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MARLENE GOYA LOTÉRIO
A FORMAÇÃO DOCENTE NO CURSO DE MEDICINA: UM ESTUDO
SOBRE O ESVAZIAMENTO HUMANO NA PRÁTICA DO CUIDADO
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2010
MARLENE GOYA LOTÉRIO
A FORMAÇÃO DOCENTE NO CURSO DE MEDICINA: UM ESTUDO
SOBRE O ESVAZIAMENTO HUMANO NA PRÁTICA DO CUIDADO
Dissertação apresentada como exigência
parcial para obtenção do Título de Mestre em
Educação, na Universidade Cidade de São
Paulo, sob a orientação da Profa. Dra.
Margaréte May Berkenbrock Rosito.
UNIVERSIDADE CIDADE DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2010
L882f
Lotério, Marlene Goya. A formação docente no curso de medicina: um estudo sobre o esvaziamento humano na prática do cuidado / Marlene Goya Lotério --- São Paulo, 2010. 79 p. Bibliografia Dissertação (Mestrado) - Universidade Cidade de São Paulo. Orientadora Profª.Dra. Margaréte May Berkenbrock-Rosito 1. Formação docente. 2. Curso de medicina. 3. Saúde e educação. 4. Educação humanística. I. Berkenbrock-Rosito, Margaréte May. II. Titulo.
372.37
COMISSÃO JULGADORA
_______________________________________
_______________________________________
_______________________________________
AGRADECIMENTOS
A vida é feita de encontros. Desses encontros resultam os pares, os lares, as
famílias, os núcleos de amigos e companheiros desta longa e breve jornada.
Portanto, não posso deixar de agradecer:
Às minhas origens: meus avós paternos e maternos que, com coragem e
determinação, percorreram meio mundo, para chegar a esta terra que os acolheu.
Terra cheia de luz e de vida, Brasil, de que devo ajudar a cuidar, a cada dia, pois
abrigou os que vieram em busca de sobrevivência.
Aos meus pais Aryko e Mário (in memoriam), que nos trouxeram do interior de
São Paulo para a “Cidade Grande”, tentando nos dar um futuro melhor. Aos meus
doze irmãos, por todo o apoio e solidariedade.
À minha orientadora, Profa. Dra. Margaréte May Berkenbrock Rosito, pela
paciência, por acreditar, por me “arrastar” pela mão, com a delicadeza e a firmeza
necessárias.
À Profa. Dra. Mary Rangel e ao Prof. Dr. Júlio Gomes Almeida, por aceitarem
participar da banca examinadora.
À Profa. Dra. Ecleide Cunico Furlanetto, coordenadora do Programa de
Mestrado da UNICID, e aos docentes Prof. Dr. João Gualberto de Carvalho
Meneses, Prof. Dr. Jair Militão da Silva, Profa. Dra. Célia Maria Haas, Profa. Dra.
Edileine Vieira Machado da Silva e Prof. Dr. Potiguara Acácio Pereira, que me
acolheram e contribuíram com minha formação.
À Profa. Dra. Sylvia Helena Souza da Silva Batista, pelas contribuições na
qualificação do trabalho.
Aos Professores José Lúcio e Valéria, por me confiarem essa nobre missão.
Aos meus colegas do PISCO, com os quais dividi a aprendizagem de amparo
mútuo, a cada sacolejo do ônibus.
Aos demais colegas do Curso de Medicina da UNICID, sobre os quais se
pode afirmar que, em cada encontro, existe um aprendizado.
À Profa. Dra. Tereza Telles, pelo interesse, dedicação e ajuda na revisão e
finalização do trabalho.
À Profa. Ms. Maria Luiza Soares Santos, pelas contribuições e sugestões que
enriqueceram o trabalho.
Com carinho, às secretárias do Programa de Mestrado da UNICID, Juliana e
Sheila, sempre prontas a ajudar.
Aos meus alunos que sempre me deram incentivo à pesquisa e à reflexão
sobre um dos meus objetivos de ensino: motivá-los, a cada dia, ao cuidado de si e
do outro.
Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim
Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim
Milton Nascimento
RESUMO
O objeto de estudo, neste trabalho, é a busca do sentido do cuidado nas Diretrizes
Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina, Resolução CNE/CES
n.º 4, de 7 de novembro de 2001. A partir do referencial em Educação, na
perspectiva de Freire (1997), do conceito de cuidado na perspectiva de Foucault
(2006), Heidegger (2002), Ayres (2004), investigam-se os aspectos necessários para
se pensar a formação docente. Tem como objetivos: investigar de que forma o
cuidado como categoria de análise aparece nas Diretrizes Curriculares Nacionais do
Curso de Medicina (DCN) e analisar a formação docente na perspectiva do cuidado
humano. A análise documental foi o procedimento utilizado para a coleta de dados,
implicou a assunção de uma abordagem hermenêutica, na perspectiva de Gadamer
(1999), na qual se busca a construção de sentidos e significados, a partir de
inferências. A investigação sobre as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN),
considerando o esgotamento das possibilidades tecno-científicas, na atenção à
saúde, aponta para os seguintes resultados: (a) a necessidade de uma formação
humanística capaz de mediar o uso dos conhecimentos científicos e tecnologias, de
modo a responder às necessidades de saúde de indivíduos e da coletividade. (b) o
cuidado norteia as práticas que envolvem tanto ações de Educação como de Saúde
ou mostra-se como sendo, ele mesmo, parte dessas ações.
Palavras-chave: 1. Formação docente. 2. Curso de medicina. 3. Saúde e educação.
Educação humanística.
ABSTRACT
The subject of study in this work is the meaning of care in the National
Curriculum Guidelines of the undergraduate course in Medicine, CNE / CES No. 4,
November 7, 2001. From the starting points in education from the perspective of
Freire (1997), the concept of care from the perspective of Foucault (2006), Heidegger
(2002), Ayres (2004), it investigates the issues necessary for thinking about teacher
education. Aims: to investigate how the care as a category of analysis appears in the
National Curriculum Guidelines (DCN) and analyze teacher training in human care.
Document analysis was the procedure used for data collection, involved the
assumption of a hermeneutic approach, in view of Gadamer (1999), in which it seeks
the construction of meanings, from inferences. Research on the current National
Curriculum Guidelines (DCN), whereas depletion of techno-scientific opportunities in
health care, points to the following results: (a) a humanistic able to mediate the use of
scientific knowledge and technologies, order to meet the health needs of individuals
and the community. (b) care guide practices involving both actions as Education and
Health or shows as being itself a part of those actions.
Keywords: 1. Teacher education. 2. Medicine course. 3. Health and education.
4. Humanistic education.
LISTA DE SIGLAS
AVE – Acidente Vascular Encefálico
ABEM – Associação Brasileira de Educação Médica
ABP – Aprendizagem Baseada em Problemas
DCN – Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina
ESF – Equipes de Saúde de Família
IES – Instituições de Ensino Superior
MEC – Ministério da Educação e Cultura
OMS – Organização Mundial de Saúde
OPAS – Organização Panamericana de Saúde
PISCO – Programa de Integração em Saúde da Comunidade
PSF – Programa de Saúde da Família
SUS – Sistema Único de Saúde
UBS – Unidades Básicas de Saúde
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
1 A NARRATIVA DA HISTÓRIA DE VIDA: UM PERCURSO AUTOFORMATIVO 19
1.1 A autoformação e a singularidade autobiográfica 21
1.2 Os procedimentos autobiográficos e a dimensão do valor humano 27
1.3 O cuidado na conjuntura de autoformação 31
2 O CUIDADO HUMANO: AS APROXIMAÇÕES ENTRE A EDUCAÇÃO E
A SAÚDE 35
2.1 A linguagem, a educação e o cuidado 39
2.2 O cuidado: uma relação dialógica entre dois sujeitos 53
2.3 A formação do docente em Medicina: as dimensões técnicas, éticas e
estéticas do cuidado 57
3 DIRETRIZES CURRICULARES DO CURSO DE MEDICINA:
LEITURAS E INVESTIGAÇÕES 63
3.1 O contexto histórico da Reforma Curricular 64
3.2 Diretrizes Curriculares nacionais do Ensino Superior: desafios para o
Curso de Medicina 68
3.3 Cuidado e a Integralidade da Saúde 69
CONSIDERAÇÕES FINAIS 75
REFERÊNCIAS 79
ANEXO
12
INTRODUÇÃO
Neste estudo, o objetivo principal é a promoção de uma reflexão sobre o
sentido de cuidado, nas diretrizes curriculares do Curso de Medicina, buscando a
compreensão da formação docente, dos profissionais que atuam no Ensino
Superior, na área da saúde.
Devido à relevância do cuidado nos procedimentos de cura e de prevenção
de doenças, a reflexão sobre a sua natureza é essencial, sobretudo, quando se
deseja analisá-lo no contexto das práticas que envolvem saúde e educação.
Na contemporaneidade, no contexto das instituições da saúde, as
consequências do avanço tecnológico são relevantes. A preocupação excessiva
com a tecnologia propicia a formação de um abismo entre os profissionais da saúde
e os pacientes. Em decorrência disso, há, inegavelmente, o esvaziamento humano
do conceito de cuidar, nas práticas profissionais usuais entre profissional e paciente.
Nas tradições, nos costumes, nas crenças, nos mitos, no próprio cotidiano,
sabe-se que todo ser humano é dependente de cuidado, antes do nascimento até à
morte. O cuidado está, portanto, relacionado à manutenção da vida e da espécie
humana. A humanidade não sobrevive sem o cuidado.
O exercício do cuidado evidencia a natureza mais genuína do nosso ser, da
nossa humanidade. Nascemos necessitando de cuidado. Por toda a vida, se pode
perceber o cuidado – ou a falta dele, permeando todas as ações.
Esta perspectiva aponta para a importância do tema, voltado, no mundo
contemporâneo, para a compreensão do que significa o cuidado de si e do outro,
nos relacionamentos interpessoais, mais especialmente, na formação dos
profissionais da área da saúde.
A análise do conceito de cuidado, na formação do profissional da saúde,
envolve compreender quais são suas características e como aparecem nas diretrizes
que orientam a construção do processo ensino-aprendizagem. Implica, também,
13
revisitar o pensar e o fazer pedagógico no esforço de valorizar práticas que afirmem
a subjetividade dos sujeitos no desenvolvimento de competências e habilidades.
Constitui-se um grande desafio afirmar a integralidade do cuidado, dentro de
pressupostos critico-reflexivos para a formação profissional, pois isso significa rever
conteúdos e programas desenvolvidos que têm se apresentado insuficientes e
desarticulados com práticas e experiências cotidianas.
Neste entendimento, o presente estudo visa à compreensão dos significados
do conceito de cuidado e como este se apresenta nas Diretrizes Curriculares
Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Essas diretrizes, de acordo com a
Resolução CNE/CES n.º 4, de 7 de novembro de 2001, publicada no Diário Oficial
da União visam à formação dos sujeitos, em suas relações professores- alunos.
A investigação dos sentidos de cuidado humano, presentes nessas diretrizes,
focaliza a formação docente. O método e o procedimento utilizados é a análise
documental. Para a análise de dados que se pretende, torna-se necessária a
abordagem hermenêutica adequada para estudos, nos quais se buscam
investigação compreensiva e interpretação de conteúdos. Esta espécie de análise
abrange a compreensão da historicidade do problema, do proclamado no
documento, das observações do cotidiano, levando em consideração a experiência
do pesquisador. Desse modo, descobrem-se contextos significativos que modelam
possibilidades para o entendimento das questões.
Nesse procedimento investigativo, observa-se o objeto não como um ato
isolado, mas como um conjunto de atos, em etapas sucessivas, no esforço de captar
sua realidade com uma escuta sensível, fazendo leituras do que é dito e do que não
é dito, levando em consideração que, em algum momento, pode-se encontrar o
contradito nos documentos.
São próprias do enfoque da hermenêutica filosófica, a análise e a
interpretação cuidadosa. A compreensão para Gadamer (1999) é um processo de
abertura de horizontes, para se permitir encontrar, no texto, algo que diz por si
mesmo. Para esse autor, toda a compreensão tem caráter de aplicação, isto é, há
uma pergunta que o texto quer responder. Os conteúdos de sentido se apresentam
como algo presente no texto e que necessita ser descoberto.
14
A concepção positivista só admite como verdadeiro o empiricamente
verificável, enquanto a hermenêutica aponta para a compreensão da verdade,
levando em consideração o conhecimento do sentido e do valor que há em
contextos historicamente situados. Por falta de requisitos históricos, muitos
fenômenos não foram vistos, por muitos anos. Atualmente, com a invenção da lente,
esses objetos ou fenômenos podem ser verificados. Isto significa que há no
processo histórico alguma coisa que é condição de possibilidade do nosso
conhecimento e compreensão.
O tema do cuidado, nesse momento histórico, se supõe necessário ser
compreendido à luz das teorias e práticas da área da saúde e em contextos do
processo ensino aprendizagem dessa formação. A relevância dessa investigação se
dá em meio a um tempo de grande e acelerado avanço tecnológico. Esse contexto
histórico situa a necessidade de compreender a qualidade da formação docente que
seja apropriada para desenvolver e sustentar a relação humanizadora,
contemplando os princípios norteadores de uma atitude de respeito e
responsabilidade na área da saúde.
Para Gadamer (1999), a vida moderna é organizada através de regulamentos,
instruções e prescrições. A adaptação aos regulamentos não pode ser feita pela
aplicação cega às regras. As modificações da realidade, acarretadas pela técnica
moderna, colocam a todos novas tarefas, no sentido de compreendermos as
relações adequadas e usos apropriados dos saberes, competências e habilidades.
Isso implica a possibilidade de um novo olhar para o conceito de cuidado e a
compreensão de significativas abordagens para repensá-lo nas práticas da saúde.
Segundo Gadamer, esse processo acarreta experiências, evidenciando que aquele
que experimenta é alguém aberto a novas experiências. Para ele, a pessoa
experimentada não é aquela que sabe tudo, mas é alguém não dogmático que,
justamente por estar aberto às experiências, está mais capacitado para voltar a fazê-
las e aprender com elas.
O enfoque gadameriano (Almeida, 2000) vê na linguagem a substancialidade
de onde brota a experiência. O ser humano pode pensar e falar. Tudo o que pensa
pode comunicar. É o ser vivo que dispõe de linguagem. A realidade do falar
acontece no diálogo em que é possível a comunicação e a compreensão.
15
Na perspectiva desse autor, compreensão não significa necessariamente
estar de acordo com o que ou quem se compreende. Significa, porém, refletir sobre
o que o outro pensa, sendo o “outro”, aqui, aplicado aos autores e teóricos da
educação e da saúde, desdobrando-se o estudo em explicitações de conceitos,
interpretações e apreensões, constituindo-se o movimento dialógico da construção
de sentidos, enfatizado por Lèvinas (1993).
Esse ponto de vista orienta a leitura e a investigação das diretrizes
curriculares do curso de Medicina. Como o conceito de cuidado – fenômeno em
estudo - é compreendido pelos teóricos e autores aqui apresentados? Como os
conteúdos essenciais para o curso de Medicina se relacionam com todo o processo
saúde-doença do cidadão, família e comunidade? Como ocorre a formação docente
para sustentar as ações dos profissionais da saúde? O que significa o cuidado na
integralidade das ações?
O pensar hermenêutico não desconsidera as tendenciosidades ideológicas do
texto, a crença de que não existe conhecimento puro. Para Severino (1997, p. 65),
“a lei conceitua, mas não obriga, não assegura seu próprio cumprimento. Assim,
tudo passa a depender das medidas que os gestores do sistema venham a tomar”.
Além da Introdução e das Considerações Finais, neste trabalho, há três
capítulos: 1- A narrativa da história de vida: um percurso autoformativo; 2- O cuidado
humano: as aproximações entre a educação e a saúde; 3- Diretrizes curriculares do
Curso de Medicina: leituras e investigações.
No primeiro capítulo, há três subdivisões: 1.1 A autoformação e a
singularidade autobiográfica; 1.2 Os procedimentos autobiográficos e a dimensão do
valor humano 1.3 O cuidado na conjuntura de autoformação.
De uma maneira geral, neste capítulo, abordam-se as atividades vivenciadas
na disciplina “Ética, Estética e Educação”, ministrada pela Profa. Dra. Margaréte May
Berkenbrock Rosito, no Curso de Mestrado, na Universidade Cidade de São Paulo.
A importância do método biográfico surge como reação ao domínio positivista
das ciências. Nesta disciplina, a compreensão dos processos autoformativos
depende da pesquisa da própria prática, teorizando-a. Buscam-se, nas Histórias de
Vida, elementos que elucidem os caminhos da autoformação.
16
O relato de uma história de vida singular é uma das justificativas para a
escolha do tema deste trabalho. Constrói-se a narrativa do próprio percurso e isto
pressupõe a possibilidade de um efeito formador e transformador. A narrativa
autobiográfica traz à tona a tomada de consciência sobre o processo (auto)
formativo. As dinâmicas da autoformação incluem o diálogo com as memórias e com
as narrativas, presentes na abordagem autobiográfica.
Nessa perspectiva, aponta-se para o entendimento de que as narrativas
autobiográficas provocam processos de tomada de consciência, nos quais os
indivíduos e a sociedade voltam-se à busca da emancipação.
O entendimento da forma pela qual as questões do cotidiano são
incorporadas, na formação do indivíduo, além das capacidades técnicas da
educação, passa pela reflexão sobre essa prática.
A educação e a saúde aproximam-se, quando são consideradas como
elementos fundamentais para a manutenção da vida e seu pleno desenvolvimento.
Existem várias teorias sobre o conceito de cuidado. Elas fundamentam
concepções básicas para o pensamento contemporâneo. O cuidado é uma palavra
polissêmica, variando de acordo com as culturas, as sociedades, as categorias
profissionais e ideológicas. A palavra remete à ação pensada e refletida e à
responsabilidade. É uma ação que trará alguma conseqüência positiva ou negativa.
O não-cuidado implica em desatenção e descaso, configurando o abandono e
desrespeito, que pode ser observado nas relações que refletem a incapacidade de
expressar a solidariedade.
No segundo capítulo, existem três subdivisões: 2.1 A linguagem, a educação
e o cuidado; 2.2 O cuidado: uma relação dialógica entre dois sujeitos; 2.3 A
formação do docente em Medicina: as dimensões técnicas, éticas e estéticas do
cuidado.
A palavra tem a finalidade de fazer entender o que é útil ou prejudicial, o que
é justo ou injusto. Neste sentido, a palavra exerce uma considerável força de poder.
Ela preenche os ciclos da história com as ideias, os valores e os princípios que
fundamentam as conquistas das civilizações e que possibilitam avanços e
descobertas, em todos os campos do conhecimento universal.
17
É inegável que o avanço científico e o tecnológico têm trazido grandes
ganhos à produção de saúde. Porém sabe-se que somente a aplicação de técnicas
e a utilização de tecnologias não têm sido suficientes para o cuidado com a saúde.
Tem-se discutido até que ponto a exclusividade da ciência e da tecnologia
tem favorecido o homem, principalmente, no que diz respeito à qualidade de vida.
O ato de cuidar não pode estar restrito à mera aplicação de técnicas. A
objetividade no cuidado transforma, em ato mecânico, aquilo que deveria ser
humano, carregado de vida.
O sujeito que cuida e ama é libertador, ele cura, ele serena o futuro e cria
esperanças. Na contemporaneidade, é necessário que se repensem valores, no
meio das práticas racionalistas e técnicas, É ainda imperativo que se resista à apatia
e à indiferença. No que se refere à formação, necessita-se insistir na abertura de
espaços, para a educação, nos quais haja o incentivo às potencialidades do ser
humano. Assim, as práticas serão técnicas, sem que sejam esquecidas a arte do ser
e a do relacionar-se com o humano.
No terceiro capítulo, há três subdivisões: 3.1 O contexto histórico da Reforma
Curricular; 3.2 Diretrizes Curriculares nacionais do Ensino Superior: desafios para o
Curso de Medicina; 3.3 O cuidado e a integralidade da saúde.
As Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina
(DCN, Resolução CNE/CES n.º 4, 7/11/2001) propõem a humanização da saúde. A
resolução outorga às Instituições de Ensino Superior (IES) maior grau de autonomia
para propostas de currículos inovadores, substituindo o currículo mínimo.
Uma proposta inovadora passaria pela inclusão de uma nova visão do
cuidado, incluindo orientações necessárias para a humanização da saúde,
considerando que os currículos são fragmentados e os conteúdos são ministrados
de forma bastante tradicional.
Neste capítulo, há uma pesquisa sobre a história da formação médica. Vê-se,
nesta pesquisa que, no decorrer do tempo, a eliminação das doenças sobrepõe-se
aos cuidados à pessoa. Ou, ainda, espera-se que o indivíduo adoeça, para depois
tentar tratar a sua doença.
18
Hoje, a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos da área
da Saúde e, especificamente, do Curso de Medicina é resultado de um importante
movimento de educadores da área da saúde. A proposta de formação de
profissionais da área da saúde com perfil humanístico, crítico e reflexivo é
contemplada.
Existe a percepção da necessidade de uma formação que propicie não só o
uso de tecnologia e instrumentos sofisticados, mas também o desenvolvimento de
outras competências, como a atenção integral à saúde, tomada de decisões,
comunicação, liderança, administração e gerenciamento e educação permanente.
Pressupõe-se uma formação generalista, humanista, crítica, reflexiva,
pautada em princípios éticos, com senso de responsabilidade social e compromisso
com a cidadania, e a promoção da saúde integral do ser humano. Seria formação
crítica e reflexiva, já que a transmissão de conhecimento, por meio da educação
bancária, não é mais suficiente para os dias atuais. As escolas têm substituído ou
complementado os métodos antigos por métodos de ensino-aprendizagem
centrados no estudante e orientados para a comunidade.
A integralidade na saúde é uma das diretrizes do SUS. Ela compreende a
articulação das ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação de modo
contínuo. Neste sentido, a integralidade, pretende superar a fragmentação das
ações de saúde, tornando-as menos pontuais.
A integralidade é a percepção do sujeito histórico, social e político, dentro de
um contexto familiar que se articula com o meio social e ambiental. As ações de
cuidado devem englobar ações de saúde e de educação, como produção de saber
coletivo, levando o indivíduo à emancipação e à autonomia para cuidar de si, de sua
família e do meio em que vive.
Isto evita o esvaziamento humano do conceito de cuidar, nas práticas
profissionais usuais entre profissional e paciente. É, nessa atual conjuntura, que a
formação humanística torna-se imprescindível.
19
1 A NARRATIVA DA HISTÓRIA DE VIDA: UM PERCURSO AUTOFORMATIVO
Durante o Curso de Mestrado, na Universidade Cidade de São Paulo, na
disciplina “Ética, Estética e Educação”, uma atividade foi vivenciada pelos
participantes: a elaboração de uma “Colcha de Retalhos”, utilizando um retalho de
tecido/pano. No final do semestre, cada participante conta a história tecida no
retalho. Tais retalhos, costurados de forma coletiva, formam uma colcha.
Berkenbrock-Rosito (2007; 2008), tentando compreender como se dá a
autoformação, propõe, aos estudantes do Mestrado, a pesquisa de sua própria
prática para compreendê-la e teorizá-la, buscando, nas Histórias de Vida, elementos
que possam elucidar esse processo, investigando como seus percursos singulares
foram tramados no coletivo.
A autora encontra apoio teórico nos autores clássicos da História de Vida em
Dominicé (2006), Josso (2004, 2008), Pineau (2004), Nóvoa (1992), dimensões da
formação docente em Furlaneto (2003), Imbernón (2005), Tardif (2005), no regime
de esteticidade em Freire (1992; 1996) e no paradigma da complexidade em Morin
(1996). Ela percebe que muitas das ações, processos e conhecimentos do espaço
coletivo incorporam-se na sua formação, uma vez que escolhas e experiências
vivenciadas servem de subsídios para a formação de sua própria singularidade,
mobilizando seus saberes, que serão aplicados à sua prática de modo autônomo.
O método da Colcha de Retalhos, preconizado por Berkenbrock-Rosito, tem
como propósito transformar em objeto o conteúdo singular das Histórias de Vida.
Como exercício, propõe-se a narrativa escrita, oral, fílmica e pictórica com o objetivo
de compreender a formação docente entre o percurso singular e coletivo. Percebe-
se como ocorre a formação pessoal e a profissional no espaço coletivo, através da
História de Vida.
O método emergiu do filme How to make an American Quilt (1995). Este
método envolve estratégias para abordar o conteúdo a ser investigado.
A primeira atividade é a realização de um trabalho biográfico referente à
vivência no Ensino Superior. Parte das narrativas escritas, de três cenas marcantes
no Ensino Superior, que abordem a reflexão sobre a presença de uma formação de
autoria no decorrer do processo. Surgem as questões: Como foi a sua relação com
20
as disciplinas no Ensino Superior? Foi de autoria ou submissão? Como foi a sua
relação com o professor? Foi de autoria ou submissão? Que aluno(a) você foi?
A segunda atividade é o Trabalho de História de Vida, propriamente dito, cuja
estratégia se constitui na elaboração do Quadro da Vida, buscando “os momentos
divisores de água”, inspirados nos “momentos charneiras” (Josso, 2004), nas
categorias de espaço e tempo: vida familiar, escolar, acadêmica, profissional, livro,
filme, pessoa, relacionamento amoroso. Que episódios foram marcantes? Há o
reconhecimento de que houve uma mudança em seus referenciais da realidade?
Nesse processo, há o reconhecimento das pessoas, professores, livros que
influenciaram a sua escolha profissional? Há relação desses momentos divisores de
água com a sua maneira de ser pessoa e professor?
A narrativa escrita da atividade biográfica do Ensino Superior e o Quadro da
Vida transformam-se em narrativa pictórica. Na sala, cada participante narra a sua
experiência para o outro. Na história tecida em retalho, é possível perceber que a
singularidade não se dissipa no espaço coletivo.
A elaboração da “Colcha de Retalhos” mostrou aos participantes a
possibilidade de um processo singular que, compondo com outros processos
singulares, formam o coletivo. Percebe-se a assunção de projetos de vida que, nem
sempre, ou quase nunca, ocorrem sem conflitos interiores ou com o universo
exterior, mas que – também por isso – constituem-se em um movimento de
afirmação de valores, de crenças, e de conhecimento.
Não há facilidades no percurso da vida. É necessário que se procurem as
brechas, as frestas, os vãos para realizar a travessia. Tenta-se o alargamento
dessas brechas para que se possa passar com toda a carga cultural e a social,
dependendo de uma atitude autônoma, utilizando, como principais instrumentos, a
razão e a emoção que permitem o alargamento dessas brechas. Assim, nesse
processo, muitas vezes abre-se mão de algumas coisas para conquistar outras e,
nisto, há algo de que é necessário prescindir.
A tomada de consciência de nosso lugar no mundo, dos pontos de vista
psicológico, social, cultural, espiritual, político (Josso, 2007), permite-nos
compreender como nos relacionamos, interagimos com a vida, com o mundo, com o
coletivo. Nesse processo de busca, nessa caminhada, reavaliamos nossos valores,
21
crenças e nossas pertenças. Reafirmamos aquilo que nos pertence e que é
importante para nós.
Houve, para mim, um momento de tomada de consciência como “momento
divisor de águas”. Esse momento foi extraído no ato de resgatar circunstâncias da
minha experiência de vida, emergindo as questões do cuidado que me levam a
trilhar o caminho desta pesquisa.
1.1 A autoformação e a singularidade autobiográfica
Lembro-me, com muita clareza, da minha avó materna, acometida de um
acidente vascular encefálico (AVE), ainda muito jovem, quando vinha do Japão para
o Brasil, como imigrante. Conviveu com sequelas que lhe paralisaram o lado direito
do corpo, limitando seus movimentos e locomoção, levando, inclusive, a uma
paralisia facial que lhe dificultava a fala e a deglutição da saliva, que lhe escorria
pelo canto da boca, permanentemente. Mesmo assim, teve dez filhos e criou-os na
zona rural, trabalhando na lavoura.
Na velhice, próximo aos 70 anos, fazia rodízios nas casas dos filhos, ora
morando com um, ora com outro, para que nenhum deles fosse sobrecarregado
financeiramente, já que não possuía renda própria e que nesta fase da vida
precisava de ajuda para suas necessidades básicas.
Quando da sua estadia em nossa casa, ela era ajudada por mim e meus
irmãos. Éramos crianças e cuidar da avó era, ao mesmo tempo, diversão e
obrigação. Talvez eu tivesse, nesse período, entre nove e doze anos. Nós a
ajudávamos a ir ao banheiro, tomar banho, vestir-se, pentear-se, alimentar-se. Até a
riscar o fósforo para acender o seu cigarro. Revezávamo-nos entre os horários da
escola e outros afazeres, mas os cuidados mais complexos ficavam por minha
conta.
Eu cuidava de minha avó de modo “desinteressado”. Não esperava nada em
troca. Ela nunca me agradeceu, porque nunca precisou fazê-lo. Eu cumpria o meu
papel de bom grado; não era obrigação e não era piedade. O que eu queria mesmo
era vê-la feliz, e era muito fácil agradá-la. Ela nunca ficava de mau humor. Nunca
22
reclamava das coisas. Ria com muita facilidade, e vê-la rir era minha maior
recompensa.
Ela falava o idioma japonês. Ainda que eu não a compreendesse e ela me
compreendesse muito pouco, nós nos entendíamos. Quando não nos entendíamos,
ríamos juntas. Ela ria muito. De tudo. Quando eu lhe penteava os cabelos e a
machucava, ela gritava de dor e logo em seguida ria, compulsivamente, fazendo-me
rir também. Ela ria da dor que sentia e do susto que eu levava. Acho que ela tinha
um “espírito” de criança. E por isso eu gostava muito dela.
Apesar dessa dependência, aprendi muita coisa com ela. Aprendi a ser feliz
com a simplicidade das coisas. Ela fazia crochê, apesar de sua limitação física, e eu
aprendia apenas olhando, já que eu não compreendia suas palavras. Aprendi a ter
paciência com as coisas, pois, às vezes, eu demorava um pouco para entender o
que ela queria dizer. E tantas outras coisas que pude aprender com ela.
Quando eu tinha uns doze ou treze anos, ela teve outro AVE, ficando
acamada. Os cuidados ficaram mais complexos. Neste período, ela permaneceu na
casa do meu tio (irmão de minha mãe), onde teria cuidados de adultos. Minha tia e
minha prima cuidariam dela. Mesmo assim, ia vê-la com frequência. Em pouco
tempo, ela morreu acometida de uma pneumonia, como complicação frequente de
idosos acamados.
Enquanto escrevo essas linhas, me dou conta de que nunca soube o seu
nome, pois eu a chamava de “vó”. Talvez ela tenha morrido sem saber o meu nome
também. Embora não nos chamássemos pelos nomes, eu a conhecia na sua
integralidade. Sabia das suas necessidades e a ajudava integralmente, dentro das
minhas possibilidades.
Talvez tenha sido esse o motivo que me levou à Enfermagem: primeiro com o
curso de Auxiliar de Enfermagem, que me permitiu trabalhar na área. Trabalhando,
reafirmei minha vontade, meu sonho, e pude graduar-me em Enfermagem na
UNICID, naquela época, “Faculdades da Zona Leste”. Sempre que presto
assistência aos pacientes, cuido deles do mesmo modo que cuidava da minha avó.
Tento atender a suas necessidades, de forma integral, visando não só ao aspecto
biológico como também ao psicológico, ao social e ao espiritual.
23
Com essa atitude, tive ótimas recompensas e reforços e alguns problemas de
ordem profissional. Alguns supervisores e colegas achavam que eu agradava
demais aos pacientes, tornando-os dependentes dos meus cuidados, comparando-
me com outros profissionais. Mas esse é o meu modo de trabalhar. Preciso
compreender o paciente, conversar com ele, estabelecer um vínculo de confiança.
Isso requer ser ético e verdadeiro com ele, esclarecendo o que é possível e o que
não é possível fazer em seu tratamento. Isto, sem perder de vista o fato de que o
profissional da saúde trabalha para que o paciente se torne, gradativamente,
autônomo e independente, no que se relaciona ao autocuidado.
Outros aspectos da profissão mobilizaram minha atenção, como por exemplo,
a percepção dos rigorosos regulamentos dentro dos hospitais. Percebia a ausência
de algo que fosse significativo na prestação de cuidados adequados que
resultassem em benefícios para os pacientes. Ver crianças internadas, que ficavam
no hospital, sem a presença da mãe ou de um membro da família, era para mim, no
mínimo, desumano. Muitas vezes, eu escondia as mães nos banheiros, durante a
passagem do enfermeiro supervisor do plantão, para que elas pudessem
permanecer com seus filhos por maior tempo possível.
Ver pacientes impedidos de comer algo trazido por seus familiares, na hora
da visita, me incomodava. Como impedir que um paciente “mate a saudade” e a
vontade da comida de casa, feita por sua esposa ou por sua mãe? Isso tudo sem
contar as condições precárias de atendimento; a dificuldade em atendê-los de modo
adequado, a falta de qualificação profissional e a falta de tratamentos adequados
(inexistentes na época). Algo que me incomodava era referir-se ao paciente, não
pelo seu nome, mas pelo número do leito que ele ocupava ou pela doença que o
acometia: era como se o paciente não tivesse identidade, não tivesse nome, não
tivesse família, não tivesse contexto.
Diante de tantas dificuldades, por muitas vezes, pensei em deixar a profissão.
Para mim não era possível atender pessoas naquelas condições. Era muito
desumano. E o meu compromisso como profissional era cuidar do ser humano de
modo integral, garantindo sua dignidade. É óbvio que esse pensamento não era
exclusivamente meu. Muitos colegas compartilhavam desse pensamento, mas
podíamos mudar muito pouco.
24
O trabalho era “mecanizado” e havia um interesse em atender as
necessidades das instituições, em detrimento das necessidades dos pacientes,
tornando a relação profissional de saúde/paciente muito distante e impessoal. No
processo de formação profissional, a preocupação era maior com os conteúdos
técnicos e científicos do que com o relacionamento humano, entre profissionais e
pacientes e entre os profissionais, entre si.
Antes de desistir de tudo, tomei conhecimento das ações da Organização
Mundial de Saúde (OMS), que discutiam, desde a década de 70, o lema “Saúde
para todos no Ano 2000”. Com a abertura política no Brasil e com a promulgação da
Nova Constituição Federal, em 1988, havia sido criado o Sistema Único de Saúde
(SUS) na forma de lei, que passou a vigorar a partir de 1990. Como estratégia de
implantação, dentro deste sistema, cria-se o “Programa Saúde da Família”, onde o
paciente, agora denominado usuário do sistema, passa a ser atendido de modo
integral, sendo visto como um indivíduo, pertencente a uma família e fazendo parte
de uma comunidade.
Esse programa permite que uma equipe de saúde tenha maior compreensão
sobre os fatores determinantes e condicionantes do processo saúde-doença, que
envolve o indivíduo, levando em conta o seu contexto biológico, psicológico, social,
cultural, espiritual e ambiental.
Ainda que este programa esteja amparado por lei, as mudanças ocorridas,
após 20 anos de existência, não forneceram ao sistema a eficiência necessária. As
dificuldades de implantação vão desde precários investimentos financeiros, falta de
vontade política, falta de participação e entendimento por parte da população, até a
formação profissional inadequada. Para essa mudança de paradigma, o próprio
sistema orienta para mudanças nos currículos dos cursos da área da saúde,
adequando assim os profissionais para as necessidades de saúde da população, de
acordo com o sistema.
Em 2003, fui convidada para participar, como docente, do Curso de Medicina
da Universidade Cidade de São Paulo. Como pré-requisito, frequentei e concluí o
Curso de Capacitação Docente em Educação Médica que ocorreu durante o
segundo semestre do mesmo ano. Neste curso, foram utilizadas metodologias ativas
de ensino-aprendizagem e foram apresentados e discutidos:
25
O Projeto Político-Pedagógico do Curso de Medicina.
O perfil do profissional a ser formado.
Metodologias a serem utilizadas – aprendizagem baseada em
problemas (ABP) e Problematização.
Atividades de integração: Tutoria, Programa de Integração em Saúde
na Comunidade (PISCO), Laboratório de Habilidades, Laboratório Morfofuncional,
Laboratório de Informática, Consultorias e Conferências.
Oficinas de Planejamento do Curso.
O Curso de Medicina da Universidade Cidade de São Paulo iniciou no
primeiro Semestre de 2004 com uma proposta que atendesse as Diretrizes
Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina (Brasil, 2001) que
visam à formação de profissionais voltados para as necessidades do SUS, tendo
como eixo a integralidade das ações em saúde.
O Curso de Capacitação de Docentes, por si, talvez não seja suficiente para
mudanças das práticas, mas faz do docente um avaliador de si próprio para esta
capacidade de trabalho em equipe, para um resultado comum, motivando-o à busca
de conhecimento.
Durante o curso de capacitação, foram construídos os primeiros módulos do
curso. Discutiram-se os conteúdos a serem abordados e as estratégias a serem
utilizadas, de modo a garantir uma abordagem, não só do ponto de vista biológico,
mas considerando também os aspectos psicológicos, sociais, culturais, espirituais e
do meio ambiente do processo saúde-doença, por meio de uma construção coletiva
e sem uma divisão em departamentos.
Esse planejamento conjunto possibilita a integração entre os conteúdos,
ampliando a visão do docente em relação aos conhecimentos, habilidades e atitudes
que ele próprio deve ter para ensinar ao aluno; estimula a construir junto, a aprender
junto; convida à educação permanente.
O PISCO – Programa de Integração em Saúde da Comunidade pode ser
considerado oportuno para conhecer o paciente no seu contexto: sua família, sua
origem, seus costumes e cultura e sua condição sócio-econômica. Isso implica o
conceito ampliado de saúde que, segundo a OMS, é garantia de qualidade de vida
26
compreendida como acesso à alimentação, educação, trabalho, renda, moradia,
transporte, saneamento básico, lazer, bens e serviços essenciais e a relação com o
meio ambiente. Esse conceito de democracia social abrange a visão Interdisciplinar
que aponta para a necessidade de ações intersetoriais, garantia para o exercício da
cidadania.
De acordo com Santos (2004), saúde não se vincula apenas ao hospital. O
profissional da saúde deve atuar na comunidade, fazendo intervenções também na
promoção da saúde e prevenção de doenças. Isso repercute no tipo de
aprendizagem que se torna necessário e que não pode estar confinado à escola. O
século XXI, caracterizado pelo avanço tecnológico, abundantes informações, estilo
de geração de conhecimentos, rápido desenvolvimento de técnicas e
procedimentos, coloca como questão a necessidade de integração com o mundo
subjetivo do cliente/usuário que precisa ser cuidado.
A complexidade do modo de vida com necessidade de conforto e segurança
fez com que houvesse avanço tecnológico e acúmulo de riqueza, no modelo
econômico capitalista. Para atender a esta tendência, com ênfase na produtividade,
o segmento industrial fragmenta-se em setores de produção.
Vilela (2003) afirma que este segmento industrial passa a ditar regras de
formação profissional e, nessa mesma tendência, as universidades passam a formar
especialistas que atuarão tanto no processo produtivo como na formação de futuros
profissionais.
Segundo Rattner (2003), a formação, consequentemente, passa a ser
também fragmentada, não havendo um mecanismo que integre os fragmentos. Essa
desarticulação acarreta para o aluno uma tarefa trabalhosa, que ele, na maioria das
vezes, enfrenta sozinho, podendo aparecer futuramente, como lacunas e carências
na formação profissional que, dificilmente, serão contornadas.
Se o objetivo da ciência é o desenvolvimento da humanidade, então a
formação fragmentada leva os pesquisadores, cientistas e profissionais ao
pensamento solitário. Hoje, há necessidade de integração do conhecimento, das
culturas de todos os povos, da tecnologia. E a produção do conhecimento deve dar-
se por meio do pensamento interdisciplinar.
27
1.2 Os procedimentos autobiográficos e a dimensão do valor humano
Nas palavras de Delory-Momberger (2009, p. 9): “nós não fazemos a narrativa
de nossa vida porque temos uma história, temos uma história porque fazemos a
narrativa de nossa vida.” No ato de narrar, a História de Vida ganha força e sentido,
o vivido na experiência dos homens. A construção da narrativa do próprio percurso
pressupõe a possibilidade de um efeito formador e transformador, na tomada de
consciência dos aspectos constituintes da identidade e subjetividade do sujeito
singular e coletivo.
A narrativa autobiográfica, na abordagem do paradigma experiencial, na
perspectiva de Josso (2004), possibilita trazer à tona a tomada de consciência sobre
o processo (auto) formativo. Processo que ocorre nos espaços familiares, escolares
e de trabalho, por meio de nossas vivências que são marcadas por conflitos,
movimentos, lutas, buscas ou inércia. Segundo a autora, a tomada de consciência,
como sujeito de sua história evidencia a singularidade diante das representações
mais ou menos impostas pelo coletivo.
Duran (2009) compreende a autoformação, como processo de apropriação e
reapropriação individual, lugar onde se reconhece como de fundamental importância
o lugar do sujeito, no processo formativo. As dinâmicas da autoformação incluem o
diálogo com as memórias e com as narrativas, presentes na abordagem
autobiográfica.
Em seus estudos, Duran estabelece a relação entre memórias individuais e
memórias coletivas, evidenciando a natureza interdependente e participativa das
narrativas autobiográficas. Esse movimento de participação social das lembranças
de um indivíduo para com o outro pode reorientar as narrativas, redimensionando a
construção do processo autobiográfico pelo diálogo compreensivo, realizado nessa
interação.
Essa autora considera o valor biográfico como princípio organizador daquilo
que o indivíduo tem vivido, colocando assim as narrativas que contam a própria vida
como elementos que podem integrar visão de mundo, memórias e discurso, sendo
isso constitutivo do processo de formação educacional.
28
A importância do biográfico, como método, surge como reação ao domínio
positivista das ciências e se contextualiza no pensamento hermenêutico. Essa
perspectiva aponta para o entendimento de que as narrativas autobiográficas
provocam processos de tomada de consciência, emancipatórios para o indivíduo e
para a sociedade.
Observa-se, deste modo, que, no movimento de compreender as próprias
vivências e experiências, o indivíduo atribui sentidos às informações que lhe
chegam, advindas do mundo em que vive. Assim, no processo formativo, o
indivíduo, ao interpretar o mundo como interpreta, evidencia estar conectando o
conjunto de atividades educativas com a tomada de consciência, realizando a
reflexão retrospectiva na reflexão presente.
A formação, deste modo, é integradora e o sujeito da formação se movimenta
quando toma consciência e se apropria de conteúdos significativos, através de
atividades e aprendizagens em qualquer espaço social. As descobertas dos
indivíduos, efetuadas na intimidade do seu mundo interior ou na relação com os
outros estimulam a autoformação.
Os processos formativos, compreendidos por Duran (2009, p. 31), como
“processos diversificados, formais e não formais” que “se desenvolvem no tempo”,
colocam o sujeito no papel central dessa dinâmica porque, na medida em que esse
sujeito vai se apropriando do poder de se formar, torna-se autor da produção de si
mesmo.
Essa atribuição de centralidade ao sujeito, em seu processo formativo, é
condição de possibilidade, para que se estabeleça uma nova relação com o saber,
significando a “conquista de identidade pessoal, situada social e historicamente”
(Duran, 2009, p. 33).
As vivências e discussões do processo de autoformação evidenciam o valor
das relações humanas, nos espaços das instituições ou fora delas, mostrando os
tecidos das experiências formadoras, em momentos de constatações e descobertas
de influências através das narrativas autobiográficas.
O que se reconhece nesse processo é a racionalidade que abre espaço à
sensibilidade, procurando compreender o encadeamento entre as diversas
29
dimensões dos percursos de vida e as construções dos saberes, presentes na
formação.
Bragança (2009, p. 39) aponta, entre as contribuições da abordagem
autobiográfica, o reconhecimento do valor das narrativas, como lugar de diálogo, de
partilha e empatia entre indivíduos que aprendem. Ele coloca a história de vida,
como prática social, que aparece “na transmissão/recriação cultural das narrativas”
das histórias dos indivíduos, da família e da comunidade.
Ao trabalhar autobiografias, estabelecem-se desdobramentos de reflexões,
nas quais passado, presente e futuro são conjugados. Isto evidencia o movimento
ontológico de conhecer, de dar sentido às experiências narradas com vistas à
construção do futuro. Para a autora,
a incorporação das histórias de vida como caminho metodológico coloca o desafio de trabalhar fora do quadro lógico formal, positivista, reenviando o olhar para uma perspectiva aberta e a incorporação da subjetividade como elemento fundamental da constituição epistemológica do saber neste campo do conhecimento, já que fundada na interação social, no olhar do sujeito. (Bragança, 2009, p. 40)
Há, nessa prática, a ultrapassagem do paradigma lógico-formal, focalizando a
vida em seus movimentos individuais e coletivos. Esse movimento é espaço
apropriado para compreender os processos sociais e históricos implícitos na
autoformação. A temporalidade tem grande importância nessa abordagem que
desafia e confronta a linearidade do paradigma simplificador.
A questão desse paradigma simplificador encontra em Santos Neto (2009,
p.96) um ponto de encontro no que ele chama de “concepção reducionista do ser
humano”. Nessa concepção, a realidade é vista como se constituindo basicamente
de objetos independentemente dos sujeitos que a produzem e a conhecem,
configurando uma visão racionalista, dualista e mecanicista do mundo.
Para o autor, a consequência disto para a educação se traduz na formação
que apresenta cisões entre corpo e alma, razão e sentimentos, formas
desconectadas entre dimensões do humano que se encontram sem diálogo,
desconsiderando os sujeitos como autores de si e da história.
Torna-se nítida a questão do respeito à autonomia e à dignidade como
imperativo ético. A compreensão de ser humano que tem curiosidade, cujas
30
narrativas, inquietudes, gosto estético e linguagem são valorizados movimenta o
relacionamento entre sujeitos, no processo educacional, baseado no respeito à
singularidade e ao contexto histórico.
O movimento de autoformação supõe dedicação, troca de experiências, o
desejo pelo desenvolvimento de ser, do aprender e do descobrir. Supõe que o
educador esteja respeitosamente presente à experiência formadora e dela participe,
incentivando e proporcionando buscas e vivências significativas e contextualizadas.
O processo autobiográfico, como processo em movimento, possibilita compreensão
da vida do outro, do ponto de vista de quem vivencia e compartilha o que interpreta.
Nesse processo, ocorre o perceber e o aprender com desdobramentos que
envolvem sentimentos, composições singulares de elaborações racionais,
percepções de conteúdos reais e imaginados adquiridos. As narrativas se
apresentam, deste modo, como oportunidades de reflexão, pois, enquanto o sujeito
relata não o faz sem releituras desses fatos e dados relatados, colocando em
evidência a força e o sentido das experiências compartilhadas.
Ainda, segundo Duran (2009) a linguagem tem papel fundamental na
interação com o Outro e com a cultura. É pelos signos linguísticos que se
compreende e se reconstrói a cultura, pois é este o modo pelo qual se entra em
contato com o Outro.
As narrativas, como forma de linguagem, possibilitam a organização do vivido,
reunindo as experiências, como retalhos, para a autocompreensão - enquanto ser
que se constrói/forma na convivência com outros, dentro de uma cultura cercada
permeada por outras culturas, num determinado tempo permeado por outros
tempos.
Deste modo, vamos construindo e reconstruindo a nossa integridade ao rever
atitudes, valores e tudo o que importa para nossa vida cotidiana. A formação implica,
portanto, refletirmos sobre nossos próprios feitos e é isso que implica a
compreensão do sujeito, no lugar central do processo formativo. Isto equivale a
dizer que a formação centrada no aluno é a formação que parte dele mesmo e isso,
somente é possível, se ele reconhece a si próprio. As narrativas do método
biográfico ou histórias de vida constituem um percurso de autoformação, que parte
31
do singular, enquanto busca a si mesmo, para o universal, enquanto busca sua
posição no mundo.
Para Cyrulnik (2009, p. 206), as narrativas compõem a representação de si,
quando o sujeito busca suas origens. Pode ser um processo prazeroso ou doloroso,
mas necessário para dar coerência à vida. Esse processo só é possível graças à
“ferramenta verbal”.
Escapar das imposições e do determinismo é um processo desafiador. Ou
vivemos como “espantalhos” (semivivos ou semimortos) para não sofrermos mais ou
não fazermos sofrer quem amamos, ou enfrentamos a dor do sofrimento que é
romper com imposições que nos cerceiam a vida, assumindo de vez o rumo de
nossas vidas.
Submetermo-nos às “verdades” impostas pode nos levar à ilusão de sermos
aceitos pelos grupos, podendo criar obstáculos quanto ao cuidar de nossas próprias
vidas por adesões a ideais que podem ser muito contrários aos nossos, tornando
nossas vidas vazias e sem sentido.
As narrativas nos colocam perto de nós mesmos, permitindo o encontro com
nossos ideais, crenças e valores que nos guiarão no nosso percurso.
1.3 O cuidado na conjuntura de autoformação
A formação docente tem passado por vários questionamentos e
reformulações. Há mais de duas décadas autores preocupados com a
transcendência das capacidades docentes, estudam novos métodos de produção e
apropriação de conhecimentos na área da educação que vão além das capacidades
científicas, técnicas e didáticas.
De acordo com Imbernón, (2005), na sociedade contemporânea, com os
processos democráticos, a pluralidade cultural, a globalização, os meios de
comunicação e informações, recursos tecnológicos, questões éticas, demandam
outras capacidades docentes, como a de organizar os espaços escolares,
possibilitando um espaço de participação, reflexão da prática e formação.
32
Para a reflexão da prática, se faz necessário ter vivenciado esta prática. A
prática do outro também poder ser inserida como aprendizagem, desde que faça
parte da minha experiência, da minha reflexão, a partir do que observo e analiso.
Isso compõe o universo das minhas experiências de aprendizagens.
Para Nóvoa (1992), o conhecimento é feito na prática, portanto a reflexão da
prática é que dá formação de outras capacidades.
A autoformação, na educação permanente, parece essencial para a aquisição
dessas capacidades que os espaços formais de formação não alcançam de modo
sistemático (Arroyo, 2000).
Tardif (2005) desenvolve estudos na área dos saberes docentes, necessários
para o exercício da profissão, preocupa-se com a natureza desses saberes. Para
ele, tais saberes envolvem conhecimentos, o saber-fazer, competências e
habilidades que os professores mobilizam diariamente para realizar seu trabalho.
A apropriação desses saberes docentes dá autonomia ao professor, que
aplica seus conhecimentos dentro do espaço coletivo, do seu cotidiano, que ao
mesmo tempo o transforma. Esta autonomia do saber-fazer dá a dimensão estética
(Jimenez, 1999), ética e humana, discutida por Freire (1996).
Para entender como as questões do cotidiano são incorporadas na nossa
formação, além das capacidades técnicas da educação, se faz necessário refletir
sobre essa prática.
Porém, os espaços formais de educação não são espaços exclusivos dos
elementos que incorporam a formação dos sujeitos. Os professores, como sujeitos
que interagem com seu meio, sua cultura, também passam por transformações, eles
vivenciam situações cotidianas que envolvem toda a sua vida. Sua vida não se
restringe à sua profissão. O professor vive e convive dentro de um espaço coletivo.
Tanto pode ser objeto de transformação, como pode transformar o coletivo, como
qualquer outro membro deste coletivo. Como um sujeito singular, absorve as
transformações, mudanças, desenvolvimento do coletivo, mobilizando seus saberes,
de modo próprio, tomando decisões, assumindo seu percurso, de acordo com suas
concepções e seus valores.
33
A formação focaliza a compreensão do processo de construção de autoria,
autonomia e emancipação dos docentes, no decorrer de seus percursos formativos,
dentro de um espaço coletivo.
Ao discutir sobre processos formativos de professores, Duran (2009)
apresenta o contexto educacional brasileiro e o reconhecimento da perspectiva
teórica que envolve o método biográfico, as histórias de vida e as narrativas como
plenas de importantes afinidades com a problemática da autoformação. Isso
caracteriza a importância das memórias para a reflexão sobre um fenômeno a ser
situado e trabalhado. Para Duran, as memórias e narrativas se colocam como
uma das premissas básicas para um trabalho que pretenda colher histórias de vida de professores em formação, para dar existência a essas histórias, para dar voz aos desautorizados de sempre, articulando formação e autoformação (Duran, 2009, p. 23).
Para Santos Neto (2009), as construções autobiográficas contribuem para a
formação de educadores por ajudarem na constituição de sujeitos capazes de
trabalharem com educandos, visando ao desenvolvimento da autoria e autonomia.
Ele entende a proposta educacional assentada sobre uma concepção de ser
humano. Assim, a forma específica de ver o mundo e, nele, agir coloca em evidência
a antropologia que sustenta determinada proposta educacional. Para se analisar, em
profundidade, determinada proposta, é preciso compreender claramente qual seu
alcance, em termos de formação de seres humanos de acordo com o fundamento
escolhido.
Para ele, estudos de autores importantes reconheceram os espaços de
contradição dentro da proposta capitalista. No Brasil, aponta os estudos de Freire,
entre outros, onde o processo de construção do conhecimento foi objeto de reflexão
e análise crítica. Os estudos referidos por Santos Neto (2009, p. 96), salientam a
existência de uma visão de mundo assentada sobre uma antropologia racionalista,
tendo nas construções de Descartes e Newton, referências para uma visão
reducionista, determinista e fragmentada de ser humano.
Aponta a influência de Freire, a partir da segunda metade do século XX, e sua
concepção “rica e provocativa” (Santos Neto, 2009, p. 97) de ser humano que se
compreende, aberto por perceber-se singular, inacabado, que necessita se mover de
forma dialógica e esperançosa, enquanto constrói sua história. Há a visão de um ser
34
social e político inacabado e que tem consciência desse inacabamento. Este ser
interpreta o mundo e necessita compreender as experiências através das quais ele
vai construindo seu modo de aprender e de ser. Sua condição humana supõe
esperança e busca e isso o move na educabilidade. A própria vida supõe essa visão
do inconcluso e do existir, assumindo o direito e o dever de optar, de decidir. Isso
implica, profundamente, o processo de formação que liga ética e esperança,
enquanto coloca em evidência um ser humano que pensa ser possível sua
participação e intervenção no mundo para melhorá-lo. Há, nesse ser humano, uma
vocação ontológica de fazer rupturas e movimentar a história, por ter consciência de
que é a ação transformadora de hoje que constrói o amanhã.
Fica claro, ainda que subentendido, a noção de cuidado que fundamenta essa
antropologia. Como seres políticos, os seres humanos são capazes de descobrir o
mundo, de reconhecer a sensibilidade, enquanto seres poéticos, de criar e de lutar,
assim como são capazes de negar a humanidade, negar a liberdade e destruir
sonhos. O cuidado, aqui, aparece ligado ao tipo de escolha que pode ser feita: “a
humanização é uma possibilidade de nossa condição de ser inconcluso, seu
contrário também o é, ou seja, outra possibilidade é a desumanização” (Santos Neto,
2009, p. 98).
O que se pode perceber aqui é o conceito de cuidado e autoformação. Este
conceito é percebido como inserido na visão de ser humano que tem consciência,
que entende sua vivência no mundo, não como predeterminação, mas, como algo
que precisa ser construído com responsabilidade. Nesse sentido, toma importância a
historicidade em que, partilhando com os outros, as possibilidades do fazer e do
formar-se, o sujeito se compreende inserido no projeto educacional dando uma
conotação de cuidado necessário ao processo educacional humanizador e
libertador.
35
2 O CUIDADO HUMANO: AS APROXIMAÇÕES ENTRE A
EDUCAÇÃO E A SAÚDE
Neste capítulo, o objetivo é a aproximação entre educação e saúde,
considerando-os como elementos fundamentais para a manutenção da vida e seu
pleno desenvolvimento. Autores como Heidegger (2002) e Foucault (2006) trataram
do conceito de cuidado e formularam teorias que fundamentam concepções básicas
para o pensamento contemporâneo. Tais teorias encontram um diálogo com a
concepção de educação, em Freire (1996; 2005).
O cuidado é uma palavra polissêmica, variando de acordo com as culturas, as
sociedades, categorias profissionais e ideológicas. Recorrendo aos dicionários,
constatam-se seus vários significados. Do dicionário “Houaiss”, destacam-se alguns
significados, tais como: submetido à rigorosa análise; meditado; pensado; em que
houve intenção, propósito; propositado; premeditado; em que houve preocupação;
receoso; preocupado; atenção especial; comportamento vigilante, precavido;
encargo, incumbência; responsabilidade; lida; trabalho; ocupação; ter atenção
consigo mesmo. Do latim: Cogitatus – meditado, pensado, refletido. Cogitáre – agitar
no espírito, remoer o pensamento, pensar, meditar, projetar, preparar.
No dicionário “Aurélio” (Ferreira, 1999), tem-se: imaginar; pensar; meditar;
cogitar, excogitar; julgar; supor; aplicar atenção; pensamento; imaginação; atentar;
pensar; refletir; tratar; ter cuidado consigo mesmo, com sua saúde; sua aparência, a
sua apresentação.
Percebe-se que a palavra remete à ação (lida, trabalho, ocupação) pensada,
refletida (atenção, preocupação, submetido à rigorosa análise) e responsável
(encargo, incumbência, responsabilidade). Ou ainda, uma ação que se opera sobre
si mesmo (ter atenção consigo mesmo; ter cuidado consigo mesmo).
O Cuidado Humano compromete-nos com uma ação pensada e responsável,
pois se trata de uma ação que trará alguma consequência positiva ou negativa. O
“não-cuidado”, segundo Silva (2001, p. 87), implica em desatenção e descaso,
configurando o abandono e desrespeito, que pode ser observado nas relações que
36
refletem a incapacidade de expressar a solidariedade, privando o ser humano de
sua mais autêntica expressão – a mutualidade do cuidar.
Para a autora, o cuidado de si e o cuidado do outro são dimensões
integradas, pois cuidar de si e cuidar do outro se mostram em dimensão mais ampla,
como compromisso com a vida real, concreta. É este compromisso que torna
possível exercitar a humanidade, na vivência do cotidiano. Neste sentido, o cuidar
do outro é essencialmente fornecer condições para que ele cuide de si. É promover
a dignidade da vida e a emancipação respeitosa.
Este entendimento apresenta o diálogo reflexivo como importante
característica do cuidar, pois, através deste, a relação interpessoal se articula,
possibilitando o engajamento no processo de vida do outro. Isto supõe que se tenha
consideração pelo contexto de vida das pessoas. Nesse movimento, se encontra,
segundo Silva (2001, p. 88), o respeito pela singularidade, a dignidade e a
autonomia de si mesmo e do outro.
Segundo Oguisso (2007, p. 13), no início do Cristianismo, o cuidado era
delegado às mulheres que tinham, como tarefa fundamental, a reposição
demográfica pelas perdas causadas pelas guerras e epidemias. O momento crucial
do cuidado era o momento do parto, em geral assistido por viúvas e mulheres mais
idosas, que haviam aprendido a partir de suas próprias experiências.
Historicamente, o cuidado parece estar ligado à figura feminina, que cuida do
filho, do marido, da casa. Há outras formas de cuidado, como o homem que cuida de
sua prole, provendo alimento, protegendo-a das agressões externas. Os amigos
também cuidam quando ouvem o outro, aconselham, compartilham, acolhem,
apoiam. É possível ainda cuidar de si, quando se cuida do corpo, da aparência, da
própria saúde física e mental e de seus projetos de vida.
Cuida-se durante toda a vida. O cuidado aproxima as pessoas, possibilita a
confiança mútua, protege. Portanto, o cuidado é intrínseco ao ser humano, uma
necessidade ontológica. Compreende também pensar o ser humano em sua
condição de vulnerabilidade, de fragilidade. Vulnerabilidade implica
interdependência, constituindo-se elementos que configuram a ética do cuidado.
Com a transformação da sociedade, o cuidado foi sendo institucionalizado.
Ele passou das mãos da família para as de outros profissionais, como professores,
37
médicos, enfermeiros, psicólogos. E, institucionalizado e organizado de modo
compartimentado, perde seu caráter humanístico e integrador. A enfermagem tem o
cuidado como objeto de suas ações e luta para resgatar este caráter humanístico.
A partir do século XIX, a enfermagem passa de atividades práticas com
conhecimento popular para os ofícios e, em seguida, desenvolve-se, como profissão,
na perspectiva da Ciência Moderna, baseada em conhecimento técnico e científico,
numa visão cartesiana, tornando assim uma ação institucionalizada.
Os avanços tecnológicos, a transformação da sociedade, que passa a
valorizar o trabalho institucionalizado, fizeram com que a enfermagem focasse no
trabalho técnico com bases científicas, porém apenas do ponto de vista biológico,
focada na cura de doenças, tornando-se também imediatista. Com isso, se perdem
as dimensões éticas e as estéticas do cuidado.
O conceito de cuidado precisou de investigação, por parte da comunidade
científica de enfermagem, a partir da década de 1960. Entre outros, Nascimento e
Trentini (2004) desenvolveram estudos sobre o cuidado humano. Para as autoras,
importantes teorias, como por exemplo, a Teoria de Paterson e Zderad,
fundamentaram-se nas concepções do filósofo Martin Buber.
Percebendo o colapso do relacionamento humano, como consequência da
tecnocracia social, fato esse que acentua a relação das pessoas com máquinas, o
filósofo se propõe a pensar como ocorre a relação entre as pessoas e coisas.
Aspectos da teoria de Buber se tornam interessantes para esse estudo, uma
vez que a investigação presente se volta para o sentido do cuidado, do humano, em
sua concretude e historicidade, como ser de relações éticas e intervenções
transformadoras na realidade. Sua proposta envolve considerar duas formas de
relação: EU-TU, referindo-se à relação entre pessoas e, EU-ISSO, apontando a
relação das pessoas com as coisas.
As pessoas dão direção à sua vida e expressam o que lhes é próprio,
exercitando a livre escolha e compromisso. Frente à pergunta primordial sobre como
se deve viver, o raciocínio objetivo ocupa um papel importante, mas os argumentos
éticos apontam para buscas individuais, por significados.
Podemos compreender, assim, a questão ética que se inicia, quando a
pessoa, sendo movida a agir, toma sobre si o interesse decorrente da
38
responsabilidade com ele próprio, com o outro, com o que lhe cerca. O cuidado torna
a ação ética possível se consideramos que a ação responsável precisa ser
permeada da capacidade de análise e reflexão.
Von Zuben (1984) situa o ser humano da atualidade no contexto da
necessidade de eficácia produtiva, do consumo irrefletido, batalhando pela
sobrevivência, estonteado pelo grande volume de conhecimentos acumulados. O ser
humano encontra-se como que ofuscado pela preponderância do pensamento que
resiste à reflexão, exigido pelas circunstâncias a ter respostas prontas e imediatas.
Na tensão deste contexto, é perceptível o lugar de inquietação do ser
humano, na busca pelo seu lugar de ser complexo e integral. O ser humano
necessita de relações comprometidas e significativas e, não, meramente como uma
soma de setores, com regras ditadas pelas diferentes especialidades científicas.
Dentro desse quadro, a reflexão de Buber (1979) se apresenta propícia à reflexão
sobre as inter-relações, na área da saúde, como exemplo de incansável busca pelo
sentido e resgate do humano.
Ele insistiu em valorizar as conversações, pois, para ele, a força do diálogo
deveria permear os relacionamentos interpessoais, enfatizando a importância das
experiências vividas. A ilustração disto seria dizer que, é possível tomar alguém pela
mão, conduzindo-o até a janela, para então, no abrir da janela e do apontar para
fora, dar impulso ao diálogo.
Esse é o movimento dialógico, eixo da proposta de constituição de
comunidades entre os seres humanos. É especial categoria existencial, ligamento
entre a experiência e a reflexão. Deste modo, o diálogo passa de conceito
puramente abstrato para significar elemento que descreve as experiências vividas. A
realidade considerada pelo ângulo do diálogo é condição de possibilidade para
resgatar o indivíduo em sua legitimidade de ser humano.
O ser humano é um ser de relações que, vivendo no mundo pode proferir
palavras como EU. A relação importante e indispensável do conhecimento científico
que acontece entre cientista e objeto de investigação caracteriza a relação EU-ISSO.
No entanto, o encontro se dá entre duas pessoas mediadas pela relação de ajuda. A
esse tipo de relação, Buber compreende como EU-TU. Essa relação não é estática,
mas cheia de possibilidades pelo reconhecimento do que o ser humano pode vir a
39
ser. O conhecimento do outro não se dá como conhecimento de um objeto, como na
relação EU-ISSO. A relação EU-ISSO não é algo depreciativo, mas, é um dirigir-se
às coisas. No entanto é pela relação que acontece a presença para o outro, o
movimento de voltar-se para o outro que é pleno sujeito e voz a ser escutada.
Pode parecer tratar-se de algo trivial, no entanto, quando olhamos para
alguém, quando lhe falamos, isso constitui-se em um movimento do corpo e da
atenção, como um todo, valorizando a interação de pessoas que se movem na
partilha da humanidade que lhes é comum, fundamental para o cuidado atencioso à
saúde.
Para Buber (1979, p. 39) “se o homem não pode viver sem o isso, não se
pode esquecer que aquele que vive só com o isso não é homem”. Há uma grande
importância da relação EU–TU, para o pleno desenvolvimento da existência humana
e para o processo educacional como formação integral e ação possibilitadora do
encontro consigo mesmo e com o outro.
2.1 A linguagem, a educação e o cuidado
A primeira e a mais forte referência à força da linguagem e da palavra
aparece na Bíblia. A transformação do verbo em Deus denota que a palavra é a
grande herança da humanidade. Sob o império da linguagem, seja ela oral ou
escrita, forjaram-se as civilizações, expandiram-se as culturas, disseminaram-se os
valores, escreveram-se as histórias da humanidade. Com o poder da linguagem e da
palavra, construíram-se os caminhos da Guerra e da Paz.
Por intermédio da palavra, firmaram-se as bases do Amor, da Verdade, da
Justiça, do Perdão, da Caridade, do Civismo, da Cidadania, da Fé e da Esperança.
Neste sentido Aristóteles, pensador grego do século IV a.C., afirma que somente o
homem possui o dom da palavra; a voz indica tão só dor e prazer, e por essa razão
não foi outorgada aos animais.
Como podemos observar em Aristóteles, a palavra, contudo tem a finalidade
de fazer entender o que é útil ou prejudicial, aquilo que é justo ou injusto. Neste
sentido, a palavra exerce uma considerável força de poder. É o mecanismo básico
40
que, agindo nos hemisférios cerebrais, ajusta o ser humano ao meio ambiente e à
violência social, a saber: condiciona, provoca reações, induz, seduz, motiva,
sugestiona, hipnotiza, integra, harmoniza, dá segurança.
Ao se aproximar da carga psicossomática, que traz para o equilíbrio do corpo
humano, ela preenche os ciclos da história com as ideias, os valores e os princípios
que fundamentam as conquistas das civilizações e que possibilitam avanços e
descobertas, em todos os campos do conhecimento universal.
A própria história das civilizações é, por assim dizer, a sua própria essência
histórica da evolução da palavra. Na Antiguidade, ela exprimia grandeza e era
soberana. Era forte a expressão de Demóstenes1, grande orador e político na Agora.
Era incandescente a locução de Cícero2, no fórum romano; foi de incrível beleza a
sonata de amor aditada por Jesus Cristo, no seu discurso do Sermão da Montanha.
O grande público apreciava a arte dos grandes Mestres da palavra.
A palavra se expandiu percorrendo lugares distantes da terra, ganhando força
e abrangência com a descoberta da imprensa. Mudanças significativas ocorreram
com os modernos recursos de comunicação como o rádio, a televisão e, mais
recente, a internet.
Ao longo de todos os ciclos evolutivos da vida humana, a palavra jamais
deixou de ter a sua preponderância, na tessitura dos fios condutores da história de
homens e mulheres desta Terra. Da mesma maneira, num passado longínquo, ela
continua nos seduzindo e exercendo uma extraordinária força de sedução,
principalmente quando se ampara nos atributos centrais de uma boa linguagem para
a comunicação.
A partir das questões postas, pode-se destacar a importância da palavra no
exercício do magistério. Trata-se de uma habilidade tão importante que, sem ela, o
professor jamais conseguirá valorizar tudo o que aprendeu estudando e trabalhando.
A boa comunicação precisa estar presente em todas as etapas importantes
da vida. Imaginando que um indivíduo esteja estudando e, graças ao apoio dos pais
ou de um parente, ele possa se dedicar apenas à sua vida universitária. Se esse
1 Pensador Grego que viveu entre os anos de (384- 322 a. C.).
2 Pensador Grego que viveu entre os anos de (106-43 a. C).
41
indivíduo supuser que poderá sentar-se no banco da faculdade, permanecendo
calado o tempo todo, está muito enganado.
Cada vez mais, as faculdades na contemporaneidade exigem que seus
alunos apresentem oralmente algum tipo de atividade escolar e, se a comunicação e
o vocabulário forem de baixa qualidade, poderá comprometer o resultado da
avaliação e colocar todo o esforço a perder. Isto significa dizer que a comunicação
de boa qualidade é essencial, mesmo antes da escolha da carreira profissional.
Enfim, qualquer que seja a área do conhecimento que tenha escolhido ou
venha a escolher, o indivíduo sempre precisará da boa qualidade da comunicação,
para progredir e se realizar. Mais cedo ou mais tarde, e, com certeza, bem antes do
que o indivíduo possa imaginar, precisará ser portador de uma comunicação eficaz.
A convivência social exige que o homem fale bem. Quando nos relacionamos
com os amigos, dentro ou fora da nossa área de conhecimento, cuja expressão e
habilidade para fazer relatos sejam eficientes, sentiremos o prazer da convivência e
o tempo passará, certamente, com bastante rapidez. Ao contrário, é difícil a
tolerância e a permanência de um relacionamento no qual se prescinda dos hábitos
de comunicação.
Em qualquer momento, no qual se necessite da utilização de uma boa
comunicação, os atributos para o bom desempenho da oralidade são:
1) a credibilidade;
2) a voz;
3) o vocabulário;
4) a expressão corporal;
5) a aparência.
Nasce, portanto, a categoria da convivência, como estudiosos reconhecem.
Sundemeier (1995, apud Zwetsch, 2007), que nasceu no Brasil, apoia suas reflexões
em dois nichos de experiência: o primeiro está voltado ao pedagogo Paulo Freire,
sobretudo com as suas obras - Pedagogia do oprimido e Educação como prática de
liberdade- além de outras obras como Pedagogia da esperança e Pedagogia da
tolerância . O segundo eixo remete ao nascimento das Comunidades Eclesiais de
Base, no Brasil, que significaram uma verdadeira eclesiogênese, a reinvenção da
Igreja a partir da fé do povo e das bases sociais.
42
Para Freire, educar é libertar o sujeito do determinismo, do fatalismo,
tornando-o construtor do seu próprio conhecimento, sendo crítico para deliberar
sobre sua própria vida. Educar, portanto, é levar o sujeito à construção de sua
autonomia (Freire, 1981; 2006).
Pode-se considerar que autonomia, na perspectiva da saúde, compreende o
cuidado, como ação entre sujeitos: o que cuida e o que é cuidado. Isto é
estabelecido, com base no diálogo, além da produção de saúde, a busca da
construção de sentidos e significados de projeto de vida.
Para Paulo Freire (2005, p. 24), “aprender precedeu ensinar”. Segundo
observou, “ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender”.
Somente depois é que o homem percebeu que seria possível ensinar. “Não existe
ensinar se não se aprende”. É fundamental a frase do autor, num momento em que
buscamos mais do que sobreviver e sim viver, “ser mais”. O que precisamos
aprender? Como aprendemos? Para que aprender? Para quem serve aprender para
cuidar da vida?
Paulo Freire, então, parte da convicção de que a divisão mestre-aluno não é
originária. Originária é a comunidade aprendente, onde todos se relacionam com
todos e todos, ao trocarem, aprendem uns com os outros.
Nesse sentido, é possível perceber que essa concepção permite identificar
que:
(...) o ensino se refere, intrinsecamente, ao processo de aprendizagem: quando o docente estrutura sua tarefa precisa pensar no outro que aprende, estabelecendo parâmetros e objetivos que considerem não somente a natureza dos conteúdos, mas, fundamentalmente, as dinâmicas de acessar, apropriar e produzir conhecimento. (Batista, 2004, p. 65)
O cuidado em relação ao sujeito aprendente está ligado à ideia do vir-a-ser
(expressão cunhada por Martin Heidegger – na sua tese do existencialismo) é, no
início, material da produção da vida. O conteúdo primeiro da ética da libertação, do
pensador argentino Dussel (2000), é o princípio ético-material. O Capitalismo e o
Socialismo conseguiram padrões de vida sustentáveis, no entanto a humanidade
está surda, muda e cega à miséria, à violência e jamais poderemos dar as costas a
estas questões (Amorim Neto, 2008). Desde o começo do mundo, os humanos
buscam a paz, mas ela está presente dentro do próprio homem e de mais ninguém.
43
A mão usada para manipular a técnica é a mesma usada para coçar o corpo e é a
mesma usada para acariciar o próximo (Amorim Neto e Berkenbrock-Rosito, 2009).
Nos tempos modernos, observa-se, com muita frequência e naturalidade, que
o bom médico é aquele que pede muitos exames. Cada vez mais, se ouve que tal
aparelho computadorizado faz o diagnóstico preciso, antes mesmo que a doença
apareça ou, cada vez mais, os discursos de marketing preconizam que tal aparelho
é muito preciso, pois é de última geração.
Assim, muitos médicos não resistem ao charme cibernético e substituem a
boa anamnese da escuta pelo exame de última geração. O deslumbramento
tecnológico, na Medicina, provocou uma inversão nas relações: criou-se o médico
que humanizou a máquina e se mecanizou. O humanismo foi substituído pelo
mecanismo. O maior entrave, nas práticas médicas, é (des) banalizar o banal, o
comum, a falta de indignação dos humanos para com os humanos.
O nosso maior desafio é o de ser autor de uma transformação, para uma
Ética Humana, onde é preciso levar a sério a tarefa da “destruição”, como bem
afirmou Heidegger em “Carta ao Humano”. Destruição aqui significa decifração do
essencial, destruição cheia de amor pelo outro e pela verdade, destruição violenta,
mas uma violência cheia de ternura, simplicidade e esperança.
Considerando-se, como processo pedagógico, proposto por Freire (2005),
como passagem da “consciência ingênua” para a “consciência crítica”, e também
Anjos (2006), com a proposta da autonomia relacional de Mackenzie, em que a
autonomia se constrói, num processo de relações, interpessoais, “que se tornam
educativas para ação independente e adulta...”.
A educação é uma atividade que tem como objetivo o desenvolvimento do ser
humano, em suas potencialidades e possibilidades. Um dos problemas que
interferem no seu objetivo é a distorção ocorrida, principalmente no final do século
XIX e início do século XX, em que, com o advento da industrialização, priorizou-se a
formação para o trabalho. A necessidade de mão de obra especializada fez com que
o preparo técnico e a aquisição de conhecimentos científicos específicos fossem
prioridade, deixando em segundo plano a formação humana. O modelo
hierarquizado da organização do trabalho pode ter contribuído para uma formação
em que a disciplina e a subordinação fossem características positivas para um bom
44
profissional. Nesta lógica, formaram-se os profissionais e os formadores desses
profissionais. Com isso, a repetição de práticas e a incapacidade criadora tornam os
indivíduos sem capacidade de interferir na sociedade, para transformá-la. Além
disso, torna o homem “escravo” de sua própria vida, pois não é capaz de
reconhecer-se a si mesmo nem a posição que ocupa no mundo ou as suas próprias
relações com o mundo.
Mecanizado, o homem pode repetir, com perfeição, as práticas de produção,
operar máquinas de forma habilidosa, mas isso não o torna capaz de relacionar-se
com o mundo e com os homens. Ele não cria e não transforma. Não se sente
autônomo, capaz de agir sobre o mundo, ou sobre si próprio, para a construção de
um mundo melhor.
Educação, para Paulo Freire (1996), é desenvolver o ser autônomo e
responsável pelos seus atos, capaz de deliberar sobre sua própria vida, fazendo
opções, tomando decisões e assumindo riscos. A educação para a liberdade é
aquela que respeita o ser, como sujeito. Este ser traz uma história e uma cultura e
somente, a partir delas, ele poderá saber quais as necessidades de aprendizagem
que o tornarão livre.
Portanto, a educação não pode ser castradora, que adestra o homem para
adaptar-se e acomodar-se, tornando um ser estático, que não se desenvolve e que
aceita o mundo e vida como fenômenos postos, já dados, e que assim permanecerá
(Freire, 2005). A educação que impede o homem de viver livremente não o forma,
formata-o. O que caracteriza o homem “humano” é a sua força criadora, diferente
dos animais que se ajustam ao meio e cumprem um destino determinado.
Porém o homem não se educa sozinho. É na interação e na comunhão com
outros homens que é possível aprender. E aprende porque é capaz de comparar,
analisar, criticizar e, portanto, reconhecer-se no mundo e com o mundo. Tomar
consciência do mundo e da vida como fenômenos dinâmicos é antes de tudo tomar
consciência de si mesmo, como fazendo parte desse mundo. Se o homem aprende
com outros homens e com o mundo, o faz por meio da comunicação. É a
comunicação que faz o homem interagir com o outro. Se, para Paulo Freire, a
integração entre os homens se faz pelo diálogo e não através de “comunicado”,
então, a comunicação deve envolver os elementos cognitivos e afetivos.
45
Deste modo, é possível transformar a ”consciência ingênua” em “consciência
crítica”, pois há o diálogo entre os homens e não imposições de pensamento e de
ideias. É na integração de saberes que é possível crescer, desenvolver-se e criar
novos saberes. E é a partir de novos saberes que se criam novas práticas. A
aquisição de conhecimentos científicos, neutros, impossibilita o diálogo, favorece a
repetição de técnicas e não contribui para a transformação do homem e do mundo.
O diálogo abre espaço para a intersubjetividade de modo democrático, entre quem
ensina e quem aprende, nos espaços formais ou informais de aprendizagem.
A conscientização, então, passa do discurso para o compromisso com a
práxis. Segundo Freire, a práxis é a palavra autêntica. É a coerência entre a teoria e
a prática, enquanto o verbalismo é a educação do antidiálogo, representada
marcadamente, pela educação bancária pela transmissão passiva de conhecimento.
A proposta da educação freiriana é aquela que se dá através do diálogo e
está comprometida com a práxis, eliminando barreiras entre educando e educador.
Nessa proposta, não há relação de opressão e oprimido, poder de mando e de
obediência, assistencialismo e prescrição ao ajustamento e à acomodação. Uma
educação para a autonomia é capaz de transformar o educando pela consciência
crítica, que se refere ao mundo e a si próprio. Nesse caso, o educando tem
consciência de sua história, de sua sociedade, sabendo fazer para si, com dignidade
e ética.
Freire (2005) afirma que mulheres e homens, seres histórico-sociais, tornam-
se capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper,
por tudo isso, tornam-se seres éticos.
A ontologia do cuidado em Heidegger pode ser o fenômeno que se apresenta
aqui como tema de estudo. Isto significa compreendê-lo como uma realidade, que se
mostra, e pode ser percebida, mais especificamente, no campo da saúde e
educação, a partir das experiências e vivências.
Nesse sentido, não se trata de pensar e falar sobre o Cuidado como objeto
independente dos profissionais, mas o de pensar e falar sobre o Cuidado, como é
vivido e estruturado nas Diretrizes Curriculares do Curso de Medicina. Não temos o
Cuidado. Somos o próprio Cuidado. Isto significa dizer que o Cuidado possui uma
dimensão ontológica: a dimensão de ser. Isto quer dizer que se constitui na própria
46
formação do ser humano. Com isso se torna uma maneira singular do homem e da
mulher. Sem esse Cuidado deixamos de ser humanos.
Segundo Heidegger (2002, p. 105) existe um vínculo íntimo, entre o
conhecimento e a ação: “somos um ser no mundo” “relacionados com alguma coisa,
como produzir algo” “ou fazer algo”. Para este filósofo, a existência é um fundamento
para compreender o ser. Sua preocupação filosófica é o Ser. A direção da sua
ontologia é conhecer e respeitar o Ser que, em seu olhar, desde Platão, foi
esquecido.
O autor faz uma distinção entre o ser do homem, que ele denominou de
DASEIN (Ser aí), do ser das coisas, cujas estruturas e propriedades serão
diferentes. Ele chama as propriedades do Dasein de existenciárias e as das coisas,
categorias. Com isso a análise fenomenológica da existência do Dasein lhe permitirá
chegar a conhecer o ser e, com isso, ele se apresenta pela temporalidade. O que
implica dizer que o homem se eleva sobre si mesmo e se projeta.
O homem se projeta sempre, mas é “Ser no mundo”, não é um ser isolado e
isto torna a necessidade, na qual se desenvolve a existência do Dasein. O ser no
mundo é estar constituído por projetos, envolvido na relação com os outros e com os
objetos. No caso de que a existência seja uma fuga ante si mesmo, é não pensar no
próprio ser, deixando-se levar pelas pessoas e as coisas; é o que Heidegger
denomina existência inautêntica e se caracteriza pela superficialidade, o anonimato,
a mediocridade e a irresponsabilidade.
A existência autêntica, ao contrário, ocorre na ruptura desse modo
inautêntico, tendo como objetivo outras possibilidades que são acompanhadas com
uma crise na vida. Isto leva à liberdade, que consiste em aceitar a realidade da
morte. A morte é o determinante das possibilidades do ser e revela, ante o Dasein, o
nada; o homem autêntico revela que seu ser nada é. Mediante um esforço heróico, o
homem cuida da sua própria existência.
Heidegger sustenta que, ante a realidade do nada, o homem, experimenta o
sentimento de angústia e será a ausência de objeto o que situa a angústia frente ao
nada. Na existência inautêntica, se recusa a angústia e na autêntica, a angústia é
situada como centro da existência.
47
O que se pode observar em Heidegger, a partir de Boff (2004), é que somos
conduzidos a perceber o cuidado significando: “solicitude, diligência, zelo, atenção e
bom trato”. Como diz Boff, estamos diante de uma solicitude fundamental, de um
modo de ser, mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com solicitude.
A atitude de Cuidado pode provocar preocupação, inquietação e sentido de
responsabilidade. Assim, por exemplo, dizemos: “o paciente está sob a
responsabilidade daquele médico especialista e de toda a sua equipe”, para
expressar a cura, a inquietação e o cuidado para com a pessoa amada, comumente
conhecida como “dor de amor”.
Pela própria natureza, cuidado inclui, pois, duas significações básicas,
intimamente ligadas entre si. A primeira, a atitude de desvelo e de atenção para com
o outro. A segunda é de inquietação e preocupação, porque a pessoa que tem
cuidado se sente envolvida e efetivamente ligada ao outro.
Neste sentido, o poeta latino Horácio (65 - 68 a.C.) podia finalmente observar:
“o cuidado é o permanente companheiro do ser humano”. Quer dizer: o cuidado
sempre acompanha o ser humano, porque este nunca deixará de preocupar-se e de
inquietar-se pela pessoa amada. Se assim não fora, não se sentiria envolvido com
ela e mostraria negligência e incúria por sua vida de destino. No ápice, se revela a
indiferença que é a morte do amor e do cuidado.
O cuidado somente nasce quando a existência de alguém tem importância para mim. Passo então à dedicação, disponho-me a participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida. (Foucault, 2006, p. 35)
A perspectiva ontológica do Cuidado em Foucault (2006), no curso realizado
no Collége de France, nos anos de 1981 e 1982, aborda o “cuidado de si”,
percorrendo a história do conceito. Para ele, essa noção nasce na obra de Platão.
Nos diálogos entre Sócrates e Alcibíades, aparecem as idéias relativas a esse tema,
que vão sendo desenvolvidas e transformadas na cultura do “cuidado de si”,
modelada pelos dois primeiros séculos da Era Cristã.
Segundo o autor, em Alcibíades de Platão, os preceitos básicos que emergem
são as ideias ligadas ao “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón) socrático. Assim o
“cuidado de si” (epiméleia heautoû) liga-se ao “conhece-te a ti mesmo”, sendo essa
a emergência do Eu, da qual se torna necessário ocupar-se.
48
Na perspectiva de Foucault, o texto de Platão apresenta Alcibíades, um jovem
ateniense que almeja governar a cidade, recebendo o conselho de Sócrates: “cuida
de ti mesmo” para bem governar os outros. O bem governar, para que houvesse
concórdia, aparece ligado ao “conhece-te a ti mesmo”.
O cuidado de si aparece como o primeiro despertar, e o conhecer-se a si
mesmo era o buscar o Eu que se deve cuidar para bem governar os outros.
O cuidar de si, de Sócrates, dá noção de formação, pois Alcibíades passava
da fase erótica para a pública, ou seja, da adolescência para a fase adulta. E
cuidado de si caracteriza-se pela “correção”, pela “contenção da alma”, para que se
tenha segurança. Então o cuidado de si deveria ser permanente.
Observa-se aqui a aproximação entre a medicina e a educação, à medida que
a paixão (o desejo, a vontade) é vista como um vício, uma doença, que precisa ser
cuidada pelas técnicas de si pela Therapeuein heautón. Therapeuein heautón é
prestar culto a si mesmo, ser o seu próprio servidor, cuidar-se (Foucault, 2006, p.
120).
Mas, como conhecer a si mesmo? Foucault percorre textos de Epicuro,
Sêneca, Marco Aurélio, descobrindo e apresentando o imperativo: “olha-te a ti
mesmo”, busca dentro de ti a verdade, busca os segredos de tua consciência
(Foucault, 2006, p. 267). Portanto, Therapeuein significa uma atitude terapêutica,
curar ou cuidar. Mas que também é a atividade do servidor que obedece às ordens e
que serve a seu mestre. Trata-se de procurar as feridas, purgá-las, extirpá-las,
afastar os males da alma, ou ainda ocupar-se de si mesmo, corrigir-se, aperfeiçoar-
se, conduzir-se de modo certo.
Mas, para cuidar de si, é preciso conhecer-se a si mesmo, aí a mescla entre
saúde e educação. O “cuidar de si” remete à necessidade de saber o que é melhor
para si mesmo, fazendo escolhas adequadas que tornem sua vida melhor, baseado
em seu projeto de vida, o que quer para si, o que quer ser e como quer ser. Essas
ações não ocorrem somente no nível do pensamento. Passam a ser uma prática, um
ofício, um labor.
Foucault (2006) propõe, como exemplo, os textos de Marco Aurélio, que
relatam a prática de cuidado de si, incorporada ao seu cotidiano em que esse, à
noite, antes de dormir, anota todas as atividades realizadas durante o dia, tais como
49
alimentação, cuidado com o corpo e outras atividades. Isto sugere uma atitude de
ativar a memória, registrando as coisas que foram realmente importantes
evidenciando a reflexão sobre as atividades, para realizá-las melhor no dia seguinte,
fazendo as correções necessárias.
Para Marco Aurélio, segundo Foucault, governar torna-se uma profissão, não
é privilégio. É uma profissão como dançarino ou sapateiro. Portanto, o cuidado de si,
não como governante, mas como homem aprimorado que lhe dará condição para
bem governar os outros. Esse homem aprimorado é aquele ser moral, que saberá
que conhecimentos buscar para ser um bom governante, um bom dançarino ou um
bom sapateiro.
Trata-se, portanto, de rever suas ações, recorrendo à memória, através de
relatos do cotidiano, refletindo sobre elas e realizando-as de modo mais aprimorado.
É possível perceber a autoformação, pois Marco Aurélio constrói sua
narrativa, relatando suas ações, havendo necessidade de recorrer à memória, e faz
reflexões sobre suas ações para, no dia seguinte, realizá-las de modo mais
aprimorado. Suas narrativas incluem desde atividades cotidianas, relacionadas ao
trabalho, ao labor, até os cuidados consigo próprio, indicando uma preocupação com
o cuidado com a educação e o cuidado com a saúde.
Foucault compara textos de Sêneca e Marco Aurélio, que exploram
“movimentos” para a apreensão da sabedoria. Enquanto Sêneca propõe uma visão
do topo do mundo, olhar de cima, e de “fora”, para assim saber o seu lugar, a sua
posição, em relação ao mundo e às coisas, Marco Aurélio propõe ir ao cerne mesmo
do sujeito. Foucault nos mostra o deslocamento para duas polaridades, ambas em
busca de saber: saber de conhecimento e saber espiritual.
O deslocamento, que Marco Aurélio realiza, permite ao sujeito ir à busca do
seu reconhecimento, do seu “valor”, sua relação, sua dimensão própria dentro do
mundo e assim, sua importância e seu poder real sobre o “sujeito humano, enquanto
livre”. No “ser” livre encontra em sua liberdade o modo de “ser”, o ser de felicidade e
de perfeição, pois encontra a si próprio no mundo.
Esses “movimentos” são deslocamentos, ou seja, é sair do lugar, mover-se
para buscar seu valor, é reconhecer-se como sujeito para só então poder
transformar-se. Olhar para si, como propõe Marco Aurélio, e conhecer a si mesmo
50
cada vez melhor, para poder tomar posição frente ao mundo, é espiritualizar-se. O
olhar de “fora” e de cima é perceber-se no mundo. É saber sua posição e mudá-la
conforme sua necessidade e vontade. Mas, conhecendo o mundo que o cerca é que
se pode interagir com ele, aí a necessidade do conhecimento.
Segundo Foucault (2006), o “cuidado de si” já não é mais apenas para o
jovem que quer governar, nem só para os filósofos, mas para todos os cidadãos de
Atenas ou não. Não se restringe apenas à sabedoria ou conhecimento, não
permanece apenas no nível do pensamento, mas torna-se também um ato, uma
ação, a qual Foucault denomina “técnicas de si”. O cuidado ou o cuidar pode
significar, portanto, uma construção, uma produção, a criação própria mesma do
sujeito que se cuida, buscando dentro de si suas próprias necessidades e desejos
de uma vida de felicidade.
O cuidar-se de si, como uma atividade ascética, não só para os jovens, na
sua ascensão política, mas para todos, inclusive os velhos, cidadãos atenienses ou
não, invade os séculos I e II da era Cristã.
Essa busca, como descrito em Marco Aurélio, esse deslocamento, que
Foucault denomina como saber espiritual, aos poucos, vai sendo encoberto pelo
saber de conhecimento, sendo finalmente apagado nos séculos XVI e XVII.
Para Ayres (2004), na modernidade, o cuidado de si constitui um conjunto de
técnicas laboral, elaborado e receitado pelos próprios médicos. São receitas e
conselhos orientados aos pacientes que cuidem de sua alimentação, do seu sono,
da vigília, da atividade física, da meditação, do lazer, etc.
A partir de então, o saber fica condicionado, subordinado. Aparecem as
regras, os métodos, as leis da ciência que se infiltram na política, nos modos de
produção e na vida socioeconômica das pessoas. Uma subordinação que consegue
afastar qualquer manifestação de subjetividade, agravado pelas relações de poder,
que bloqueiam a passagem para a autonomia, tirando do homem o controle de sua
própria vida.
Observa-se o esforço de Foucault em resgatar, dos textos antigos, uma
cultura de cuidado que não é prescritiva, que favorece o conhecimento de si mesmo
e de suas necessidades, tanto do homem, no exercício da sua vida pessoal, quanto
no bom exercício de qualquer função. O cuidado aparece como um saber popular,
51
em que as pessoas buscavam compreender a si mesmas e cuidando de suas
próprias necessidades. Isso envolve tratar de cuidar da alma e educar-se. Esse
movimento simultâneo refere-se ao evitar ou compreender seu próprio sofrimento,
operando sobre si mesmo no esforço de livrar-se dos males.
Foucault (2006, p. 79) desenha a transformação pela qual o cuidado passa
para “cuidado de si”, desde Alcibíades, nos diálogos de Platão, até o inicio dos
séculos I e II da nossa era, caracterizada por ele como: “uma verdadeira idade de
ouro na história do cuidado de si”.
Aparecem, em Alcibíades, aspectos que determinam o cuidado como razão
de ser e forma de cuidado. Isso se evidencia nas orientações encontradas, onde
aquele que deveria se ocupar de si mesmo era o jovem destinado a exercer o poder,
cujo objetivo era o bom exercício do poder e a forma exclusiva, onde ocupar-se de si
mesmo é conhecer a si próprio.
Foucault (2006) observa que há uma mudança da ideia de os que deveriam
ocupar-se de si não eram mais, exclusivamente, jovens políticos, mas todos
poderiam fazer isso, sem importar-se com a idade ou o status, não existindo mais o
único objetivo de bem governar os outros, mas o cuidado tem o fim em si mesmo.
Para Alcibíades, o objetivo do cuidado era o próprio cuidado, mas o fim era a cidade,
mais tarde, o “si” torna-se objeto e fim. A característica exclusiva do cuidado de si se
atenua e torna-se co-extensivo à vida, em um conjunto mais vasto, o que podemos
chamar de conversão, conhecer o verdadeiro, libertar-se em um movimento que
pode nos conduzir para um olhar mais amplo de mundo e de viver.
Com Alcibíades, Platão apresenta a passagem da adolescência à fase adulta
como o momento de se ocupar de si mesmo, idade em que o moço deveria passar
do erótico ao político. Após Platão, o cuidado deveria ser permanente. Mesmo antes
do século I, encontramos essa concepção nas palavras de Epicuro:
Quando se é jovem, não se deve hesitar em filosofar e, quando se é velho, não se deve deixar de filosofar. Nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para ter cuidados com a própria alma. Quem disser que não é ainda, ou que não é mais tempo de filosofar, assemelha-se a quem diz que não é ainda ou não é mais tempo de alcançar a felicidade. Logo, deve-se filosofar quando se é jovem e quando se é velho, no segundo caso (...) para rejuvenescer no contato com o bem, para a lembrança dos dias passados, e no primeiro caso (...) a fim de ser, embora jovem, tão firme quanto um idoso diante do futuro. (Epicuro apud Foucault, 2006, p. 108)
52
Observa-se, aqui, que o sentido de filosofar é o cuidar de si, isto é, a
felicidade de ser feliz na presença de si próprio. A vida na velhice pode tornar-se
mais feliz. O exercício de filosofar, o esforço de reflexão é prática para qualquer
etapa do viver. Na juventude, se apresenta como cuidado em que a constante
análise e revisão de suas ações produz um modo de vida que será benéfico para
etapas posteriores – como na velhice, por exemplo.
Na velhice o exercício do filosofar, do rememorar os dias passados, o refletir
sobre o patrimônio biográfico pode acarretar uma espécie de “rejuvenescimento”
pelo contato com o bem, pela firmeza do pensar e do agir. Para Foucault (2006, p.
108), o ato de cuidar-se, de voltar o olhar para si é o auto-exame. Indica também
para a ideia de movimento que aponta a conversão do olhar, uma espécie de
vigilância necessária a si, fazendo um “movimento global da existência que é levada,
convidada a girar, de alguma maneira, sobre ela mesma e a dirigir-se ou voltar-se
para si. Há também um outro olhar que envolve a questão de dar prazer a si mesmo,
satisfazer-se”.
Esta alteração faz do cuidado de si um corretivo, além de formativo. A
formação que se seguiu mudou de forma: no lugar da formação profissional deu –se
lugar à formação para que se suporte, de maneira adequada, os problemas da vida;
é um mecanismo de segurança. Para Foucault (2006), citando Alcibíades, no final da
adolescência, é necessário, preferencialmente, a formação, e na idade adulta,
conforme observa Sêneca “é preciso a correção”, ou seja: a crítica.
O corpo torna-se também, objeto de preocupação; ocupar-se de sua alma é
ocupar-se de seu corpo. Tanto no “ocupar-se” como no “preocupar-se”, o fim deve
ser a alma. Finalmente, tem-se o conceito de velhice que deixa de ser somente o
casal sabedoria/fraqueza para ser definida como a recompensa de toda a vida -
diferentemente do cristianismo, onde a recompensa se encontra além da vida.
A autonomia do registro da fala das coisas se funde numa experiência trágica,
na qual a problemática da linguagem, como pensamento de fora, foi enunciada de
maneira eloquente nos discursos foucaultnianos. O que foi fascinante em Foucault e
que neste instante nos faz pensar na possibilidade da existência da linguagem,
como uma forma de exterioridade do sujeito, mas na qual, em contrapartida, existiria
pensamento de fato, não obstante o atributo de exterioridade.
53
Portanto, a palavra, o encantamento que promove o cuidado da alma e a saúde
integral, é o remédio indicado pela filosofia platônica. Assim como um medicamento
mal empregado pode gerar doenças, pode mascarar uma patologia, a palavra mal
empregada também o pode. Daí a necessidade de conhecimento da Ideia, forma
perfeita, para o correto uso do pharmacon, segundo Platão. Já para Hipócrates, é o
conhecimento das circunstâncias, Dos ventos, águas e regiões3 da organização da
sociedade, da natureza e dos hábitos do indivíduo, e não de um princípio universal,
que garantirá o emprego correto de um pharmacon, seja ele uma dieta, um remédio
ou uma palavra.
Se o pensar é o exercício da alma e a palavra o seu remédio, tendo como
objetivo o equilíbrio natural, o cuidado é necessário antes mesmo da manifestação
de uma enfermidade. Daí a necessidade constante de uma dieta adequada,
considerando que o conceito de dieta não se aplica apenas à organização dos
alimentos, mas a todo um regime de vida, incluindo o exercício do pensar, e do
diálogo provocativo ao pensar, para a manutenção da saúde integral – corpo, alma,
sociedade e natureza.
2.2 O cuidado: uma relação dialógica entre dois sujeitos
É inegável que o arcabouço científico e tecnológico dos tempos atuais tem
trazido grandes ganhos à produção de saúde. A erradicação e o controle de
algumas doenças, entre outras conquistas, só foram possíveis porque o homem teve
necessidade, curiosidade, ousadia e coragem. Porém sabe-se que somente a
aplicação de técnicas e a utilização de tecnologias não tem sido suficiente para o
cuidado com a saúde.
Tem-se discutido, desde os finais do último século, até que ponto a
exclusividade da ciência e da tecnologia tem favorecido o homem, principalmente no
que diz respeito à qualidade de vida. Técnicas, segundo Lalande (1999), citado por
Ayres (2000, p.118), são consideradas como “conjunto de procedimentos bem
3 Título de texto de Hipócrates, onde é relatada a necessidade do médico conhecer o ambiente
(ventos, água e regiões), a organização da sociedade, os hábitos, e diversos dados imprevisíveis para prescrever um tratamento adequado ao paciente/doente.
54
definidos e transmissíveis, destinados a produzir certos resultados considerados
úteis...”.
O ato de cuidar não pode estar restrito à mera aplicação de técnicas. Há algo
mais que caracteriza o cuidar. A objetividade no cuidado transforma, em ato
mecânico, aquilo que deveria ser humano, carregado de vida. A exemplo de uma
sutura de um corte acidental na pele, a primazia da técnica pode representar um
diferencial quando pensamos na contenção do sangramento, na aceleração e
estética do processo de cicatrização, na prevenção de infecção, nos custos para o
sistema de saúde. Mas estamos pensando ou, ainda, se quisermos, refletindo
somente sobre os objetos: ferida e técnica. O paciente pode também pensar que foi
bem cuidado, se considerarmos o entendimento do cuidar, culturalmente enraizado
na nossa sociedade, e voltará à sua rotina normal, tão logo saia do pronto
atendimento.
Mas, considerando outros aspectos que envolvem a subjetividade dos sujeitos
pacientes, podemos refletir sobre as circunstâncias em que ocorreu o corte: ocorreu
em casa, no trabalho, em espaço público? O que fazia o paciente quando se feriu?
Era possível prevenir? O acidente é recorrente? Poderá ocorrer novamente?
Como se sentiu o paciente no momento do acidente? Como se sentiu durante
o atendimento médico? Teve medo? Sentiu dor? Qual a reação do paciente à dor?
Poderá voltar imediatamente ao trabalho e às suas atividades cotidianas
normalmente? O que pode representar o eventual afastamento do trabalho para o
paciente? O que representou o procedimento médico para o paciente? O paciente
terá condições de cuidar do curativo em casa? Apenas refletir sobre esses aspectos
ainda assim não se instala o cuidado. O cuidado só se instala quando “o outro”
estiver presente na reflexão e algo é feito por ele, no sentido de diminuir sua
angústia, suas dores física e de perda, dar apoio, encorajar, assegurar seus direitos,
enfim, fazer tudo o que for necessário para que enfrente seu problema com o menor
sofrimento possível.
O cuidar deve incluir o outro, ter como base a escuta, o olhar interessado e
preocupado, a palavra que conforta, o toque que acalma. É, portanto, por meio do
diálogo que estabeleça confiança mútua e esperança que se pode dar início ao
processo terapêutico. Segundo Paulo Freire (2005, p. 115), o diálogo comunica, liga,
55
levando os interlocutores à busca de um caminho em comum. É diferente do
antidiálogo “que implica em relação vertical”, tornando-se “comunicado” e não
comunicação. (Freire, 2005, p.115)
Para Ayres (2004), o cuidado humanizado ou integralidade refere-se a um
conjunto de princípios e estratégias que norteiam, ou devem nortear, a relação dos
sujeitos, o paciente e o profissional de saúde que o atende.
Cuidado humanizado é o que permite o paciente expressar sua “humanidade”
que é o “ser” ele mesmo. Um ser que sente angústia, tristeza, raiva, alegria,
esperança, fé e ainda é constituído por um processo sócio-histórico singular. O
profissional deve ser e estar sensível para acolher todas essas manifestações. E é
pela sensibilidade e abertura que será possível olhar o paciente, do ponto de vista
dele mesmo, compreender o que pensa sobre a doença, sobre seu corpo, sobre a
vida e sobre sua própria vida.
A relação que se estabelece tem como fim a boa qualidade de vida do
paciente, pois é o que todos buscam: a vida boa. Uma vida que possa ser construída
por cada um, sem os condicionamentos externos que pressionam, oprimem e
angustiam, abortando os projetos de felicidade e os sonhos, causando sofrimentos
que se manifestam no corpo físico.
Costa (2004) diz que “a doença é o lado sombrio da vida”. Citando Sontag
(1984), diz que as pessoas possuem dupla cidadania: “uma no reino da saúde e
outra no reino da doença” e seus direitos devem ser reconhecidos nas duas
condições.
Ayres (2004) propõe o resgate dos projetos de felicidade, adormecidos no
paciente, como proposta de sensibilização do paciente para a percepção de si
próprio, resgatando sua autonomia para, assim, participar ativamente do processo
terapêutico. Propõe também utilização de novas práticas que sensibilizem para o
diálogo, como a expressão artística e corporal ou outras terapias que possam
contribuir para o processo terapêutico. Neste lugar a narrativa se encontra como
forma de resgate de si mesmo, partindo do pressuposto que, quando há
autopercepção, há também possibilidades de engajamento no projeto terapêutico e
isso incentiva a continuidade de seus projetos de vida. Isso implica a necessidade
de um diálogo mais amplo, que ultrapasse os limites individuais e alcance o coletivo.
56
É em torno desse ponto que, segundo Ayres (2004), a necessidade de
integração da técnica com a prática médica, deixa em evidência os sentidos da
integralidade da atenção à saúde. A atitude reducionista do médico, que atende o
paciente, valorizando apenas o aspecto biológico, cuidará apenas de eliminar a
doença que poderá reincidir, se não forem “corrigidos” os fatores que a
desencadearam. Porém, quando disposto a ampliar o seu espectro de ação, o
médico se defronta com problemas que não são especificamente médicos, mas que
não o isentam de participar das resoluções. Esta participação é a ação esperada do
médico que integra, à sua prática, o interesse, a responsabilidade pela saúde do
paciente. Quanto mais se compreendem as necessidades de saúde do paciente,
mais aumenta o grau de responsabilidade sobre o paciente, embora a autonomia
deva ser sempre garantida, o que implica a manutenção da comunicação, do
diálogo, do vínculo.
Portanto, o cuidado é uma ação dependente de encontros entre sujeitos e que
pode ser potencializado, por meio de ações coordenadas com esferas mais amplas
(não só por esferas mais amplas). Cuidar não é “produzir” saúde ou consertar um
corpo que não funciona bem. É ajudar o paciente a tornar-se autônomo e a trilhar
seus próprios caminhos, por meio da razão que o conduzirá à felicidade. É então
uma ação também pedagógica, pois movimenta e transforma. Transforma o paciente
e transforma o médico, pois em cada movimento, há um encontro e, em cada
encontro, um aprendizado.
Embora Ayres (2004) se preocupe com as relações diretas entre profissional
e paciente, de como desenvolver saberes que transcendam a simples eliminação de
doenças, aponta também para as várias dimensões que possibilitam ou limitam o
estabelecimento destas relações sujeito-médico e sujeito-paciente, como as
gerenciais, econômicas e políticas. Isso posto, acredita-se que o cuidar parte de uma
esfera micro, da relação dialógica, e que depende de esferas mais amplas, que
funcionam como coadjuvantes, tendo como foco o sujeito do cuidado.
O cuidado é o elemento que permeia as ações humanas, em busca de uma
vida plena, com dignidade. Uma busca que não é solitária, individual, ela é sempre
compartilhada, pois não somos onipotentes, nem pluripotentes, mas somos todos
potentes. Dependemos uns dos outros, no âmbito familiar, comunitário, social que se
projeta cada vez mais para o global, planetário. Acredita-se ainda que aprender a
57
cuidar do outro implica, primeiro, aprender a cuidar-se. É necessário sentir-se
acolhido, incluído, apoiado, amado para apreender o cuidado e somente na
interação entre os homens é que são possíveis tais sentimentos. Se, para Paulo
Freire, aprendemos no convívio social é socialmente que se aprende a cuidar de si e
do outro.
O resgate da subjetividade, da espiritualidade, em voga no meio acadêmico,
nos leva a buscar novos horizontes que conciliem os saberes técnicos com os
saberes práticos. Não se trata de voltar no tempo, mas de seguir em frente, com a
mesma necessidade, curiosidade, ousadia e coragem de outrora com que se
venceram os dogmas ao longo da história.
2.3 A formação do docente em Medicina: as dimensões técnicas, éticas e
estéticas do cuidado
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma ideia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome. Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada. De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: “Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”. (Boff, 2004, p. 46)
Esta fábula – O Mito do Cuidado – é de Higino, escritor romano de 64 a.C.
Trata-se de uma narrativa que apresenta significados para a área da saúde. A
linguagem poética sugere uma leitura sensível, possibilitando o perscrutar de
significados que podem acercar o assunto em questão. O personagem Cuidado
aparece aqui como aquele que recebe a incumbência de acompanhar o homem por
toda a sua vida.
58
A palavra Cuidado sugere uma concepção de cura, assistência, preocupação
e atenção, elementos necessários que são dispensados àqueles com quem nos
relacionamos.
O Cuidado deve ser desprovido de discriminações e preconceitos que sejam
empecilhos, que causem barreiras às pessoas. Nas palavras de Saturno, como
Cuidado antecede a Júpiter e a Terra, é dele a tarefa de assistir o homo – feito de
tão delicado material, o húmus, acompanhando-o, conservando sua vida e
apoiando-o enquanto ele viver. O Cuidado o fez com zelo o que supõe uma atitude
sensível, amorosa. Essas dimensões são constitutivas do ser humano. Por isso,
Saturno pondera que Cuidado acompanhará o ser humano por todo o tempo em que
viver, por respeitar sua fragilidade e tudo, sendo feito com cuidado, será bem feito.
Segundo Boff (2004) o ethos que cuida e ama é terapêutico e libertador,
curando, serenando o futuro e criando esperanças. Na contemporaneidade, é
necessário repensar valores no meio das práticas racionalistas e técnicas e resistir à
apatia e à indiferença. A formação necessita insistir na abertura de espaços para a
educação que incentive as potencialidades do ser humano para que as práticas
sejam técnicas, sem que seja esquecida a arte do ser e do relacionar-se com o
humano.
Fica evidente a conexão que pode ser feita com o profissional da saúde, uma
vez que o cuidado deve ser constante, aperfeiçoado e diligente. Daí se infere a
importância da reflexão sobre a competência das ações práticas que dão suporte à
vida das pessoas, compreendendo-as no contexto da formação profissional que
tenha em vista o entrelaçamento de contextos sociais e políticos e a
responsabilidade e repercussão destas ações.
Durante a formação no curso de Medicina, talvez os alunos tenham
oportunidades consideradas satisfatórias, no que diz respeito ao contato com a arte.
Esse contato com a arte desenvolve a habilidade da educação da sensibilidade. Mas
a emoção é discutida apenas do ponto de vista biológico e psicológico, meramente
fisiologista como mecanismo de proteção e manutenção da vida. Não se discutem
quais suas potencialidades nem como recursos para melhor desenvolvimento de
atividades. Não se trata de dar um aspecto utilitarista para a emoção e a sensação,
59
mas como através dela nos relacionarmos de modo mais natural e menos formal
com os pacientes e as pessoas com quem convivemos.
Renan Tavares (2005), professor de Teatro, adverte seus alunos, alegando
que, entre os universitários, num processo de ensino e aprendizagem em artes, é
necessário considerar as dimensões do corpo, do organismo, da inteligência, todos
envolvidos no processo. Tais fatores entram em jogo para que o conhecimento
penetre e modifique o ser humano, o que só é possível porque as dimensões
emocionais fazem parte do verdadeiro processo de construção do conhecimento.
Se as artes utilizam a dimensão emocional, um mecanismo fisiológico, com um
instrumento potencialmente desenvolvido para interagir com o público, pergunta-se o
porquê da formação universitária, em Medicina, estar baseada apenas na razão,
descolando-a da emoção.
Na disciplina Ética, Estética e Educação, realizada durante o Mestrado em
Educação, vimos a importância da arte na formação. Chamou-nos a atenção a
utilização de procedimentos de ensino e aprendizagem que levam à Educação de
sensibilidade (Ferreira-Santos, 2004). Procurando caminhos que resgatem as
relações humanas, as artes podem ser um caminho possível para resgatar a
dimensão estética do cuidado, sem negar a importância do saber técnico.
A arte pode levar ao resgate da essência do cuidado, em sua dimensão
estética. A ética pode, com a institucionalização do cuidado, resgatar o respeito à
dignidade humana, que foi perdida. A dimensão estética do cuidado baseia-se na
necessidade da sensibilidade, como norteadora das ações. A sensibilidade, que
perpassa a emoção, deve estar presente no agir, no pensar, no falar, no tocar. Pela
sensibilidade, deve-se considerar também o paciente como um sujeito humano,
capaz de ter sentimentos.
A sensibilidade é construída na relação, nem sempre se dá através da
verbalização e com objetividade. Muitos não conseguem se expressar de modo
verbal. Principalmente, em Unidades de Terapia Intensiva, existem necessidades,
que o profissional da saúde pode pressupor, mas aquilo que não é pressuposto, não
será atendido. O agitar-se no leito deve ter um significado. Assim como os sinais e
sintomas como sudorese (suor excessivo) e expressões faciais.
60
Isto circunscreve a hermenêutica, no campo de um saber, que ajuda a
considerar cada situação como um falar. Para Heidegger (2002), linguagem é o
próprio existir. Este olhar que procura significar, que busca compreender os sinais
corporais é o aspecto que precisa ser desenvolvido na formação. Não de modo
rígido, enquadrando os sujeitos, classificando-os a priori, mas compreendendo o
falar do sujeito em seu contexto.
A dificuldade de educar um olhar de sensibilidade nas ações pode estar na
ausência das artes na formação. A música, a literatura, a pintura, entre outras
formas de arte, são necessárias para o desenvolvimento da sensibilidade. As
relações humanas também despertam nas pessoas vários sentimentos: de amor, de
ódio, de alegria, de tristeza, de fraternidade, de desavença, de solidariedade, de
individualismo.
A dimensão ética baseia-se no respeito humano. Embora tenhamos ideia do
coletivo, temos que considerar as minorias, muitas vezes, sem voz. A exclusão,
frequentemente, se dá por diferenças de gênero, raça, cor e crenças. A ética do
cuidado refere-se ao poder fazer pelo paciente, sem que se tome dele sua
autonomia, sua liberdade. Tratá-lo também como sujeito do cuidado, respeitando
seus desejos, seus projetos, suas crenças. É compreendê-lo como ele é, e aceitá-lo.
O respeito vai além das relações do homem como ser gregário. O agir ético
não envolve uma relação direta entre os homens, mas nas posições que se toma
diante da vida. Assim, a ética parece algo abstrato e o cuidado, na sua dimensão
ética, será fugidio, se não estivermos presentes nas nossas ações.
O cuidado tem como base o respeito e amor ao próximo e a consciência de
que as ações são norteadas pelos conhecimentos adquiridos. Freire (2002) aponta,
como característica da ética, a concretude, estando presente, inclusive, na
capacidade de se indignar com as injustiças que acontecem no mundo ao redor.
Portanto, a ética e o cuidado podem parecer abstrações ou conceitos vazios,
se não estiverem articulados com ações concretas no cotidiano de cuidar. Em outras
palavras, pode-se falar muito sobre uma coisa e não ter uma prática respeitosa
coerente com o que se fala.
Nos diálogos possíveis entre educar e cuidar na formação do docente em
medicina, pode-se considerar Freire (2005), para quem a educação deve libertar o
61
sujeito de situações de opressão, tornando-o livre para tomada de decisões de
acordo com sua vontade, necessidade e crenças. E é pelo diálogo que o ser
humano vai se fazendo ser no mundo com outros sujeitos, com autonomia, na busca
do seu próprio conhecimento, para compreensão do mundo e para construir-se no
mundo.
A abordagem dialógica, de Freire (2005) valoriza a cultura e o saber popular,
fazendo crítica ao desenvolvimentismo e à mecanização imposta pelo ensino
bancário, privilegiando a lógica dos donos do poder econômico, político e cultural.
Essa abordagem “influencia profundamente uma geração de educadores e
profissionais de Comunicação em Saúde” (Rozemberg, 1994, p.758). Ayres (2004)
discute as práticas dos profissionais de saúde que extrapolam a visão biologicista da
doença, considerando que técnicas e procedimentos, protocolos de tratamento
cientificamente comprovados, receitas e orientações não são suficientes para
debelar as doenças.
Um novo olhar para o cuidado contribui para entender melhor seu significado e
repensar as práticas de saúde. Para Ayres (2004, p.19), a saúde é muito mais que o
simples restabelecimento do funcionamento do corpo. Ela não é algo abstrato como
“estado de completo bem-estar físico, mental e social”, como afirmava a
Organização Mundial de Saúde, nos anos 70. Conceituar saúde como “estado” e
“completo”, ainda, segundo Ayres (2004), remete à imobilidade e à completude,
impossibilitando movimentos de reconstrução contínua. A experiência vivida,
valorada positivamente, geralmente, independe de um completo bem-estar e perfeito
funcionamento do corpo. De acordo com Ayres (2004), essa referência à relação
entre experiência vivida e valor orienta, positivamente, a vida com a concepção de
saúde, que parece ser o mais essencialmente novo e potente nas recentes
propostas de humanização.
Nesse sentido, a saúde compreendida como valor estabelece o humano como
ser de cuidado. Quem cuida e quem é cuidado, eticamente, é o ser humano. Por
isso, o cuidado é um valor para a saúde. O conceito de valor implica, na dimensão
relacional, o estabelecimento de relações entre os bens e a vida humana
(Abbagnano, 1982; Valori, 1997). O cuidado é um valor que promove o bem do ser
humano, sendo necessário na relação do ser humano com a saúde, elemento
essencial para a vida. Diante da falta de cuidado com a saúde, a vida é maltratada.
62
Outros valores que aparecem são: a responsabilidade, a corresponsabilidade,
a autonomia e o diálogo. Estes são valores que vêm da capacidade que o ser
humano possui de ser sujeito de seus atos, de fazer escolhas, de viver essa
capacidade com os outros e pelos quais o médico deve pautar sua relação com
outros profissionais, com o paciente, com a comunidade e com a sociedade.
Os valores éticos, estéticos e políticos devem permear todo o processo de
educação e saúde. Tal visão requer uma prática docente diferenciada, em
consonância com uma formação médica também diferenciada, crítica e reflexiva,
guiada por valores. Para Freire (1980), a consciência crítica parte da compreensão
do ser humano como ser no mundo, ser de relações, ser finito, ser inacabado, ser
inconcluso.
Essa visão de educação assume a concepção de formação como processo, o
docente respeita o ritmo do educando. Nesse movimento ensino-aprendizagem, o
sujeito vai construindo sua capacidade de reflexão e crítica, fazendo escolhas à
medida que vai por si mesmo desenvolvendo a sua autonomia, como cuidado da
vida. A perda da visão mais integral de ser humano e a falta de conexão entre as
dimensões do humano, necessárias para a formação, podem ser consideradas como
a falta de cuidado, a falta de visão sobre a condição essencial do ser formado do
“húmus”.
Um novo paradigma emerge, no seio da contemporaneidade, com uma nova
admiração e cuidado pela natureza, uma compaixão pelos outros em suas
vicissitudes, uma releitura das práticas que melhor atendam aos que sofrem,
marcando uma nova ética civilizacional. Esta ética, com grande repercussão para a
área da saúde, caracteriza-se pela busca de qualidade de convivência e harmonia
nas relações interpessoais, com forte ênfase à educação, com respeito pela
singularidade dos sujeitos, em seus movimentos individuais, envolvendo-os e
integrando-os no movimento coletivo.
Esta visão não desvaloriza a razão, a qualidade técnica, mas, busca equilibrá-
la, dando maior atenção aos sentimentos, ao desenvolvimento da capacidade de
simpatia, empatia, buscando o espaço da dedicação, do cuidado no esforço da
convivência respeitosa com o diferente.
63
3 DIRETRIZES CURRICULARES DO CURSO DE MEDICINA:
LEITURAS E INVESTIGAÇÕES
A sociedade brasileira convive com particularidades históricas e próprias da
formação profissional, na área médica. As Diretrizes Curriculares Nacionais do curso
de graduação em Medicina (DCN, Resolução CNE/CES n.º 4, 7/11/2001) propõem a
humanização da saúde. A resolução outorga às Instituições de Ensino Superior (IES)
maior grau de autonomia para propostas de currículos inovadores, substituindo o
currículo mínimo, e para tomada de decisões administrativas e financeiras.
Aqui caberiam alguns esclarecimentos sobre as diretrizes – talvez algo que
mostre os pontos jurídico, social, pedagógico e algumas conexões possam sugerir o
Cuidado para com a formação. São orientações necessárias para a humanização da
saúde.
Nos Cursos de Medicina, entretanto, ainda persiste o modelo hegemônico de
formação, centrado no hospital e na doença. São currículos fragmentados e
métodos tradicionais de ensino, baseados na transmissão de conhecimento. O
ensino está centrado no professor, que define o conteúdo de sua disciplina, às
vezes, desarticulado da proposta curricular. Os alunos valorizam a especialização,
com instrumentos e equipamentos tecnológicos altamente sofisticados.
No entanto, quanto mais se incorporam os avanços tecnológicos, mais
aumentam os custos na saúde, o que impede o acesso da maioria da população à
saúde. O avanço do conhecimento científico e da tecnologia não se traduz em cura
de doenças tampouco em cuidado. Embora o Brasil possua tecnologias equiparadas
às dos países desenvolvidos, elas beneficiam uma parcela mínima da população,
enquanto a maioria sofre de doenças corriqueiras e de fácil resolução (Machado,
1997).
A tecnologia é indispensável para diagnóstico e tratamento dos pacientes,
mas é necessário atitude ética, que não vem escrita no manual dos equipamentos
nem nas bulas dos medicamentos.
64
As DCN dos Cursos de Medicina preocupam-se com a integralidade da
formação, não apenas com a competência técnica, mas, principalmente, com o
aspecto humano. O objetivo é que se compreenda o ser humano, no seu ciclo de
vida e o processo saúde-doença, a partir dos conteúdos da antropologia, sociologia,
psicologia, filosofia, ou seja, as ciências sociais e humanas, que dão as bases para
realizar a crítica e reflexão sobre a prática médica.
Investigar o sentido do cuidado na formação médica, no contexto da
sociedade brasileira, marcada por tantas desigualdades, parece um problema
pertinente, sobretudo, em tempo de tantas mudanças e transformações culturais. Em
um momento de crise civilizacional, como o definem Morin e Boff, torna-se
imperativo que o profissional docente ensine a cuidar, criando condições e cenários
para que, no espaço de formação inicial, o graduando aprenda a cuidar.
3.1 O Contexto histórico da Reforma Curricular
Um retorno ao passado é necessário para a compreensão da história da
formação médica, prescrita nas diretrizes curriculares do Curso de Medicina. Até o
século XVIII, a medicina era exercida pelos sacerdotes, considerados possuidores
de dons divinos da cura. Seus conhecimentos baseavam-se no misticismo e na
magia, quando muito no empirismo. No século XIX, os avanços dos estudos de
anatomia e biologia e o desenvolvimento positivista comtista das ciências serve de
base para a medicina. Desenvolvem-se assim as escolas médicas.
Em 1910, nos Estados Unidos, Abraham Flexner (Flexner, 1910) realiza um
estudo sobre as escolas médicas daquele país, gerando um documento, conhecido
como Relatório Flexner. Com esse estudo, o ensino nas escolas médicas
americanas passa a ser baseado na ciência, não mais no empirismo, seguindo os
avanços científicos da época. Os conteúdos são divididos em disciplinas, são
criados departamentos e se separa a formação em pré-clínica e clínica. Há ainda a
exigência de formação dentro de hospital-escola. Surge aí a formação
exclusivamente científica, biologicista, curativa, voltada para o atendimento
hospitalar. Esse modelo de formação dá ênfase à biologia, às intervenções por
65
procedimentos técnicos com uso de equipamentos, caracterizando a saúde como
ausência de doença. Ou seja, a eliminação das doenças sobrepõe-se aos cuidados
à pessoa. Ou, ainda, espera-se que o indivíduo adoeça, para depois tentar tratar a
sua doença.
Este modelo acaba por influenciar, mundialmente, a formação de toda a área
da saúde durante o século XX. As escolas médicas no Brasil, a partir da década de
40, passam a seguir este modelo, que persiste até hoje.
Embora tenha sido importante a ênfase científica, este modelo mostra sinais
de esgotamento, quando torna a assistência à saúde muito onerosa e tardia, devido
às tecnologias necessárias e devido ao fato de atender, preferencialmente, os que já
estão doentes (foco na recuperação da saúde). E ainda não consegue atender um
número crescente de pacientes que exigem melhores condições de tratamento e
atendimento.
Segundo Carvalho e Ceccim (2006) e Rego (2003), contribuiu muito para o
processo de compreensão, interpretação e disseminação de saberes e de práticas
relativas ao exercício profissional, para a assistência específica de cada caso, para
eliminação de doenças e prevenção de sequelas, contribuiu para a padronização da
formação em saúde, mas, por outro lado, impediu o desenvolvimento da, hoje
denominada, Saúde Coletiva, mais focada na promoção de saúde e prevenção de
doenças, com base na epidemiologia, sob a óptica do risco e da vulnerabilidade.
Nas décadas de 50 e 60, intensifica-se o Movimento Preventivista,
encabeçado pelos profissionais da Saúde Pública, que se propõe repensar suas
práticas e o papel dos cursos de graduação em saúde, com base nas necessidades
sanitárias da população. No Brasil e em outros países, são incorporadas áreas que
abordam os aspectos preventivos, sociais e comunitários nos cursos de medicina,
enfermagem e odontologia, a partir do desenvolvimento das ciências humanas
(Brasil, 2007). Ao longo do tempo a “saúde coletiva” vai-se incorporando aos
currículos, cada escola a seu modo, criando-se departamentos como os de Saúde
Pública, Medicina Social, Medicina Preventiva, Saúde Coletiva, Saúde e Sociedade
que, até os dias de hoje, agregam conteúdos de epidemiologia, sociologia, filosofia,
antropologia, política e economia, entre outros.
66
A criação da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), em 1962,
estimula o movimento de reforma curricular, que se alinha com a reforma sanitária
na década de 70, com a colaboração de movimentos nacionais e internacionais, que
norteiam a elaboração das diretrizes curriculares que hoje estão sendo colocadas
em prática.
Em 1971, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) cria a Comissão de
Ensino Médico, com o objetivo de avaliar as escolas médicas que já cresciam em
número, atendendo ao mercado capitalista de faculdades particulares,
recomendando sua adequação ou o seu fechamento, na tentativa de garantir a boa
qualidade de ensino.
A Medicina, no Brasil, é baseada nas tendências tecnológica e privativista. É
favorecida e financiada pela própria política de Estado, assim, determina um modelo
de hospital, centrado na técnica curativa, estimulando o movimento de um mercado
de equipamentos e insumos que cresce vertiginosamente. Porém o aumento de
cobertura de assistência à saúde ocorre somente nos grandes centros urbanos,
deixando o restante do país quase sem assistência. A proliferação de escolas
médicas ocorre nesse cenário, favorecida pelos hospitais universitários que também
participam do atendimento dessa demanda ampliada (Mendes, 1987).
Cresce o assalariamento do profissional médico especialista, contratado pelo
setor privado (“grupos médicos”, empresas médicas de convênios), que se torna o
principal “consumidor” de insumos, equipamentos e medicamentos que são lançados
nesse mercado, cada vez mais sofisticado, obrigando o profissional médico a
buscar, cada vez mais, especializações e subespecializações.
As pesquisas científicas voltam-se para a avaliação da eficácia das próprias
tecnologias. Assim, “o modelo hospitalocêntrico se afirma nessa lógica, fortemente
ancorado no conhecimento especializado”, segundo Amoretti (2005), que afirma que
o ensino médico se organiza nessa lógica, fragmentando-se em disciplinas, com
professores especialistas e com a mesma expectativa de especialização, que
fomentará esse círculo vicioso. Os programas de residência médica são também
orientados por esse modelo. No entanto o mercado não consegue absorver a
quantidade de especialistas formados, levando-os à necessidade de ter vários
vínculos empregatícios e subempregos, desvalorizando a profissão monetariamente
67
e deteriorando a relação médico-paciente. O paciente não pode escolher o seu
médico e este não o vê como vinculado a ele; o atendimento passa a representar
uma tarefa a cumprir, tão rapidamente quanto possível.
Ainda, segundo Amoretti, muitos especialistas de várias áreas trabalham hoje
como generalistas no Programa de Saúde da Família (PSF, hoje, Estratégia Saúde
da Família), porém não têm formação adequada para esse tipo de trabalho, que
necessita de educação permanente. Trabalham na mesma lógica hospitalar, onde a
rotina de atendimento da demanda com consultas marcadas em consultórios ainda
prevalece. Com isso, se descaracteriza o programa e não se contribui para sua
eficácia, passando uma imagem negativa da profissão e da saúde como um todo.
Para a sociedade, o modelo de atendimento voltado para o hospital tem sua
importância por beneficiar-se de melhores possibilidades de diagnóstico e
tratamento e melhor eficácia. No entanto é um tipo de assistência muito cara para a
própria sociedade e para o Estado. Um dos maiores problemas é o seu
financiamento, com uma necessidade orçamentária cada vez maior. A grande
maioria da população fica de fora do sistema, pois não há acesso universal nem
equânime.
A preocupação com a promoção de saúde e a prevenção de doenças é quase
inexistente. A maioria da população, devido à grande dificuldade de acesso, só
procura o hospital quando os sintomas das doenças se agravam, chegando às
portas dos prontos-socorros, que também já veem ultrapassado o seu limite da
capacidade de atendimento, quando pouco ou nada há a se fazer; já estão
gravemente doentes.
Não tendo a quem recorrer, temos uma sociedade que não possui uma
cultura de cuidar da saúde como um bem precioso. Com os profissionais de saúde
confinados em hospitais, não há informação sobre saúde que circule em meio à
sociedade. A única fonte de informações é a mídia, que as veicula conforme seus
próprios interesses ou de terceiros e que nem sempre tem o aval da comunidade
médica. Alguns livros médicos são publicados para a população, mas são
publicações para a “elite letrada”. Como queremos que a população cuide da saúde?
Quais espaços ocuparemos para levar informação sobre saúde à população? Pois
68
antes do direito ao tratamento (dentro do hospital) a sociedade tem o direito à saúde
(fora dele).
3.2 Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Superior: desafios para o
Curso de Medicina
A elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos da área da
Saúde e, especificamente, do Curso de Medicina é resultado de um importante
movimento de educadores da área da saúde (Almeida et al., 2007). A proposta de
formação de profissionais com perfil humanístico, crítico e reflexivo é contemplada.
Percebe-se a necessidade de uma formação que propicie não só
competências para o uso de tecnologia e instrumentos sofisticados, mas também
para tomada de decisões, comunicação, liderança, administração e gerenciamento e
educação permanente para a atenção integral à saúde (Brasil, 2007).
O artigo 3.º das Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Medicina
propõe a formação generalista, humanista, crítica, reflexiva, pautada em princípios
éticos, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, e a
promoção da saúde integral do ser humano.
A ideia de formação crítica e reflexiva nasce da área da Educação, que
discute seus fazeres como ação consciente. Assim como em outras áreas, a
formação pela transmissão de conhecimento e sua reprodução no mundo do
trabalho não é suficiente para a transformação da sociedade. Schön (1992) e
Perrenoud (2002) discorrem sobre a necessidade da reflexão e sobre a reflexão na
ação.
Atualmente, muitas escolas médicas vêm reorganizando seus currículos,
buscando o atendimento às Diretrizes Curriculares Nacionais, que orientam para a
busca de novas metodologias de ensino, considerando que a transmissão de
conhecimento, por meio da educação bancária, não é mais suficiente para os dias
atuais. As escolas têm substituído ou complementado os métodos antigos por
métodos de ensino-aprendizagem centrados no estudante e orientados para a
69
comunidade, sendo utilizados: a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) e a
Problematização, utilizando o “arco de Maguerez” (Diaz-Bordenave, 2005).
Volta-se o foco para a Atenção Primária em Saúde, atendendo à necessidade
de formação de médicos conforme orientação da OPAS/OMS. Assim, os espaços de
ensino-aprendizagem devem incluir as Unidades Básicas de Saúde (UBS). Com a
implantação do SUS e com o Programa/Estratégia Saúde da Família (PSF), a partir
de 1994, estas unidades vão sendo estruturadas com Equipes de Saúde da Família
(ESF) compostas por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes
comunitários de saúde, podendo ainda agregar cirurgiões-dentistas, psicólogos,
assistentes sociais e outros, conforme a necessidade local. É uma estratégia do
Ministério da Saúde na tentativa de organizar a porta de entrada do paciente para o
SUS, garantindo a integralidade da atenção. Os outros níveis de atenção são
caracterizados como: atenção secundária em saúde, onde são atendidos os
usuários com doenças já instaladas ou processos saúde-doença em que a atenção
primária não foi suficiente, por necessitarem de equipamentos diagnósticos mais
sofisticados ou procedimentos técnicos incompatíveis com as UBS ou internações
para diagnóstico e tratamento; e atenção terciária, onde se atendem usuários que
necessitam de tratamento de alto nível de complexidade. Os novos cenários de
prática das Diretrizes Curriculares, em seu artigo 12, e seus incisos V, VI, VII e VIII
orientam para a utilização de novos cenários de ensino-aprendizagem.
3.3 O cuidado e a Integralidade da Saúde
Uma das definições da integralidade na saúde é uma das diretrizes do SUS,
compreendida como articulação das ações de promoção, prevenção, tratamento e
reabilitação de modo contínuo, ações essas que não se limitam à atenção primária
em saúde, devendo estar presentes em todos os níveis de atenção. Neste sentido, a
integralidade pretende superar a fragmentação das ações de saúde, deixando de ser
ações pontuais, mas ações que articulam os níveis de atenção. Ainda pode
compreender as ações voltadas para o indivíduo (integrando aspectos biológicos e
70
subjetivos) ou coletividade (as doenças e os processos dinâmicos que as
determinam).
Ainda, dentro do âmbito do SUS, a integralidade representa articulações entre
os profissionais de saúde (compreendendo que individualmente todos os
profissionais são limitados e que não dão conta da complexidade que envolve o
processo cuidativo); entre os setores colaborativos com a saúde (considerando a
qualidade de vida dependente de vários setores que se articulam para garantir a
dignidade de cada sujeito) e também a cooperação entre gestão, serviço, formação
e comunidade.
Para Machado et al., (2007), integralidade é a percepção do sujeito histórico,
social e político, dentro de um contexto familiar que se articula com o meio social e
ambiental. E que, portanto, as ações de cuidado devem englobar ações de saúde e
de educação, como produção de saber coletivo, levando o indivíduo à emancipação
e autonomia para cuidar de si, de sua família e do meio em que vive.
Percebe-se que a integralidade perpassa várias dimensões da assistência à
saúde, no sentido de superar dicotomias e visões fragmentadas. Mas é na
compreensão de Ayres (2000), que o sentido da integralidade interessa neste
trabalho, considerando a integralidade como presente na ação de quem cuida em
função do ser cuidado.
O cuidado como categoria política aparece no artigo 3.º: “O curso de
Graduação em Medicina tem como perfil do formando egresso/profissional, o
médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar,
pautado em princípios éticos...” Neste artigo, aparece o termo “formação humanista”,
portanto a formação deve estar voltada para a vida humana e não só para as
doenças. Ainda, quando traz os termos “crítica e reflexiva”, ou seja, ser crítico em
relação às tecnologias e conhecimentos científicos, refletir sobre sua validade e
melhor modo de aplicação.
Ou ainda pensar criticamente em relação à vida humana, respeitando a
vontade e atendendo a necessidade de cada indivíduo, nas dimensões éticas,
sociais, culturais e existenciais. Ser crítico e reflexivo não significa ser contemplativo,
ou discursivo. A crítica e a reflexão devem levar a mudanças de pensamento e
71
comportamento para transformar a sociedade. A formação crítica e reflexiva deve
exigir uma postura ativa, portanto política.
Portanto, quando nos reportamos ao artigo 5.º, que trata das competências do
profissional, o inciso I diz: “promover estilos de vida saudáveis, conciliando as
necessidades tanto dos seus clientes/pacientes quanto as de sua comunidade,
atuando como agente de transformação social;” . Nestes termos podemos considerar
o cuidado presente, quando aparece como ação crítica e reflexiva, capaz de
transformar a sociedade, por meio de ações para melhora da qualidade de vida.
Porém, quando se propõem, simplesmente, “estilos de vida saudáveis”, a
partir de uma visão científica, sem considerar a subjetividade dos sujeitos, corre-se o
risco de, novamente, impor normas e criar “modelos” os quais parte da população
não alcançará, por razões próprias de cada sujeito. “Estilos de vida saudáveis” diz
respeito à diminuição de riscos à saúde, relacionados a alimentação, atividade física,
tabagismo, alcoolismo, sono e repouso, lazer, etc. Ao “criar” padrões de
normalidade, não se está interferindo nos “modos de vida” e, sim, criando um
“preconceito” contra os que, por vários motivos, não se encaixam nesses padrões.
Bagrichevsky et al. (2010), diz que corremos o risco de estigmatizar e
culpabilizar os que não se “enquadram” e estes, por sua vez, assumirão a culpa. E,
também Anjos (2006), nos provoca com as “perguntas da vulnerabilidade”: a
autonomia de Kant (como capacidade dos seres humanos de imporem regras
morais) é possível para todos? Em não sendo, o que fazer com os que não a
atingem? São marginalizados? Esquecidos? Este é o maior risco que se corre:
deixar de cuidar exatamente dos que mais necessitam de cuidado.
Com o inciso IV, do mesmo artigo, faz um esforço para contemplar o cuidado,
quando recomenda: “informar e educar seus pacientes, familiares e comunidade em
relação à promoção da saúde, prevenção, tratamento e reabilitação das doenças,
usando técnicas apropriadas de comunicação”.
No artigo 6.º, temos:
Os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Medicina devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, integrado à realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações do cuidar em
medicina. Devem contemplar:
72
Inciso V – diagnóstico, prognóstico e conduta terapêutica nas doenças que acometem o ser humano em todas as fases do ciclo biológico, considerando-se os critérios da prevalência, letalidade, potencial de prevenção e importância pedagógica.
Colocado deste modo, quando se diz: “usando técnicas apropriadas de
comunicação” (inciso IV do artigo 5.º) e “importância pedagógica” (inciso V do artigo
6.º), não remete à ideia de um processo pedagógico e sim, apenas, o modo como
informar sobre as condições atuais de saúde ou de doença. Tratam-se apenas de
ações pontuais, em um tempo determinado, de um tratamento ou de uma consulta
médica.
Se para Foucault (2006), cuidar da cidade (ou do outro) implica em,
primeiramente, aprender a cuidar de si, para o médico é também necessário que,
antes de cuidar dos pacientes, aprenda a cuidar de si próprio. O artigo 5.º, inciso
XVIII diz: “cuidar da própria saúde física e mental e buscar seu bem-estar como
cidadão e como médico”. Compreende-se que pode ser um ponto de partida para
ensinar a cuidar, se considerarmos o cuidado como uma construção ao longo da
vida, que se transforma e faz transformar, conforme Ayres (2004) quando explora o
cuidado como categoria ontológica, numa construção filosófica. Como está, parece
não mostrar força, ficando em segundo plano no documento. Prioriza-se ainda o
conhecimento técnico-científico de forma conteudista, em detrimento da formação do
sujeito, médico, cidadão que cuidará de outros sujeitos, cidadãos.
Acredita-se que a formação do aluno consiste em desenvolver-lhe a
consciência de sujeito em contínua formação, portanto voltado ao cuidado de si
próprio, na constituição de si mesmo. Cuidado que implica na sua própria saúde
(pressupondo saúde de forma ampliada); na construção de seus projetos de vida; na
condução de seu modo de vida. Somente compreendendo o cuidado como fator
importante e indispensável, em qualquer momento de decisão ou circunstância de
sua própria vida, é que poderá compreender os fins da atividade médica frente à
vida do outro, que se constitui de forma solidária, em cooperação, com compaixão.
Compreendido isto, será então capaz de busca de conhecimento relevante e
desenvolvimento de habilidade na perspectiva da necessidade do outro, que deverá
ser o maior estímulo para conduta ética enquanto ser que serve a alguém.
Ainda, considerando o cuidado uma ação ética, será capaz de agir com
justiça e proteger o outro das injustiças tanto das cometidas por indivíduos ou
73
instituições. Trabalhará para assegurar o acesso aos direitos para que tenha uma
vida digna e boa. Somente na perspectiva da necessidade do outro, é que será
competente para, numa dimensão maior do cuidado, participar da construção das
políticas públicas de saúde, que garantam a vida com dignidade para indivíduos e
coletividades; gerenciando serviços; organizando a saúde nas dimensões municipal,
estadual e nacional. Desse modo, o cuidado parece ter pouca relevância nas DCN.
A compreensão do significado de cuidar “na perspectiva da integralidade da
assistência” (Brasil, 2001), envolve não só o uso de tecnologia e instrumentos
sofisticados. Na proposta curricular a concretização do eixo da integralidade
compreende a formação dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), na Atenção
Primária em Saúde, junto às Equipes de Saúde da Família. Este é um espaço de
aprendizagem sobre o paciente na sua comunidade, conhecendo sua família, sua
origem, costumes e cultura e condição social, não vinculada apenas ao hospital.
Embora a integralidade possua vários sentidos no âmbito da saúde, para Ayres a
integralidade é a associação da ação humana ao uso das técnicas e tecnologias,
sendo este um dos sentidos atribuído por Mattos (2004). A integralidade
compreendida como cuidado indica ser necessária a escuta de qualidade como
parte da anamnese para, então, orientar o uso adequado da tecnologia . Quando
não ocorre comunicação e diálogo do médico com o paciente, este não se sente
cuidado e os exames e os encaminhamentos são demandados aleatoriamente,
criando filas de espera que interrompem a linha de cuidado.
Para Freire (2005, p. 115), o diálogo se dá na relação horizontal entre os
sujeitos, tendo como matriz o amor, a humildade, a esperança, a fé, a confiança e a
criticidade. Quando é vertical, ocorre o antidiálogo arrogante, “não há comunicação,
há comunicado”. O diálogo diminui as distâncias, as diferenças e resolve os
conflitos. Aprender a dialogar é participar politicamente de decisões coletivas.
Quanto mais o paciente adquire conhecimento, mais é capaz de resolver os
problemas que o afligem, tornando-se cada vez mais autônomo. Quanto maior o
grau de autonomia, maior o grau de responsabilidade, pois as transformações
trazem consequências positivas ou negativas. Quando negativas, é preciso corrigir
os rumos, o que exige novos conhecimentos, nova compreensão, novo rigor para
tomada de decisões, o que torna a educação um movimento contínuo.
74
As inter-relações humanas pelo diálogo dão abertura à participação do
paciente no seu tratamento, como sujeito, que também tem voz, que traz consigo
suas angústias, medos, crenças, sentimentos, o que configura um tratamento mais
humanizado. Mais do que eliminar doenças por procedimentos e medicalização,
Ayres (2004) propõe ouvir na história do paciente seus “projetos de felicidade” que
deem significado positivo a sua vida, abatendo suas angústias, medos e incertezas
que determinam as doenças.
Para Pinheiro (2005), o vínculo se estabelece a partir da responsabilização e
compromisso de “ouvir a voz do outro”, do diálogo entre sujeitos (médico e paciente).
É na escuta do não dito que será possível ouvir os ecos do sofrimento, angústia, dor
e medo, a apreensão dos valores, representações sociais e crenças dos pacientes.
Os ecos darão o norte às práticas de saúde. É na presença do “outro” que as ações
se transformam.
A relação de dependência do aluno em relação ao professor e do paciente em
relação ao médico transforma a educação e a saúde em assistencialismo,
fortalecendo a crença de que as resoluções dos problemas só dependem de ações
alheias a eles. A precariedade do atendimento da população aponta a fragilidade da
formação médica atual, baseada em diagnósticos subordinados ao uso da
tecnologia “dura” no mercado da saúde. Esses impactos advindos das tecnologias
provocam permanentes movimentos sobre a vida de todas as pessoas perante o
desafio das constantes tomadas de decisões em função dos valores de nossos
tempos.
Deve-se levar em conta o “outro”. O cuidado, elemento essencial para a vida,
permeado de sentidos e significados, mostra a interface entre Educação e Saúde. A
autonomia, o diálogo e a responsabilidade devem ser a base da formação de
profissionais na área médica, o que implica uma constante reflexão e crítica das
práticas da formação docente.
A proposta das DCN do Curso de Medicina aponta a importância da
consciência crítica, responsabilidade, autonomia e diálogo, com a busca da
compreensão do lugar do docente, no cuidado da formação de profissionais, que
vivem em meio à rapidez das mudanças. É um desafio para a formação educacional,
requerendo atitudes que reafirmem os valores fundamentais para o ser humano.
75
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer da realização do trabalho, a coleta de dados foi efetuada através
da análise documental proposta. Isto implicou a assunção de uma abordagem
hermenêutica, na perspectiva de Gadamer (1999), na qual se busca a construção de
sentidos e significados, a partir de inferências.
Realizaram-se pesquisas sobre educação e sobre o conceito de cuidado.
Investigaram-se os aspectos necessários para se pensar a formação docente, na
perspectiva do cuidado humano. Examinou-se de que forma o cuidado, como
categoria de análise, aparece nas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de
Medicina (DCN).
Concluiu-se que o sentido de cuidado, nas Diretrizes Curriculares Nacionais
do curso de graduação em Medicina, precisa ser repensado. Propõe-se, a partir
desta reflexão, uma formação humanística capaz de mediar o uso dos
conhecimentos científicos e tecnologias, de modo a responder às necessidades de
saúde de indivíduos e coletividade.
Esta formação humanística torna-se necessária, quando se considera a atual
conjuntura: na contemporaneidade, no âmbito das instituições de saúde, o avanço
tecnológico propicia consequências relevantes. Há uma excessiva preocupação com
a tecnologia e isto propicia a formação de um abismo entre os profissionais da saúde
e os pacientes. Assim, há, inegavelmente, o esvaziamento humano do conceito de
cuidar, nas práticas profissionais usuais entre profissional e paciente. É, nessa atual
conjuntura, que a formação humanística torna-se imprescindível.
É possível que se consiga uma formação humanística, pelo método
biográfico, que surgiu como reação ao domínio positivista das ciências e se
contextualiza no pensamento hermenêutico. Tal perspectiva aponta para o
entendimento de que as narrativas autobiográficas provocam processos de tomada
de consciência que são emancipatórios, tanto para o indivíduo como para a
sociedade.
76
No movimento de compreender as próprias vivências e experiências, o
indivíduo atribui sentidos às informações que lhe chegam, advindas do mundo em
que vive. Assim, no processo formativo, o indivíduo manifesta, quando interpreta o
mundo, sua conexão com o conjunto de atividades educativas, com a tomada de
consciência, realizando a reflexão retrospectiva na reflexão presente.
As narrativas, no método biográfico ou de histórias de vida, constituem um
percurso de autoformação, que parte do singular, enquanto busca a si mesmo, para
o universal, enquanto busca sua posição no mundo.
Assim, a historicidade é de suma importância porque, ao partilhar com os
outros as possibilidades do fazer e do formar-se, o sujeito compreende-se inserido
nos projetos da educação, dando uma conotação de cuidado, necessário ao
processo educacional humanizador e libertador. Trata-se da passagem da
“consciência ingênua” para a “consciência crítica”, da proposta da autonomia
relacional, que se constrói num processo de relações interpessoais, que se tornam
educativas para ação independente e adulta.
Embora a educação seja uma atividade cujo objetivo é o desenvolvimento do
ser humano, em suas potencialidades e possibilidades, houve uma distorção, devido
ao crescimento industrial. A prioridade passou a ser a formação para o trabalho,
deixando, em segundo plano, a formação humana.
Importa, agora, que se priorize uma formação integradora. O sujeito da
formação se movimenta, quando toma consciência e se apropria de conteúdos
significativos, através de atividades e aprendizagens, em qualquer espaço social. Há
estímulos à autoformação, a partir das descobertas dos indivíduos, efetuadas na
intimidade do seu mundo interior ou na relação com os outros.
A formação integradora será satisfatória, sobretudo, se houver o contato com
a arte. Esse contato com a arte promove o desenvolvimento da habilidade da
educação da sensibilidade. Entretanto a emoção precisaria ser discutida como
mecanismo de proteção e manutenção da vida. Não se trata de dar um aspecto
utilitarista para a emoção e a sensação, mas de exercitar uma forma pela qual,
através delas, seja possível o amadurecimento emocional para aprimorar o
relacionamento humano.
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A ausência das artes na formação do indivíduo pode propiciar a ausência de
um olhar de sensibilidade para o outro. A música, a literatura, a pintura, entre outras
formas de arte, são necessárias para o desenvolvimento da sensibilidade.
Os valores éticos, estéticos e políticos devem permear todo o processo de
educação e saúde. Tal visão requer uma prática docente diferenciada em
consonância com uma formação médica também diferenciada, que será guiada pela
reflexão e pela sensibilidade, na determinação da hierarquia de valores.
Além disso, é possível que se conclua que o cuidado norteia as práticas que
envolvem tanto ações de Educação como de Saúde ou mostra-se como sendo, ele
mesmo, parte dessas ações. O cuidado deve ser compreendido como solicitude,
diligência, zelo, atenção e bom trato.
O cuidado supõe a atitude de desvelo e de atenção para com o outro. Ele
supõe ainda a inquietação e a preocupação, pois a pessoa que tem cuidado se
sente envolvida e, afetivamente, ligada ao outro.
O cuidado de si aparece como o primeiro despertar. Conhecer-se a si mesmo
significa buscar o Eu, que se deve cuidar para bem cuidar dos outros.
No decorrer da pesquisa, percebeu-se que o ato de cuidar não pode estar
restrito à mera aplicação de técnicas. Há algo mais que caracteriza o cuidar. A
objetividade no cuidado transforma, em um ato mecânico, aquilo que deveria ser
humano.
Nas Diretrizes Curriculares do Curso de Graduação em Medicina, afirma-se
que o graduando deve ter formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Deve
estar capacitado a pautar sua atuação em princípios éticos. Aqui, aparece o termo
“formação humanista”, portanto a formação deve estar voltada para a vida humana e
não só para as doenças.
A compreensão do cuidado como fator importante e indispensável, em
qualquer momento de decisão ou circunstância da própria vida, poderá propiciar o
entendimento da finalidade da atividade médica, frente à vida do outro: ela se
constitui em forma solidária, em cooperação, em compaixão.
O cuidado é um elemento essencial para a vida. É permeado de sentidos e
significados e mostra a interface entre Educação e Saúde. A autonomia, o diálogo e
78
a responsabilidade devem ser a base da formação de profissionais, na área médica,
o que implica uma constante reflexão e crítica das práticas da formação docente.
Na contemporaneidade, muitas escolas médicas vêm reorganizando seus
currículos, buscando o atendimento às Diretrizes Curriculares Nacionais, que
orientam para a busca de novas metodologias de ensino, considerando que a
transmissão de conhecimento, por meio da educação bancária, na conjuntura atual,
não é adequada. As escolas têm substituído ou complementado os métodos antigos
por métodos de ensino-aprendizagem, centrados no estudante e orientados para a
comunidade, sendo utilizada a Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) e a
Problematização.
Isto visa à integralidade na saúde, que se define, como sendo uma das
diretrizes do SUS, e que é compreendida como articulação das ações de promoção,
prevenção, tratamento e reabilitação de modo contínuo. Estas ações não se limitam
à atenção primária em saúde, devendo estar presentes em todos os níveis de
atenção. Neste sentido, a integralidade, pretende superar a fragmentação das ações
de saúde, deixando de ser ações pontuais, mas ações que articulam os níveis de
atenção. A integralidade abrange, ainda, as ações voltadas para o indivíduo,
integrando aspectos biológicos, subjetivos ou da coletividade, ou seja, as doenças e
os processos dinâmicos que as determinam.
79
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ANEXO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO(*) CÂMARA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR RESOLUÇÃO CNE/CES Nº 4, DE 7 DE NOVEMBRO DE 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. O Presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, tendo em vista o disposto no Art. 9º, do § 2º, alínea “c”, da Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, e com fundamento no Parecer CNE/CES 1.133, de 7 de agosto de 2001, peça indispensável do conjunto das presentes Diretrizes Curriculares Nacionais, homologado pelo Senhor Ministro da Educação, em 1º de outubro de 2001, RESOLVE: Art. 1º A presente Resolução institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, a serem observadas na organização curricular das Instituições do Sistema de Educação Superior do País. Art. 2º As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino de Graduação em Medicina definem os princípios, fundamentos, condições e procedimentos da formação de médicos, estabelecidas pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, para aplicação em âmbito nacional na organização, desenvolvimento e avaliação dos projetos pedagógicos dos Cursos de Graduação em Medicina das Instituições do Sistema de Ensino Superior. Art. 3º O Curso de Graduação em Medicina tem como perfil do formando egresso/profissional o médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano. Art. 4º A formação do médico tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades gerais: I - Atenção à saúde : os profissionais de saúde, dentro de seu âmbito profissional, devem estar aptos a desenvolver ações de prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde, tanto em nível individual quanto coletivo. Cada profissional deve assegurar que sua prática seja realizada de forma integrada e contínua com as demais instâncias do sistema de saúde, sendo capaz de pensar criticamente, de analisar os problemas da sociedade e de procurar soluções para os mesmos. Os profissionais devem realizar seus serviços dentro dos mais altos padrões de qualidade e dos princípios da ética/bioética, tendo em conta que a responsabilidade da atenção à saúde não se encerra com o ato técnico, mas sim, com a resolução do problema de saúde, tanto em nível individual como coletivo; _____________________ (*) CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES 4/2001. Diário Oficial da União,Brasília, 9 de novembro de 2001. Seção 1, p. 38.
II - Tomada de decisões: o trabalho dos profissionais de saúde deve estar fundamentado na capacidade de tomar decisões visando o uso apropriado, eficácia e custo-efetividade, da força de trabalho, de medicamentos, de equipamentos, de procedimentos e de práticas. Para este fim, os mesmos devem possuir competências e habilidades para avaliar, sistematizar e decidir as condutas mais adequadas, baseadas em evidências científicas; III - Comunicação: os profissionais de saúde devem ser acessíveis e devem manter a confidencialidade das informações a eles confiadas, na interação com outros profissionais de saúde e o público em geral. A comunicação envolve comunicação verbal, não-verbal e habilidades de escrita e leitura; o domínio de, pelo menos, uma língua estrangeira e de tecnologias de comunicação e informação; IV -Liderança: no trabalho em equipe multiprofissional, os profissionais de saúde deverão estar aptos a assumir posições de liderança, sempre tendo em vista o bem-estar da comunidade. A liderança envolve compromisso, responsabilidade, empatia, habilidade para tomada de decisões, comunicação e gerenciamento de forma efetiva e eficaz; V - Administração e gerenciamento: os profissionais devem estar aptos a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da força de trabalho quanto dos recursos físicos e materiais e de informação, da mesma forma que devem estar aptos a serem empreendedores, gestores, empregadores ou lideranças na equipe de saúde; e VI - Educação permanente: os profissionais devem ser capazes de aprender continuamente, tanto na sua formação, quanto na sua prática. Desta forma, os profissionais de saúde devem aprender a aprender e ter responsabilidade e compromisso com a sua educação e o treinamento/estágios das futuras gerações de profissionais, mas proporcionando condições para que haja benefício mútuo entre os futuros profissionais e os profissionais dos serviços, inclusive, estimulando e desenvolvendo a mobilidade acadêmico/profissional, a formação e a cooperação por meio de redes nacionais e internacionais. Art. 5º A formação do médico tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades específicas: I - promover estilos de vida saudáveis, conciliando as necessidades tanto dos seus clientes/pacientes quanto às de sua comunidade, atuando como agente de transformação social; II - atuar nos diferentes níveis de atendimento à saúde, com ênfase nos atendimentos primário e secundário; III - comunicar-se adequadamente com os colegas de trabalho, os pacientes e seus familiares; IV - informar e educar seus pacientes, familiares e comunidade em relação à promoção da saúde, prevenção, tratamento e reabilitação das doenças, usando técnicas apropriadas de comunicação; V - realizar com proficiência a anamnese e a conseqüente construção da história clínica, bem como dominar a arte e a técnica do exame físico; VI - dominar os conhecimentos científicos básicos da natureza biopsicosocio-ambiental subjacentes à prática médica e ter raciocínio crítico na interpretação dos dados, na identificação da natureza dos problemas da prática médica e na sua resolução;
VII - diagnosticar e tratar corretamente as principais doenças do ser humano em todas as fases do ciclo biológico, tendo como critérios a prevalência e o potencial mórbido das doenças, bem como a eficácia da ação médica; VIII - reconhecer suas limitações e encaminhar, adequadamente, pacientes portadores de problemas que fujam ao alcance da sua formação geral; IX - otimizar o uso dos recursos propedêuticos, valorizando o método clínico em todos seus aspectos; X - exercer a medicina utilizando procedimentos diagnósticos e terapêuticos com base em evidências científicas; XI - utilizar adequadamente recursos semiológicos e terapêuticos, validados cientificamente, contemporâneos, hierarquizados para atenção integral à saúde, no primeiro, segundo e terceiro níveis de atenção; XII - reconhecer a saúde como direito e atuar de forma a garantir a integralidade da assistência entendida como conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; XIII - atuar na proteção e na promoção da saúde e na prevenção de doenças, bem como no tratamento e reabilitação dos problemas de saúde e acompanhamento do processo de morte; XIV - realizar procedimentos clínicos e cirúrgicos indispensáveis para o atendimento ambulatorial e para o atendimento inicial das urgências e emergências em todas as fases do ciclo biológico; XV - conhecer os princípios da metodologia científica, possibilitando-lhe a leitura crítica de artigos técnico-científicos e a participação na produção de conhecimentos; XVI - lidar criticamente com a dinâmica do mercado de trabalho e com as políticas de saúde; XVII - atuar no sistema hierarquizado de saúde, obedecendo aos princípios técnicos e éticos de referência e contra-referência; XVIII - cuidar da própria saúde física e mental e buscar seu bem-estar como cidadão e como médico; XIX - considerar a relação custo-benefício nas decisões médicas, levando em conta as reais necessidades da população; XX - ter visão do papel social do médico e disposição para atuar em atividades de política e de planejamento em saúde; XXI - atuar em equipe multiprofissional; e XXII - manter-se atualizado com a legislação pertinente à saúde. Parágrafo Único. Com base nestas competências, a formação do médico deverá contemplar o sistema de saúde vigente no país, a atenção integral da saúde num sistema regionalizado e hierarquizado de referência e contra-referência e o trabalho em equipe.
Art. 6º Os conteúdos essenciais para o Curso de Graduação em Medicina devem estar relacionados com todo o processo saúde-doença do cidadão, da família e da comunidade, integrado à realidade epidemiológica e profissional, proporcionando a integralidade das ações do cuidar em medicina. Devem contemplar: I - conhecimento das bases moleculares e celulares dos processos normais e alterados, da estrutura e função dos tecidos, órgãos, sistemas e aparelhos, aplicados aos problemas de sua prática e na forma como o médico o utiliza; II - compreensão dos determinantes sociais, culturais, comportamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais, nos níveis individual e coletivo, do processo saúde-doença; III - abordagem do processo saúde-doença do indivíduo e da população, em seus múltiplos aspectos de determinação, ocorrência e intervenção; IV - compreensão e domínio da propedêutica médica – capacidade de realizar história clínica, exame físico, conhecimento fisiopatológico dos sinais e sintomas; capacidade reflexiva e compreensão ética, psicológica e humanística da relação médico-paciente; V -diagnóstico, prognóstico e conduta terapêutica nas doenças que acometem o ser humano em todas as fases do ciclo biológico, considerando-se os critérios da prevalência, letalidade, potencial de prevenção e importância pedagógica; e VI - promoção da saúde e compreensão dos processos fisiológicos dos seres humanos – gestação, nascimento, crescimento e desenvolvimento, envelhecimento e do processo de morte, atividades físicas, desportivas e as relacionadas ao meio social e ambiental. Art. 7º A formação do médico incluirá, como etapa integrante da graduação, estágio curricular obrigatório de treinamento em serviço, em regime de internato, em serviços próprios ou conveniados, e sob supervisão direta dos docentes da própria Escola/Faculdade. A carga horária mínima do estágio curricular deverá atingir 35% (trinta e cinco por cento) da carga horária total do Curso de Graduação em Medicina proposto, com base no Parecer/Resolução específico da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação. § 1º O estágio curricular obrigatório de treinamento em serviço incluirá necessariamente aspectos essenciais nas áreas de Clínica Médica, Cirurgia, Ginecologia-Obstetrícia, Pediatria e Saúde Coletiva, devendo incluir atividades no primeiro, segundo e terceiro níveis de atenção em cada área. Estas atividades devem ser eminentemente práticas e sua carga horária teórica não poderá ser superior a 20% (vinte por cento) do total por estágio. § 2º O Colegiado do Curso de Graduação em Medicina poderá autorizar, no máximo 25% (vinte e cinco por cento) da carga horária total estabelecida para este estágio, a realização de treinamento supervisionado fora da unidade federativa, preferencialmente nos serviços do Sistema Único de Saúde, bem como em Instituição conveniada que mantenha programas de Residência credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica e/ou outros programas de qualidade equivalente em nível internacional. Art. 8º O projeto pedagógico do Curso de Graduação em Medicina deverá contemplar atividades complementares e as Instituições de Ensino Superior deverão criar mecanismos de aproveitamento de conhecimentos, adquiridos pelo estudante, mediante estudos e práticas independentes, presenciais e/ou a distância, a saber: monitorias e estágios; programas de iniciação científica; programas de extensão; estudos complementares e cursos realizados em outras áreas afins.
Art. 9º O Curso de Graduação em Medicina deve ter um projeto pedagógico, construído coletivamente, centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem. Este projeto pedagógico deverá buscar a formação integral e adequada do estudante por meio de uma articulação entre o ensino, a pesquisa e a extensão/assistência. Art. 10. As Diretrizes Curriculares e o Projeto Pedagógico devem orientar o Currículo do Curso de Graduação em Medicina para um perfil acadêmico e profissional do egresso. Este currículo deverá contribuir, também, para a compreensão, interpretação, preservação, reforço, fomento e difusão das culturas nacionais e regionais, internacionais e históricas, em um contexto de pluralismo e diversidade cultural. § 1º As diretrizes curriculares do Curso de Graduação em Medicina deverão contribuir para a inovação e a qualidade do projeto pedagógico do curso. § 2º O Currículo do Curso de Graduação em Medicina poderá incluir aspectos complementares de perfil, habilidades, competências e conteúdos, de forma a considerar a inserção institucional do curso, a flexibilidade individual de estudos e os requerimentos, demandas e expectativas de desenvolvimento do setor saúde na região. Art. 11. A organização do Curso de Graduação em Medicina deverá ser definida pelo respectivo colegiado do curso, que indicará a modalidade: seriada anual, seriada semestral, sistema de créditos ou modular. Art. 12. A estrutura do Curso de Graduação em Medicina deve: I - Ter como eixo do desenvolvimento curricular as necessidades de saúde dos indivíduos e das populações referidas pelo usuário e identificadas pelo setor saúde; II - utilizar metodologias que privilegiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e a integração entre os conteúdos, além de estimular a interação entre o ensino, a pesquisa e a extensão/assistência; III - incluir dimensões éticas e humanísticas, desenvolvendo no aluno atitudes e valores orientados para a cidadania; IV - promover a integração e a interdisciplinaridade em coerência com o eixo de desenvolvimento curricular, buscando integrar as dimensões biológicas, psicológicas, sociais e ambientais; V - inserir o aluno precocemente em atividades práticas relevantes para a sua futura vida profissional; VI - utilizar diferentes cenários de ensino-aprendizagem permitindo ao aluno conhecer e vivenciar situações variadas de vida, da organização da prática e do trabalho em equipe multiprofissional; VII - propiciar a interação ativa do aluno com usuários e profissionais de saúde desde o início de sua formação, proporcionando ao aluno lidar com problemas reais, assumindo responsabilidades crescentes como agente prestador de cuidados e atenção, compatíveis com seu grau de autonomia, que se consolida na graduação com o internato; e VIII - vincular, através da integração ensino-serviço, a formação médico-acadêmica às necessidades sociais da saúde, com ênfase no SUS.
Art. 13. A implantação e desenvolvimento das diretrizes curriculares devem orientar e propiciar concepções curriculares ao Curso de Graduação em Medicina que deverão ser acompanhadas e permanentemente avaliadas, a fim de permitir os ajustes que se fizerem necessários ao seu aperfeiçoamento. § 1º As avaliações dos alunos deverão basear-se nas competências, habilidades e conteúdos curriculares desenvolvidos, tendo como referência as Diretrizes Curriculares. § 2º O Curso de Graduação em Medicina deverá utilizar metodologias e critérios para acompanhamento e avaliação do processo ensino-aprendizagem e do próprio curso, em consonância com o sistema de avaliação e a dinâmica curricular definidos pela IES à qual pertence. Art. 14. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Arthur Roquete de Macedo Presidente da Câmara de Educação Superior