibilitado pelo fato dos demais não interferirem na posse de determinada pessoa, de acordo com a idéia da Vontade Unida do Povo.

17 “Physical possession or detention is the bodily holding of an object or the bodily occupation of a place [...]”.

18 E claro que, aqui, espaço e tempo são referidos por Kant de modo diverso daquele exposto na obra Crítica da Razão Pura, pois não procura, em sua Doutrina do Direito, coordenar os objetos da sensibilidade para a construção de um juízo pelos conceitos do entendimento, o que é tarefa da filosofia teórica.

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esteja na Posse Física dela. A partir da Posse Jurídica, o juízo “Um objeto é

exterior a mim” pode ser interpretado apenas de modo inteligível, ou seja, sem

mesclar elementos empíricos. Deste modo, não é cogitado se o objeto está aqui

ou acolá, mas simplesmente que o objeto é distinto do sujeito possuidor, pois à

Posse Jurídica importa apenas que o sujeito possui o objeto, sem considerar a

localização de ambos (KANT, 2003a, p. 91).

Digitadas colocações podem ser melhor compreendidas

valendo-se de um exemplo. Considera-se o caso de um ladrão que furta

determinado objeto. Neste caso, o prejuízo causado ao proprietário não adviria

apenas se, no momento do furto, o proprietário estivesse na Posse Física do

objeto. A ligação jurídica do proprietário com seu objeto se abstém de

considerações empíricas (sobre o local ou tempo do furto, ou se o objeto estava

ou não nas mãos do proprietário, no momento do furto), sendo considerado

apenas que o proprietário possui uma ligação tal com seu objeto que, sem

importar onde se encontram o proprietário ou seu objeto, qualquer investida alheia

contrária ao seu consentimento lhe acarreta um prejuízo. Por isso, fala-se em

uma ligação inteligível, como a tutela jurídica que cada um tem daquilo que é seu,

do que resulta, no exemplo em tela, que o infrator detém a Posse Física do objeto

furtado, mas de modo algum a Posse Jurídica.

Pelas presentes considerações, contudo, não aparece a

resposta para a questão da possibilidade de uma Posse Jurídica já no estado de

natureza, mas, ao revés, parece que a questão fica ainda mais irresoluta e

complexa, em razão da Posse Jurídica, para existir peremptoriamente, necessita

de uma garantia jurídica, suprida pela Vontade Unida do Povo, o que pode ocorrer

somente em um estado civil. Para se desfazer destas complicações, parte-se às

explicações a seguir.

3.5 O POSTULADO DA RAZÃO PRÁTICA

De início, surge a necessidade de apresentar o conceito de

objeto externo de meu arbítrio (ou escolha) ou, simplesmente, objeto de meu

arbítrio (ou escolha). Pela noção de arbítrio, já explanada no Capítulo 1 (1.2.4.1),

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é possível pensar que o objeto de meu arbítrio é qualquer objeto que a pessoa

tem a capacidade física de usar conforme lhe apraz. Como conceitua Kant

(2003a, p. 92): “[...] um objeto de minha escolha é alguma coisa pra cujo uso

disponho de poder físico.” Mais adiante, ratifica Kant (2003a, p. 92): “Mas um

objeto de minha escolha é aquele para o qual disponho de capacidade física de

usar como me agrade, aquele cujo uso está em meu poder (potentia).”

O objeto de meu arbítrio é um objeto sobre o qual qualquer

um pode ter a Posse Física e usar. Diante desta constatação, aparece a seguinte

interrogação: Há possibilidade de ter a Posse Jurídica sobre o objeto de minha

escolha? A resposta é elaborada na forma de um postulado da razão prática, que

recebe três formulações, todas complementares entre si, expostas por Kant

(2003a, p. 92-93, grifo do autor) como segue:

(I)

É possível, para mim ter qualquer objeto externo de minha

escolha como meu, isto é, uma máxima segundo a qual, se fosse

para se tornar uma lei, um objeto de escolha teria em si mesmo

(objetivamente) que pertencer a ninguém (res nullius), é contrária

à lei.

(II)

Este postulado pode ser chamado de lei permissiva (lex

permissiva) da razão prática, a qual nos concede uma

competência que não poderia ser obtida de meros conceitos de

Direito enquanto tais, a saber, submeter todos os demais a uma

obrigação que, de outra maneira, não teriam de se absterem de

usar certos objetos de nossa escolha porque formos os primeiros

a ter deles a posse.

(III)

[...] é um dever de Direito agir com os outros de sorte que o que é

externo (utilizável) possa também se tornar de alguém [...].

Diante do postulado, insta apresentar explicação

concernente ao seu conteúdo, sua afinidade com a Liberdade Externa e o Direito,

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bem como expor como ganha validade. Sobre o postulado da razão prática é

preciso ressaltar quatro pontos: a) Aparece como uma lei permissiva que

preceitua que os objetos de minha escolha podem ser juridicamente meus, ou

seja, que todo objeto suscetível de uma Posse Física também é suscetível de

uma Posse Jurídica; b) Impõe a obrigação de que a primeira tomada de posse de

um objeto (aquisição original) deve ser respeitada por todos; c) Concede

autorização para uma Posse Jurídica, mesmo que provisória, no estado de

natureza; d) Impõe a saída do estado de natureza e o ingresso no estado civil. É o

que será desenvolvido no seguimento do estudo.

3.5.1 O postulado da razão prática e sua compatibilidade com a Liberdade

Externa e o Direito

O postulado afirma que é possível a Posse Jurídica

daqueles objetos sobre os quais há possibilidade de ser exercida a Posse Física.

Por isso, torna-se impossível a existência de res nullius, posto que a res nullius é

aquele objeto que não pode ser feito de ninguém, ou seja, que, muito embora

possa haver sua Posse Física, de modo algum pode-se ter sua Posse Jurídica.

Rechaçando a res nullius, segue-se que qualquer máxima que procure afirmar ser

a Propriedade inviável, é totalmente contrária à razão e, da mesma forma,

contrária à Liberdade e ao Direito. Por isso, não é possível admitir qualquer

proibição jurídica sobre a possibilidade de se ter a Posse Jurídica de determinado

objeto de minha escolha. Conforme alude Lessa (2000, p. 270): “Proceder de

outra maneira seria tornar praticamente inúteis, nulas, as coisas materiais, e

condenar o homem a perecer.”

Mesmo que a Propriedade possa ser entendida como um

poder, tanto no sentido do poder do proprietário sobre a coisa, quanto do

proprietário sobre as demais pessoas - na medida em que estas não podem

interferir em sua Propriedade-, ela não fere, de modo algum, a Liberdade. Tese

contrária é a defendida pelo comunismo filosófico, que entende que a Propriedade

fere a Liberdade dos outros e concentra poder, o que pode ser observado com

clareza nas palavras de um de seus representantes, Phoudon (2000, p. 21), ao

exclamar: “A Propriedade é um roubo!”

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Kant segue por outra mão, e entende que a Liberdade não

pode privar os seres humanos de terem a Propriedade de determinado objeto de

minha escolha. Ora, havendo a ligação física do sujeito com o objeto, bem como a

possibilidade de uso deste objeto, é possível que este objeto se torne Propriedade

de alguém, pois, do contrário, objetos utilizáveis ficariam privados do uso pelas

pessoas, ou, conforme dispõe Kant (2003a, p. 92): “[...] a liberdade estaria

privando a si mesma do uso de sua escolha quanto a um objeto de escolha,

colocando objetos utilizáveis além de qualquer possibilidade de serem usados;”

Ademais, a razão prática adota apenas leis formais ao uso do arbítrio, não

podendo estabelecer qualquer proibição absoluta contrária ao uso dos objetos,

pois, se o fizesse, estaria considerando a matéria do arbítrio (KANT, 2003a, p.

92). Cumpre assinalar o magistério de Guyer (2000, p. 243-244, tradução nossa):

[...] é natural e necessário para nós exercer nossa liberdade

externa de ação não somente no movimento de nosso próprio

corpo mas também no uso de outros objetos da natureza; e a

instituição da propriedade concerne ao domínio do direito ou

legislação jurídica porque referido exercício do nosso direito de

liberdade de ação naturalmente afeta a liberdade de ação de

outros, que poderiam usar os mesmos objetos, e que podem

também ser influenciados pela incidência da coerção externa.19

Depreende-se, assim, que os objetos estão à disposição dos

homens para serem usados, de sorte que “[...] a liberdade do arbítrio humano é

ilimitada frente aos objetos externos.”20 (ORTS, 1999, p. XLVIII, tradução nossa).

Por isso, o postulado da razão prática se apresenta concordando com a Lei

Universal do Direito, esta última já citada no Capítulo 1 e a seguir transcrita: “[...]

age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a

liberdade de todos de acordo com uma lei universal [...]”. (KANT, 2003a, p. 77,

grifo do autor). Destarte, é possível o uso de um objeto de minha escolha de

acordo com a Liberdade Externa e, ainda mais, é possível ter dele o poder

19 “[...] it is natural and necessary for us to exercise our external freedom of action not only in the motion of our own bodies but also in the use of other objects in nature, and the institution of property falls within the realm of right or juridical legislation because such an exercise of our right to freedom of action naturally affects the freedom of action of others who might use the same objects and who can also be influenced by coercive external incentives.”

20 “[...] la libertad del arbitrio humano es ilimitada frente a los objetos externos.”

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jurídico. Partindo destas explicações, atenta-se ao que esclarece Bobbio (1997, p.

100):

Não seria possível conceber nenhuma regra jurídica que

delimitasse o meu do teu e tornasse possível a convivência das

liberdades, se não partíssemos do pressuposto de que, em geral,

o mundo externo é o conjunto dos meios dos quais o homem pode

dispor para alcançar os próprios fins.

Agora, é preciso salientar que a exposição da

compatibilidade do postulado com a Liberdade e o Direito não faz qualquer

comprovação da sua validez, o que pode ser feito apenas entendendo-o enquanto

uma lei permissiva que recebe chancela da razão prática, como será explicado a

seguir.

3.5.2 O postulado da razão prática como lei permissiva

Uma vez admitido que todo objeto externo de minha escolha

pode ter um possuidor (Posse Física), deve-se pressupor, racionalmente, a

admissibilidade de que o objeto possa ser juridicamente meu, conforme esclarece

Kant (2003a, p. 92): “É, portanto, uma pressuposição a priori da razão prática

considerar e tratar qualquer objeto de minha escolha como algo que pudesse

objetivamente ser meu ou teu.” Loparic (2005, fev. 19, p. 3) faz a seguinte

colocação a respeito:

Não parece ser problemático afirmar a priori que algo que estiver

em minha posse física – algo de que sou detentor- possa ser,

também, legítima e mesmo legalmente, meu, pois tudo faz pensar

que a negação dessa possibilidade equivale à supressão pura e

simples do uso externo do livre-arbítrio.

A determinação do postulado da razão prática é uma lei

permissiva, cuja competência não é concebida a partir de meros conceitos de

Direito enquanto tais, mas sim pela vontade da razão prática de que tal postulado

seja válido como um princípio prático. Para o melhor entendimento do postulado

enquanto uma lei permissiva, cujo conteúdo é uma pressuposição a priori da

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razão prática, o que é exposto na obra A Metafísica dos Costumes, é necessário,

anteriormente, partir da noção de lei permissiva traçada na obra À Paz Perpétua.

3.5.3 A lei permissiva na obra À Paz Perpétua

A lei permissiva é definida por Kant na sua obra À Paz

Perpétua, em uma nota de rodapé ao final da Primeira Seção, chamada: Primeira

Seção, que contém os artigos preliminares à paz perpétua entre Estados. Pensar

a lei permissiva foi um problema colocado pelo Conde von Mindischgrätz, em um

concurso. Kant não se satisfez com as respostas dos mestres do Direito Natural,

ao que propôs sua própria concepção para referida lei.

Para Kant, pode-se mencionar a existência de leis

imperativas e leis permissivas. As leis imperativas subdividem-se em leis

preceptivas ou mandamentos (leges praeceptivae), quando expressam um

comando, como “Deves abandonar o estado de natureza e ingressar num estado

jurídico”; e em leis proibitivas (leges prohibitivae), quando expressam uma

proibição, como “É um dever não fazer guerra”. A lei imperativa possui certeza

jurídica (ius certum) e, por isso, não pode admitir limitações às suas prescrições,

pois, do contrário, perderia sua condição de lei universal e passaria a ser lei geral.

(BARBIERI DURÃO, 2002, p. 333).

Quanto a lei permissiva, significa a autorização para uma

ação em desacordo à lei imperativa. Uma lei permissiva se oferece a toda razão

sistemática e classificadora para introduzir permissões a determinadas ações que,

muito embora injustas, devem persistir temporariamente, para evitar uma injustiça

ainda maior. Em outras palavras, a lei permissiva consente com que situações

injustas perdurem, por não poderem imediatamente entrar em acordo com as leis

imperativas sem que disto resulte uma injustiça ainda maior. Vale dizer que a

permissão é meramente temporária, persistindo enquanto as condições para que

as leis imperativas possam vigorar não estejam ainda assentadas.

É o caso da impossibilidade de aplicação imediata, conforme

expõe Kant (1989, p. 25-32), dos artigos preliminares à Paz Perpétua de números

2, 3 e 4, que concernem, respectivamente: à proibição de um Estado

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independente adquirir outro Estado por herança, troca, compra ou doação; à

proibição de serem mantidos exércitos permanentes (miles perpetuus); à

proibição de se contrair dívidas públicas para propósitos belicosos. Deste modo,

se os Estados não estão atualmente em condições de atenderem a estes artigos

preliminares (que funcionam como leis imperativas proibitivas) sem que disto

decorra uma injustiça ainda maior, a lei permissiva vem permitir o prolongamento

desta condição de injustiça. Referidos artigos preliminares externam práticas que

se encontram muito arraigadas na política dos Estados, sendo que antes da

implementação da lei imperativa, é necessário construir condições para tanto, sob

pena de ser originada uma ocasião ainda pior. Não é possível perder de vista que,

apesar da aplicação dos artigos preliminares, enquanto leis imperativas, restarem

proteladas, sua validade objetiva permanece incólume, pois, enquanto

proveniente da razão, possuem um fundamento de necessidade objetiva prática.

Partindo-se do artigo preliminar número 2, o qual é uma lei

imperativa, é preceituada a restituição da liberdade retirada de certos Estados

independentes, tornados colônias por Estados dominadores. Agora,

considerando-se a lei permissiva, é preconizada a permissão da manutenção de

determinado Estado na condição de colônia, enquanto não tem condições de

auto-gestão. Desta forma, evita-se um rompimento abrupto, como uma Revolução

contra o Estado dominador, o que conduziria o Estado-colônia a uma ausência de

Estado, retornando ao estado de natureza, o que representaria uma injustiça

ainda maior do que estar subjugado e sem independência.

No caso do artigo preliminar número 3, manda o

desaparecimento dos exércitos permanentes. Contudo, pela lei permissiva,

enquanto a política internacional não colaborar, o atendimento a esta lei

imperativa pode resultar em uma injustiça ainda maior, enquanto um dado Estado,

na hipótese de não optar pelo mantimento de um exército permanente, ficar mais

vulnerável em comparação aos demais Estados, a ponto de vir sucumbir pela

invasão de um outro Estado.

Quanto ao artigo preliminar número 4, ordena que nenhum

Estado deve recorrer a um sistema de crédito internacional para financiamento de

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guerras, produzindo uma dívida pública. Não obstante, a lei permissiva diz que

esta situação deve ser mantida enquanto a extinção de tal procedimento

representar uma quebra internacional que produza conflitos ou revoluções.

Os artigos preliminares 2,3 e 4 podem ser aplicados apenas

quando as condições para tanto estiverem viabilizadas, a começar pela

instauração de uma condição jurídica nas relações internacionais. Em outras

palavras, enquanto a esfera das relações internacionais permanecer em um

estado de natureza, sem um tribunal para julgar com força de Direito, a lei

permissiva aquiesce com a existência de determinadas injustiças, até o momento

adequado para estas injustiças cessarem, pela constituição de um estado civil-

legal nas relações internacionais, com a efetivação do Direito das Gentes e do

Direito Cosmopolita.

Portanto, a permissão indica apenas uma prudência jurídica

e política, e é temporária, sem implicar limitação às leis imperativas traduzidas

nos artigos preliminares 2, 3 e 4. Como já assinalado, a lei permissiva somente

prorroga a obediência dos Estados a estes artigos preliminares, até surgirem as

condições favoráveis para que seja possível sua implementação. Destarte, a lei

permissiva não é definitiva e não pode ser fundamentada, pois serve apenas

como uma exceção que permite a permanência de um estado de injustiça

(BARBIERI DURÃO, 2002, p. 336).

Na obra A Metafísica dos Costumes, a lei permissiva

assume uma noção um pouco diferente, pois na obra À Paz Perpétua se refere às

relações internacionais, de Estados que internamente já venceram o estado de

natureza e constituíram uma constituição civil. Ao contrário, quando Kant está

fundamentando o Direito Privado, considera os homens totalmente inseridos no

contexto do estado de natureza, onde não há qualquer formação estatal. Neste

caso, já se está em um estado de suma injustiça, de modo que a lei permissiva

não serve para permitir a permanência no estado de natureza, mas para fundar

um Direito provisório neste estado. Por se referir a um Direito provisório, ao

mesmo tempo em que possibilita pensar o caráter jurídico do estado de natureza,

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também torna um dever a saída deste estado, conforme detalhado no seguimento

do presente trabalho.

3.5.4 A lei permissiva na obra A Metafísica dos Costumes e o papel do

postulado da razão prática no estado de natureza

Na obra A Metafísica dos Costumes o postulado da razão

prática é uma lei permissiva que advém da razão prática, para possibilitar uma

posse com contornos jurídicos já no estado de natureza. Apesar de existir uma lei

imperativa que manda que todos os homens que se influenciam reciprocamente

devem ingressar em uma constituição civil republicana e, os Estados, em uma

federação de Estados, para que, então, possa haver uma Posse Jurídica, o

postulado da razão prática aparece como uma exceção a este imperativo,

colocando a possibilidade de haver Posse Jurídica, mesmo que provisória, já no

estado de natureza.

O postulado da razão prática impõe que, enquanto perdurar

o estado de natureza, é necessário admitir que os seres humanos façam uso dos

objetos como se estes fossem seus. Vale ressaltar que referida autorização não

contraria a Liberdade Externa e, ainda mais, é condição para que os homens

possam sobreviver no estado de natureza, conforme ensina Barbieri Durão (2002,

p. 339, tradução nossa):

[...] mas, ainda que este estado [o estado de natureza] perdure é

necessário que os homens usem fisicamente os objetos de seu

arbítrio, o que é conforme à liberdade exterior, pois os homens

não podem manter sua vida sem o uso de objetos externos e

minha liberdade exterior estaria sendo lesada se me impedissem

de usar um objeto de meu arbítrio que detenho fisicamente21.

Por conseguinte, a ausência de um poder coercitivo

garantido pela Justiça Distributiva não impede que no estado de natureza a razão

faça viger o princípio jurídico que diz: “[...] quem quer que aja com base numa

21 “[...] pero, mientras este estado perdure es necesario que los hombres usen físicamente los objetos de su arbitrio, lo que es conforme con la libertad exterior, pues los hombres no pueden mantener su vida sin el uso de objetos externos y me lesionaría en mi libertad exterior que me impidieran usar un objeto de mi arbitrio que tengo físicamente.”

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máxima que impossibilita que eu tenha um objeto de minha escolha como meu

me prejudica” (KANT, 2003a, p. 102). Neste norte, os princípios jurídicos, já

existentes no estado de natureza, permanecerão em vigor quando do ingresso em

uma condição civil, recebendo como elemento diferenciador apenas a garantia

fornecida pelo poder coercitivo e a legitimidade da Vontade Unida do Povo.

Destarte, fica claro que a garantia para o que é meu e teu externos ocorre apenas

em uma condição civil, mas a existência do meu e teu externos deve ser admitida

desde o estado de natureza, o que é possibilitado pelo postulado da razão prática.

O postulado da razão prática justifica o pensamento, já

abordado anteriormente (3.3), de que a Constituição civil não modifica a

substância da Posse Jurídica, mas apenas concede uma garantia jurídica. É esta

garantia que permitirá falar em uma Posse Jurídica definitiva, sendo que, antes

disto, existe uma Posse Jurídica provisória, responsável por prepara o terreno ao

ingresso à condição civil, conforme expõe Kant (2003a, p. 102):

A posse em antecipação e preparação para a condição civil, que

pode ser baseada somente numa lei de uma vontade comum,

posse esta que, por conseguinte, se harmoniza com a

possibilidade de uma tal condição, é posse provisoriamente

jurídica, enquanto a posse encontrada numa condição civil real

seria posse definitiva.

O que ocorre, então, é que a existência do meu e teu

externos no estado de natureza não é admitida como mera Posse Física, mas

como Posse Jurídica, embora provisória. No estado de natureza não existe uma

vontade coletiva, espelhada na Vontade Unida do Povo, para estabelecer força

legal, verificando-se somente a vontade unilateral, a qual não é legítima para

fundamentar uma obrigação com relação a posse de alguém, nem para que os

Direitos recebam garantia. Assim, no estado de natureza, pode ocorrer de alguém

tomar a posse de um objeto e querer mantê-lo por uma vontade unilateral,

desenhando no horizonte o ingresso no estado civil e opondo resistência àqueles

que são um escolho a sua posse. Não obstante, esta sua vontade unilateral não

tem qualquer força legal para que sua posse seja efetivamente respeitada, assim

como aqueles que são um óbice à sua posse também não tem força legal em

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seus atos. Não obstante, sua vontade unilateral de ter respeitada sua posse é

mais benéfica do que a vontade unilateral daqueles que querem violá-la, por estar

em consonância à introdução e consolidação do estado civil (KANT, 2003a, p.

102).

Desta forma, no estado de natureza o fundamento da

obrigação não advém de qualquer vontade unilateral, nem de uma suposta

Vontade Unida do Povo, que não existe neste estado, mas do postulado da razão

prática, responsável por fazer do estado de natureza um estado jurídico, mesmo

que provisório. Portanto, no tocante ao meu e teu externos, o Direito Privado é

provisório e não poderia existir de outro modo senão pela obrigação imposta pelo

postulado da razão prática, que torna válidos os Direitos havidos no estado de

natureza.

Quanto a validade deste postulado, advém da vontade da

razão prática que seja possível o ingresso em uma condição civil, onde o Direito

se manifestará de modo peremptório e onde cada qual, finalmente, poderá ter sua

Posse Jurídica definitiva. Referida condição civil não seria possível se no estado

de natureza não houvesse o fundamento de possibilidade da Posse Jurídica já no

estado de natureza, fundamento este concedido pelo postulado. Por isso, elucida

Kant (2003a, p. 92), referindo-se ao postulado: “É vontade da razão que isto seja

válido como um princípio e ela o faz como razão prática [...]”. Por conseguinte, a

admissão do postulado não é inteligível, traduzindo-se como uma vontade da

razão prática no sentido de que, não admiti-lo, seria contrário à razão.

Junto ao postulado da razão prática aparece a obrigação de

se sair do estado de natureza, tendo em vista que, ao viabilizar a existência de

um estado jurídico provisório, o postulado da razão prática constrói, ao mesmo

tempo, a necessidade de entrar em uma condição definitiva, ou seja, no estado

civil. É o que se depreende do próprio caráter provisório da Posse Jurídica,

significando que um dia deve cessar para se tornar definitiva, ou seja, que serve

de antecipação e preparação ao estado civil. Explica Kant (2003a, p. 102):

Em síntese, o modo de ter alguma coisa externa como sua num

estado de natureza é Posse Física que tem a seu favor a

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presunção jurídica de que será convertida em Posse Jurídica

através de sua união com a vontade de todos numa legislação

pública, e em antecipação a isto é válida comparativamente como

Posse Jurídica.

O postulado da razão prática não procura justificar o estado

de natureza nem qualquer recusa a sua saída. Permanece um dever

incondicionado a saída do estado de natureza, por ser um estado de guerra e

injusto. O postulado da razão prática, como uma lei permissiva, possui a

característica de permitir determinada situação, expressa na Posse Jurídica

provisória, enquanto não é cumprida a lei imperativa, traduzida no postulado do

Direito Público, que manda o ingresso no estado civil.

A partir do que foi abordado, pode-se afirmar que a posse

inteligível é uma conseqüência imediata do postulado da razão prática, sendo que

este impõe o respeito aos atos de escolha pelo qual se dá a posse particular dos

objetos de minha escolha. Destarte, o postulado contém condições do empenho

moral, valendo problematicamente, e não categoricamente, o que quer dizer que

o postulado não pode: “[...] dar uma certeza inabalável que seja directamente

contrária à condição do homem e que tornaria impossível a própria vida moral.”

(ABBAGNANO, 2000, p. 147).

3.6 A DISTINÇÃO ENTRE POSSE EMPÍRICA E POSSE JURÍDICA A PARTIR

DOS JUÍZOS ANALÍTICOS E SINTÉTICOS A PRIORI

Com o postulado da razão prática é autorizada a Posse

Jurídica provisória no estado de natureza. Apesar da possibilidade da Posse

Jurídica no estado de natureza ter sido demonstrada, ainda fica em aberta a

explicação sobre a dedução da possibilidade do conceito de Posse Jurídica, o que

se resolve apenas pela admissão de um juízo sintético a priori no Direito.

Caudatário a este estudo são as considerações sobre o Direito à posse empírica,

que, por sua vez, deve ser contemplada a partir do juízo analítico a priori. Não

obstante, antes de compreender-se o juízo analítico a priori referente ao Direito à

posse empírica, e o juízo sintético a priori referente ao conceito de Posse Jurídica,

é preciso tecer algumas explicações sobre estes juízos a partir da obra Crítica da

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Razão Pura, onde Kant aponta, além dos juízos já citados, também o juízo

sintético a posteriori. Não obstante, este último mescla elementos empíricos, por

ser a posteriori, ou seja, envolver a experiência, sendo que os juízos sobre o

Direito são todos a priori, pois são leis da razão (dictamina rationis). Assim, com

relação à posse empírica e jurídica, podem existir somente juízos a priori.

Assinala-se ainda que na obra Crítica da Razão Pura é apresentado um sentido

diferente aos juízos analítico e sintético a priori do que na obra A Metafísica dos

Costumes, pois naquela Kant refere-se às ciências matemático-geométricas e a

ciência física (concernentes à razão teórica), enquanto nesta refere-se ao Direito

(concernente à razão prática).

3.6.1 Os juízos analíticos e sintéticos na Crítica da Razão Pura

Um juízo é uma proposição que contém um predicado e um

sujeito. Dependendo da correspondência que houver entre sujeito e predicado,

poderá ser um juízo analítico ou sintético. Juízo analítico é aquele no qual: “[...] o

predicado B pertence ao sujeito A como algo que está contido (implicitamente)

nesse conceito.” (KANT, 2001, p. 42-43). Isto quer dizer que o conteúdo do

predicado não está acrescentando nada do que já está disposto no conceito do

sujeito. Desta forma, pelo conteúdo do sujeito pode-se chegar, por dedução, ao

conteúdo do predicado. Um exemplo de juízo analítico é: “O quadrado possui

quatro lados”.

O juízo sintético é aquele no qual o predicado: “[...] B está

totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele.” (KANT, 2001, p. 43).

Isto quer dizer que no predicado existe algo que não está previsto no sujeito, e

que não poderia ser dele inferido. Assim, o predicado traz uma informação nova,

ampliando o conhecimento, pois em seu conceito não está disposto o conceito

que se encontra no sujeito. Um exemplo de juízo sintético é: “Todos os corpos

são pesados.” Ser pesado é uma característica do corpo, mas que não faz parte

do seu conceito, tanto é assim que desde Aristóteles, por muito tempo

considerou-se que alguns corpos (terra e água) fossem pesados por sua própria

natureza e outros corpos (ar e fogo), por sua natureza, ao contrário, fossem leves

(REALE, 1990, p. 872).

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Os juízos analíticos são a priori, o que significa que não é

necessária a experiência para chegar à formulação de tal proposição. Por ser a

priori, contém o universal e o necessário, conforme explica Reale (1990, p. 872,

grifo do autor), referindo-se ao juízo analítico a priori: “[...] é universal e

necessário, mas não amplificador do conhecer.” Diz-se que não é amplificador do

conhecer, pois o predicado expõe o mesmo conceito contido no sujeito, alterando-

se os termos mas não o sentido. Portanto, as ciências podem utilizá-los para

conceituar, esclarecer ou explicar, mas não para ampliar seu próprio

conhecimento.

Quanto aos juízos a posteriori, são todos sintéticos. Juízos

sintéticos a posteriori dependem da experiência para serem formulados, e sempre

irão acrescentar algo ao conceito encontrado no sujeito. Contudo, apesar de

ampliarem o conhecer, o fato de não serem a priori não os permite fornecer juízos

universais e necessários, e, assim, não podem expressar as leis das ciências

matemático-geomátricas e da ciência física.

Deparando-se com o problema destes juízos serem

insuficientes para o conhecimento científico, eis que os juízos analíticos a priori

não permitem ampliar o conhecimento e os juízos sintéticos a posteriori não

fornecem juízos universais e necessários, Kant apresenta um terceiro juízo, de

sua formulação, denominado juízo sintético a priori.

Os juízos sintéticos a priori são as proposições que contém

no predicado um conceito que o sujeito não abarca, e que é extraído pela razão.

Um exemplo disto: “Tudo o que acontece tem uma causa.” (KANT, 2001. p. 45).

Este juízo é sintético tendo em vista que no conceito do sujeito (“Tudo o que

acontece”) não está contido o conceito do predicado (“tem uma causa”), pois no

conceito de algo que acontece pode-se pensar, por exemplo, uma existência à

qual precede um tempo, mas não o conceito de causa, em virtude deste último

indicar algo distinto do que acontece; e é a priori por acrescentar o predicado ao

sujeito não só com generalidade maior do que a experiência poderia conceder,

mas também com a expressão da necessidade e da universalidade (KANT, 2001,

p. 45).

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3.6.2 O Direito à posse empírica: juízo analítico a priori

Diante destas considerações, transportando-as ao campo da

razão prática, pode-se adentrar propriamente no que se propõe. Começando por

considerar a posse empírica, afirma-se que é correlata a um juízo analítico a

priori, o qual, em correspondência ao Direito de uma pessoa que está na posse

empírica de um objeto, se expressa da seguinte maneira:

[...] se estou em poder de uma coisa (e assim fisicamente ligado a

ela), alguém que a afete sem meu consentimento (por exemplo,

arrebata uma maçã de minha mão) afeta e diminui o que é

internamente meu (minha liberdade), de sorte que sua máxima

está em direta contradição com o axioma do Direito. (KANT,

2003a, p. 96, grifo do autor).

É preciso assinalar que, neste caso, se está fazendo

referência à posse empírica, como sujeito e ao Direito concernente à posse

empírica, como predicado. A posse empírica é o fato da pessoa estar em poder

de uma coisa, no sentido que está fisicamente ligada a ela. O que resulta da

posse empírica, segundo o Direito, é a assertiva de que uma pessoa é afetada na

sua Liberdade Externa quando tem prejudicada sua posse empírica, como expõe

Kant (2003a, p. 96): “Assim, a proposição sobre posse empírica em conformidade

com direito não ultrapassa o direito de uma pessoa consigo mesma.” Tal

proposição do Direito relativa à posse empírica nada mais diz do que resulta da

posse empírica em conformidade ao princípio da contradição e, por isso, é um

juízo analítico a priori. O princípio da contradição é explicado por Kant (2001, p.

190) ao afirmar:

Ora, a proposição: a coisa alguma convém um predicado que a

contradiga, denomina-se princípio de contradição, e é um critério

universal, embora apenas negativo, de toda a verdade;

Quando a pessoa está na posse empírica de um objeto de

meu arbítrio, significa que está de acordo com a Liberdade Externa, pois

conforme já explanado anteriormente (3.5.1), a Liberdade não impede que objetos

de meu arbítrio possam ser usados. Por isso, o predicado acrescido pelo Direito,

ao informar que a pessoa é lesionada em sua Liberdade Externa quando tem

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violada sua posse empírica, em nada acresce do que se pode inferir da própria

posse empírica. A partir deste juízo analítico a priori, constata-se que o Direito à

posse empírica, conforme esclarece Kant (2003a, p. 99): “[...] concerne somente à

minha Liberdade Externa, daí somente a posse de mim mesmo, não uma coisa

externa a mim, de modo que é apenas um Direito interno.” Deste modo, da

Liberdade Externa advém o juízo analítico do Direito à posse empírica, bem como

a definição nominal22 do que é meu e teu externos:

[...] o meu exterior é aquilo fora de mim, cujo uso arbitrário não me

pode ser impedido sem lesão (sem prejudicar a minha liberdade,

que pode coexistir com a liberdade de qualquer outro segundo

uma lei universal). (KANT, 1999, p. 60, tradução nossa).23

Como fica claro desta definição nominal, o meu e teu

externos, observados sob a ótica da posse empírica, tem sua acepção totalmente

vinculada ao juízo analítico a priori sobre o Direito relativo à posse empírica,

seguindo o exemplo de que, se uma coisa for arrebatada da mão de uma pessoa

sem seu consentimento, quem praticou esta ação está agindo em sentido

contrário à Liberdade Externa inata, ou seja, ao meu e teu internos.

3.6.3 Da possibilidade da Posse Jurídica: juízo sintético a priori

É chegado o momento da exposição da dedução da

realidade objetiva prática da Posse Jurídica, tão fundamental, em virtude do

sistema da filosofia transcendental exigir, para a aplicação do conceito puro de

Direito, um conceito de Posse Jurídica que advenha também de fonte pura e que,

ao mesmo tempo, tenha realidade prática, de modo a ser aplicado aos objetos da

experiência. Afora isso, tratando-se de uma Metafísica dos Costumes, existe a

necessidade observada na Metafísica kantiana, de trabalhar-se com juízos

22 A definição nominal é “[...] aquela que basta para distinguir um objeto dos demais e resulta de uma exposição completa e determinada do conceito [...]”. KANT, 1999, p. 60, tradução nossa. No original: “[...] aquella que basta para distinguir un objeto de los demás y resulta de una exposición completa y determinada del concepto [...]”

23 “[...] lo mío exterior es aquello fuera de mí, cuyo uso discrecional no puede impedírseme sin lesionarme (sin perjudicar a mi libertad, que puede coexistir con la libertad de cualquier otro según una ley universal).”

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sintéticos a priori, conforme se depreende da seguinte afirmação de Kant (2001,

p. 48-49, grifo do autor), na obra Crítica da Razão Pura:

Na metafísica, mesmo considerada apenas como uma ciência até

agora simplesmente em esboço, mas que a natureza da razão

humana torna indispensável, deve haver juízos sintéticos a priori;

por isso, de modo algum se trata nessa ciência de simplesmente

decompor os conceitos, que formamos a priori acerca das coisas,

para os explicar analiticamente; o que pretendemos, pelo

contrário, é alargar o nosso conhecimento a priori, para o que

temos de nos servir de princípios capazes de acrescentar ao

conceito dado alguma coisa que nele não estava contida e,

mediante juízos sintéticos a priori, chegar tão longe que nem a

própria experiência nos possa acompanhar.

Quando se verifica a possibilidade para que alguma coisa

externa seja Propriedade de alguém, isto é, que é possível uma Posse Jurídica, o

juízo correlato deve ser, necessariamente, um juízo sintético a priori. É um juízo

sintético “[...] visto que afirma a posse de alguma coisa sem sua ocupação, como

necessário ao conceito de alguma externa que é minha ou tua [...]” (KANT, 2003a,

p. 96). É uma proposição que acrescenta ao meu e teu externos a possibilidade

de se dizer que um objeto é de alguém, mesmo que este alguém não esteja na

posse empírica do objeto, contendo a seguinte mensagem: “É possível para mim

ter um objeto externo como meu, ainda que eu não esteja em sua posse física.”

Assim, o juízo atinente a Posse Jurídica não pode ser

analítico, em razão de ultrapassar o conceito de posse empírica, ao desconsiderar

quaisquer condições empíricas espaciais e temporais para, deste modo, dizer que

é possível possuir uma coisa mesmo que não se esteja ligado fisicamente a ela.

Nestes termos, requer que seja admitido um Direito que prescinde de condições e

conceitos empíricos. Por isso, exige uma posse pensada totalmente a partir de

conceitos do entendimento, isto é, “[...] aqueles que possam conter condições a

priori de conceitos empíricos.” (KANT, 2003a, p. 99).

Por conseguinte, Kant pretende demonstrar que o conceito a

priori do meu e teu externos (Posse Jurídica) é objetivamente possível, o que

requer a demonstração da definição real de meu e teu externos. A definição real

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de meu e teu externos diz que: “[...] alguma coisa externa é minha se eu fosse

lesado ao ser perturbado no meu uso dela, ainda que eu não esteja de posse dela

(sem me apoderar do objeto).” (KANT, 2003a, p. 95, grifo do autor). Que uma

pessoa é lesada ainda que não esteja na posse de um objeto de sua escolha, é

uma ampliação do conhecimento que pode ser possibilitada apenas por um juízo

sintético.

Atento às considerações pretéritas, é possível entender o

que se pretende dizer quando é afirmado que a consciência da Posse Jurídica é

deduzida a partir do postulado da razão prática. O postulado da razão prática é

uma lei permissiva, válido como um princípio por vontade da razão prática. A

razão prática quer que a Posse Jurídica tenha validade objetiva, sem

proporcionar, contudo, a respectiva inteligibilidade, conforme elucida Loparic

(2005, fev. 19, p. 20, grifo do autor): “Assegura-se apenas que não admitir a

possibilidade da posse inteligível seria contrário à vontade da razão e, nesse

sentido prático, irracional.”

Sendo o postulado uma lei permissiva, muito embora

permita compreender como é possível a dedução da possibilidade do conceito de

Posse Jurídica, de modo algum leva à prova de um juízo sintético a priori sobre o

Direito. Por isso, no seguimento do estudo será necessário provar que a razão

prática-jurídica produz juízos sintéticos a priori sobre o Direito. Ademais, partindo

do exposto no presente Capítulo, é necessário analisar, no Capítulo seguinte, de

que modo é adquirida e como é fundamentada a Propriedade.

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CAPÍTULO 4

A FUNDAMENTAÇÃO DA PROPRIEDADE

4.1 A DIVISÃO DA AQUISIÇÃO DE ALGUMA COISA EXTERNA QUE É MINHA

OU TUA

A aquisição original, que resulta na posse de um objeto por

alguém, se inicia por um ato de escolha24 do indivíduo, pelo qual um objeto que

não pertence a ninguém é apreendido, seguido da declaração pelo indivíduo de

que quer que esta coisa seja sua. Sem este ato jurídico, que funda o Direito

Adquirido, não haveria nenhuma obrigação por parte de todos os demais em se

absterem de usar este objeto da escolha (em conformidade ao postulado jurídico

da razão prática). Neste sentido, sem este primeiro ato não poderia ser

constituída obrigação alguma, pois é somente a partir dele que é dada aos

demais a oportunidade de respeitar ou não a declaração de vontade. Em

decorrência disto, a declaração da vontade individual indica, como conseqüência,

a possibilidade de constituir-se uma obrigação, pela qual cada um respeita a

posse do que é externo de todos os demais, constituindo uma reciprocidade nas

relações jurídicas de acordo com o princípio de igualdade. Contudo, o surgimento

desta obrigação não decorre da vontade unilateral do indivíduo, tendo em vista

que tal hipótese seria uma violação à Liberdade. Portanto, somente uma vontade

submetendo todos à obrigação, ou seja, a Vontade Unida do Povo, é capaz de

originar qualquer obrigação e exigir legitimamente seu cumprimento,

assegurando, desta forma, a posse privada, o que se concretiza apenas pela

constituição de um estado civil.

Referidas colocações representam um intróito ao que será

abordado neste Capítulo, pelo estudo da versão kantiana da Teoria da

Propriedade, a qual recebeu bastante influência da primeira teoria moderna da 24 Um exemplo de ato de escolha é apresentado por Kant (2003a, p. 96) ao colocar: “[…] tomar posse de um pedaço de terra separado é um ato de escolha particular [...]”.

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Propriedade, fundada no consenso, formulada pelo jusnaturalista Hugo Grotius.

Tratando da aquisição original, aquela primeira aquisição realizada no estado de

natureza, ou seja, a primeira tomada de posse de um objeto, e demonstrando os

pressupostos para que a aquisição ocorra e se efetive, é possível desvelar o

fundamento da Propriedade no pensamento de Immanuel Kant. A análise desta

questão é realizada por Kant na obra A Metafísica dos Costumes, na Parte I,

Direito Privado, em seu Capítulo II intitulado Como adquirir alguma coisa externa,

pois é apenas neste Capítulo que é tratado do modo da Vontade Unida do Povo

consentir com que uma vontade unilateral possa exercer Propriedade sobre um

objeto externo do arbítrio.

O Capítulo II é dividido por Kant em três Seções: Seção I –

Do Direito de Propriedade; Seção II – Do Direito Contratual; Seção III – Do Direito

Pessoal que tem afinidade com o Direito a Coisas. Cada uma destas Seções trata

de um objeto externo do arbítrio, do que se segue a existência de apenas três

objetos do arbítrio. Referidos objetos compõem a divisão da aquisição que toma

como critério a matéria do que é adquirido, como expõe Kant (2003a, p. 104-105):

No que tange à matéria (o objeto), adquiro ou uma coisa corpórea

(substância), ou a prestação (causalidade) de uma outra pessoa,

ou a própria outra pessoa, isto é, o estado desta pessoa na

medida em que eu obtenha um Direito de dispor em torno dela (ter

relações com ela).

É fácil ver que o objeto do Direito de Propriedade é uma

coisa corpórea externa, o objeto do Direito Contratual é a escolha de outrem em

realizar um ato (praestatio) e o objeto do Direito Pessoal que tem afinidade com o

Direito das Coisas é o estado de uma pessoa em relação a outrem. Assim, é

possível apresentar uma segunda divisão com relação a aquisição de alguma

coisa externa que é minha ou tua, agora com relação à forma ou o tipo de

aquisição. São as palavras de Kant (2003a, p. 105):

No que tange à forma (o tipo de aquisição), é ou um Direito a uma

Coisa (ius reale) ou um Direito a uma pessoa (ius personale), ou

um Direito a uma pessoa em afinidade com um Direito a uma

Coisa (ius realiter personale), isto é, posse (embora não uso) de

uma outra pessoa como uma coisa.

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Uma terceira divisão da aquisição, relaciona-se à base da

aquisição do Direito, e demonstra a maneira da aquisição ser realizada, conforme

expõe Kant (2003a, p. 105): “No que tange à base da aquisição no Direito (titulus),

alguma coisa externa é adquirida através do ato de uma escolha unilateral,

bilateral ou onilateral (facto, pacto, lege).”

Agora, impende ressaltar que é na Seção I, do Capítulo II,

destinado ao Direito Real (ius reale), que Kant trabalha todos os elementos

pertinentes à proposta do presente estudo e, por isso, não há exigência de uma

incursão profunda nas duas outras Seções, sobre o Direito Contratual e o Direito

Pessoal que tem afinidade com o Direito a Coisas. É o que se constata, e isto é

importante, pelo fato de existir somente aquisição original de objetos corpóreos,

referentes ao Direito Real, sem que seja possível cogitar a aquisição original da

escolha de outrem ou do estado de uma outra pessoa.

Cumpre não perder de vista que o conceito de Propriedade

compartilha com o significado do juridicamente meu, correspondendo à definição

real de meu e teu externos, já citado alhures (3.6.3), mas digno de nova menção:

“[...] alguma coisa externa é minha se eu fosse lesado ao ser perturbado no meu

uso dela, ainda que eu não esteja da posse dela (sem me apoderar do objeto).”

(KANT, 2003a, p. 95). Assim, torna-se evidente que a Propriedade abrange todos

os objetos de meu arbítrio. Todavia, se é na Seção I, que trata apenas sobre o

Direito Real, que Kant apresenta a fundamentação da Propriedade, não deve-se

entender, da mesma forma, que tal fundamentação se destina apenas às coisas

corpóreas, eis que se refere à Propriedade como um todo, incidindo sobre todos

os objetos de Propriedade, inclusive à Propriedade da escolha de outrem e do

estado de uma outra pessoa.

Por isso, para o presente estudo, delimitado à

fundamentação da Propriedade, bastam breves considerações sobre como

procede a Propriedade da escolha de outrem e a Propriedade do estado de uma

outra pessoa. A começar pela Propriedade da escolha de outrem, significa a

faculdade de uma pessoa em determinar a escolha de uma outra pessoa a

realizar uma prestação, de acordo com as leis da liberdade. Esta modalidade de

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Propriedade é regida pelo Direito Contratual. Trata-se de um Direito Pessoal,

sendo que não pode ser adquirido originalmente com base na iniciativa de apenas

uma das partes, sendo necessário o enfeixamento da escolha de ambos os

envolvidos. Neste caso, a promessa do outro em realizar a prestação está na

Posse Jurídica do promissário, de sorte que o objeto da promessa já deve ser

entendido como Propriedade deste, mesmo que o objeto prometido ainda não

tenha sido entregue. Elucida Kant (2003a, p. 94):

A promessa do outro está, portanto, incluída nos meus pertences

e bens (obligatio activa) e eu posso computá-la como minha não

apenas se (como no primeiro caso) eu já tiver em minha posse o

que foi prometido, mas mesmo que ainda não o possua.

A Propriedade do estado de uma outra pessoa remete ao

Direito Pessoal que tem afinidade com o Direito a Coisas, o qual representa uma

inovação introduzida por Kant, e lembra muito o Direito de Família. É mencionada

a aquisição da mulher pelo homem; dos filhos pelo casal; e dos criados pela

família. A posse da mulher, da criança e do criado se dá como se fossem uma

coisa, mas seu uso é feito enquanto pessoas e, por isso, todos devem ser

tratados enquanto seres livres, componentes da sociedade denominada de lar,

onde o princípio da Liberdade Externa deve ser respeitado. Ocorre a posse de

uma pessoa, no sentido que, mesmo o possuidor não tendo estas pessoas por

perto, tem preservada a ligação com eles onde quer que estejam (KANT, 2003a,

p. 121). Não é despiciendo mencionar que este momento do pensamento de

Kant, não raro, é objeto de críticas, pois transportado à realidade coeva, indica um

tom chauvinista na relação entre marido e esposa e um pensamento conservador

na relação com os empregados domésticos.

4.2 OS PASSOS PARA A FUNDAMENTAÇÃO DA PROPRIEDADE

É na Seção I, denominada Do Direito de Propriedade, onde

Kant desenvolve a argumentação sobre a fundamentação da Propriedade,

mormente pelo entendimento de que a Posse Jurídica, seja provisória ou

definitiva, ocorre mediante relação das pessoas entre si, e não por uma relação

entre uma pessoa e uma coisa.

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Immanuel Kant desenrola os passos para a fundamentação

da Propriedade em três momentos: 1- Pela definição do Direito Real como uma

relação entre pessoas, o que lhe permite se precaver contra o entendimento

errôneo de algumas teorias que pretendem pensar o Direito Real como a relação

de uma pessoa com uma coisa; 2- Pela apresentação da noção de uma Posse

em Comum originária do solo, para justificar o Direito Real como uma relação

entre pessoas, e, da mesma forma, permitindo pensar a própria aquisição original

como uma relação entre pessoas; 3- Por fim, a parte mais decisiva da

argumentação, quando Kant coloca que é a Vontade Unida do Povo quem funda

a Propriedade, quando origina a obrigação de todos absterem-se,

reciprocamente, do uso de um objeto alheio, fornecendo garantias à Posse

Jurídica. Cabe, agora, desenvolver o trajeto destas argumentações.

4.2.1 O Direito Real como uma relação entre pessoas: a rejeição da teoria do

trabalho para fundamentar a Propriedade

O início da argumentação de Kant sobre a fundamentação

da Propriedade parte da definição nominal do Direito a uma Coisa (ius in re), ao

afirmar que “[...] é um Direito contra todo possuidor dela [...]” (KANT, 2003a, p.

105). Portanto, o Direito a uma Coisa é o Direito que o proprietário tem de exigir a

devolução de uma coisa sua que está nas mãos de um outro, sem sua

autorização. Muito embora seja uma definição nominal correta, não responde se a

relação jurídica estabelecida é uma relação direta do proprietário com a coisa ou

se é uma relação entre pessoas.

Coerente ao pensamento de Immanuel Kant, há de se

admitir que o filósofo de Köenigsberg não admitia que o Direito a uma Coisa

encetasse a relação de uma pessoa com uma coisa, mas tão-somente relações

de pessoas entre si. Os argumentos neste sentido demonstram fortemente uma

oposição de Kant à teoria do trabalho, tão antiga e que, na sua época, era a mais

dominante. Referindo-se a esta relação das pessoas entre si, leciona Guyer

(2000, p. 245, tradução nossa):

Esta relação é chamada de inteligível, racional, ou noumenal em

um sentido teórico ou ontológico, porque não consiste em

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nenhuma relação física imediatamente perceptível entre uma

pessoa e um objeto, mas em uma relação entre as mentes e

vontades das pessoas [...]; é também propriamente chamada

nestes termos em um sentido normativo, para, na medida em que

uma relação é para ser livremente estabelecida e mantida, deve

ser racional para todas as partes afetadas que concordam com

ela.25

Aquele que pensa seu Direito como uma relação jurídica

externa de um indivíduo com uma coisa, seria levado ao absurdo de admitir,

tendo em vista a correspondência que deve haver entre o Direito de uma parte

com o dever da outra, a existência de uma obrigação por parte da coisa com

relação ao seu possuidor. Admitir esta hipótese levaria à cogitação de um dever

da coisa face ao seu proprietário e um Direito do proprietário face à coisa. A

começar pelo dever por parte da coisa, resultaria na obrigação desta em

pertencer apenas ao seu primeiro proprietário e a ninguém mais. Assim, implicaria

uma ligação indissolúvel da coisa com seu primeiro possuidor, já que a coisa não

possui arbítrio para se desfazer desta ligação. Assim, seria estabelecido um laço

tal que a coisa não poderia ser de mais ninguém, nem mesmo alienada, ou, caso

fosse, teria de ser imediatamente restituída, devido a obrigação que guarda com

relação ao seu primeiro proprietário. Explica Kant (2003a, p. 105):

Alguém que pensa que seu Direito é uma relação direta com

coisas e não com pessoas teria que pensar (ainda que apenas

obscuramente) que visto que aí existe a correspondência de um

Direito, de um lado, com um dever, do outro, uma coisa externa

sempre permanece sob obrigação relativamente ao seu primeiro

possuidor, muito embora tenha deixado suas mãos; que, uma vez

que já se encontra obrigada a ele, rejeita qualquer outra que

pretenda ser o seu possuidor.

Quanto ao Direito do proprietário sobre a coisa, faz pensar

no Direito da pessoa em obrigar a coisa ser sua Propriedade para sempre. Pode-

25 “This relation is called intelligible, rational, or noumenal in a theoretical or ontological sense simply because it does not consist in any immediately perceivable physical relation between a person and an object, but in a relation among the minds and wills of persons […]; it is also properly called by these terms in a normative sense, for, insofar as such a relationship is to be freely established or maintained, it must in fact be rational for all affected parties to agree to it.”

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se conceber que este Direito perseguiria a coisa como se fosse um espírito

guardião, acompanhando-a e escudando-a para advertir contra a intenção de

qualquer um que a quisesse fazer sua. Expõe Kant (2003a, p. 105):

Desta forma, ele pensaria no meu Direito como se este fosse um

espírito guardião que acompanhasse a coisa, sempre me

apontando destacadamente quaisquer outras pessoas que

quisessem dela tomar posse e a protegendo contra qualquer

arremetida delas.

Com efeito, admitir o Direito de uma pessoa com relação a

uma coisa equivaleria a personificar a coisa, o que é um erro muito comum entre

aqueles que admitem a aquisição de uma coisa pelo fundamento do trabalho.

Neste sentido, Kant está criticando, principalmente, a doutrina do trabalho

desenvolvida por John Locke, a qual entende como dominante em sua época, até

mesmo porque, depois, foi consignada por Jean-Jacques Rousseau, ao dizer que

o trabalho é sinal de Propriedade do primeiro ocupante. Impende apresentar, para

facilitar entendimentos, comentário frugal sobre esta doutrina do trabalho

desenvolvida por John Locke e seguida por Jean-Jacques Rousseau, seguidas da

posição e crítica de Kant.

Para John Locke, todo homem possui um corpo que é

Propriedade exclusivamente sua, de sorte que o que vier do esforço deste

homem, os frutos do seu trabalho por intermédio do seu corpo, será sua

Propriedade Privada. Segue-se que, sendo proprietário do seu corpo, o homem

também é proprietário do seu trabalho. Com efeito, quando um sujeito trabalha

sobre um objeto da natureza, junta algo que é exclusivamente seu, ou seja, seu

trabalho. O trabalho serve como uma marca própria, responsável pela retirada do

objeto do domínio comum e sua entrada ao domínio privado do sujeito. Em

referência a isto, assinala Locke (1998, p. 409): “Qualquer coisa que ele então

retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com seu

trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua Propriedade.”

Para Locke, o trabalho é a base para a própria subsistência

do indivíduo dentro da Propriedade comum que é o planeta Terra. Se um

indivíduo colhe uma maçã de uma árvore para se alimentar, acaba fazendo da

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maçã sua Propriedade, não precisando do consentimento do todo para se

alimentar dela. Foi seu trabalho em colhê-la que a tornou sua Propriedade,

construindo assim um título de aquisição proveniente de um ato unilateral, do que

resulta numa relação de uma pessoa com uma coisa. Por isso, não é cogitado

sobre nenhum contrato ou anuência dos demais para que a Propriedade se

efetive, havendo simplesmente um Direito de uma pessoa com relação a uma

coisa.

Kant rejeita a fundamentação da Propriedade a partir do

trabalho. Ora, se o primeiro possuidor, ao mesmo tempo em que juntou uma

marca sua no objeto - pelo trabalho- também fundou seu Direito sobre a coisa,

então tem-se uma relação de Direitos e deveres entre o possuidor e a coisa.

Equivale dizer que a coisa, como se tivesse vida, teria de rejeitar qualquer outro

que quisesse fazê-la sua, além de não poder ser alienada pelo possuidor. Por

isso, admitir esta teoria tem o efeito de cercear a circulação de mercadorias e

destruir qualquer intento de comércio. Portanto, soa como um despautério,

conforme se depreende da seguinte afirmação de Kant (2003a, p. 113, grifo do

autor):

[...] tácita ilusão dominante de personificar as coisas e de pensar

em um Direito às coisas como sendo um Direito diretamente sobre

elas, como se alguém pudesse, por meio do trabalho que

despende com elas, submeter as coisas a uma obrigação de

servi-lo e a ninguém mais [...].

Quanto a Jean-Jacques Rousseau, inspirado em John

Locke, muito embora não faça do trabalho o fundamento do Direito de

Propriedade, este último entendido enquanto um título jurídico sobre determinado

objeto, faz do trabalho um sinal da Propriedade e, deste modo, assume a relação

de uma pessoa com uma coisa. Rousseau, com relação à Propriedade, segue um

viés socialista, ao colocar que a Propriedade deve ser submetida ao Estado, em

uma posse pública, pelo Contrato Social. Esta posse pública do Estado deve ser

admitida, mesmo que seja para atribuir e garantir a posse privada dos

particulares. Expõe Rousseau (1987, p. 37): “Tal coisa se dá porque o Estado,

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perante seus membros, é senhor de todos os seus bens pelo contrato social,

contrato esse que, no Estado, serve de base a todos os Direitos [...]”.

O Estado toma dos particulares seu Direito de primeiro

ocupante de um terreno, existente de modo muito frágil no estado de natureza, já

que deveras suscetível a usurpações, e o transforma em um Direito de

Propriedade. O que ocorre é que os particulares alienam esta primeira posse do

terreno em favor do Estado, e, este último, aceita os bens e assegura a posse

legítima, “[...] cambiando a usurpação por um Direito verdadeiro, e o gozo, pela

Propriedade.” (ROUSSEAU, 1987, p. 38). Rousseau propugna que o Direito de

primeiro ocupante de um terreno se origina somente se preenchidas três

condições: primeiro, que o terreno não tenha nenhum habitante anterior à

ocupação; segundo, que a área ocupada tenha apenas o tamanho bastante para

o indivíduo subsistir; terceiro, que seja tomada a posse dela, o que apenas pode

ser realizado pelo trabalho e pela cultura, os únicos sinais que o primeiro

ocupante detém para assinalar sua Propriedade (ROUSSEAU, 1987, p. 37-39).

Explica Rousseau (1987, p. 38), referindo-se ao terreno ocupado:

[...] que dele se tome posse não por uma vã cerimônia, mas pelo

trabalho e pela cultura, únicos sinais de Propriedade que devem

ser respeitados pelos outros na ausência de títulos jurídicos.

Kant não admite que a posse do primeiro possuidor tenha no

trabalho o sinal de sua Propriedade, como se o trabalho pudesse fornecer a base

que alicerçará o título jurídico para viabilizar a Propriedade. Para Kant, não é

possível adquirir um título de aquisição pela posse dos acidentes, produzidos a

partir do trabalho. É a posse da substância que é capaz de fornecer base para

uma Posse Jurídica. Pode-se citar o exemplo, proposto pelo próprio Kant, de uma

pessoa que é proprietária de um terreno, invadido por uma outra pessoa que faz

neste terreno o primeiro cultivo, demarcação ou moldagem, isto é, que realiza os

primeiros trabalhos nele. Ora, não adiantaria nada alguém trabalhar em um

terreno que não é seu para adquirir a Propriedade, pois, conforme atenta Kant

(2003a, p. 113): “[...] todo aquele que despender seu labor na terra que já não era

sua perdeu seu trabalho penoso e mourejamento para quem foi o primeiro.”

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Ademais, no caso do próprio proprietário começar a

trabalhar no terreno, não deve-se entender que é seu labor o responsável por

tornar o terreno sua Propriedade. Por isso, quem adquire uma terra não tem

qualquer obrigação de trabalhar nela, isto é, de desenvolvê-la construindo,

cultivando, drenando, etc. Ao revés, o trabalho serve meramente como um sinal

externo de tomada de posse, e, mesmo assim, não necessário, como acrescenta

Kant (2003a, p. 110):

Quando o que está em questão é a primeira aquisição,

desenvolver a terra não passa de um signo externo de tomada de

posse, o qual pode ser substituído por muitos outros signos que

custam menos esforço.

Partindo destas considerações, compreende-se que Kant

não aceita a personificação das coisas, concebendo o Direito a uma Coisa (ius in

re) como uma relação entre pessoas, o que é observado a partir da definição real

de Direito a uma Coisa: “[...] um Direito a uma Coisa é um Direito ao uso privado

de uma coisa da qual estou de posse (original ou instituída) em comum com todos

os outros [...].” (KANT, 2003a, p. 106). Quanto ao Direito Real (ius reale) significa,

nas palavras de Kant (2003a, p. 106): “[...] não apenas um Direito a uma Coisa

(ius in re), mas também a soma de todas as leis que têm a ver com coisas que

são minhas ou tuas.” Assim, o Direito Real abarca: a) o Direito a uma Coisa,

enquanto o Direito ao uso privado de uma coisa, da qual se está em Posse em

Comum com todos os demais; b) a soma das leis referentes à Propriedade das

coisas.

Para compreender esta definição, é necessário desvelar o

conceito de uma nova categoria introduzida por Kant, qual seja, a Posse em

Comum. Até aqui, foi dito que Kant rejeita o entendimento do Direito como uma

relação entre uma pessoa e uma coisa. A necessidade de demonstrar este

entendimento é que leva à exposição sobre a Posse em Comum, a qual

representa a segunda etapa da argumentação kantiana para fundamentar a

Propriedade.

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4.2.2 A Posse em Comum

A Posse em Comum (communio possessionis) é concebida

a priori no estado de natureza e precede a toda posse privada26. Significa, como

explica Kant (2003a, p. 107): “A posse de todos os seres humanos sobre a Terra

que precede quaisquer atos de sua parte que estabeleceriam Direitos (posse

constituída pela própria natureza) [...]”. A Posse em Comum antecipa o ato

jurídico da aquisição original, é mais um argumento para rejeição da res nullius e

fornece a base jurídica para a Posse Jurídica, aparecendo como uma idéia da

razão que preceitua uma posse de todos os seres humanos sobre o solo. Pensar

uma Posse em Comum é inviável partindo do plano fático, e, por isso, seu

conceito não é empírico, não é um dado da história, não depende de condições

temporais. A Posse em Comum, conforme expõe Kant (2003a, p. 107), é:

[...] um conceito da razão prática que encerra a priori o princípio

exclusivamente de acordo com o qual as pessoas podem usar um

lugar sobre a Terra conforme princípios de Direito.

Uma Posse em Comum ocorre mesmo antes de qualquer

ato estabelecendo um Direito, tendo o condão de fornecer a condição para que

uma pessoa, por um ato de Direito, possa ter uma posse privada. Referida

condição estabelecida pela Posse em Comum é a demonstração do Direito como

uma relação imediata de uma pessoa com todas as outras pessoas, conforme

esclarece Nour (2004, p. 27):

Quando se diz que alguém possui uma coisa, indica-se com isso

não uma relação imediata entre essa pessoa e essa coisa, mas

sim uma relação imediata entre essa pessoa e todas as outras,

uma relação jurídica de propriedade comum sobre essa coisa,

sobre a qual essa pessoa tem apenas o direito de uso privado.

26 A Posse em Comum é uma concepção que remonta aos estóicos, aos juristas clássicos tardios, bem como a Hugo Grotius, na sua obra De Jure Belli ac Pacis (O Direito da guerra e da paz) (WIECKER, 1967, p. 328-329). Foi por muitos entendida como uma lenda da origem da Propriedade. Contudo, em Kant, não pode ter este tom, eis que não é uma lenda, mas um conceito a priori que permite com que o Direito seja compreendido como uma relação entre pessoas, não entre uma pessoa e um objeto.

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Neste sentido, a Posse em Comum planta a idéia de uma

relação originária entre os arbítrios, que aquiesce com a afirmação de que todos

os objetos são de todos, mas não com a afirmação de que nenhum objeto é de

ninguém. Neste sentido, ao invés da res nullius, Kant propala a res omnium.

Esta relação entre as pessoas é permitida pela Posse em

Comum, pois decorre da idéia de uma comunidade de co-possuidores. Assim

sendo, uma primeira posse privada pode ocorrer somente se todos os demais

consentem com referida posse. Por isso, não é cogitada uma posse privada como

resultado de uma vontade meramente unilateral, o que resultaria em uma relação

da pessoa com a coisa.

A Posse em Comum, não advindo de um ato de Direito, é

constituída pela própria natureza e, por isso, a posse original de um objeto

somente pode ser uma Posse em Comum, onde todos possuem aquele mesmo

objeto. Diferente desta Posse Original em Comum é a posse privada, que ainda

está para ser consumada a partir da base jurídica fornecida pela Posse em

Comum.

A compreensão da base jurídica fornecida pela idéia de

Posse em Comum parte da constatação de que, se não fosse admitida uma

Posse em Comum, existiria a relação de cada pessoa com um pedaço isolado de

terra, e não uma relação dos arbítrios entre si, o que impossibilitaria a formação

de obrigação entre todos. Adianta-se, desde já, que a obrigação se constitui

apenas pela Vontade Unida do Povo, isto é, a obrigação de ser respeitada a

posse privada exige que todos que possuem em comum o solo, permitam com

que determinada pessoa faça o uso privado de um pedaço de terra. Esta pessoa

adquirente, por sua vez, também deve permitir aos demais ter um pedaço de terra

como seu. É nesta relação de reciprocidade, constituída pela relação do arbítrio

de todos, que se forma a obrigação. Esta relação de arbítrios não seria possível

se não fosse admitida a Posse em Comum, já que a abstenção do uso de um

terreno por todos, permitindo que outro o use privativamente, requer uma posse

anterior deste terreno, posse esta realizada por todos aqueles que renunciam o

uso de digitado terreno. Constituída a obrigação por uma vontade conjunta que

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consente com o uso de certo terreno por um indivíduo, no caso de um outro

interferir nesta aquisição original, resta evidente a lesão perpetrada contra o

primeiro possuidor. Salienta-se a seguinte colocação de Kant (2003a, p. 106):

[...] esta posse em comum é a única condição sob a qual é

possível a mim excluir todo outro possuidor do uso privado de

uma coisa (ius contra quemlibet huiuhs rei possessorem), visto

que, a menos que tal posse em comum seja assumida, é

inconcebível como eu, que não estou de posse da coisa, poderia

ainda ser prejudicado por outros que estão de posse dela e a

estão usando.

Por isso, não se admitindo a Posse em Comum, há apenas

a relação de uma pessoa com uma coisa. Neste caso, onde não há uma

obrigação constituída entre todos, na hipótese de uma pessoa tomar um pedaço

de terra que já tivesse sido originalmente adquirido, não estaria causando

qualquer lesão ao primeiro possuidor, já que seria o embate, de um lado, da

vontade unilateral daquele que realizou a aquisição original e, de outra parte, da

vontade unilateral do outro em tomar para si o terreno em testilha. Contudo, a

vontade unilateral não forma obrigação e, por isso, não é possível falar que o

primeiro possuidor foi lesado. Admitindo-se a mera relação da pessoa com o

terreno e não dela com as demais pessoas, nenhuma obrigação se formaria, pois,

conforme explicita Kant (2003a, p. 106):

[...] de outra maneira, teria que conceber um direito a uma coisa

como se a coisa tivesse uma obrigação comigo, da qual meu

direito contra todo outro possuidor dela é então derivado, o que

constitui uma concepção absurda.

Partindo de uma hipótese ventilada pelo próprio Kant

(2003a, p. 106), segue-se que, se uma pessoa estivesse totalmente sozinha no

planeta Terra, não haveria como ter ou adquirir qualquer coisa externa como sua,

já que não se constituiria qualquer relação de obrigação.

Pela Posse em Comum chega-se à concepção de que, onde

quer que a natureza ou o acaso colocou o homem, ele possui aquele local em

comum com todos os demais. Ao admitir-se uma Posse em Comum é possível

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falar em uma comunidade original (communio mei et tui originaria), isto porque a

comunidade é um resultado necessário da existência do planeta Terra, uma vez

que este possui um formato esférico, unindo todos os lugares sobre si. Ao

contrário, se a Terra fosse um plano ilimitado, as pessoas viveriam dispersas e a

comunidade não seria um resultado necessário (KANT, 2003a, p. 107).

Não deve-se buscar na história a existência de uma posse

de todos os seres humanos sobre a Terra, que, no caso, seria uma posse

primitiva em comum (communio primaeva); nem de uma comunidade primitiva

(communio primaeva), onde seria necessário um contrato através do qual as

posses privadas fossem renunciadas e unidas às posses de todos os demais,

formando uma posse coletiva. Sendo um conceito da razão, a Posse em Comum

e a comunidade original são idéias que possuem realidade objetiva (juridicamente

prática), por fundar a priori a base para que a posse privada seja possível (KANT,

2003a, p. 97-98; 103; 107). Ademais, como ensina Höffe (2005, p. 249): “Ela

serve para nos lembrar que a base material de todo direito privado não nasce, por

sua vez, de um ato jurídico; a base material é dada, é doada ao homem.”

É importante não se descurar do fato de que o postulado da

razão prática e a Posse em Comum não se apóiam na mesma proposição. O

postulado da razão prática demonstra a possibilidade da Posse Jurídica no estado

de natureza e, conseqüentemente, que há possibilidade de qualquer pedaço de

terra ser adquirido originalmente, impondo a obrigação de respeito a esta primeira

tomada de posse. A Posse em Comum, por seu turno, fornece a base jurídica

para que a aquisição original possa ocorrer, ou seja, fornece o fundamento da

possibilidade de aquisição original de um pedaço de terra, iniciando o argumento

que fundamenta a obrigação imposta pelo postulado e que se consuma, de modo

definitivo, somente no estado civil.

Agora, torna-se precípuo analisar como se dá a passagem

da Posse Comum Originária - pela posse de todos os seres humanos sobre a

Terra- em direção à posse privada, o que é abordado no seguimento do presente

trabalho.

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4.2.3 Da passagem da Posse em Comum para a posse privada: a aquisição

original e a rejeição da teoria da ocupação para fundamentar a Propriedade

Tratanto-se da Posse em Comum, cogitada antes do

ingresso no estado civil, a primeira aquisição que ocorre pode ser somente

original. A aquisição original, segundo conceitua Kant (2003a, p. 103): “[...] é a

que não é derivada daquilo que é de outrem.” Neste ponto, é importante fazer

distinção, entre, de um lado, a aquisição original do objeto e, de outro, do objeto

que é originalmente de alguém. Explicando sobre um objeto que pertenceria

originalmente a uma pessoa, diz Kant (2003a, p. 103): “Alguma coisa é

originalmente minha quando me pertence sem qualquer ato que estabeleça um

Direito a ela.” Ocorre que um objeto não pode ser originalmente de uma pessoa,

mas apenas originalmente de todos, devido uma Posse em Comum, pois esta é a

ocasião em que todos os seres humanos possuem a posse do solo antes de

qualquer ato estabelecendo um Direito, ou seja, é uma posse constituída pela

própria natureza e não por um ato jurídico do homem.

É pela aquisição original que, pela primeira vez, um

indivíduo manifesta a pretensão de sair da esfera da Posse em Comum e entrar

na esfera da posse privada. É uma transição que externa a possibilidade de

formulação de um Direito a partir da razão prática, qual seja, de um indivíduo ter

um objeto externo de seu arbítrio como seu. A aquisição original de um objeto

externo de meu arbítrio ocorre em três momentos, pelos seguintes atos jurídicos:

� a) Apreensão (detentio) – É quando uma pessoa apreende para si

um objeto que não pertencia de modo privado, anteriormente, a

ninguém. O significado de apreensão é apresentado por Kant

(2003a, p. 104) ao afirmar: “A apreensão é tomar posse de um

objeto de escolha no espaço e no tempo, de modo que a posse

na qual me instauro é possessio phaenomenon.” A apreensão

corresponde à Posse Física de um objeto, de sorte que, sendo a

primeira tomada de posse (prior apprehensio), está em

consonância à Liberdade Externa.

� b) Indicação (declaratio) – É quando a pessoa, após ter apreendido

um objeto, realiza atos que excluem todos os demais do uso

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privado deste objeto, tendo como espeque o postulado da razão

prática;

� c) Apropriação (appropriatio) – É a vontade unilateral da pessoa

em ter aquele objeto como seu. A apropriação é, como expõe

Kant (2003a, p. 108): “[...] a vontade de que uma coisa (e, assim

também, um lugar específico, separado sobre a Terra) deva ser

minha [...]”. Esta vontade unilateral não apresenta dissonância à

idéia de uma vontade unida possível, a qual é efetivada somente

em uma condição civil. Ocorrendo no estado de natureza, a

obrigatoriedade da vontade unilateral se apóia tão-somente no

postulado da razão prática. Contudo, para que, definitivamente,

se origine a obrigação de todos obedecerem a esta ocupação de

um objeto, é necessária uma vontade universal e legisladora,

responsável por preceituar uma lei, com força obrigatória sobre

todos, que consente a posse dos objetos de modo privado. É o

que elucida Kant (2003a, p. 104), ao colocar que a apropriação

exige: “[...] o ato de uma vontade geral (em idéia) produzindo

uma lei externa pela qual todos ficam obrigados a assentir com

minha escolha.”

A aquisição original é denominada de apoderamento ou

ocupação (occupatio), em razão de ser realizada por uma vontade unilateral,

conforme ensina Kant (2003a, p. 104): “A aquisição original de um objeto externo

de escolha é chamada de apoderamento ou ocupação (occupatio) deste e

somente coisas corpóreas (substâncias) podem ser adquiridas originalmente.”

Mais adiante, assinala Kant (2003a, p. 108): “A aquisição de um objeto externo de

escolha por uma vontade unilateral é o apoderamento ou ocupação dele.” A

reunião dos três momentos da aquisição original explicita o princípio da aquisição

original, que aduz:

[...] é meu o que trago para o meu controle (de acordo com a lei

da liberdade exterior); o que, como um objeto de minha escolha, é

alguma coisa para cujo uso tenho capacidade ( conforme o

postulado da razão prática); e o que, finalmente, quero que seja

meu (em conformidade com a idéia de uma vontade unida

possível). (KANT, 2003a, p. 103).

Com base nos três momentos para o estabelecimento da

aquisição original, pode-se averiguar que a teoria da Propriedade de Kant não

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busca o fundamento da Propriedade na apreensão (detentio) do objeto, nem na

sua ocupação (occupatio).

Neste ensejo, interessante observar a posição do Direito

Romano, ao propugnar que o fundamento da Propriedade reside na ocupação.

Ensina Martins (1999, p. 39), referindo-se ao Direito Romano: “O título justificativo

do direito de propriedade seria, pois, a ocupação, que teve mesmo uma sanção

legislativa na fórmula ‘quod nullius est, id naturali ratione occupandi conceditur’

[...]”. A ocupação assume significado diverso daquele exposto por Kant, já que

entre os romanos, no magistério de Alves (1995, p. 293): “A ocupação é a

apreensão de uma coisa sem dono, com a intenção de fazê-la própria.” Verifica-

se que entre os romanos, diferentemente de Kant, a ocupação implica a relação

direta da pessoa com o objeto, por recair sobre uma res nullius (ARGÜELLO,

1998, p. 229). Um exemplo de ocupação se dá quando um caçador fere um

animal e o apreende para si, momento este que adquire sua Propriedade.

Portanto, os romanos, ao contrário de Kant, admitiam a aquisição da Propriedade

pela ocupação, conforme coloca Alves (1995, p. 293):

Primitivamente, a ocupação é o mais importante dos modos de

aquisição da propriedade, tanto que os jurisconsultos romanos –

assim Nerva (filho), cuja opinião nos foi transmitida por Paulo –

salientavam que o direito de propriedade decorre da ocupação.

(MOREIRA, 1995, p. 293).

Na filosofia de Kant, as palavras occupatio e detentio não

podem ser confundidas, posto que, muito embora a apreensão (detentio) seja um

ato jurídico, é apenas uma das estapas que compõem o ato jurídico da aquisição

original, qual seja, a ocupação (occupatio). Diga-se de passagem, a confusão

entre detentio e occupatio na filosofia de Kant é que faz alguns comentadores,

como, por exemplo, Norberto Bobbio (1997, p. 103-107), recair no erro de tomar a

ocupação (Bemächtigung ou occupatio) tratada pelo filósofo alemão, pelo

sentido de apreensão (Inhabung ou detentio). Por isso, não há que se afirmar

que o ato jurídico da ocupação resulta na aquisição original da Propriedade. Tal

equívoco leva ao entendimento de que Kant teria se apegado à teoria tradicional,

admitindo a teoria da ocupação como o fundamento da Propriedade. Ora, a

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ocupação necessita da Liberdade Exterior e do postulado da razão prática, e não

produz a aquisição da Propriedade, já que esta última requer a Vontade Unida do

Povo. Assoma-se, ainda, que a ocupação provém de uma vontade unilateral, a

qual não gera garantia às obrigações.

Ademais, torna-se imperioso se precaver de qualquer

entendimento enganoso com relação ao teor do seguinte brocardo, apresentado

por Kant (2003a, p. 98) ao dizer: “Felizes são aqueles que têm a posse” (beati

possidentes). Este brocardo é, realmente, um princípio de Direito Natural, uma

prerrogativa que decorre da posse empírica, mas dele não segue a defesa à

teoria da ocupação para fundamentar a Propriedade. Ao revés, referido brocardo

está informando que ninguém é obrigado a certificar que sua posse foi

efetivamente a primeira, até mesmo porque o fornecimento da prova vale

somente em disputas acerca de Direitos. Deste modo, o primeiro possuidor tem

na sua primeira posse a condição para chegar a se tornar uma Posse Jurídica

definitiva, qual seja, o título empírico de aquisição, o qual apenas se tornará um

título racional e jurídico com o ingresso em uma condição civil. Neste sentido,

citado brocardo: “[...] estabelece o tomar a primeira posse como uma base jurídica

de aquisição com a qual pode contar todo primeiro possuidor.” (KANT, 2003a, p.

98). A prerrogativa que advém deste brocardo se apóia no postulado da razão

prática, como explica Kant (2003a, p. 102-103):

Conseqüentemente, qualquer ocupação de um objeto externo é

uma condição cuja conformidade com o direito é baseada naquele

postulado por meio de um prévio ato da vontade, e enquanto essa

condição não conflituar com a posse anterior de outrem do mesmo

objeto, o possuidor estará provisoriamente justificado, de acordo

com a lei da liberdade externa, a impedir qualquer um que não

queira ingressar com ele numa condição de liberdade pública legal

de usurpar o uso daquele objeto para dispor para seu próprio uso,

em conformidade com o postulado da razão, uma coisa que, de

outra maneira, seria praticamente anulada.

É digno de nota, outrossim, que a tomada de posse

originária não significa a defesa do Direito do mais forte para que a aquisição

ocorra. Quando fala-se em tomada de posse, não quer significar o uso da força,

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mas a apropriação realizada. Por isso, para a aquisição original ocorrer não se

considera o uso da força, mas a anterioridade temporal, isto é, que o indivíduo foi

o primeiro a se apoderar do objeto, antes de qualquer outro. Resulta, portanto,

que Kant não encampa a justificativa da aquisição por meio da conquista militar,

característica do feudalismo. Expõe Kant (1984, p. 52): “[...] a aquisição pela

conquista militar não é de modo algum uma aquisição primeira [...]”27.

A primeira tomada de posse tem na apreensão um ato

jurídico, em virtude da Posse Física já ser um Direito a uma Coisa, conforme

aborda Kant (2003a, p. 97): “A posse meramente física da terra [...] já é um direito

a uma coisa, embora certamente não por si suficiente para considerá-la como

minha.” Insta ressaltar que a apreensão não viola a Liberdade Externa, pois se

trata da Posse Física de um objeto que, anteriormente, não pertencia a ninguém

de modo privado. Em outras palavras, no momento da apreensão, o primeiro

possuidor não está colidindo com o arbítrio de nenhum outro em estabelecer a

posse privada daquele objeto. Elucida Kant (2003a, p. 108):

A única condição na qual a tomada de posse (apprehensio),

começando pela ocupação de uma coisa corpórea no espaço

(possessionis physicae), se conforma com a lei da liberdade

externa de todos (daí a priori) é aquela da anterioridade no tempo,

ou seja, somente na medida em que é a primeira tomada de

posse (prior apprehensio), que é um ato de escolha.

Quanto a indicação e a apropriação, recebem importante

contribuição do postulado da razão prática, já que é pelo postulado que, no

estado de natureza, a pessoa está autorizada a resistir contra os atos dos outros

que atentam à sua posse, bem como fazer com que sua vontade unilateral

obrigue os outros a se abster do uso de determinado objeto, em virtude de ter

sido o primeiro a ter dele a posse. Por isso, referindo-se à aquisição original,

expõe Kant (2003a, p. 108):

Não há como entrever a possibilidade de adquirir dessa maneira,

nem é ela demonstrável mediante razões; esta possibilidade é, ao

27 “[...] la adquisición por conquista guerrera no es en modo alguno adquisición primera [...]”.

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contrário, uma conseqüência imediata do postulado da razão

prática.

A necessidade do postulado para que a possibilidade da

aquisição original seja alcançada, repousa no fato desta última ocorrer no estado

de natureza, como uma aquisição provisória, guardando a perspectiva de

instauração do estado civil. O postulado advém de uma faculdade jurídica da

vontade, ao exigir que o ato unilateral da aquisição original seja reconhecido por

todos como válido. Do postulado segue o dever de proceder de acordo com o

princípio da aquisição original (KANT, 2003a, p. 112). Esclarece Kant (2003a, p.

112):

A aquisição provisória, contudo, necessita e ganha o favor de uma

lei (lex permissiva) para determinar os limites da posse jurídica

possível. Visto que esta aquisição precede uma condição jurídica

e, uma vez apenas conduzente a ela, não é ainda definitiva, tal

favor não ultrapassa o ponto no qual outros (participantes)

consentem no seu estabelecimento.

Em razão do postulado da razão prática externar a

possibilidade de aquisição original de um objeto de meu arbítrio, tem-se que a

aquisição original, mesmo provisória, é verdadeira. Inclusive, o postulado vem

consentir com que seja utilizado o expediente da coerção para submeter aqueles

que obstacularizam o ingresso no estado civil. Observa-se as palavras de Kant

(2003a, p. 109):

A despeito disso, essa aquisição provisória é verdadeira, visto

que, segundo o postulado da razão prática no que tange aos

direitos, a possibilidade de adquirir alguma coisa externa em

quaisquer condições em que os indivíduos possam viver juntos (e,

assim, também num estado de natureza) é um princípio de direito

privado, em conformidade com o qual cada um é justificado por

usar a coerção que seja necessária na hipótese das pessoas

abandonarem o estado de natureza e ingressarem no civil, o qual

possui a capacidade exclusiva de tornar definitiva qualquer

aquisição.

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A ocupação, enquanto uma aquisição original provisória,

quando recebe a garantia da Vontade Unida do Povo passa a ser uma aquisição

definitiva, a única que pode fundar a Propriedade. Se a aquisição original não

ocorresse antes da condição civil, teria que ser uma aquisição derivada da

aquisição primeira, esta última representada pela condição jurídica externa.

Expõe Kant (2003a, p. 109):

[...] alguma coisa pode ser originalmente adquirida somente em

conformidade com a idéia de uma condição civil, ou seja, com

vistas a ela e a sua realização, mas antes desta (pois, de outro

modo, a aquisição seria uma resultante). A conseqüência é poder

a aquisição original ser apenas provisória.

Enquanto a aquisição original é proveniente da vontade

unilateral, não é possível confundi-la com a aquisição derivada, proveniente da

vontade bilateral, nem com a aquisição primeira, advinda da vontade onilateral.

Ora, a aquisição original não poderia provir de uma vontade bilateral, pois, então,

se trataria de um contrato entre duas pessoas, onde há a aquisição de algo que é

derivado de outrem. Não provém, outrossim, de uma vontade onilateral, até

mesmo porque esta última pode estabelecer apenas uma aquisição primeira, qual

seja, a aquisição de uma condição jurídica pública. A diferença entre a aquisição

original e a aquisição primeira é explicada por Kant (2003a, p. 104) ao afirmar:

[...] se uma aquisição é primeira não é, portanto, original, pois a

aquisição de uma condição jurídica pública através da união da

vontade de todos para a produção de lei universal seria uma

aquisição tal que nenhuma outra poderia precedê-la, e ainda

assim seria derivada das vontades particulares de cada um e seria

onilaterial, ao passo que a aquisição original só pode provir de

uma vontade unilateral.

Fica claro que a aquisição original, por ser provisória, não

funda a Posse Jurídica definitiva. Contudo, não é um ato arbitrário, já que, antes

dela, se apóia na base da Posse em Comum e, depois dela, se apóia na

necessidade da instauração de uma Vontade Unida do Povo. Referindo-se ao ato

de tomada de posse, explica Kant (2003a, p. 96):

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O possuidor funda seu ato numa posse inata em comum da

superfície da terra e numa vontade geral que lhe corresponde a

priori, que permite sua posse privada (de outra maneira, coisas

desocupadas seriam tornadas em si mesmas, e de acordo com

uma lei, coisas que a ninguém pertencem).

O uso privado de determinado objeto pode ocorrer apenas

sob a garantia fornecida pela Vontade Unida do Povo, que coloca a posse privada

na dependência do consentimento de todos. A Vontade Unida do Povo aparece

como o princípio que determina a posse particular de cada um sobre a Terra, e

resolve a seguinte dificuldade, que surge para aqueles que procuram derivar a

posse privada unicamente da idéia de Posse em Comum: como pode haver o

Direito de um indivíduo à aquisição original de um terreno, se este Direito esbarra

no Direito de uso por parte de todos os demais seres humanos, enquanto co-

possuidores daquele mesmo terreno? Cumpre, agora, prestar maiores

esclarecimentos sobre a Vontade Unida do Povo, onde a resposta para esta

interrogação, já esboçada no presente item, torna-se ainda mais clara.

4.3 A FUNDAMENTAÇÃO DA PROPRIEDADE: A VONTADE UNIDA DO POVO

A Vontade Unida do Povo se constitui pelo Contrato

Originário, onde as vontades particulares são unidas e elevadas à condição de

vontade coletiva. O Contrato Originário realiza, como informa Kant (1984, 55,

tradução nossa) uma: “[...] coligação de todas as vontades particulares e privadas

de um povo, numa vontade geral e pública (com o fim de uma legislação

unicamente jurídica) [...]”28. Destarte, é pelo Contrato Originário que se funda, a

priori, a idéia de uma Vontade Unida do Povo, a qual constitui a legitimidade de

toda lei pública.

Antes de ocorrer a Vontade Unida do Povo, ainda no estado

de natureza, com a primeira tomada de posse, há uma obrigação imposta a partir

do postulado da razão prática. Referida obrigação não poderia se originar de

outra forma, até mesmo porque, se adviesse de uma vontade unilateral, faria do

28 “”[...]coalición de cada voluntad particular y privada, en un pueblo, en una voluntad general y pública (con el fin de una legislación únicamente jurídica) [...]”.

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Direito a uma Coisa uma mera relação de uma pessoa com uma coisa, além de

conflituar com a Liberdade Externa. Dispõe Kant (2003a, p. 101):

Ora, uma vontade unilateral não pode servir como uma lei

coercitiva para todos no que toca à posse que é externa e,

portanto, contingente, já que isso violaria a liberdade de acordo

com leis universais.

Pelo ato jurídico individual, através do qual um sujeito

declara sua pretensão em ter determinada coisa externa como sua, percebe-se

sua vontade unilateral para que uma obrigação seja formada, no sentido de que

todos os demais se abstenham do uso daquele objeto. Segue-se desta intenção

que, este mesmo sujeito, com relação a todos os demais, também deve estar

obrigado a obedecer, da mesma forma, a posse privada deles. É o que decorre do

princípio da igualdade inata, pelo qual ninguém pode obrigar os outros a mais do

que, ele mesmo, pode ser obrigado. Pode-se perceber, assim, nas palavras de

Kant (2003a, p. 101), que:

Não estou, por conseguinte, obrigado a deixar intocáveis objetos

externos pertencentes a outros, a menos que todos os demais me

proporcionem garantia de que se comportarão segundo o mesmo

princípio com respeito ao que é meu.

Por isso, há a necessidade de uma obrigação universal e

recíproca, fornecendo garantia ao meu e teu externos. Se trata de uma obrigação

recíproca de usar os objetos de meu abírtiro e abster-se do uso dos objetos do

arbítrio do outro. Uma obrigação tal pode ocorrer apenas através da Vontade

Unida de Todos, pela submissão da coletividade a uma legislação externa

pública, acompanhada de poder coercitivo. Elucida Kant (2003a, p. 101):

Assim, é somente uma vontade submetendo todos à obrigação,

conseqüentemente somente uma vontade coletiva e geral

(comum) e poderosa é capaz de suprir a todos tal garantia.

É pela mediação da vontade comum que é estabelecida a

garantia jurídica que efetiva a Posse Jurídica. O que ocorre é que a vontade do

sujeito em possuir um objeto deve entrar em uma relação de correspondência

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com a vontade de todos os demais, o que, para acontecer, requer uma garantia,

alicerçada na Vontade Unida do Povo. Portanto, há a relação da vontade

unilateral do indivíduo em usar determinado objeto, com a vontade coletiva de

todos em permitir tal uso. Como leciona Orts (1984, p. XLVIII, tradução nossa):

“Algo não é, pois, legitimamente meu somente porque eu declaro ‘quero que seja

meu’, senão também porque a vontade comum se expressa dizendo ‘queremos

que seja teu’.”29

No estado de natureza não há obrigação estabelecida pela

Vontade Unida do Povo, de modo que a pessoa pode adquirir apenas um título

empírico de aquisição sobre um objeto. O título empírico de aquisição é a

realização da primeira tomada de Posse Física (apprehensio physica), tendo por

base a comunidade original da terra. Referido título empírico remete à posse

fenomênica de determinado objeto por uma pessoa. É apenas partindo-se de tal

posse fenomênica que se chega à Posse Jurídica, já que a posse segundo

conceitos jurídicos racionais submete a Posse Física, pela omissão do que nela

há de empírico (KANT, 2003a, p. 109). Por isso, da posse fenomênica deve-se ter

a perspectiva da posse noumênica, que funda a base da seguinte proposição,

exposta por Kant (2003a, p. 109): “’O que submeto ao meu controle de acordo

com leis da liberdade externa e é minha vontade que se torne meu, torna-se

meu.’”

Todavia, um título racional de aquisição pode ser adquirido

somente em uma condição civil. Antes disto, há um estado jurídico provisório,

onde o título racional de aquisição está presumido juridicamente na necessidade

das vontades serem unidas e de uma condição civil instaurada. Não obstante, o

surgimento do título racional de aquisição, enquanto realidade jurídica, se dá

apenas quando surge a vontade de todos unida a priori, eis que no estado de

natureza a aquisição se dá por uma vontade unilateral, sem higidez para

submeter os demais a uma obrigação.

29 “Algo no es, pues, legítimamente mío sólo porque yo declare ‘quiero que sea mío’, sino también porque la voluntad común se expresa diciendo ‘queremos que sea tuyo’.”

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A Vontade Unida do Povo significa, como ensina Kant

(2003a, p. 108), a: “[...] união da escolha de todos capazes de empreender

relações práticas mútuas [...]”. Esta união não é um episódio fático ou histórico,

nem pressupõe um ato jurídico. É uma idéia da razão que estabelece referida

união de modo a priori. Diferentemente de uma vontade unilateral ou bilateral, que

podem apenas constituir uma obrigação contingente, a Vontade Unida do Povo

forma uma obrigação absoluta, submetendo a todos. Por isso, a Vontade Unida

do Povo corresponde a uma vontade onilateral, ou seja, a vontade de todos unida

de modo a priori. É a única vontade legisladora, o que constitui um princípio da

vontade, conforme explica Kant (2003a, p. 108):

[...] somente de acordo com esse princípio da vontade é possível

ao livre arbítrio de cada um harmonizar-se com a liberdade de

todos e, portanto, possível haver qualquer Direito e assim,

também, possível a qualquer objeto externo ser meu ou teu.

Neste ponto, impende pôr em relevo a distinção entre a

teoria do consenso de Hugo Grotius e a formulação kantiana da fundamentação

da Propriedade. Para Grotius, o gênero humano, no estado de natureza, recebeu

de Deus o Direito geral sobre todas as coisas, que o permitia se apropriar e

consumir o que quisesse. Expõe Grotius (2004, p. 309): “O uso desse direito

universal tinha então a função de direito de propriedade, pois do que alguém se

havia apropriado outro não podia tirá-lo dele sem injustiça.” Ocorria que os

homens não tinham Propriedade Privada contínua, mas tudo estava a disposição

para o uso de todos, pela apropriação das coisas. Esta vida simples e inocente

não perdurou, já que os homens logo se corromperam, principalmente pela

ambição, retratada na torre de Babel (Gênesis, X e XI).

Deste modo, o homem saiu da Propriedade em Comum e

passou para a Propriedade Privada, o que não poderia ocorrer por um ato de

vontade individual, mas apenas por uma convenção. A convenção é realizada: a)

tacitamente, quando os homens combinam de respeitar a ocupação do outro

como sua Propriedade; b) expressamente, quando as pessoas, de comum

acordo, empreendem a partilha entre si, ou seja, repartem terras e bens. Pela

convenção, cada um fica sabendo o que cada um gostaria que fosse seu, de

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modo que a fundamentação da Propriedade resulta deste consenso realizado.

Ensina Grotius (2004, p. 314):

Ficamos sabendo também como as coisas se transformaram em

Propriedade. Não teve lugar por um simples ato de vontade, pois

os demais não deveriam saber, a fim de se abster, do que cada

um queria tornar seu e vários poderiam querer se apropriar do

mesmo objeto. Foi, no entanto, o resultado de uma convenção,

seja expressa através de partilha, seja tácita através, por exemplo,

de ocupação.

Para Kant, a Propriedade Privada não advém de um acordo

contratual, mas de uma idéia da razão, ou seja, da Vontade Unida do Povo. Kant,

da mesma forma que Grotius, parte da noção de uma comunidade originária da

terra. Contudo, aqui, como já mencionado, Kant não assume qualquer

compromisso histórico. Parte da Posse em Comum, diferente de Grotius, para

fornecer a base ao uso possível das coisas, a começar pela aquisição original dos

objetos. No seguimento à Posse em Comum, há a aquisição original, permitindo o

Direito a Posse Física de um objeto amparado de modo provisório pelo postulado

da razão prática. Depois, dá-se o Contrato Originário, onde surge a Vontade

Unida do Povo que, assim, vem dar garantias e definitividade ao Direito de

Propriedade.

A Vontade Unida do Povo fornece o princípio jurídico que se

junta à Posse em Comum para originar a Propriedade e o faz sem qualquer

violação à Liberdade Externa. Sem a Vontade Unida do Povo, para efetivar a

Propriedade, as pessoas que estivessem de Posse em Comum do solo estariam

sempre opondo seus arbítrios entre si, o que impossibilitaria qualquer uso privado

do solo. Esta oposição entre os arbítrios deflui da constatação de que todo ser

humano tem, por natureza, o arbítrio de usar o solo que possui em comum com

todos os demais. Por isso, é possível constatar que seria incorreto compreender a

Posse em Comum como fundamento à Propriedade, eis que não é suficiente para

regular a oposição entre os arbítrios, nem determinar a posse privada de cada um

sobre a Terra.

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É a Vontade Unida do Povo quem determinada a posse

privada, de modo jurídico e definitivo, fornecendo a garantia para que a aquisição

original se torne definitiva, legislando sobre qual terra cabe a cada um (KANT,

2003a, p. 111-112). Disciplina Kant (2003a, p. 114):

Pois um direito contra todo possuidor de uma coisa significa

apenas uma competência da parte da escolha particular de

alguém para usar um objeto, na medida em que essa competência

é suscetível de ser pensada como encerrada numa vontade geral

sintética e como em harmonia com a lei dessa vontade.

A Posse em Comum, muito embora fundamental para o

entendimento do Direito de Propriedade, não é suficiente para explicá-lo, até

mesmo porque não gera qualquer obrigação e não garante o uso privado dos

objetos. É com a Vontade Unida do Povo que o Direito de Propriedade ganha a

condição de sua existência, responsável por autorizar que o arbítrio de uma

pessoa venha possuir um objeto externo. É a Vontade Unida do Povo quem

cumpre a exigência do Direito de Propriedade em obrigar as pessoas a

respeitarem, mutuamente, o uso privado dos objetos.

Cabe sublinhar que o uso privado de uma coisa pode ocorrer

somente sobre a base da Vontade Unida do Povo, pois, antes disto, há apenas

uma situação provisória, uma presunção jurídica de que este uso venha ser

assegurado. Além disso, somente o acordo entre todos, refletido na Vontade

Unida do Povo, pode autorizar o uso privado de um objeto pela vontade unilateral.

Quanto as leis referentes à Propriedade, são todas asseguradas pela Vontade

Unida do Povo.

Assim, o postulado da razão prática não poderia

fundamentar a Propriedade, já que é apenas uma lei permissiva, referente a um

estado provisório no qual a Propriedade não existe propriamente, mas, sim, uma

Posse Física que tem a seu favor a presunção jurídica de que, um dia, se tornará

Posse Jurídica definitiva. Portanto, o postulado implica uma obrigação que pede

obediência à Posse Física no estado de natureza, com vistas a uma condição

civil, sob o império da Vontade Unida do Povo. É o que faz Kant (2003a, p. 101)

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afirmar: “Conclui-se que apenas numa condição civil pode alguma coisa externa

ser minha ou tua.”

Também a Liberdade Externa não serve para fundamentar a

Propriedade. A Liberdade Externa é o único Direito Inato do homem, referente ao

meu e teu internos, demonstrando a possibilidade dos objetos de meu arbítrio

serem utilizados, e, também, explica que não se pode admitir res nullius. A

propósito, pode-se afirmar que a primeira tomada de posse não está dissonante

ao princípio da Liberdade Externa, devido a anterioridade no tempo. Neste

sentido, a Liberdade Externa demonstra que o uso dos objetos do arbítrio não é

incompatível com a liberdade, mas não chega a constituir a obrigação de respeito

à posse jurídica de um objeto, o que apenas a Vontade Unida do Povo conduz.

Por isso, a Liberdade Externa não serve para legitimar a Propriedade, além de

não tornar necessária a Posse Jurídica definitiva. Além disso, conforme expõe

Barbieri Durão (2002, p. 333, tradução nossa): “[...] os meros conceitos de Direito,

ou seja, a concordância da liberdade entre os arbítrios baseada em uma lei

universal, não permite impor a obrigação de abster-se de usar objetos de nosso

arbítrio.”30

Resta evidente, portanto, que o fundamento da Propriedade

não reside em um acordo contratual, na Posse em Comum, no postulado da

razão prática, na Liberdade Externa, no trabalho ou na ocupação, mas, ao revés,

na própria Vontade Unida do Povo. É a Vontade Unida do Povo quem promana a

legislação sobre o que é de cada um; que encerra o princípio do arbítrio pelo qual

uma posse particular pode ser determinada como Propriedade; que cria Direitos

definitivos e os estabelece enquanto uma relação entre pessoas; que faz com que

o ato legislativo esteja de acordo com a Liberdade Externa; enfim, que origina e

protege a Propriedade e as relações jurídicas em sociedade.

30 “[...] los meros conceptos del derecho, es decir, la concordancia de la libertad de arbitrios basada en una ley universal, no permite imponer la obligación de abstenerse de usar objetos de nuestro arbitrio.”

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4.4 A DEDUÇÃO ANALÍTICA DA PROPRIEDADE COMO PROVA DOS JUÍZOS

SINTÉTICOS A PRIORI SOBRE O DIREITO

A Propriedade é formulada a partir de um juízo sintético a

priori sobre o Direito, o que já foi assinalado no Capítulo anterior (3.6.3). Resta

apresentar a prova de um tal juízo sintético a priori, a qual é obtida pela dedução

analítica do conceito de Propriedade, ou seja, quando o conceito de Propriedade

faz-se evoluir a partir de princípios de pura razão prática relativamente aos

Direitos. Por isso, pretende-se demonstrar que a Propriedade é realmente um

conceito puro do entendimento, do que segue a necessidade de se apresentar de

que modo a razão prática deduz a Posse Inteligível. A razão prática procede esta

dedução ao eliminar tudo que provém da sensibilidade e que se integra à Posse

Empírica, conforme ensina Kant (2003a, p. 98-99):

Ora, a razão prática exige de mim, por força de sua lei do direito,

que eu aplique meu ou teu aos objetos, não de acordo com

condições sensíveis, mas as abstraindo, visto que tem a ver com

uma determinação de escolha de acordo com lei da liberdade e

também de mim exige que pense na posse deles dessa forma,

posto que somente um conceito do entendimento pode ser

incluído sob conceitos de direito.

A razão prática realiza a abstração de tudo que há de

sensível na posse empírica, por uma dedução analítica que parte: a) do título

empírico de aquisição em uma comunidade original da terra; b) da maneira de

aquisição original por condições empíricas (apprehensio), somada à vontade

unilateral do sujeito em ter o objeto externo como seu (KANT, 2003a, p. 112).

Explica Kant (2003a, p. 99):

Aqui a razão prática requer que pensemos a posse separada da

posse desse objeto de minha escolha na aparência (ocupando-o),

pensá-la não em termos de conceitos empíricos, mas conceitos do

entendimento, aqueles que possam conter condições a priori de

conceitos empíricos.

Eliminando tudo que há de empírico, quando é pronunciada

a oração: “Um objeto é exterior a mim”, somente se pode entender que este

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objeto é distinto do sujeito, e não que é um objeto localizado em um espaço e

tempo diferente daquele em que se encontra o sujeito. Neste sentido, o objeto

não é pensado em uma ligação física com o possuidor, no sentido que a pessoa

está na Posse Física dele, que o detém em mãos; ao invés, é inserido o conceito

de ter, no sentido que o indivíduo tem o controle do objeto. Que uma pessoa tem

o controle sobre o objeto é uma compreensão alcançada apenas quando se parte

de conceitos do entendimento, pois somente assim é possível pensar na hipótese

de um indivíduo possuir um objeto, sem importar onde está o objeto no espaço e

no tempo. Expõe Kant (2003a, p. 98):

Assim, o conceito ao qual o conceito de um Direito é diretamente

aplicado não é o de ocupação (detentio), que é um modo empírico

de pensar a posse, mas o conceito de ter, no qual é feita

abstração de todas as condições espaciais e temporais e o objeto

é pensado somente como sob meu controle (in potestate mea

positum esse).

Tal colocação demonstra a transição transcendental do

sentido empírico de posse até um sentido jurídico, o que é válido em razão de

todos os atos que compõem a aquisição original serem jurídicos e, por isso,

formulados enquanto Direito pela razão prática. (KANT, 2003a, p. 104). Deste

modo, partindo-se do ato jurídico da posse empírica, traduzidos na apreensão,

indicação e apropriação, e abstraindo o que há neles de empírico, chega-se a um

conceito puro do entendimento, qual seja, o conceito de Propriedade. Esclarece

Orts (p. XLVII-XLVIII, tradução nossa):

Com efeito, a posse é sem dúvida condição do uso de um objeto,

mas somente pode considerar-se posse jurídica se é possível aos

homens assumir a dupla perspectiva – fenomênica e noumênica-

aberta pelo idealismo transcendental na primeira Crítica. Somente

prescindindo das condições espaço-temporais da posse empírica

e aceitando a perspectiva noumênica, é possível afirmar uma

posse inteligível que garanta a posse jurídica, ainda que sem

posse física31.

31 “En efecto, la posesión es sin duda condición del uso de un objeto, pero sólo puede considerarse posesión jurídica si es posible a los hombres asumir la doble perspectiva – fenoménica y nouménica- abierta por el idealismo trascendental en la primera Crítica. Sólo

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Atingido o conceito puro do entendimento para Posse

Jurídica, desaparece qualquer relação da pessoa com o objeto, havendo apenas

a relação de uma pessoa com pessoas. Tal relação entre pessoas permite afirmar

que o sujeito tem o controle sobre o objeto. Segue-se o exemplo exposto por Kant

(2003a, p. 94):

Não posso qualificar um objeto no espaço (uma coisa corpórea)

como meu, a menos que, embora não tenha a posse física dele,

eu possa ainda afirmar que tenho uma outra (por conseguinte, não

física) posse dele. Assim, não qualificarei de minha uma maçã por

tê-la na mão (possuí-la fisicamente), mas somente se puder dizer

que a possuo mesmo que a deposite em algum lugar, não importa

qual.

Enquanto a aquisição de um objeto se dá por uma vontade

unilateral em consonância ao axioma da Liberdade Externa, ao postulado de sua

capacidade de empregar objetos externos de escolha e com a legislação da

vontade pensada como unida a priori, tem-se como válido o conceito de Posse

Jurídica. Deste modo, resta evidenciado o juízo sintétio a priori sobre o Direito,

pela admissão e comprovação do conceito de Propriedade como um conceito de

mero Direito, advindo do puro entendimento, despido de qualquer condição

empírica.

prescindiendo de las condiciones espacio-temporales de la posesión empírica y accediendo a la perspectiva nouménica, es posible afirmar una posesión inteligible que garantiza la posesión jurídica, aún sin tenencia fisica.”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A formulação do Direito Privado em Immanuel Kant constitui

o ponto de sustentação de sua Doutrina do Direito, máxime porque soluciona

diversos problemas como condição para que se possa cogitar o próprio Direito

Público. Neste vértice, e como foi observado no presente estudo, a Teoria da

Propriedade disponibiliza respostas para se compreender como constituir o

Estado, como organizar as pessoas dentro do Estado, como fundar a comunidade

política, como resolver os problemas jurídicos atinentes a tais questões.

As quatro hipóteses ventiladas na Introdução do presente,

ao longo do desenvolvimento do estudo, restaram confirmadas. A começar pela

primeira hipótese, conferiu-se que desde o estado de natureza é possível que

objetos externos do arbítrio sejam meu e teu externos. A admissão desta

assertiva deve-se, mormente, em virtude de Kant, na sua Teoria da Propriedade,

ter a preocupação em pensar a existência do Direito Público. Como a condição

civil apenas fornece garantias ao meu e teu externos, tendo como fulcro a idéia da

Vontade Unida do Povo, o estabelecimento e determinação do meu e teu

externos devem ser pensados desde o estado de natureza. Assim, a garantia

jurídica proporcionada no estado civil, exige que, previamente, as relações de

posse já existam.

A segunda hipótese também foi confirmada, posto que o

postulado da razão prática apresenta a possibilidade de uma posse com contonos

jurídicos já no estado de natureza. Contudo, é apenas uma posse jurídica

provisória, ou seja, uma posse física com presunção de que venha se tornar

jurídica pela entrada no estado civil. Portanto, do postulado da razão prática

depreende-se a necessidade de saída do estado de natureza. Deve-se ressaltar

que, como referido postulado permite apenas uma posse provisória, é uma lei

permissiva, e, por isso, temporária, que vem estabelecer a obrigação de ter-se

respeitada a posse no estado de natureza, obrigação esta que não poderia se

originar de outra maneira.

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A terceira hipótese, da mesma forma, foi ratificada, já que o

título racional da Propriedade não se constitui por uma vontade unilateral, mas

depende da Vontade Unida de Todos, a qual é responsável por determinar e

assegurar a Propriedade, obrigar os demais a devolver o que é ilegalmente

arrebatado, além de tornar mais cômodo o exercício da Propriedade, ao eximir o

proprietário de utilizar a própria força para fazer valer seu Direito.

Com efeito, a posse de coisas, o contrato e a família já

existem desde o estado de natureza, mas se tornam Propriedade de alguém

apenas quando a Vontade Unida do Povo vem recobrir tais posses com a

obrigação de serem obedecidas. Antes, são relações jurídicas meramente

provisórias, cuja precariedade não admite pensar-se em uma Propriedade, pois

esta exige uma posse segura, jurídica e definitiva de um objeto.

Constatou-se que a Propriedade não viola a Liberdade, mas

é indispensável em qualquer condição civil e é uma instituição racional

necessária. As condições racionais para que seja possível pensar a Propriedade

estão assentadas na Posse em Comum, no postulado da razão prática, na

realização da aquisição original, no postulado do Direito Público e no Contrato

Original. Quanto a condição racional para sua fundamentação, é espelhada na

idéia de Vontade Unida do Povo.

A quarta hipótese também restou consignada, uma vez que

o juízo sintético a priori é fundamental para a dedução da realidade objetiva

prática da Posse Jurídica, como uma exigência da própria Metafísica, nos moldes

como a apresenta Kant. A prova do citado juízo sintético a priori se dá ao

constatar-se que a Posse Jurídica é deduzida ao abstrair-se da Posse Física tudo

que ela traz de empírico.

O objetivo do presente estudo foi alcançado, já que a

fundamentação da Propriedade foi apresentada com base puramente racional,

bem como foi exposto que é correto admitir-se um juízo sintético a priori sobre o

Direito e, a partir dele, apresentar a possibilidade de se possuir um objeto do

arbítrio.

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A análise empreendida neste trabalho conduz ao

entendimento de que não é possível a efetiva manutenção da Propriedade

apenas pela segurança concedida pelo Direito Civil de Estado (ius civilis), sendo

imperioso que o gênero humano evolua também às outras duas dimensões do

Direito, e que compõem o conceito geral de Direito Público, quais sejam, o Direito

das Gentes (ius gentium) e o Direito Cosmopolita (ius cosmopoliticum).

Segue-se, por fim, que o presente estudo incita à descoberta

do plano total da Doutrina do Direito de Immanuel Kant, remetendo, em última

instância, à pretensão de sedimentar a Paz. Sua continuidade se impõe, cingindo-

se na consecução da Paz, a qual, para existir, não requer apenas um

ordenamento jurídico no interior do Estado, mas também nas relações entre os

Estados e entre os indivíduos e os Estados estrangeiros. Contudo, uma Paz entre

os Estados, precisa, nos termos da Doutrina do Direito, ser cogitada apenas

depois que sejam resolvidos os argumentos sobre o Direito Privado, que com a

Paz nas relações jurídicas internacionais, recebe a condição através da qual pode

ser proporcionada a garantia final de que precisa o meu e teu externos, para que

seja arvorada uma vida social em harmonia.

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REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Tradução de António Ramos Rosa e

António Borges Coelho . 4. ed. Lisboa: Presença, 2000. 7. v.

ALLISON, E. Henry. Justification and freedom in the Critique of pratical reason. In:

FÖRSTER, Eckart (Org.). Kant`s transcendental deductions – the thee

‘critiques’ and the ‘opus postumum’. Stanford: Stanford University Press, 1989.

p. 114-130.

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