A Formação Do Projeto Teórico de Michel Pêcheux_claudiana_narzetti_costa

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    unespUNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    JLIO DE MESQUITA FILHO

    Faculdade de Cincias e Letras - Campus de Araraquara

    CLAUDIANA NAIR POTHIN NARZETTI

    AAAAAAAAAAAAFFFFFFFFFFFFOOOOOOOOOOOORRRRRRRRRRRRMMMMMMMMMMMMAAAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOODDDDDDDDDDDDOOOOOOOOOOOOPPPPPPPPPPPPRRRRRRRRRRRROOOOOOOOOOOOJJJJJJJJJJJJEEEEEEEEEEEETTTTTTTTTTTTOOOOOOOOOOOO

    TTTTTTTTTTTTEEEEEEEEEEEERRRRRRRRRRRRIIIIIIIIIIIICCCCCCCCCCCCOOOOOOOOOOOODDDDDDDDDDDDEEEEEEEEEEEEMMMMMMMMMMMMIIIIIIIIIIIICCCCCCCCCCCCHHHHHHHHHHHHEEEEEEEEEEEELLLLLLLLLLLLPPPPPPPPPPPPCCCCCCCCCCCCHHHHHHHHHHHHEEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUXXXXXXXXXXXX::::::::::::

    DEUMATEORIAGERALDASIDEOLOGIAS

    ANLISEDODISCURSO

    ARARAQUARA2008

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    CLAUDIANANAIRPOTHINNARZETTI

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    DDDDDDDDDDDDEEEEEEEEEEEEMMMMMMMMMMMMIIIIIIIIIIIICCCCCCCCCCCCHHHHHHHHHHHHEEEEEEEEEEEELLLLLLLLLLLLPPPPPPPPPPPPCCCCCCCCCCCCHHHHHHHHHHHHEEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUXXXXXXXXXXXX::::::::::::DEUMATEORIAGERALDASIDEOLOGIAS

    ANLISEDODISCURSO

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programade Ps-Graduao em Lingstica e LnguaPortuguesa da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Araraquara, como cumprimento dosrequisitos obrigatrios para obteno do ttulo deMestre em Lingstica e Lngua Portuguesa.

    Linha de pesquisa: Estrutura, organizao efuncionamento discursivos e textuais

    Orientador: Slvia Dinucci Fernandes

    Bolsa: FAPEAM

    ARARAQUARA2008

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    CLAUDIANANAIRPOTHINNARZETTI

    AAAAAAAAAAAAFFFFFFFFFFFFOOOOOOOOOOOORRRRRRRRRRRRMMMMMMMMMMMMAAAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOODDDDDDDDDDDDOOOOOOOOOOOOPPPPPPPPPPPPRRRRRRRRRRRROOOOOOOOOOOOJJJJJJJJJJJJEEEEEEEEEEEETTTTTTTTTTTTOOOOOOOOOOOOTTTTTTTTTTTTEEEEEEEEEEEERRRRRRRRRRRRIIIIIIIIIIIICCCCCCCCCCCCOOOOOOOOOOOO

    DDDDDDDDDDDDEEEEEEEEEEEEMMMMMMMMMMMMIIIIIIIIIIIICCCCCCCCCCCCHHHHHHHHHHHHEEEEEEEEEEEELLLLLLLLLLLLPPPPPPPPPPPPCCCCCCCCCCCCHHHHHHHHHHHHEEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUXXXXXXXXXXXX::::::::::::

    DEUMATEORIAGERALDASIDEOLOGIAS

    ANLISEDODISCURSO

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa

    de Ps-Graduao em Lingstica e LnguaPortuguesa da Faculdade de Cincias e Letras UNESP/Araraquara, como cumprimento dosrequisitos obrigatrios para obteno do ttulo deMestre em Lingstica e Lngua Portuguesa.

    Data de aprovao: 03/03/2008

    MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:

    Presidente e Orientador: Professora Dra. Slvia Dinucci Fernandes (UNESP FCL/CAR)

    Membro Titular:Professora Dra. Maria do Rosrio Valencise Gregolin (UNESP FCL/CAR)

    Membro Titular:Professora Dra. Fernanda Mussalim (UNIVERSIDADE FEDERAL DE

    UBERLNDIA)

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    Ao Rubens

    Cmplice de todos os momentos

    Sntese do verbo amar

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeo minha orientadora, Slvia, a acolhida, o apoio, a compreenso, a orientao

    dedicada e a amizade.

    Agradeo aos professores do Programa que muito contriburam para a minha formao

    geral.

    Agradeo aos membros da Banca Examinadora, a participao, a leitura de meu trabalho

    e as ricas contribuies.

    Agradeo FAPEAM e SEMED, que, com seus programas de apoio e fomento

    pesquisa e formao docente, tornaram possvel a realizao deste trabalho.

    Agradeo ao GEADA, grupo com que pude aprender muito nesses dois anos de

    convvio, em especial Rosrio e Vanice.

    Agradeo aos meus amigos, Luzmara, Carlos, Mara, Amanda e Tasa, a quem tive a

    felicidade de conhecer em Araraquara e com quem partilhei timos momentos e pude

    aprender muito.

    Agradeo minha famlia, que, de longe, sempre me apoiou e torceu por mim.

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    preciso, portanto, devolver uma memria

    AD, na qual o trabalho de Pcheux retoma

    seu sentido e seu lugar (COURTINE, 2005,

    p. 31).

    ... uma cincia no estado nascente uma

    aventura terica (...): o acesso ao objeto

    obtido por caminhos ainda no desbravados,

    onde os falsos passos no esto excludos

    (HERBERT, [1966], 1973, p.30).

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    RESUMO

    O tema desta Dissertao a constituio terica da anlise do discurso

    desenvolvida por Michel Pcheux. Especificamente, tratamos da constituio da AD (a

    sua primeira poca - o incio da teoria com a obra Anlise Automtica do Discurso, de

    1969) e de sua relao com os textos anteriores de Pcheux, assinados com o

    pseudnimo Thomas Herbert, Reflexes sobre a situao terica das cincias sociais e,

    especialmente, da psicologia social, de 1966 e Observaes para uma teoria geral das

    ideologias, de 1968, nos quais o fundador de uma das vertentes da anlise do discurso

    francesa ainda no est engajado na elaborao de uma teoria do discurso, mas no

    projeto althusseriano de elaborao de uma teoria das ideologias. Acreditamos que o

    aparato terico-conceitual apresentado, as temticas desenvolvidas e as crticas feitas

    por Pcheux na obraAnlise Automtica do Discursopossuem uma estreita relao com

    idias e concepes de seus textos anteriores, dedicados reflexo sobre a ideologia e

    sobre a histria das cincias. Sendo assim, tentamos reconstruir o percurso do projeto

    terico de Pcheux, identificando que problemas o conduziram do projeto inicial de

    elaborao de uma teoria das ideologias construo da teoria e da anlise do discurso;

    que relaes existem entre esses dois projetos; que problemas tericos e/ou prticos

    provocaram esse deslocamento; como Pcheux foi de uma concepo de ideologia em

    que a linguagem no tematizada a uma teoria que a pensa a partir do discurso; qual a

    funo que o instrumento anlise do discurso desempenhava nesses projetos; e qual o

    papel particular que exerceram as trs cincias que esto na base da AD: Materialismo

    Histrico, Lingstica e Psicanlise. Partimos da posio de que importante conhecer

    o projeto terico que precede e prepara a construo da AD para melhor compreender a

    necessidade de sua construo e seu significado terico.

    Palavras-chave: Anlise do discurso. Ideologia. Michel Pcheux. Thomas Herbert.

    Histria epistemolgica da AD. Lingstica.

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    RSUM

    Le sujet de notre recherche est la constitution thorique de lanalyse du discours

    dvelopp par Michel Pcheux. Nous nous intressons en particulier la constitution de

    lAD (sa premire poque le dbut de la thorie du discours) et son rapport avec les

    textes Rflexions sur la situation thorique des sciences sociales et, spcialement, de la

    psychologie sociale (1966) et Remarques pour une thorie gnrale des idologies

    (1968), qui ont t produits antrieurement par Pcheux sous le pseudonyme de Thomas

    Herbert. Dans ces textes, le fondateur de lun des domaines de lanalyse du discours

    franaise ne sest pas encore engag dans llaboration dune thorie du discours, mais

    dans le projet althussrien de construction dune thorie des idologies. Nous croyons

    que le dispositif thorique-conceptuel, les thmatiques et les critiques que Pcheux a

    prsents et dvelopps dans son oeuvreAnalyse Automatique du Discours (1969), ont

    un rapport troit avec des ides et des conceptions des textes antrieurs de lauteur qui

    sont ddis la rflexion sur lidologie et sur lhistoire des sciences. Ainsi, nous

    essayons de reconstruire le parcours du projet thorique de Pcheux travers

    lidentification des problmes qui lont men du projet initial de llaboration dune

    thorie des idologies la construction de la thorie et de lanalyse du discours. Nous

    explicitons les rapports qui existent entre ces deux projets et les problmes thoriques et

    pratiques qui ont provoqu ce dplacement. Nous expliquons comment Pcheux va

    dune conception de lidologie o le langage nest pas abord une thorie qui pense

    le langage partir du discours. Nous lucidons la fonction que le dispositif instrumental

    analyse du discours jouait dans ces projets. Et, finalement, nous commentons le rle

    particulier quont exerc les trois sciences qui forment la base de lAD : le Matrialisme

    Historique, la Linguistique et la Psychanalyse. Nous considrons quil est trs important

    de connatre le projet thorique qui prcde et prpare llaboration de lAD pour mieuxcomprendre la ncessit de sa construction et son signifi thorique.

    Mots-cls:Analyse du discours. Idologie. Michel Pcheux. Thomas Herbert. Histoire

    pistmologique de lAD. Linguistique.

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    SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................... 10

    1 A CONJUNTURA DA FORMAO DO PROJETO TERICO DE MICHEL

    PCHEUX ....................................................................................................................22

    1.1 A conjuntura dos anos 60 .........................................................................................23

    1.2 Michel Pcheux e o grupo althusseriano ..................................................................26

    1.3 Um programa de pesquisas para o grupo althusseriano ...........................................30

    1.4 A ideologia em geral ................................................................................................36

    2 PRESSUPOSTOS EPISTEMOLGICOS DA OBRA DE MICHEL

    PCHEUX/THOMAS HERBERT .............................................................................43

    2. 1 A epistemologia histrica francesa ..........................................................................44

    2.1.1 A novidade da epistemologia histrica francesa ........................................45

    2.1.2 As principais categorias da epistemologia histrica francesa ....................47

    2.2 O Materialismo Dialtico segundo Althusser e seu grupo .......................................56

    2.2.1 A especificidade do materialismo dialtico ...............................................56

    2.2.2 A prtica terica .........................................................................................58

    2.2.3 Objetivos do materialismo dialtico ..........................................................63

    2.2.4 A leitura sintomal ......................................................................................71

    3 O PROJETO DE UMA CINCIA DAS IDEOLOGIAS E O MTODO DE

    ESCUTA SOCIAL .......................................................................................................78

    3.1 Esboo de uma teoria geral das ideologias ..............................................................803.2 A primeira articulao entre ideologia, sujeito e discurso .......................................87

    3.3 O problema das cincias sociais ..............................................................................90

    3.4 O projeto de uma cincia das ideologias .................................................................97

    4 A TEORIA GERAL DAS IDEOLOGIAS DE THOMAS HERBERT ...............103

    4.1 Princpios gerais .....................................................................................................104

    4.2 Apropriao da Lingstica ....................................................................................1074.3 Apropriao da Psicanlise ....................................................................................119

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    4.4 As cincias sociais e as garantias ideolgicas ........................................................128

    4.5 Variao e mutao ideolgica ...............................................................................130

    4.6 O dispositivo instrumental e institucional ..............................................................135

    5 RUMO TEORIA E AO MTODO DE ANLISE DO DISCURSO ..............149

    5.1 Crticas anlise de contedo ................................................................................150

    5.2 Primeiros conceitos da teoria do discurso ..............................................................162

    5.3 Apropriao da Lingstica, da Psicanlise e do Materialismo Histrico na teoria

    do discurso ....................................................................................................................169

    5.4 O mtodo de anlise do discurso e a estratgia de Michel Pcheux .......................171

    CONSIDERAES FINAIS .....................................................................................179

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .....................................................................185

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    INTRODUO

    Sabemos que o que hoje se costuma chamar de anlise do discurso (AD) uma

    grande rea do conhecimento, institucionalizada nos departamentos de Lingstica, que

    surgiu na Frana no final da dcada de 60, tendo se expandido para outros lugares,

    como os Estados Unidos e o Brasil, na dcada de 80. Assim, seria demasiado vago se

    dissssemos que nosso trabalho inquire sobre a anlise do discurso, ainda que isso seja

    um fato.

    Sabemos tambm que esse campo do conhecimento, nas duas primeiras dcadas

    de sua existncia na Frana, representa uma confluncia de vrias correntes que tm em

    comum o fato de terem tomado por objeto o discurso. Assim, para exemplificar

    poderamos citar alguns nomes: Jean Dubois, Michel Foucault e Michel Pcheux.

    O que caracterizava cada uma dessas vertentes era a concepo de discurso que

    sustentavam, a qual era resultado de posies epistemolgicas diversas, uma das quais

    era o papel que os domnios de saber nos quais se embasavam exerceu no s na prpria

    construo do conceito de discurso, mas tambm na dos demais conceitos que o

    acompanharam para melhor explicit-lo. Assim, cada uma dessas correntes ou vertentes,

    ao lado da sua histria comum que as une numa mesma direo, tem uma histria

    particular. Portanto, a AD francesa no possui uma identidade nica e ainda seria vago

    se dissssemos que nosso trabalho procura reconstruir um momento de sua histria,

    ainda que isso no seja uma promessa que no vai ser cumprida pelo menos em parte.

    Indo direto ao ponto, podemos dizer que o nosso trabalho trata do processo de

    constituio histrica e terica da AD francesa em uma de suas vertentes, a inaugurada

    por Michel Pcheux, cujo marco inaugural a publicao da obraAnlise Automtica

    do Discurso, em 1969. Nossa proposta analisar minuciosamente um momento bemespecfico e delimitado da histria da disciplina, os anos de 1966 a 1969, o qual

    constitui, para ns, o momento em que o projeto de elaborao de uma anlise do

    discurso comea a se formar no interior do projeto terico pecheutiano.

    A tese que orienta nossa reflexo que a disciplina que hoje chamamos de

    anlise do discurso no nasceu pronta, no momento mesmo em que a obra acima

    referida foi elaborada e publicada. Na verdade, ela teve sua emergncia marcada por

    uma srie de objetivos que foram aos poucos se estabelecendo e tomando forma, no

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    interior de um projeto terico mais amplo de Pcheux, de elaborao de uma teoria

    geral das ideologias, na esteira de Louis Althusser.

    Assim, consideramos que o incio da histria da AD pecheutiana remonta ao

    perodo anterior publicao da obra AAD-69, o qual, como j dissemos, se inicia a

    partir de 66 e marcado pela escrita de quatro artigos, publicados em revistas de

    divulgao cientfica: Reflexes sobre a situao terica das cincias sociais e,

    especialmente, da psicologia social (1966); Observaes para uma teoria geral das

    ideologias (1968); Analyse de contenu et thorie du discours (1967); e Vers une

    technique danalyse du discours (1968). Destes, os dois primeiros foram publicados em

    Cahiers pour lanalyse, e assinados com o pseudnimo de Thomas Herbert, enquanto os

    dois ltimos foram publicados nas revistas Psychologie Franaisee Bulletin du CERP,

    respectivamente, e assinados com o nome prprio do autor. A justificativa dessa posio

    ficar explicitada no decorrer de nosso trabalho.

    Sendo assim, nosso trabalho consiste prioritariamente em fazer uma anlise da

    natureza da relao que une esses textos de Herbert e de Pcheux, ou, dito de outro

    modo, do percurso terico traado por Pcheux desde a construo de uma teoria geral

    das ideologias at a da anlise do discurso. Considerando que: a) Herbert estava

    engajado no projeto althusseriano de construo de uma teoria geral das ideologias,

    conforme veremos no captulo 1, e que seus textos so uma contribuio terica a ela; b)

    Pcheux, por seu turno, estava elaborando o que posteriormente passou a se chamar a

    anlise do discurso; c) segundo Henry (1997), os fundamentos desta podem ser

    encontrados naqueles textos, era preciso refletir sobre o processo em que o conjunto da

    obra pecheutiana de ento foi se produzindo e sobre o ponto em que ganhava sua

    coeso.

    Assim, acerca do processo de constituio terica da AD de Pcheux, o nosso

    problema geral explicar como e por que o filsofo parte de uma teoria geral dasideologias, no interior de uma reflexo, sobretudo, epistemolgica e chega a uma teoria

    e a um mtodo de anlise do discurso. Ligadas a esse problema, algumas questes

    surgem: quais as relaes da anlise do discurso com a teoria das ideologias de

    Pcheux?; que mudanas de rumo aconteceram na trajetria que o autor percorreu?; a

    quais finalidades o mtodo de anlise do discurso deveria atender?; qual o lugar da

    anlise do discurso no interior do projeto pecheutiano?

    Para responder adequadamente a essas questes, passamos obrigatoriamente pelaexposio e discusso detalhada das idias e dos conceitos elaborados pelo autor em

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    seus quatro artigos acima referidos, que, infelizmente, esto hoje fora do alvo de

    ateno da grande maioria dos estudiosos da anlise do discurso, mas que, sem dvida,

    guardam a chave de compreenso do sentido histrico e epistemolgico da anlise do

    discurso.

    Essa opo de retornar ao momento da emergncia da AD, (uma poca que

    poderamos denominar de pr-AD), ao momento em que ela sequer se encontra

    instituda, pode parecer a muitos suprflua, j que vivemos uma fase da disciplina que

    abandonou muitas das formulaes antigas, dando desenvolvimentos novos aos

    conceitos e aos problemas com os quais lida.

    Poderamos responder tomando emprestada uma passagem de Maingueneau

    (1990), com a qual concordamos inteiramente:

    Os desenhos animados freqentemente nos mostram personagens que, sem osaber, andam no vazio; percebendo repentinamente que deixaram o solo firme,eles caem no abismo. isto que pode acontecer anlise de discurso se ela nose interrogar a respeito de si mesma (p. 65).

    Mas tambm poderamos apelar para o que nos ensina a histria das cincias,

    qual o prprio Pcheux filiava-se. Em primeiro lugar, ela nos ensina, segundo Japiass

    (1997), que: No sendo estudada e ensinada historicamente, a cincia se converte em

    objeto de estudo e de ensino dogmticos (p. 24) e, conseqentemente, os cientistas tm

    dificultada a tarefa de elaborar uma crtica de seu saber.

    fato que a AD no est mais na fase dos tateamentos, encontrando-se

    desenvolvida e em fase de construo de novos objetos e conceitos. Alm disso, ela est

    institucionalizada e seu quadro terico e metodolgico ensinado com o fim de ser

    usado na anlise de discursos concretos. Assim, o que interessa mais diretamente

    saber manipular os seus conceitos. O problema que a institucionalizao de um saber

    tende a dogmatiz-lo e o seu ensino tende a tom-lo como algo acabado, ignorando as

    condies em que foi produzido. Isso uma regra geral e a AD no parece ser uma

    exceo dela.

    Portanto a investigao do passado da AD, nessa conjuntura, parece ser

    dispensvel. Mas o que queremos sustentar aqui o contrrio. Antes de permitir pensar

    que a AD algo que nasceu prontamente, desligada de todo o ambiente de urgncia

    terica, o que queremos recuperar as condies histricas em que esse saber se

    produziu, p-lo em movimento. Acreditamos que essa seja uma das melhores formas de

    evitar o dogmatismo no ensino de um saber.

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    Em segundo lugar, a histria das cincias nos ensina que:

    Aquele que se interroga sobre o significado da cincia atual, deve cada vezmais remontar a seu passado, porque o sentido do devir sempre fornecido pelaflecha do tempo. Conheceremos melhor o que a cincia atual e para onde elavai, quando conhecermos com preciso de onde ela vem (JAPIASS, (1997),

    p. 31).

    Como entendermos o sentido da anlise do discurso (e da sua obra inaugural, a

    AAD-69), sem olhar para trs, para o projeto terico de Pcheux do qual ela parte?

    Conhecer tal projeto terico de modo global e o lugar da AD nele, no momento de

    constituio da disciplina, ajuda a entender a permanncia de determinados problemas

    centrais e as diferentes solues que foram dadas a eles no decorrer da histria.

    Em terceiro lugar, a histria das cincias, ao devolver-nos o sentido da aventura

    intelectual, vale dizer, de um pensamento que arrisca as suas prprias certezas, constitui

    sempre um exerccio renovado da liberdade de pensar... (JAPIASS, 1997, p. 32).

    Ora, o que se destaca, quando analisamos a trajetria de Pcheux, justamente

    essa aventura terica, o processo de construo, na urgncia, de uma teoria cujos

    conceitos no gozam todos do mesmo status: uns so cuidadosamente elaborados,

    outros so apenas intudos, arriscados, edificados como metforas; de uma teoria cujos

    problemas ficam, muitas vezes, sem soluo ou tm uma soluo apenas esboada.

    Desse modo, refletir sobre a histria da anlise do discurso , segundo Gregolin

    (2004),

    uma necessidade que nos desafia permanentemente e que deve levar-nos avasculhar os documentos a fim de interpretar os vestgios da historicidade dosconceitos que mobilizamos no campo do saber em que nos situamos.Evidentemente, no se trata de pretender encontrar a verdade, mas dereconstruir as falas que criaram uma vontade de verdade cientfica em umcerto momento histrico (p. 11).

    Pelo que dissemos at agora, pode-se perceber que este um trabalho que seinclui naquilo que poderamos chamar de histria das cincias. Isso nos leva

    necessariamente a vrios problemas de ordem metodolgica.

    Em primeiro lugar, a histria das cincias no uma disciplina cientfica, nem

    mesmo se inclui no interior de algum curso superior encarregado de ensinar como faz-

    la. Assim, ela feita ora na filosofia, ora na prpria cincia da qual se faz a histria.

    Em segundo lugar, ela, segundo o que explica Japiass (1997), no possui um

    mtodo unitrio, seus problemas so diversificados, suas escolas ou suas tendncias se

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    opem (p. 22). Assim, ainda segundo o autor: Aqueles que a praticam, ainda o fazem

    de modo mais ou menos selvagem e amadorista (p. 46).

    Entre as tendncias existentes em histria das cincias, poderamos citar duas

    que nos interessam aqui. Aquela denominada histria das cincias tradicional e a

    denominada de histria epistemolgica das cincias. A primeira a comumente

    realizada pelos cientistas quando tratam de suas prprias cincias. A segunda aquela

    que, em sendo uma crtica primeira, tornou-se um modelo a partir dos anos 30, na

    Frana, estando representada, principalmente, pelos trabalhos de Gaston Bachelard,

    Georges Canguilhem e Alexandre Koyr.

    O primeiro tipo de histria acima mencionado, como observamos, aquela feita

    pelos prprios cientistas a respeito das suas cincias. Eles fazem essa histria quando

    desejam apresentar um breve histrico do problema ao qual se dedicam, mostrando as

    solues dadas a ele no decorrer do tempo a fim de mostrar a novidade de seus

    resultados. Eles fazem essa histria tambm em livros didticos das cincias diversas

    com o fim de apresentar as principais teorias, conceitos e seus precursores aos iniciantes

    naquele ramo do saber. O problema desse tipo de histria das cincias justamente essa

    restrio listagem de teorias, conceitos e precursores, o que contribui para se formar

    uma idia de cincia como algo que se produz linearmente.

    J o segundo tipo de histria das cincias acima referido parte de uma

    perspectiva filosfica. Os seus fundadores inauguraram uma nova forma de fazer a

    histria de uma cincia, que se apresenta, em parte, como crtica histria tradicional e,

    em parte, como uma alternativa a ela. Essa histria epistemolgica tem a grande

    vantagem de mostrar a cincia como uma construo do pensamento e no como uma

    simples iluminao de alguns gnios. Ela parte do pressuposto de que a cincia percorre

    um caminho composto de erros e acertos e que os erros no devem ser totalmente

    desprezados, pois serviram para a construo das positividades de uma poca. Almdisso, ela uma histria recorrente e normativa, pois julga o passado da cincia a partir

    dos critrios de cientificidade aceitos pela comunidade cientfica no momento atual da

    cincia. Ela postula, ainda, que a histria da cincia no linear, mas composta de

    descontinuidades e rupturas, sendo que, no decorrer dessa histria, a cincia progride

    rumo a uma racionalidade cada vez maior, j que procede por retificaes dos

    conhecimentos produzidos anteriormente.

    Este trabalho mantm relaes com esses dois tipos de histria das cincias.Com o primeiro pela excluso: ele aqui evitado e at mesmo condenado.

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    Com o segundo, na medida em que procura seguir alguns de seus pressupostos.

    Procura observar as descontinuidades entre as posies tericas presentes nos textos que

    presidem e preparam a constituio terica da anlise do discurso as mudanas

    ocorridas nos conceitos que foram produzidos antes de sua constituio e na sua

    primeira poca. Procura analisar a transformao dos conceitos antigos e a entrada de

    conceitos novos.

    Entretanto o modelo dessa histria das cincias no pode aqui ser seguido

    radicalmente. O motivo principal dessa impossibilidade que a histria epistemolgica

    normalmente trata de cincias constitudas por um corte epistemolgico inegvel. Ora, o

    momento da histria da AD que estudamos aquele em que ela no est ainda instituda

    e sequer formulada de modo completo, em outras palavras, a fase pr-AD. At mesmo

    atualmente seria difcil decidir se a AD uma cincia, uma disciplina, um saber, pois

    seria uma tarefa delicada encontrar a existncia de um corte epistemolgico, um ponto

    de no-retorno, uma vez que conceitos das trs pocas so utilizados nas anlises feitas

    em trabalhos da rea. Seria difcil tambm estabelecer um presente da AD: a histria

    epistemolgica exige, para sua realizao, conforme a posio de Bachelard, que o

    passado de uma cincia seja julgado a partir de seu presente, sendo este entendido como

    o sistema de conceitos mais atual da cincia, considerado pela comunidade cientfica

    como a verdade da cincia no momento. Por outro lado, ela possui um aparato de

    experimentao que no h em muitas cincias humanas, o que seria um indcio de

    cientificidade.

    Assim, podemos seguir alguns pressupostos e algumas posies desse tipo de

    histria das cincias, como os esboados acima, mas no todos.

    Por causa dessa particularidade da histria da AD, somos levados a adotar aqui

    uma perspectiva genealgica, j que o trabalho busca compreender a emergncia da AD,

    o contexto de seu surgimento, os problemas tericos que a suscitaram, a ligao que elatem com a produo anterior de uma teoria das ideologias de Pcheux.

    A genealogia -nos interessante por no ser um mtodo aplicado exclusivamente

    histria das cincias, e no estar presa a determinado tipo de objeto. Para dar alguns

    exemplos da versatilidade inerente perspectiva genealgica, lembremos que Nietzsche

    usou-a para analisar a formao dos nossos valores morais; Foucault aplicou-a para

    analisar o nascimento das prises; Koyr e Canguilhem usaram-na em suas histrias

    epistemolgicas, para descrever a formao de cincias como a fsica e a astronomia, no

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    caso do primeiro e a biologia e a medicina, no caso do segundo. Conforme Badiou

    (1979): Os trabalhos de Koyr ou os de Canguilhem so genealgicos (p. 89).

    Mas o que permite definir uma pesquisa histrica como sendo genealgica? Para

    responder a essa questo, podemos mencionar duas formas de caracteriz-la: uma

    negativa, que consistiria em apontar tudo aquilo que ela recusa, e outra positiva, que

    consistiria em apontar os conceitos com os quais ela opera.

    No que diz respeito a sua caracterizao negativa, a genealogia define-se por

    oposio ao que Nietzsche chamava de pesquisa da origem. Esta ltima est impregnada

    de alguns pressupostos que a pesquisa genealgica recusa, os quais Foucault ([1971],

    2000) comenta.

    Em primeiro lugar, a pesquisa da origem busca captar a essncia exata da

    coisa; sua identidade, sua forma imvel (FOUCAULT, [1971], 2000, p. 262). Mas,

    para a genealogia, conforme nos explica Foucault ([1971], 2000), O que se encontra no

    comeo histrico das coisas no a identidade ainda preservada de sua origem a

    discrdia entre as coisas, o disparate (p. 263). Em outras palavras, a genealogia no

    trabalha com a idia de que, na origem de um fenmeno, ou teoria, etc., que se pode

    encontrar a sua essncia. Para a genealogia no h essncia.

    Isso importante para nosso trabalho. No intentamos aqui, ao interrogarmos

    sobre a emergncia da anlise do discurso e seu lugar no interior do projeto

    pecheutiano, apontar qual teria sido a sua essncia. Na verdade, ela no existe. Como

    veremos no decorrer dos captulos, a AD deveria responder a vrios objetivos.

    Em segundo lugar, ela supe uma alta origem, uma solenidade no nascimento

    da coisa, a pureza, a perfeio de algo que, com o tempo desvirtuar-se-ia. Porm,

    segundo a genealogia, o comeo histrico baixo, no sentido de derrisrio, irnico

    (FOUCAULT, [1971], 2000, p. 263).

    E, por fim, a pesquisa da origem acredita que ela o lugar da verdade, que oefeito de verdade da coisa no est relacionado a sua manifestao discursiva.

    Entretanto, para a genealogia, por trs da verdade, sempre recente, avara e comedida,

    h a proliferao milenar dos erros (FOUCAULT, [1971], 2000, p. 263).

    No que diz respeito a sua caracterizao positiva, podemos destacar duas

    distines importantes: aquela que existe entre causa da origem e uso e aquela que

    existe entre os conceitos de provenincia e emergncia.

    No caso da primeira distino, Nietzsche explica que a causa da origemde umacoisa no se confunde com os seus diferentes usos. O filsofo d o exemplo do castigo,

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    que teria sido criado com a finalidade de punir, mas era utilizado para as mais diferentes

    funes, como as de vingana e de intimidao. Assim, segundo ele, a causa da gnese

    de uma coisa e a sua utilidade final, a sua efetiva utilizao e insero em um sistema de

    finalidades, diferem toto coelo[totalmente] (NIETZSCHE, 1988, p. 81). importante

    lembrar que, para a genealogia, conhecer e compreender a utilidade de algo no

    significa necessariamente compreender a sua gnese: costuma-se acreditar que a

    utilidade atual de uma coisa coincide com a razo de sua gnese, o que nem sempre

    acontece.

    Foucault partilha dessa posio ao afirmar que: Esses fins, aparentemente

    ltimos, no passam do episdio atual de uma srie de submisses (FOUCAULT,

    [1971], 2000, p. 267).

    Isso parece ser um equvoco ao qual pode conduzir a anlise de Courtine (2006)

    da histria da AD. O autor costuma afirmar, em seus textos, que a disciplina iria se

    dedicar ao discurso poltico como objeto privilegiado (p. 30). fato que ela teve essa

    funo, mas ela no foi a causa da sua origem, pelo menos quando se trata da anlise do

    discurso inaugurada por Pcheux, e isso precisa ser explicitado. A AD foi pensada pelo

    filsofo, primeiramente, como um mtodo destinado experimentao de uma teoria

    das ideologias, o que com o tempo foi se modificando, como mostraremos no decorrer

    do trabalho. Assim, no se pode confundir a utilidade atual da AD com a causa da sua

    origem.

    Alm disso, Nietzsche (1988) tambm fala da diferena entre oprocedimentoe o

    sentido ou o que duradouro e o que fluido. O que ele diz sobre o castigo pode

    tranquilamente ser generalizado para a anlise genealgica de qualquer objeto. Para ele,

    h algo no castigo que relativamente duradouro, isto , uma certa seqncia

    rigorosa de procedimentos e h algo que lhe fluido, isto , o sentido, o fim, a

    expectativa ligada realizao desses procedimentos. Assim, o conceito de castigo noapresenta um nico sentido (p. 83-4).

    Isso completamente adequado anlise do discurso. Ela composta por um

    procedimento relativamente duradouro, que repetido nas anlises, com a aplicao de

    alguns de seus conceitos operatrios. Mas apresenta, no decorrer de sua histria, vrios

    sentidos: ela foi usada (ou planejada para ser usada) para diferentes e diversos fins,

    conforme veremos, sobretudo, no captulo 5. por isso que dizemos que ela uma srie

    de submisses.

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    Uma outra distino que caracteriza positivamente a genealogia aquela

    existente entre os conceitos deproveninciae emergncia. Assim, poderamos dizer que

    uma pesquisa genealgica reflete, ao invs da origem, sobre a provenincia e a

    emergncia de algo.

    Para Foucault ([1971], 2000), falar da provenincia,

    situar os acidentes, os nfimos desvios ou pelo contrrio, as completasinverses , os erros, as falhas de apreciaes, os clculos errneos que fizeramnascer o que existe e tem valor para ns (p. 265-6).

    Acreditamos que essa posio adequada para tratar da trajetria da AD. O

    prprio Pcheux, quando reflete sobre seu trajeto, enfatiza seu aspecto sinuoso e

    acidentado, fazendo as seguintes observaes:

    ... at aqui, o presente trabalho tem sido marcado por uma progressocondicional, sujeita a retrocessos (...). esse tipo de progresso oblqua, afetadapor idas e vindas, que responsvel pelo aspecto, sob muitos pontos,emaranhado dos desenvolvimentos que precedem, isto , desse entrelaamentode elementos freqentemente dspares e ambguos, de notaes que constituemoutro tanto de materiais disponveis, de indicaes disjuntas, tudo isso formandouma espcie de clima terico (com suas nvoas e clares), onde o leitorprecede-segue vrios caminhos entrecruzados, vrios fios que se sobrepem(PCHEUX, [1975], 1988, p.134).

    A investigao da provenincia agita o que se percebia como imvel; mostra

    a heterogeneidade do que se imaginava conforme a si mesmo (FOUCAULT, [1971],

    2000, p. 266).

    Quanto ao conceito de emergncia, poderamos dizer que o ponto de

    surgimento de um objeto, de uma disciplina terica. Mas o que gostaramos de

    enfatizar, a respeito da emergncia, que ela se produz em certo estado de foras.

    Assim, de acordo com Foucault ([1971], 2000).

    A anlise da emergncia deve mostrar seu jogo, o modo pelo qual elas [as

    foras] lutam umas contra as outras, ou o combate que travam diante decircunstncias adversas... (p. 268).

    Poderamos dizer, a partir da genealogia, que a emergncia da anlise do

    discurso resultou da convergncia de foras de trs campos do saber considerados, por

    Pcheux, como cincias institudas por um corte epistemolgico indubitvel:

    Materialismo Histrico, Psicanlise e Lingstica. A partir da anlise dos textos

    Pcheux/Herbert de que tratamos aqui, possvel compreender: qual Materialismo

    Histrico, qual Psicanlise e qual Lingstica foram apropriados pela AD, considerando

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    que h vrios marxismos, vrias psicanlises; como o autor se apropriou dos conceitos

    provenientes dessas teorias para responder a uma problemtica prpria da AD: e, ainda,

    o papel de cada uma delas na constituio de seu projeto terico.

    A reflexo sobre a emergncia implica necessariamente a interpretao. Esta,

    para a genealogia, conforme nos explica Foucault ([1971], 2000), no significa localizar

    uma significao oculta na origem. Para a genealogia,

    ... interpretar apoderar-se, pela violncia ou sub-repo, de um sistema deregras que no tem em si a significao essencial e impor-lhe uma direo,dobr-lo a uma nova vontade, faz-lo entrar em um outro jogo e submet-lo anovas regras... (p. 270).

    Acreditamos que nosso trabalho constitui uma interpretao no sentido

    genealgico, j que busca dar uma direo e um sentido aos textos pecheutianos, a partirda correlao das idias neles apresentadas com pressupostos tericos a implcitos.

    Aps essas consideraes, resta apresentarmos como o trabalho est organizado.

    Ele composto por cinco captulos. O primeiro, intituladoA conjuntura da formao do

    projeto terico de Michel Pcheux, direcionado a uma sumria apresentao da

    conjuntura terica na qual o trabalho de Pcheux/Herbert se insere. Ele aborda: a)

    alguns pontos da conjuntura terica dos anos 60 que tiveram uma grande influncia na

    idealizao e construo da anlise do discurso pecheutiana; b) as relaes que se

    estabeleceram entre Pcheux e o grupo de filsofos seguidores de Althusser e a

    influncia que essa rede de relaes teve sobre a formao do projeto terico do

    filsofo; c) o modo como o grupo althusseriano compreendia o que na teoria marxista se

    denominava cincia da histria (ou Materialismo Histrico) e filosofia marxista (ou

    Materialismo Dialtico); e, por fim, d) a primeira verso da teoria da ideologia

    elaborada por Althusser, a qual retomada por Pcheux em seus textos iniciais. O

    objetivo desse captulo, ao tratar desses temas bem gerais, situar as referncias

    tericas e os propsitos de Pcheux no perodo da formao de seu projeto terico.

    O segundo captulo, intitulado Pressupostos epistemolgicos da obra de Michel

    Pcheux/Thomas Herbert, procura expor os principais conceitos e categorias de duas

    correntes de epistemologia que esto na base dos textos produzidos por

    Pcheux/Herbert: o Materialismo Dialtico, segundo a leitura de Althusser, e a

    epistemologia histrica francesa, cujos maiores representantes so Bachelard e

    Canguilhem.

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    O terceiro captulo, de nome O projeto de uma cincia das ideologias e o

    mtodo de escuta social, trata do primeiro texto escrito por Pcheux, assinado com o

    pseudnimo de Thomas Herbert: Reflexes sobre a situao terica das cincias

    sociais e, especialmente, da psicologia social, de 1966. Nele, tentamos mostrar quais as

    preocupaes tericas de Pcheux no incio de sua trajetria e em que medida elas se

    relacionam com um projeto de uma teoria e uma anlise do discurso. Destacamos,

    ainda, a apropriao que o autor faz de conceitos do Materialismo Histrico na

    elaborao de sua teoria das ideologias e na crtica s cincias sociais.

    O quarto captulo, por sua vez, intitula-se A teoria geral das ideologias de

    Thomas Herbert. Apresentamos, nele, as reflexes que perpassam o segundo texto de

    Herbert, Observaes para uma teoria geral das ideologias, de 1968, buscando apontar

    as continuidades e descontinuidades que este texto mantm com o anterior, bem como

    as novidades tericas que ele apresenta em relao quele. Alm disso, destacamos o

    modo como o autor utiliza, em sua teoria, conceitos advindos da Lingstica e da

    Psicanlise, procurando apresentar como estes foram pensados em seu campo original e

    transformados pelo trabalho pecheutiano. Por fim, tentamos elaborar uma interpretao

    para a passagem final do referido texto, onde figura uma rpida referncia a um mtodo

    de experimentao que, segundo o autor, deveria ser ainda construdo, por acreditarmos

    que a reside o ponto em que Herbert e Pcheux se encontram.

    O quinto captulo, de nome Rumo teoria e ao mtodo de anlise do discurso,

    trata dos dois artigos, assinados com Michel Pcheux, escritos antes da AAD-69:

    Analyse de contenu et thorie du discours,de 1967, e Vers une technique danalyse

    du discours, de 1968. Procuramos comentar os primeiros conceitos da teoria do

    discurso apresentados nesses textos, enfatizando o modo como o autor construiu o

    objeto dessa teoria, bem como as linhas gerais do mtodo de anlise proposto. Mas

    nossa questo central mesmo discorrer sobre a funo que tal mtodo deveria ter nointerior de vrios domnios: a histria das cincias, o Materialismo Histrico e o

    Dialtico e as cincias sociais, seguindo as pistas deixadas pelo prprio Pcheux.

    Dessa forma, nosso trabalho engloba o total da produo terica de Pcheux no

    perodo que precede a publicao da obra inaugural da anlise do discurso, o qual

    chamamos aqui de pr-AD. O conjunto formado por esses quatro textos que, embora

    possam parecer ligados a objetivos e preocupaes diferentes, mantm uma ntima

    relao que poder ser compreendida ao final de nossas anlises.

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    Para finalizar, acreditamos ser necessria uma ltima observao. Tudo o que

    dissemos nesta pequena introduo pode dar a falsa idia de que o nosso trabalho

    permeado de certezas. Gostaramos de enfatizar, entretanto, que ele, durante sua

    construo, foi marcado por muitas dvidas e inseguranas. De fato, no temos a nossa

    disposio nenhuma obra que faa uma histria detalhada da AD nesse perodo que

    abordamos, ou seja, sua fase de idealizao e preparao, obra essa que possamos

    consultar e na qual possamos nos apoiar em nossas interpretaes. Sem dvida, existem

    pequenos artigos, como o de Paul Henry, intitulado Os fundamentos tericos da

    Anlise Automtica do Discurso de Michel Pcheux (1969), que tratam dos textos

    assinados por Thomas Herbert. Ao lado de sua grande validade, eles tm, no entanto,

    pouco aprofundamento. Por esse motivo, e por meio dele, tentamos justificar as falhas

    que aqui se apresentam, tanto no aspecto do contedo do que dissemos quanto da

    problematizao que fazemos. No menor a culpa de quem realizou o trabalho, dado

    seu estgio de ainda engatinhamentonas trilhas do discurso.

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    CAPTULO 1

    A CONJUNTURA DA FORMAO DO PROJETO TERICO DE MICHEL

    PCHEUX

    Neste captulo, tratamos da conjuntura terica vigente na Frana na dcada de

    60, poca em que podemos situar a formao do projeto terico de Michel Pcheux.

    Estamos considerando aqui que esse projeto no se resumiu teoria e a anlise do

    discurso elaborada e desenvolvida pelo filsofo desde os anos 60 at os 80, mas que ela

    seja uma parte dele, a qual obteve cada vez mais importncia e centralidade no percurso

    que seu autor seguiu.Nosso pressuposto aqui o de que esse projeto teve sua emergncia em meados

    da dcada de 60, antes mesmo da publicao da Anlise Automtica do Discurso

    (1969), com a publicao de dois textos de Pcheux, assinados com o pseudnimo de

    Thomas Herbert, com o propsito de interveno no campo da histria das cincias e da

    teoria das ideologias.

    Alm disso, o projeto terico de Pcheux, nos momentos iniciais de sua

    constituio, inscreve-se no interior de um amplo programa de desenvolvimento dateoria marxista, encabeado por Louis Althusser e pelo seu grupo de discpulos, no qual

    Pcheux se inseria. O programa althusseriano passava necessariamente pela realizao

    de certas tarefas de cunho terico, das quais a mais urgente era o desenvolvimento de

    uma teoria das ideologias.

    Sendo assim, iniciamos dando uma viso panormica sobre a conjuntura terica

    da Frana nos anos 60, abordando os trs pontos que tiveram ampla repercusso na

    trajetria de Pcheux o movimento das chamadas releituras de clssicos do sculoXIX, o apogeu do estruturalismo e a intensa discusso sobre epistemologia e histria

    das cincias.

    Em seguida, tratamos da relao de Pcheux com Althusser. Mencionamos

    rapidamente a sua entrada para Escola Normal Superior (ENS) da Rue dUlm; seu

    encontro a com Althusser; sua participao no grupo de estudantes e filsofos que ele

    coordenava; seu engajamento no projeto althusseriano: a participao no programa de

    pesquisas empreendido pelo grupo e as primeiras produes tericas resultadas dessa

    participao.

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    Adiante, explicamos o modo como os althusserianos concebiam a constituio

    da teoria marxista. Para tanto, definimos o que eles entendiam por cincia da histria e

    por filosofia marxista e apontamos que, no domnio dessas duas disciplinas, havia um

    vasto programa de pesquisas a ser realizado. Isso ser importante para entendermos o

    papel que Pcheux, que era membro desse grupo, assumiu nesse programa e o modo

    como pensava a relao da Anlise do Discurso com a cincia histria.

    Finalmente, apresentamos a primeira teoria da ideologia elaborada por

    Althusser. Isso importante no s porque essa teoria que est na base do projeto

    terico de Pcheux, mas tambm porque a ela que pretende dar sua contribuio

    particular.

    Consideramos esses pontos importantes para compreendermos a filiao, as

    preocupaes e as referncias tericas de Pcheux e a relao delas com o seu projeto

    de elaborao de uma anlise automtica do discurso.

    1.1 A conjuntura dos anos 60

    Michel Pcheux nasceu em 1938. Em 1963, ele obteve a agregao de filosofia.

    Em 1969, quando publica sua primeira grande obra, a Anlise Automtica do Discurso,

    tem apenas 31 anos de idade. Essas datas nos indicam que os anos de sua formao

    terica coincidem com um perodo de profunda transformao da conjuntura intelectual

    francesa; uma transformao que comea a se desenhar no incio dos anos 50, mas que

    s atinge o seu apogeu durante os anos 60. Um breve panorama dela nos ajudar a

    entender o que segue.

    Em linhas gerais, trs acontecimentos tericos destacam-se nessa conjuntura: as

    releituras de Marx, Freud e Nietzsche; o advento do estruturalismo como fenmenocultural e os esforos para voltar a epistemologia e a histria das cincias para o

    domnio das cincias humanas.

    A filosofia francesa do ps-guerra fora dominada pela fenomenologia e pelo

    existencialismo. Seus representantes principais foram Jean-Paul Sartre e Maurice

    Merleau-Ponty. Porm os temas, as questes e os conceitos principais dessas duas

    correntes vinham da Alemanha: da dialtica hegeliana, da Fenomenologia de

    Edmund Husserl, da Filosofia da Existncia de Martin Heidegger. Nos anos 60, ainfluncia de pensadores de lngua alem ainda forte, mas as referncias

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    dominantes agora so o Materialismo Histrico e Dialtico de Marx, a Psicanlise de

    Freud e a genealogia de Nietzsche. Porm, preciso destacar que as referncias que

    se fazem a esses autores nos anos 60 passam quase sempre pelo filtro de releituras:

    o que conta ento o Marx relido por Louis Althusser, o Freud relido por Jacques

    Lacan, o Nietzsche relido por Gilles Deleuze.

    Nessa poca acontece tambm que o estruturalismo assume um papel renovador

    como fenmeno cultural. O estruturalismo era originalmente uma corrente lingstica

    surgida como desdobramento do pensamento de Ferdinand de Saussure. A partir dos

    anos 50, a Lingstica estrutural, graas a seus evidentes progressos, comea a exercer

    uma influncia decisiva e renovadora sobre outros campos do saber. Seus conceitos e

    mtodos so transpostos e aplicados ao estudo de outros objetos que no a lngua.Claude Lvi-Strauss utiliza-os na Antropologia; Jacques Lacan, na Psicanlise; Roland

    Barthes, na Semiologia. a poca da Lingstica como cincia piloto das cincias

    sociais.

    Mas, segundo Michel Foucault ([1985], 2000)1, ao lado do papel do marxismo,

    da Psicanlise, da Lingstica e da Antropologia, a epistemologia histrica francesa

    tambm teve grande importncia para o pensamento da poca. Para ele, nesses

    estranhos anos 60 viu-se a passagem de uma filosofia da experincia, do sentido e do

    sujeito para uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito (p. 353). A

    primeira tinha por referncia Sartre e Merleau-Ponty; a segunda, Jean Cavaills, Gaston

    Bachelard, Alexandre Koyr e Georges Canguilhem. Sobre essa segunda linhagem

    filosfica seria interessante, no entanto, fazer duas observaes. A primeira que ela

    no se ope apenas fenomenologia e ao existencialismo, mas tambm ao positivismo

    que dominava a filosofia e a histria das cincias na Frana at ento, segundo observa

    Dominique Lecourt (1980, p. 4). A segunda que, a partir dos anos sessenta, essa

    filosofia do saber, da racionalidade e do conceito, que estivera, at o momento,

    concentrada nas cincias exatas e biolgicas, volta-se ento para as cincias humanas.

    Mencionamos acima que nessa conjuntura que Pcheux far sua aprendizagem

    filosfica. Agora preciso ir alm e explicar que a partir dos problemas que ela

    suscita e das alternativas que oferece que ele comear a esboar o projeto de uma

    1

    Nas referncias bibliogrficas das citaes que fizermos, colocaremos entre colchetes a data da versooriginal. A data e a pgina indicadas em seguida se referem publicao em portugus da edio queestamos utilizando.

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    Anlise do Discurso2. com as personagens que nela despontam que esse projeto

    dialoga: evocando essas personagens, Pcheux ([1982], 1997, p. 254) menciona os

    nomes de Marx, Nietzsche, Freud, Saussure, Althusser, Lacan, Lvi-Strauss e Barthes.

    Entretanto seria injusto no mencionar o papel que tiveram Bachelard e Canguilhem,

    nesse momento.

    Porm, para a trajetria intelectual de Pcheux, a personagem-chave Althusser.

    A influncia de Althusser sobre Pcheux foi to forte que no deixa de ser lembrada por

    seus companheiros na aventura terica da Anlise do Discurso, como por exemplo,

    Denise Maldidier (2003, p.18):

    Se fosse necessrio, nesses anos de aprendizagem, designar um nome, umplo, eu no hesitaria: Althusser , para Michel Pcheux, aquele que faz brotar afagulha terica, o que faz nascer os projetos de longo curso.

    Sem dvida, foi atravs daquilo que Althusser ensinava e escrevia que a

    conjuntura terica dos anos sessenta adquire um sentido aos olhos de Pcheux. Atravs

    de Althusser que Pcheux percebe que as trs tendncias antes mencionadas (as

    releituras de Marx, Nietzsche e Freud; o estruturalismo; e a epistemologia) no eram

    justapostas nem excludentes; antes convergiam sobre pontos importantes e

    apresentavam entrecruzamentos uma influenciando a outra. As trs colocavam em

    questo, por exemplo, o estatuto do sujeito e da noo de homem, em torno do qualgirava toda a reflexo desenvolvida pela filosofia anterior.

    Mas a partir do modo como Althusser e seu grupo interpretavam o

    entrecruzamento dessas tendncias que as questes fundamentais que conduziram ao

    projeto de construo da AD vo surgir: a questo da leitura e a questo das relaes

    entre a cincia e a ideologia.

    Althusser ensinara que as releituras de Marx, Freud e Nietzsche suscitam a

    questo crucial que ler?; que esses estudiosos problematizaram esses atos maissimples da existncia humana que ver, escutar, falar e ler, mas tambm alguns

    conhecimentos perturbadores que permitem compreender tais atos; que a Lingstica

    moderna tem um papel importante na compreenso desses atos na medida em que

    contribui para a decifrao do discurso do inconsciente e da ideologia que neles subjaz

    (ALTHUSSER et al, [1965], 1979, p.14).

    2O modo como Pcheux tentou responder a esses problemas, lanando mo da elaborao de uma anliseautomtica do discurso, ser explicitado nos captulos seguintes.

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    Althusser ensinava que as releituras de Marx e Freud e o advento do

    estruturalismo levantavam importantes questes epistemolgicas, relativas

    cientificidade do marxismo, da Psicanlise e da Lingstica; sua especificidade (j que

    se distanciavam muito da concepo positivista das cincias ento dominantes);

    legitimidade da transposio de conceitos e mtodos oriundos na Lingstica para outros

    domnios do saber (Semiologia, Antropologia, Psicanlise). Isso pe na ordem do dia a

    discusso epistemolgica. Da toda essa gerao voltar-se para a tradio de filosofia e

    histria das cincias iniciada por Bachelard.

    Mas Althusser ensinava tambm que essa epistemologia no estava isenta de

    falhas ou ausncias, visto que ignorava as condies sociais (econmicas, polticas e,

    principalmente, ideolgicas) nas quais as cincias se produziam. Para corrigir essas

    falhas, segundo ele, era necessrio recorrer ao Materialismo Histrico e ao Materialismo

    Dialtico.

    Antes de tratarmos sobre o que Althusser entendia por Materialismo Histrico

    (MH) e Materialismo Dialtico (MD), convm comentarmos o modo como se deu o

    relacionamento de Pcheux com o filsofo marxista, pois, retomando Maldidier, ele

    quem, para Pcheux, faz nascer os projetos de longa durao.

    1.2 Michel Pcheux e o grupo althusseriano

    Althusser trabalhou durante mais de trinta anos na ENS da Rue dUlm, onde era

    encarregado de preparar os jovens filsofos que iriam prestar concurso para serem

    tambm professores de filosofia (DELACAMPAGNE, 1997, p. 220). Pcheux foi um

    dos alunos de Althusser, mas a relao entre eles foi muito alm da de professor e aluno.

    Na verdade, Pcheux, juntamente com um grupo de outros filsofos, tornou-sediscpulo de Althusser, ao se engajar no projeto de releitura de Marx que ele vinha

    desenvolvendo desde h algum tempo. Ao assumir o papel de promotor dessa releitura,

    bem como de dar suas coordenadas, ele passou a exercer grande influncia sobre toda

    uma gerao de discpulos.

    Durante o perodo de 1961 a 1965, que antecede a formao do projeto terico

    de Pcheux, Althusser dirigiu estudos fundamentais para o desenvolvimento do

    marxismo, os quais traro conseqncias diversas. De 61 a 62, ele organizou um

    seminrio sobre o jovem Marx, do qual participaram Pierre Macherey, Roger Establet,

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    Michel Pcheux, Franois Rgnault, tienne Balibar, Jacques Rancire (DOSSE, 1993,

    p. 325). De 62 a 63, tratou das origens do pensamento estruturalista, a partir da leitura

    de Lvi-Strauss, Lacan e Foucault, cujas sesses foram coordenadas pelos alunos.

    Jacques Rancire e Michel Pcheux trataram de Lacan (ERIBON, 1996, p. 191). E,

    finalmente, em 1965, coordenou uma leitura coletiva da obra O Capital3, de Marx,

    realizando, em seguida, um seminrio para apresentao dos resultados tericos dessa

    leitura, o qual deu origem obraLer O Capital, publicada em dois volumes pela editora

    Maspero.

    Em 1967, preocupado com o lugar da filosofia no campo do saber e seu papel na

    teoria marxista e na luta de classes, Althusser organizou o Curso de filosofia para

    cientistas, estruturado de modo que se formaram duplas para expor determinados temas.

    O tema de Althusser, Filosofia e filosofia espontnea dos cientistas, virou depois

    livro, sendo publicado em 1974 pela Maspero, bem como a exposio de Pcheux e de

    Rgnault, A ruptura epistemolgica.

    Os temas e textos estudados durante esses anos de seminrios na ENS foram

    decisivos para o grupo ir construindo suas concepes sobre a epistemologia, o

    marxismo, a Psicanlise e o estruturalismo. As discusses surgidas e aprofundadas no

    grupo acabaram por se tornar objeto de investigaes dos discpulos althusserianos, o

    que resultou em teorias diversas sobre a ideologia, a cincia, a literatura, a religio.

    A partir da releitura de Marx e dos resultados tericos propiciados por ela,

    Althusser estava em condies de defender sua tese central, a de que o Materialismo

    Histrico era, de fato, uma cincia, mas com a ressalva de que precisava ser

    desenvolvido urgentemente, dado o seu estado (comum a qualquer cincia) inacabado.

    Esse desenvolvimento passava obrigatoriamente pela execuo de uma srie de

    tarefas, apontadas pela leitura epistemolgica de O Capital. Falaremos mais sobre as

    tarefas na seo seguinte, pois elas precisam ser relacionadas definio deMaterialismo Histrico e Dialtico.

    Como no poderia deixar de ser, a forte influncia de Althusser tambm se

    exerceu sobre os trabalhos de Pcheux, no s com relao escolha dos temas com que

    se ocupou, mas tambm com relao s posies tericas: o que o mestre dizia soava

    como lei aos ouvidos desse discpulo.

    3 Obra composta de trs livros, que contm, segundo Althusser, a teoria cientfica de Marx e a suafilosofia.

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    Desse modo, as primeiras produes tericas de Pcheux esto completamente

    envolvidas no debate althusseriano sobre as cincias sociais, a ideologia e a

    epistemologia. Elas foram publicadas em peridicos organizados pelos discpulos de

    Althusser, como os Cahiers pour lanalyse (revista de divulgao das posies do

    Crculo de Epistemologia da ENS) e a coleo Teoria. Nos Cahiers, foram publicados

    os dois primeiros textos de Pcheux, assinados com o pseudnimo de Thomas Herbert:

    em 1966, Reflexes sobre a situao terica das cincias sociais e, especialmente, da

    psicologia social e, em 1968, Observaes para uma teoria geral das ideologias

    (HENRY, 1997, p. 13), os quais trazem, respectivamente, uma reflexo sobre o estatuto

    das cincias sociais, que era uma discusso forte entre os althusserianos 4, e sobre a

    ideologia, ponto nevrlgico da teoria marxista, como veremos a seguir. No nmero nove

    da coleo Teoria, j em 1969, Pcheux publicou, em parceria com Michel Fichant,

    Sobre a histria das cincias, abordando dessa vez os efeitos do corte epistemolgico

    de Galileu na fsica e na biologia.

    Como podemos ver, esses textos no tratam ainda do tema da Anlise do

    Discurso, que parece estar ignorado pelo jovem filsofo. Entretanto devemos notar que,

    no intervalo entre a publicao dos seus dois primeiros textos, Pcheux publicou os

    textos Analyse de contenu et thorie du discours, de 1967, e Vers une technique

    danalyse du discours, do incio de 1968, nos quais certos temas que aparecero na

    Anlise Automtica do Discursoj se fazem presentes, como a crtica aos mtodos de

    anlise de contedo e a apresentao de um mtodo de anlise do discurso. Esses textos

    so publicados, respectivamente, em Bulletin du CERP e em Psychologie franaise,

    peridicos no ligados ao grupo althusseriano.

    Os temas presentes nesses textos afastam-se em parte daqueles mais

    centralmente debatidos na ENS. Se a teorizao sobre a ideologia no mais central, ,

    entretanto, a sua materializao por meio do discurso que est sendo visada. Se no acrtica direta s cincias sociais que est em destaque, a crtica aos mtodos por ela

    utilizados que est sendo feita e no gratuitamente, mas a fim de poder oferecer uma

    alternativa5.

    Neste ponto, vemos Pcheux comear a buscar seu prprio caminho. Dentro do

    projeto maior de desenvolvimento da teoria marxista, h pequenos projetos que so

    4Voltaremos a esse assunto nos captulos 2 e 3.5

    Os problemas que permeiam os textos de Michel Pcheux publicados no perodo de 1967 a 1969 seroexpostos tambm nos captulos seguintes, momento em que tentaremos encontrar o ponto que ligareflexes aparentemente to heterogneas.

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    etapas a serem cumpridas. Dentro da teoria da ideologia em geral, h a teoria das

    ideologias particulares a ser elaborada. Althusser no pensava em tudo, ele deu pistas

    sobre a relao linguagem ideologia e foi sobre essa relao que Pcheux comeou a

    esboar os primeiros elementos de uma futura teoria.

    Os anos 60 no foram vividos por Pcheux somente no interior da ENS. Em 66

    ocorre um fato que vai significar mais um momento importante da sua trajetria: a

    entrada para o Laboratrio de Psicologia Social do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa

    Cientfica). Segundo Michel Plon (2005), a entrada para o Laboratrio foi uma forma de

    luta poltica na teoria, um:

    plano de reconstruo, de higienizao desses adversrios selvagens e brbarosque so os domnios da psicologia e da psicologia social, feito de missesarriscadas, verdadeiros paraquedas noturnos e clandestinos nas zonas maislamacentas e, como tais, mais perigosas. Michel foi assim designado e lanadoem paraquedas nesse laboratrio da Rue de la Sorbonne (p. 48).

    Plon refere-se, com a expresso adversrios selvagens e brbaros que so os

    domnios da psicologia e da psicologia social, ao estatuto no cientfico desse campo

    do saber, segundo a concepo de cincia e ideologia sustentada por Althusser e seu

    grupo.

    Mas o que nos interessa salientar no se a entrada para o CNRS teve mesmo

    esse objetivo de fazer a revoluo no campo do inimigo, ou seja, levar a cincia para

    onde havia a ideologia. O que nos interessa salientar, por enquanto, o encontro com

    dois pesquisadores de l: Michel Plon e Paul Henry, que tinham formao, o primeiro,

    em matemtica e lingstica, e o segundo, em psicologia. Pcheux, Plon e Henry

    encontram um ponto em comum: as crticas que fazem anlise de contedo e

    psicologia social. Segundo Maldidier (2003, p. 17): Uma convivncia imediata se

    estabelece entre eles. Eles lem, discutem, trabalham juntos. A Comuna dos trs

    amigos est na retaguarda do grande projeto de Michel Pcheux, de elaborao de um

    mtodo de anlise automtica do discurso.

    Assim, vemos que tm uma grande influncia sobre o projeto terico de Pcheux

    no somente a conjuntura terica dos anos 60, mas tambm os aliados com quem

    estabeleceu relaes e dilogos.

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    1.3 Um programa de pesquisas para o grupo althusseriano

    Conforme apontamos na seo precedente, Althusser tinha se incumbido da

    tarefa de reler Marx. Essa releitura englobaria os textos do prprio Marx,

    principalmente da obra que, em sua concepo, era a mais importante por conter a sua

    teoria cientfica, O Capital. Essa tarefa se justificava pela necessidade de

    desenvolvimento terico do marxismo, que estava h algum tempo estagnado, segundo

    acreditava o filsofo.

    Na realizao dessa tarefa, ele se posiciona contrariamente a duas tendncias que

    tm concepes diferentes a respeito do marxismo. Uma delas j aparecera na poca do

    regime stalinista e ficou conhecida como dogmatismo marxista. A outra tem seu

    aparecimento datado da realizao do XX Congresso do Partido Comunista da Unio

    Sovitica, conhecida como o humanismo terico.

    A tendncia dogmtica se caracterizava por limitar a prtica da filosofia ao

    comentrio das obras de Marx ou ao silncio. Segundo Althusser ([1965],1979c):

    Para um filsofo no havia sada. Se falava ou escrevia filosofia na inteno dopartido, estava votado aos comentrios e s magras variaes sobre as ClebresCitaes, para uso interno (p.17).

    Por limitar a prtica terica do marxismo mera repetio de Marx, a tendncia

    dogmtica condenou-a a um atraso terico. Ela sacrificou e bloqueou o seu

    desenvolvimento, suspeitando de qualquer novidade terica e, assim, impedindo a

    liberdade de investigao cientfica nesse campo do saber.

    Contra essa postura dogmtica, Althusser defendia que era necessrio

    desenvolvera teoria marxista. Para ele, o marxismo era, de fato, uma cincia e a sua

    sobrevivncia era possvel somente com seu desenvolvimento, pois uma cincia que se

    repete, sem descobrir nada uma cincia morta (...), um dogma fixo (ALTHUSSER,

    [1965], 1979b, p. 39). Todas as interpretaes dogmticas deviam ser repelidas.

    A tendncia humanista, por sua vez, surge na realizao do XX Congresso a

    partir da crtica feita ao dogmatismo reinante no movimento comunista. Ela se

    caracteriza por ser liberal e voltar aos velhos temas filosficos da liberdade, de o

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    homem, da pessoa humana e da alienao (ALTHUSSER, [1965], 1979c, p. 6),

    buscando amparo terico nas obras da juventude de Marx6.

    No entanto, para o filsofo, o retorno de todos esses temas era um fenmeno

    ideolgico. O humanismo terico pecava por no diferenciar a teoria marxista da teoria

    pr-marxista, no cientfica, e por no levar em conta o corte epistemolgico que Marx

    efetuou com o seu pensamento ideolgico anterior.

    Assim, estavam colocados em cena os dois adversrios a serem combatidos os

    dogmticos e os humanistas, que caam ambos na armadilha de tratar o marxismo como

    ideologia e no como cincia e, por isso, a reconquista de sua cientificidade [do

    marxismo] se converter, para Althusser, numa preocupao quase obsessiva

    (VZQUEZ, 1980, p. 17).

    As concepes de Althusser a respeito da cincia e de seu desenvolvimento, que

    no s embasam a crtica que ele faz s duas tendncias anteriormente citadas, mas

    tambm do o suporte no qual ele se apia para levar o marxismo a um nvel mais

    avanado de elaborao terica so herdeiras, em grande parte, da corrente da

    epistemologia histrica francesa de Bachelard e Canguilhem.

    Como referimos h pouco, o desenvolvimento terico do marxismo proposto por

    Althusser constitui um grande projeto epistemolgico embasado na releitura de O

    Capital. Essa releitura se destinava, segundo o filsofo, a vrios fins: questionar o

    objeto especfico de um discurso especfico e as relaes desse objeto com esse

    discurso; definir o lugar que O Capital ocupa na histria do saber; estabelecer em que o

    discurso dessa obra se distingue do discurso da economia poltica clssica e do discurso

    filosfico e ideolgico do jovem Marx (ALTHUSSER et al, [1965], 1979, p. 13). Por

    tudo que vimos, acreditamos que relacionar o projeto de releitura de Marx liderado por

    Althusser apenas a uma necessidade de restituir o verdadeiro Marx ou salvar o

    marxismo7 uma postura um tanto ingnua e reduz muito as dimenses desse projeto.Pois bem. A releitura que Althusser faz do marxismo distingue-se totalmente das

    interpretaes dogmticas e humanistas. A tese de Althusser, baseada em conceitos

    cientficos do marxismo e em conceitos bachelardianos, o fato de que a teoria marxista

    6 Para Althusser, a obra de Marx compreende duas fases uma ideolgica e uma cientfica, que sodesignadas, respectivamente, com as expressesjovem MarxeMarx maduro.7

    Essa parece ser a posio de Dosse (1993), ao afirmar que Ressuscitar um marxismo cientficodesembaraado das escrias dos regimes que se valem dele, tal o desafio estimulante que LouisAlthusser apresenta a uma gerao militante, temperada nos combates anticolonialistas (p. 329).

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    passa por uma transformao radical h uma ruptura que a divide em duas fases: uma

    ideolgica e uma cientfica.

    Alm disso, a teoria marxista no uma coisa s. Ela constituda por duas

    disciplinas distintas, o Materialismo Histrico (cincia da histria) e o Materialismo

    Dialtico (filosofia marxista), ambas fundadas por Marx. A elaborao das pedras

    angulares dessas duas disciplinas representava, segundo Althusser, a dupla revoluo

    terica de Marx. Uma das tarefas da releitura proposta pelo filsofo francs era a de

    apontar no s as condies em que as duas disciplinas puderam ser fundadas, mas

    tambm as especificidades de cada uma delas.

    Para iniciar, vejamos o que ele diz sobre a fundao da cincia da histria:

    Marx fundou uma cincia nova: a cincia da histria. (...). As cincias que nsconhecemos esto instaladas em alguns grandes continentes. Antes de Marxestavam abertos ao conhecimento cientfico dois continentes: o continente-Matemtica e o continente-Fsica. O primeiro pelos gregos (Thales) e o segundopor Galileu. Marx descortinou para o conhecimento cientfico um terceirocontinente: o continente-Histria (ALTHUSSER, [1968], 1980, p. 157).

    Como vemos, para Althusser, Marx no elaborou uma teoria do econmico,

    simplesmente. Ele fundou uma cincia nova, a cincia da histria, a qual, por sua vez,

    no uma cincia qualquer ela um continente cientfico. Para entendermos melhor

    essa posio de Althusser, temos que apelar para a concepo que ele tem do espao

    terico:

    Com efeito, se considerarmos as grandes descobertas cientficas da histriahumana, parece que poderamos descrever aquilo a que chamamos as cincias,como formaes regionais do que designamos pelos grandes continentestericos (ALTHUSSER, [1967], 1976, p. 31).

    Nessa passagem, fica exposto implicitamente que o espao terico composto

    por continentes cientficos, que abrigam cincias regionais. Por exemplo, uma cincia

    como a Qumica, iniciada pelo corte epistemolgico de Lavoisier cincia regional do

    Continente-Fsica. A Biologia, ao se integrar qumica molecular, tambm faz parte do

    Continente-Fsica. A Lgica moderna pertence ao Continente-Matemtica.

    Os continentes cientficos existentes no momento eram trs a fsica, a

    matemtica e a histria, sendo este ltimo fundado por Marx. Disso decorre que Marx

    no se limitou a elaborar uma teoria econmica. Ele fundou, com um corte

    epistemolgico, a cincia da histria, no interior da qual se constituiria uma teoria do

    nvel econmico.

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    Dizer que o MH a cincia da histria representa uma posio terica nem

    sempre bem compreendida por todos. Por isso, necessrio enfatizar que Histria no

    entendida pelo grupo althusseriano como a disciplina histria ou a historiografia. A

    cincia da histria um continenteque abrange tudo que social. Qualquer fenmeno

    social (seja ele econmico, poltico ou ideolgico) cai obrigatoriamente no domnio

    desta cincia. Como conseqncia, a cincia da histria no pensada como uma

    cincia a mais ao lado de outras cincias sociais, como a sociologia, a economia ou a

    psicologia; ela o continente no interior do qual qualquer saber que reivindique para

    si o status de cincia social dever vir a se inscrever.

    Ter isso em mente extremamente importante para entender o modo como

    Pcheux via as relaes entre a Anlise do Discurso e a cincia da histria e para

    entender o lugar que ela ocupa no espao terico.

    Segundo Althusser ([1966], 1979a), o MH tem por objeto os modos de

    produo que surgiram e que surgiro na histria. Estuda a sua estrutura, a sua

    constituio e as formas de transio de um modo de produo para outro (p.34).

    Um modo de produo se caracteriza por ser uma totalidade orgnica,

    constituda de um conjunto de trs instncias 1. a infraestrutura econmica; 2. a

    superestrutura jurdico-poltica; 3. a superestrutura ideolgica. Elas so articuladas entre

    si, mas possuem uma certa autonomia relativa umas em relao s outras, ainda que a

    infraestrutura econmica seja determinante em ltima instncia. Althusser caracteriza a

    superestrutura ideolgica como uma instncia composta de regies, como a poltica, o

    direito, a arte, a religio, a filosofia.

    Sendo assim, o MH a teoria dessa estrutura, do conjunto de suas instncias e

    do tipo de articulao e de determinao que as une entre si. Cada uma delas, tendo essa

    autonomia relativa, pode ser considerada como um todo parcial, uma estrutura regional,

    podendo ser objeto de um tratamento cientfico relativamente independente. Assim, h apossibilidade de uma teoria da histria das diferentes instncias: uma teoria da histria

    da poltica, da filosofia, da arte, das cincias, da ideologia, ou seja, todas as regies que

    constituem as trs instncias.

    Na concepo dos althusserianos, na obra O Capital, Marx forneceu uma anlise

    cientfica do nvel econmico do modo de produo capitalista. Ou seja, ele forneceu a

    anlise de um s nvel de apenas um modo de produo. Ele no forneceu uma teoria

    dos outros nveis do modo de produo capitalista; nem de outros modos de produo;

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    nem mesmo uma teoria das formas de transio de um modo de produo a outro. Em

    sua obra s se encontram esboos desses assuntos.

    Entretanto, em O Capital, encontram-se elementos tericos suficientes para a

    elaborao da teoria das superestruturas do modo de produo capitalista, bem como

    outros elementos que possibilitam elaborar teorias de outros modos de produo.

    Os conceitos tericos que permitiram elaborar a teoria da regio econmicado capitalismo, uma vez extrados e enunciados, apresentam-se a ns comoprincpios tericos gerais que permitem colocar o problema da natureza dasoutras regies, isto , criar a teoria das superestruturas (ALTHUSSER,[1966], 1979a, p. 38).

    Com a constatao de que havia, no domnio do MH, toda uma teoria das

    superestruturas ideolgica e poltica a ser desenvolvida e de que os conceitos de base

    para levar isso a cabo j existiam, o grupo dos althusserianos viu abrir-se diante de si

    um vasto programa de pesquisas. Quase todos eles, inclusive Pcheux, dedicaram-se

    elaborao da teoria da superestrutura ideolgica, includas a as suas teorias regionais.

    Tratamos at agora da definio de cincia da histria e do objeto de que ela se

    ocupa. Resta tratar da segunda disciplina que completa a dupla revoluo terica de

    Marx, a filosofia marxista.

    Na concepo de Althusser ([1968], 1980), toda fundao de uma nova cincia

    acarreta uma revoluo na filosofia. Segundo ele:

    Isso uma lei: a filosofia est sempre ligada s cincias. A filosofia nasce(com Plato) com a abertura do continente-Matemtica. Foi transformada (comDescartes) pela abertura do continente-Fsica. Est hoje revolucionada pelaabertura do continente-Histria por Marx. Esta revoluo denomina-sematerialismo dialtico (p. 157).

    O grande problema que a filosofia, por vir normalmente aps a cincia,

    encontra-se num estado de atraso em relao a ela8. Os avanos tericos alcanados por

    Marx no domnio da cincia da histria no foram nem de perto os mesmos no domnioda filosofia marxista, j que ele no teve tempo de desenvolv-la teoricamente.

    Entretanto essa situao especial do MD no consistia em prejuzo para a teoria

    marxista, uma vez que ela existia em estado prtico em O Capital, ou seja, na prtica

    terica de Marx, e isso tornava possvel elev-la a um estado terico (ALTHUSSER,

    [1965], 1979c, p. 151).

    8

    Posteriormente, Althusser retificar essa posio, afirmando que a existncia de uma revoluo nocampo da filosofia marxista, possibilitada por uma revoluo na prtica poltica do proletariado, que tornapossvel a fundao da cincia da histria.

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    Aqui j se esboa uma das tarefas para os intelectuais marxistas interessados no

    desenvolvimento do marxismo: tornar terica essa filosofia que se encontra em estado

    prtico. Assim, a afirmao de Althusser: a filosofia marxista est em seus comeos.

    Seus progressos dependem de ns ([1966], 1979a, p. 48) adquire a adeso de seus

    discpulos.

    Mas do que trata a filosofia marxista? Com quais categorias ela trabalha? Tal

    filosofia, segundo as concepes do grupo althusseriano, uma espcie de

    epistemologia e pode ser definida como a histria da produo de conhecimentos

    enquanto conhecimentos (ALTHUSSER, [1966], 1979a, p. 43). Entretanto um trao

    diferencial dela que leva em considerao as condies histricas em que o

    conhecimento produzido.

    Essa filosofia vai reunir conceitos advindos do prprio Marx; de Bachelard e

    Canguilhem (corte epistemolgico, descontinuidade do conhecimento cientfico etc.); de

    Baruch Spinoza (a verdade como ndice de si mesma etc.); e, finalmente, de Jacques

    Martin (problemtica). Por meio deles, ela vai pensar a diferena existente entre cincia

    e ideologia e as condies de nascimento das cincias, com vistas a ser uma teoria

    histrica da cientificidade.

    Entretanto a filosofia marxista no o mesmo que a teoria clssica do

    conhecimento. Esta ltima apresentou-se historicamente sob diferentes formas: uma

    teoria das condies formais intemporais do conhecimento, do cogito (Descartes,

    Husserl); uma teoria das formas a priori do esprito humano (Kant); ou uma teoria do

    saber absoluto (Hegel). A filosofia marxista, ao contrrio, uma teoria da histria da

    produo dos conhecimentos, isto , uma teoria das condies reais (materiais e sociais

    de um lado, e condies internas a prtica cientfica, de outro) do processo desta

    produo (ALTHUSSER, [1966], 1979a, p. 43).

    O problema tradicional da filosofia se modifica. No mais a questo dasgarantias do conhecimento (como na teoria clssica do conhecimento), mas sim a

    questo do mecanismo de produo de conhecimentos enquanto tais. Para a filosofia

    marxista, o conhecimento no seno o processo de sua prpria produo, e s se pode

    colocar a questo das condies e do mecanismo de sua produo (ALTHUSSER,

    [1966], 1979a, p. 51).

    Para Althusser, como para a tradio marxista, a filosofia sempre desempenhou

    um importante papel na constituio e no desenvolvimento do conhecimento. Althusserexplica que o conhecimento no nasce nem se desenvolve num compartimento

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    fechado protegido das influncias do ambiente. Para ele, h influncias sociais e

    polticas (que interferem numa cincia, podendo at impedir seu desenvolvimento) e

    ideolgicas (que so menos visveis, mas nem por isso menos perigosas).

    O modo como o grupo althusseriano vai descrever o processo de produo dos

    conhecimentos, ou a prtica terica, ser exposto no prximo captulo.

    Assim, vemos que tambm no domnio do MD h um grande programa de

    pesquisas a ser realizado pelos pensadores marxistas. A explicao do processo de

    produo de conhecimentos, a definio da especificidade das diferentes prticas e,

    principalmente, da prtica terica; da diferena entre cincia e ideologia, tudo isso

    estava por ser teorizado no domnio da filosofia marxista.

    A filosofia marxista, por tratar do conhecimento, tem a necessidade de uma

    teoria da ideologia, pois, como veremos em seguida, a ideologia o principal obstculo

    epistemolgico da prtica cientfica.

    Assim, parece que essa teoria tem dupla importncia nessa empreitada porque

    ela requerida tanto pelo MH quanto pelo MD a ideologia no s uma instncia da

    formao social (e uma teoria dessa instncia precisa ser elaborada), mas tambm uma

    forma de representao do mundo que se ope ao conhecimento cientfico (e a teoria

    dessa diferena precisa ser desenvolvida). necessrio construir uma teoria da

    ideologia enquanto instncia da formao social e enquanto conjunto de representaes

    que se ope ao conhecimento cientfico.

    1.4 A ideologia em geral

    Sabemos que a teoria da ideologia que est na base da Anlise do Discurso de

    Pcheux aquela elaborada por seu mestre Althusser. Sabemos tambm que essa teoriafoi desenvolvida aos poucos e, nesse processo, sofreu ampliaes e retificaes, as

    quais, por sua vez, fizeram-se sentir nas retificaes da prpria Anlise do Discurso, que

    marcam as suas trs pocas.

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    Sendo assim, o nosso enfoque nesta seo ser a primeira teoria althusseriana da

    ideologia9. Isso se justifica pelo fato de que ela que est presente guiando as reflexes

    constitutivas do momento da formao do projeto terico de Pcheux, isto , o perodo

    que vai de 1966 a 1968, no qual so produzidos os textos de Herbert e os primeiros

    artigos de Pcheux.

    Nas primeiras elaboraes sobre a ideologia, Althusser se ocupou em definir a

    ideologia em geral. Entretanto o filsofo advertia que esse nico termo abarcava duas

    noes distintas, ainda que relacionadas. A primeira noo tem a ver com certa

    representao do real e tambm com um certo conhecimento desse real a funo

    terica da ideologia. A segunda tem uma realidade e uma funo sociais a sua funo

    prtico-social. A partir da primeira noo, Althusser pensa, por exemplo, a oposio

    entre cincia e ideologia e, da segunda, ele pensa sobre a funo da ideologia no interior

    de uma formao social (assegurar a diviso da sociedade em classes)10. Sendo assim, a

    ideologia em geral relaciona-se tanto com o conhecimento quanto com a sociedade11.

    A ideologia antes de tudo uma das instncias da formao social. Como

    explicamos h pouco, a teoria marxista define a sociedade como uma totalidade

    composta de trs instncias: a econmica, a jurdico-poltica e a ideolgica, sendo que a

    primeira constitui a base da sociedade e as duas ltimas constituem a sua superestrutura.

    A ideologia , portanto, parte orgnica de toda e qualquer sociedade.

    A instncia ideolgica possui relaes com as outras instncias da formao

    social e goza, como todas as outras, de certa autonomia relativa. Essa autonomia

    permite no s que ela seja estudada independentemente das relaes que mantm com

    as outras instncias, mas tambm que seja elaborada sobre ela uma teoria particular.

    Desse modo, impossvel conceber uma sociedade sem ideologia, j que sua

    parte estrutural. Segundo Althusser, somente uma concepo ideolgica do mundo pode

    pensar a sociedade sem ideologia ou a substituio desta pela cincia ([1966], 1979a). O

    9As elaboraes tericas que correspondem a essa primeira teoria althusseriana da ideologia so aquelasconstrudas desde o incio at meados da dcada de 60 e divulgadas em artigos publicados em vriasrevistas e jornais. Esses artigos foram, posteriormente, compilados na obraA favor de Marx, de 1965. Htambm algumas observaes sobre a ideologia na obra Ler O Capital I, de 1965, que so por nscitadas no decorrer deste captulo.10 O filsofo desenvolver mais detalhadamente o papel da ideologia nas formaes sociais na obra

    Ideologia e Aparelhos Ideolgicos de Estado, de 1970.11 O uso do mesmo termo para designar coisas distintas, segundo opinio de alguns comentadores deAlthusser, levou a algumas confuses por parte dos leitores. Por isso, posteriormente, ele passou a tratarde ideologias tericas (aquelas com funo de conhecimento) e ideologias no-tericas (aquelas com

    funo prtico-social). Isso no o isentou de crticas como a seguinte: ... a separao entre ideologiaterica e no-terica to profunda que no vemos por que Althusser recorre ao mesmo termo paradesignar as duas (VZQUEZ, 1980, p. 43).

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    que pode acontecer so modificaes nas formas ideolgicas, o aparecimento de novas

    formas ou o desaparecimento de outras, mas a ideologia, como instncia da sociedade,

    permanece em qualquer formao social.

    De um modo geral, a ideologia pode ser definida como:

    um sistema (possuindo a sua lgica e o seu rigor prprios) de representaes(imagens, mitos, idias ou conceitos segundo o caso) dotado de uma existnciae de um papel histricos no seio de uma sociedade dada (ALTHUSSER,[1965], 1979c, p. 204).

    Esse sistema de representaes indispensvel existncia da formao social e

    necessrio aos homens, que sem ele no podem subsistir. Os homens precisam se guiar

    por alguma representao do mundo e das relaes com ele. Para Althusser (1966):

    Tudo se passa como se os homens tivessem a necessidade, para poder existir

    como seres sociais conscientes e ativos na sociedade (...) de dispor de uma certarepresentao do mundo em que vivem... (p. 194).

    Assim, todas as atividades praticadas pelos homens (tais como as religiosas,

    econmicas e polticas) so investidas ideologicamente e so sustentadas por uma

    adeso, consciente ou no, a esse conjunto de representaes ideolgicas. Assim, a

    ideologia est presente nas atitudes dos homens em relao ao trabalho; na idia que

    tm sobre o mecanismo da produo; nos juzos polticos, no cinismo, na boa conduta;

    nas condutas familiares e sociais dos indivduos.A ideologia est presente em todos os atos e gestos dos indivduos at o pontode que indiscernvel a partir de sua experincia vivida, e toda anliseimediata do vivido est profundamente marcada pelos temas da vivnciaideolgica (ALTHUSSER, [1965], 1979b, p. 49)12.

    Se a ideologia um sistema de representaes, o que ele exprime? Segundo

    Althusser ([1965], 1979c),

    Na ideologia os homens exprimem, com efeito, no as suas relaes nas suascondies de existncia, mas a maneira como vivem a sua relao s suas

    condies de existncia: o que pressupe, ao mesmo tempo, relao real erelao vivida, imaginria (p. 206).

    Apesar de estar presente constitutivamente na sociedade, de guiar as condutas

    dos homens e de exprimir suas relaes imag