A Forma Romance - Aula
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A FORMA ROMANCE: ESTRUTURA E HISTÓRIA
- Pensando que o tema da aula é, conforme o sugerido, a estrutura e a história da
forma romance, eu pensei em dividir ela em três partes. (I) Primeiro eu gostaria de
pensar com vocês, a partir de um ensaio do Antônio Candido, algumas possibilidades de
articulação entre forma literária e processo histórico. Alguns maneiras como essa
relação pode ser pensada pela crítica. Uma relação que não é fácil e nem óbvia de ser
proposta. (II) Na sequência eu gostaria de discutir aqui como o Lukács pensa a estrutura
da forma romance justamente a partir dessa articulação entre processo social e forma,
daí já entrando propriamente no tema da aula. Pensando em alguns aspectos da teoria do
romance. (III) E por fim, se tudo der certo, ver de que maneira essa mesma questão da
articulação entre forma e processo social quando transposta para se pensar a formação
do romance no Brasil, ela precisa ser totalmente resignificada, por conta da
especificidade da nossa formação histórica e do nosso campo literário. E aqui o objetivo
é entrar em alguns pontos levantados pelo Roberto Schwarz com relação à importação
da forma romance pra um país de periferia.
- Creio que a primeira coisa que a gente precisa pensar sobre essa relação entre história
e forma do romance é que ela não é de forma alguma uma relação óbvia. Ela é sempre
fruto de uma construção teórica exigente, que vai ter sempre diversos tipos de
articulação possíveis, diversas respostas. Antes da gente pensar o romance a partir dessa
perspectiva, a gente precisa pensar a própria possibilidade de articulação entre história e
processo formal. Quais são as possibilidades de articulação entre estrutura formal e
processo histórico? De que maneira a literatura incorpora aspectos históricos? Será que
a literatura importa naquilo que ela reflete de aspectos da sociedade da sua época, ou
naquilo que ela consegue se contrapor aos valores dessa sociedade, a partir da
autonomia estética? Essa é uma questão que atravessa praticamente toda a história
da literatura e da sua crítica.
- Antonio Candido, num texto chamado “Crítica e Sociologia”, que está numa coletânea
de ensaios de 1965 chamado Literatura e Sociedade, vai tratar justamente das formas de
se pensar em conjunto aquilo que ele chama de fatores externos (contexto, história,
recepção), e o que ele chama de fatores internos, que são os aspectos estruturais
propriamente dito. **Ele vai começar o ensaio contrapondo dois tipos de modelo de
análise literária: um mais sociológico que só trata dos fatores externos, e outro mais
formalista que pensa nas estruturas e nas formas dos objetos estéticos, desvinculados
dos processos sociais. [[[Ele começa a enumerar quais são os principais modelos de
crítica externa, e ele chega a SEIS exemplos.
1) a crítica panorâmica, que relaciona contexto e obra;
2) a crítica que mede a fidelidade da obra a seu contexto; por exemplo o livro do
Tinhorão que se chama “A música no romance brasileiro”;
3) a teoria da recepção, que ele chama de Sociologia do Gosto Literário;
4) os trabalhos que analisam a função do escritor ou do intelectual na sociedade; como
os do Bordieu e os do Sérgio Miceli;
5) análise da função política ou ideológica das obras e dos autores;
6) E os estudos das origens dos gêneros e dos estilos, das condições de produção das
obras, o próprio Candido tem trabalho nessa linha [Formação];]]]
- Pro Candido esses modelos podem ser muito produtivos no campo da sociologia
literária, mas deixam a desejar quando se passa para o exercício crítico das obras, que
tenta decifrar seus procedimentos internos. Isso porque todos esses modelos são muito
abrangentes e tendem a pecar quando saem desse macro e passam a olhar a obra em
detalhe. Falta mediação. Por outro lado, ele vai dizer que você não pode cair no campo
oposto e fazer uma análise que desconsidera completamente os aspectos externos,
porque senão você cai num formalismo, num fetichismo da forma que descreve, mas
não explica. O que vai interessar para a crítica literária nesse caso não é o contexto da
obra ou a posição de classe do escritor, mas sim de que forma tais fatores externos
adquirem significado na fatura da obra, de que modo eles são internalizados enquanto
procedimento estético. Ele vai dizer que:
“o externo (no caso, o social) importa não como causa, nem como significado, mas
como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-
se, portanto, interno”. [Aqui é interessante observar a advertência do Sartre quando diz
que com certeza Flaubert é um pequeno burguês, mas nem todo pequeno burguês se
torna um Flaubert, e a diferença consiste precisamente na forma].
- Eu acho que a grande contribuição do Antônio Candido foi conseguir articular um
modelo de critica marxista mais ortodoxo - que pensa nas relações sociais e no contexto
que condicionam as obras - com um modelo norte-americano de leitura cerrada [close
reading], e que até então tinha certa inclinação à direita, como uma forma de valorizar o
cânone e o gênio individual. [E pra dar um exemplo desse modo de funcionamento
interno de um elemento a princípio externo, Candido cita o relato de um médico amigo
do Aluísio Azevedo que disse que o Aluísio Azevedo procurou por ele pra perguntar
como funcionava o envenenamento por estricnina para escrever o romance O homem.
Só que ele achou o efeito muito lento e pouco dramático, e não seguiu as indicações do
médico – ele fez o veneno funcionar muito mais rápido e bem mais espetacular. Ou seja,
a fantasia determinada pela fatura da obra fez com que o dado de realidade fosse
alterado em nome da coerência interna da obra].
- Quando bem realizada, essa concepção que a gente já pode chamar de dialética da
forma literária, permite ao crítico encontrar um mecanismo estrutural da obra que é ao
mesmo tempo um aspecto decisivo do modo de estruturação daquela sociedade. Dessa
forma, ele consegue interpretar um a partir do outro. É o que o Candido faz no
“Dialética da Malandragem”, quando ele descobre o princípio estrutural [dialética
ordem e desordem] que rege tanto a fatura narrativa quando a organização social
brasileira.
- Nesse ensaio o Candido não nomeia esse procedimento. Ele dá diversos exemplos,
mas não chega a nomear um método (o que é um procedimento comum na crítica dele).
Mas a gente pode dizer que esse procedimento de julgar o histórico que está na forma,
internalizado na obra, é a base do chamado materialismo dialético, cuja principal
escola é a frankfurtiana. O Adorno tem inclusive uma formulação famosa em que ele
define “forma como conteúdo sócio histórico sedimentado”, como uma maneira de dizer
que o verdadeiro lugar da matéria histórica em uma obra de arte é a forma , e não
seus conteúdos particulares. [É essa percepção que vai permitir ao Roberto Schwarz
rebater completamente as críticas – que hoje saíram de moda – ao Machado de Assis,
que diz que sua prosa é mais universal do que particular, justamente porque ela não
apresenta determinados temas e conteúdos típicos do romance brasileiro até então. Isso
porque pro Schwarz, que bebeu de toda essa fonte da tradição alemã, o caráter universal
da prosa machadiana se deve a particularidade do ponto de vista do narrador. É no foco
narrativo que se encontra a nossa particularidade histórica, e não necessariamente nos
conteúdos e nos temas, por exemplo o índio, ou figuras regionais como o caboclo, ou o
sertanejo, o vaqueiro. É no modo de articulação da estrutura narrativa, que pode versar
sobre qualquer tema, que se realiza a nossa experiência histórica.] [Acho que um
exemplo bem conhecido dessa perspectiva no campo da música popular é o clássico
debate entre os baianos Tropicalistas e a turma da MPB. Enquanto que a MPB (Elis
Regina, Geraldo Vandré, Edu Lobo) procurava definir quais formas seriam
genuinamente brasileiras contra a influência estrangeira, os Tropicalistas defendiam que
o próprio gesto de deglutir antropofagicamente a matéria musical importada já definia a
nossa posição histórica].
PARTE II
- Justamente um dos grandes momentos onde se busca fazer uma análise nesses moldes
– ou seja, pensando a estrutura de uma obra como o lugar onde a historicidade melhor
se realiza - é num livro que vai procurar compreender o sentido histórico da estrutura do
romance. Não uma história da literatura, ou do surgimento das formas literária, as
diversas formas de sociologia da literatura, mas a compreensão em profundidade da
estrutura da forma romance enquanto um componente fundamental da modernidade, do
mundo moderno. E esse livro é a Teoria do Romance, do jovem Lukács, que foi escrito
entre 1914 e 1915, alguns anos antes dele entrar pro partidão e rejeitar esse livro
[mesma coisa que fez o Los Hermanos com Anna Julia, ou Roberto Carlos com o
primeiro disco pré Jovem Guarda]. O livro seria uma espécie de introdução à obra de
Dostoiévski, mas acabou ganhando autonomia e sendo publicado como uma obra
integral.
- E qual era o problema principal de se escrever uma Teoria do Romance? Justamente a
definição do objeto - o que seria, afinal, esse tal de romance? As tentativas de definição
do romance basicamente existem desde que o primeiro romance foi escrito. [igual com o
samba, desde o primeiro samba gravado já tinha gente pra falar que o samba estava
deturpado] Sempre foi uma questão muito complexa pra crítica definir qual a
especificidade da forma romance justamente porque ela parece comportar uma
infinidade absurda de formas e sentidos, a tal ponto que ela parece que pode ser
qualquer coisa. Algumas inclusive bem engraçadas. [Eu tive um professor, o Pasta lá
da USP, que estudou na Alemanha na graduação e tava procurando entender o que era o
romance. Ele procurava definições e não tinha nenhuma muito precisa, ele passava dias
na biblioteca e encontrava um monte de definições muito imprecisas, todos os livros
falando que não dava pra definir precisamente o tal do romance, e ele angustiado
querendo uma definição e tal. Até que ele foi assistir uma aula com um professor super
rigoroso, com aquela precisão germânica, e a aula era justamente sobre romance. Aí o
Pasta já se animou. Aí o professor foi lá e pôs o ponto na lousa: “Romance: definição”.
Daí o Pasta já se ajeitou na cadeira pegou o caderninho e ficou lá na expectativa. Aí o
professor soltou a seguinte frase: “O romance é uma forma ameboide” Se nem o
germanista clássico conseguiu uma definição mais precisa é porque o bicho é feio
mesmo].
- Quer dizer, é uma tarefa quase impossível definir a forma romance, justamente porque
uma das suas principais características é comportar uma multiplicidade de registros e
formas como até então nenhuma outra forma literária havia conseguido. O romance
comporta o alto e o baixo, o complexo e o simples, diversos andamentos, diversos
registros... o romance vai ser a forma por excelência de romper com os enquadramentos
de gênero e temas. **Aqui a gente pode pensar naquilo que o Jaques Rancière chama de
o regime estético das artes, que pra ele é o regime próprio da modernidade.
“O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular e
desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas,
gêneros e artes”.
É um modo de ser, de fazer artístico que se define a partir de seus próprios parâmetros
de constituição, e não a partir de um conjunto de normas específicas. Segundo o
Rancière, antes do regime estético havia o regime representativo das artes, que foi
definido na poética de Aristóteles e durou até o final do século XVIII – ou seja, até a
consolidação do romance. A arte é definida por um conjunto de regras, normas, temas e
hierarquias que dizem o que é e o que não é propriamente artístico. Ou seja, pra fazer
um poema você precisa seguir um conjunto de normas (um soneto, um haikai) que vão
dizer que aquilo é um poema e não um conjunto qualquer de palavras colocadas uma em
cima da outra. Arte como imitação de padrões. O regime estético vem romper
justamente com isso: existe um fazer que é artístico independente de quaisquer regras
ou normas específicas. [Acho que um bom exemplo são essas instalações de arte
contemporânea: o cara que solta três urubus na bienal pra ficar causando, fazendo a
maior sujeira. O cara que defecou no potinho – merda de artista]. É só no regime
estético que esse procedimento pode ser considerado artístico. Cabe outra citação:
[[[“Este regime merece o nome de estético porque a identificação da arte se opera não
mais por uma diferença no seio das maneiras de fazer e dos critérios de inclusão e de
avaliação que permitam julgar as concepções e as execuções, mas pela identificação de
um modo de ser sensível próprio aos produtos da arte”.
Os urubus podem ser considerado arte não só porque eles estão na bienal, ou só
porque o autor se auto-denomina artista, mas porque o regime estético permite
identificar um modo de fazer e de ser que é artístico independente de qualquer sistema
prévio de identificação e de norma, independente das técnicas definidas por
Aristóteles.]]]
- O romance está na base dessa clivagem, porque ele vai ser justamente um
regime de escrita que instaura sua própria normatividade. Ele é estético não por ter uma
forma específica, mas porque ele comporta a própria possibilidade da linguagem se
tornar estética. Por isso que é difícil senão impossível definir o romance, porque ele
não é artístico porque tem uma forma específica, mas é justamente o lugar na
escritura onde essa não especificidade do estético se realiza enquanto arte. Não dá
pra você falar que o romance é artístico porque ele tem dois quartetos e dois tercetos,
vai ser justamente a singularidade dessa forma que vai conferir artisticidade pra ela.
- A grande sacada teórica do Lukács foi justamente evitar essa armadilha da delimitação
precisa da forma romance. Ao invés disso ele percebeu que esse caráter informe,
impreciso, essa impossibilidade de definição é a marca estrutural que define o romance
naquilo que ele tem de mais radical, interessante e necessário. Ele vai dizer o seguinte:
“A composição do romance é uma fusão paradoxal de componentes heterogêneos e
descontínuos numa organicidade constantemente revogada” [p. 85].
Ou seja, essa inorganicidade formal é a chave de composição do romance. [Ele não
tenta encontrar um único padrão estrutural que definiria a forma de todos os romances,
um conjunto específico de características, como era comum os formalistas fazerem –
levantar as características comuns a todos os contos de fadas]. Ele vai entender essa
possibilidade de variação quase infinita, esse caráter inorgânico do romance como
aquilo que é sua principal característica.
Só que além disso, e aí que está a guinada dialética do texto, ele vai tentar
compreender a necessidade histórica dessa forma. Qual a razão de ser desse caráter
inorgânico do romance? Ou seja, ele não vai tentar resolver as contradições do romance,
ou criar um tipo de definição que mais ajuda do que atrapalha, mas vai tentar entender a
necessidade daquela forma, num sentido bem hegeliano, como uma necessidade do
espírito de se realizar daquela maneira específica naquele momento.
- Então a pergunta básica da teoria do romance é: qual a relação de necessidade entre
a forma romance e o seu momento histórico, que a gente já pode definir como
sendo a modernidade? Pra responder essa questão, o Lukacs vai partir de uma
comparação central pra ele, de inspiração hegeliana também, que é uma comparação da
inorganicidade do romance com a plena organicidade da epopeia. Pra ele o romance é
uma epopeia de um mundo sem Deus, ou seja, um mundo onde a totalidade se perdeu e
não pode mais ser recuperada a não ser enquanto mitificação ideológica. Vale a pena ler
o início do texto, quando ele define as características do mundo épico, entre outras
coisas porque é um trecho super bonito, poético, mas também pra ter uma ideia da
diferença desse universo pro universo do romance.
“Afortunados os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos
transitáveis e a serem transitados, e cujos rumos as luzes das estrelas iluminam. Tudo
lhes é novo e, no entanto, familiar; aventuroso e, no entanto, próprio. O mundo é vasto
e, no entanto, é como a própria casa, pois o fogo que arde na alma é da mesma
essência que as estrelas; distinguem-se elas nitidamente, o mundo e o eu, a luz e o fogo,
porém jamais se tornarão para sempre alheios um ao outro, pois o fogo é a alma de
toda luz, e de luz veste-se todo o fogo. Todo ato da alma torna-se, pois, significativo e
integrado nessa dualidade: perfeito no sentido e perfeito para os sentidos; integrado,
porque a alma repousa em si durante a ação; integrado porque seu ato desprende-se
dela e, tornado si mesmo, encontra um centro próprio e traça a seu redor uma
circunferência fechada”
- Esse é o universo da epopeia, o universo grego. Pro Lukács, as únicas verdadeiras
epopeias são a Ilíada e a Odisseia, todo o resto já é problemático. [Ele trabalha com essa
ideia de obras primas, obras orgânicas, que é próprio da teoria crítica]. A gente nota que
as imagens que ele constrói são imagens de coincidência entre sujeito e objeto, entre a
alma individual e o mundo. Um mundo que é amplo, é vasto e cheio de aventuras, mas
que ao mesmo tempo é pequeno, porque é feito da mesma substância dos homens, existe
uma mesma energia vital que confere sentido pra tudo. Esse é o mundo do herói não
problemático. Ele passa por provas, por aventuras, mas essas aventuras não abalam
aquilo que ele tem de essencial, porque aquilo que lhe é essencial é da mesma essência
do divino, que dá sentido pra todas as coisas. **O Lukacs tá falando de um mundo
em que a ideia de indivíduo, de individualidade ainda não se constituiu. O herói da
epopeia nunca é um indivíduo, ele só interessa na medida seu destino não é pessoal, mas
representa a trajetória de toda comunidade. [Por isso que o Auerbach no Mimeses vai
falar que no universo homérico tá tudo as claras, tudo é colocado em cena, mostrado,
revelado. As conexões entre os elementos são expostas, elas ficam visíveis o tempo
todo, porque elas dizem respeito a todos – os epítetos são confirmados. Existe
mistério, existe o desconhecido – os planos divinos não são conhecidos pelo homem.
Mas esse mistério é da mesma matéria que habita no homem. Ele ta falando de um
universo em que o que há de mais próprio e pessoal no homem coincide com aquilo que
é exterior, com a sua função naquela comunidade. Essa função, essa exterioridade não
lhe é estranha, ele não está alienado daquela comunidade. Ele pertence a ela, seu ser é
definido por esse pertencimento, e que portanto é divino, porque esta inserido na
totalidade. O destino do herói nesse caso é o mesmo da comunidade épica, porque o seu
destino é o destino dessa comunidade. Por isso o caráter das personagens épicas é tão
estável, e você pode acrescentar infinitas aventuras a um texto épico, sem perder aquilo
que é essencial].
- Já o mundo que o romance configura, é um mundo em que se perdeu a certeza de uma
totalidade. Ele vai dizer que o romance, com sua ausência de fundamentação a priori, é
a forma por excelência do desterro transcendental. A base do romance é o individuo
isolado, a subjetividade que se opõe ao mundo, que se aliena dele. O romance é a forma
necessária da modernidade, uma modernidade que se caracteriza pela consciência da
cisão, da ruptura entre o sujeito e a totalidade. Um mundo sem Deus, demoníaco nesse
sentido. Um mundo em que o próprio homem, que antes era preenchido pela totalidade
da chama divina, se torna um abismo, um ser desterrado, estranho pros outros e pra ele
próprio. Por isso que a forma do romance não pode ter um sentido prévio, um conjunto
de normas e regras: porque a busca por esse sentido que não mais se coloca, e que
portanto é representado por essa inorganicidade da forma, vai ser a mola propulsora do
romance. Sua razão de ser. O Lukacs diz o seguinte:
“A epopeia dá forma a uma totalidade de vida fechada a partir de si mesma, o romance
busca descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida [...] Assim, a
intenção fundamental determinante da forma do romance objetiva-se como psicologia
dos heróis romanescos: eles buscam algo” [p. 60]
Aquilo que a epopeia coloca as claras, que é a totalidade da vida, vai ser justamente
aquilo que herói do romance vai buscar, sem sucesso. É porque os sentidos não são mais
evidentes em uma totalidade comunitária como na epopeia que o romance tem que
assumir a forma de uma questão, de uma busca pelo sentido que não está só no enredo,
mas na própria forma romanesca. É por isso que a pergunta pelos fundamentos do
romance no limite não faz sentido, porque a ausência de fundamentação é o que faz dela
a epopeia do mundo moderno. Porque na modernidade não é mais possível um acordo
perfeito entre o indivíduo e o mundo, porque o indivíduo se tornou problemático,
estranho pra si próprio, e o mundo se tornou esvaziado de sentido, se tornou
contingente. O romance vai ser a forma que vai suportar ao máximo essa tensão, entre o
sujeito que busca por um sentido e uma totalidade que se apresenta opaca, esvaziada.
- O genial dessa abordagem do Lukacs, além das implicações críticas e filosóficas que
ele mesmo reviu e criticou depois da sua conversão, é que ele não faz uma abordagem
da história do romance, como surgiu, em que contexto, tal. Tudo isso é pressuposto do
texto. Mas ele também não faz um puro levantamento de formas e modelos, uma
tipologia dos padrões narrativos, um esquema meramente formal do romance. O que ele
propõe é realmente uma Teoria do romance. Ele tenta entender aquela forma como
portadora do espírito de todo uma época, tentando entender a necessidade histórica
daquela forma. Ele realiza aquilo que o Antônio Candido propõe no texto que a gente
viu. Ele tenta definir estruturalmente um problema central da forma romance, e tenta
entender como essa questão formal tem fundamento em questões históricas. Ele vai
mostrar como os maiores romances Ocidentais são aqueles onde esse conjunto de
questões se coloca em maior estado de tensão, e não aqueles que aparentemente
resolvem o problema. O grande romance é essencialmente problemático, e isso é
uma coisa positiva porque da conta de um estado de ser do mundo que só pode ser
resolvido em termos práticos, com uma transformação do estado de coisas, uma
mudança da sociedade, e não da forma romanesca. [Mais pra frente, quando o Lukacs se
convencer de que o comunismo representa uma saída real para os impasses e pra
barbárie do capitalismo, ele vai passar a eleger romances afinados com a perspectiva
comunista como um padrão, e aí seu olhar crítico acaba se perdendo em alguns
momentos, justamente porque tudo o que o romance não comporta é o enrijecimento em
padrões de normas e condutas].
PARTE III
- Bom, essa é então uma das maneiras de se pensar a relação entre história e estrutura do
romance, o modelo dialético que pensa a historicidade da que está contido na própria
forma. Pra finalizar eu gostaria de mostrar rapidamente como esse modelo de crítica
dialética precisa alterar radicalmente sua perspectiva pra tratar da forma romance em
um contexto diferente do europeu. Isso porque o método dialético tem por pressuposto
que as formas são historicamente condicionadas, e que portanto diferentes realidades e
diferentes historicidades vão imprimir uma dinâmica própria a essa forma. O que no
limite significa que o romance produzido na periferia do capitalismo em um contexto
escravocrata vai ser essencialmente diferente de um romance europeu clássico
produzido num sistema liberal, e portanto não vai ser possível a mera transposição dos
parâmetros estéticos usados para tratar do romance europeu. As questões específicas da
forma em nosso contexto tem que ser descoberta pela crítica, que precisa, nesse sentido,
se reinventar.
- Roberto Schwarz ao lado do Antônio Candido é o maior nome brasileiro nessa linha
de interpretação materialista. Ele ganhou notoriedade especialmente como intérprete de
Machado de Assis, com uma interpretação que é das mais sólidas já feitas no Brasil. O
primeiro livro que ele publica sobre Machado é Ao vencedor as batatas, e nesse livro
está o célebre ensaio as “ideias fora do lugar”, em que ele discute as condições de
produção do romance brasileiro, a partir de uma análise cuidadosa da comédia
ideológica do período colonial. Assim como o Lukacs vai mostrar qual é o problema de
base que a forma do romance europeu encarna, Schwarz vai mostrar qual é o problema
central de constituição do romance brasileiro, e que vai ser uma coisa totalmente
diferente. E pra exemplificar essa diferença, logo no capítulo dois ele toma como
exemplo o romantismo de José de Alencar. Ele diz o seguinte:
“O romance existiu no Brasil, antes de haver romancistas brasileiros. Quando
apareceram, foi natural que estes seguissem os modelos, bons e ruins, que a Europa já
havia estabelecido em nossos hábitos de leitura. Observação banal, que no entanto é
cheia de conseqüências: a nossa imaginação fixara-se numa forma cujos pressupostos,
em razoável parte, não se encontravam no país, ou encontravam-se alterados. Seria a
forma que não prestava - a mais ilustre do tempo - ou seria o país?”
- Reparem que já de início se coloca um problema bem diferente daqueles abordados
por Lukacs em toda a teoria do romance. Um problema que a princípio pode ser
considerado menor, ou de segundo grau, porque se o problema do romance europeu era
criar a imagem da terra desolada e do sujeito desterrado da modernidade, a questão aqui
era a de como imitar essa forma, como tomar o romance europeu como modelo, uma
vez que seus pressupostos eram outros? Porque de uma perspectiva materialista, o
sentido da forma é histórico. Os pressupostos da forma romance são aqueles que o
Lukacs levantou, os pressupostos da sociedade burguesa. E o que o Schwarz vai falar
logo no começo das ideias fora do lugar? Que o pressuposto da sociedade burguesa, e
consequentemente do mundo moderno, é o trabalho livre. A concepção liberal do
capitalismo. Ora, a base da sociedade brasileira da época era o trabalho escravo, o nosso
padrão econômico era radicalmente diferente (a princípio) do padrão europeu. A rigor,
aqui no Brasil a sociedade burguesa não se constitui, que é o que vai dizer o
Florestan Fernandes, por exemplo. A formação da sociedade moderna brasileira é
abortada. Se o romance é a epopeia do mundo burguês, como quer o Hegel, como fica o
romance num país que não tem uma burguesia?
- O interessante é que esse paradoxo próprio da periferia cria uma questão formal
decisiva, porque não se trata de uma simples questão de escolha: porque pra fazer
romance você precisa necessariamente se pautar pelo romance europeu. Se você quiser
criar uma forma radicalmente diferente, você não vai fazer romance. Só que se
você segue o parâmetro europeu, você não representa a realidade local, a sua
especificidade histórica. A questão da importação das formas, que é uma questão que
não é tematizada pelo Lukacs, aparece aqui em primeiro plano. E o Schwarz vai mostrar
como que os problemas formais da obra do Alencar se devem a essa questão que é
colocada historicamente, a questão da dupla fidelidade do escrito: de um lado a
fidelidade a realidade local, e de outro a fidelidade a norma universal europeia.
Dualidade que fica mal resolvida e que só vai ser resolvida mesmo quando o Machado
de Assis incorporar essa questão ao foco narrativo do romance, de forma crítica.
Schwarz fala o tempo todo de um problema de adequação das ideias importadas à
realidade nacional. Como fazer um grande romance, universal, sem adotar a
“universalidade” dos temas europeus, uma vez que os nossos, a nossos próprios olhos,
são menores e exóticos?
“No entanto, a imigração do romance, particularmente de seu veio realista, iria por
dificuldades. A ninguém constrangia freqüentar em pensamento salões e barricadas de
Paris. Mas trazer às nossas ruas e salas o cortejo de sublimes viscondessas, arrivistas
fulminantes, ladrões ilustrados, ministros epigramáticos, príncipes imbecis, cientistas
visionários, ainda que nos chegassem apenas os seus problemas e o seu tom, não
combinava bem. Contudo, haveria romance na sua ausência?” [p. 37]
- É por isso que Schwarz vai inverter a questão do juízo de valor da obra do José
Alencar, mostrando que os pontos fracos do escritor são justamente os pontos fortes se
você inverte a perspectiva. Ele vai mostrar que no romance Senhora, por exemplo, as
personagens principais seguem o tom do realismo europeu, a la Balzac, enquanto que as
personagens secundárias seguem o tom do registro mais coloquial e folhetinesco. E
colocando um contra o outro, os dois tons soam artificial, um por excesso de moralismo,
outro por excesso de superficialidade. O romance nem consegue se decidir por um ou
outro, e nem consegue articular os dois de maneira convincente. **Mais o interessante é
que pro Schwarz essa fragilidade é que é interessante, porque assinala os momentos em
que a matéria local e o molde europeu, que não podem ser a mesma coisa, entram em
choque e tensão. E no limite essa duplicidade mal resolvida se deve a própria posição de
classe do Alencar, que não recusa os privilégios do favor, mas não abre mão dos valores
da vida moderna europeia. Ele não consegue resolver literariamente a contradição, mas
tem o mérito de não fugir da questão, porque ele podia simplesmente imitar o romance
europeu e criar um pastiche sem referência a realidade nacional. E esse compromisso
vai ser fundamental para o desenvolvimento posterior do romance brasileiro.
- Pra finalizar então, é interessante a gente perceber como que a condição periférica do
Brasil coloca questões formais radicalmente diferentes pro romance brasileiro. O
Schwarz finaliza esse capítulo sobre o Alencar com uma frase muito interessante, que
rebate um argumento do Antônio Candido. Ele diz que os méritos do romance realista
que as vezes aparecem nos romances do Alencar não são aquilo que mais interessa na
sua obra, porque esses não forneciam o princípio formal que a gente precisava. É por
isso que a honestidade de seus defeitos são mais interessantes que o acerto de sua
imitação. **É como se essa posição periférica nos colocasse ao mesmo tempo atrás e à
frente do romance europeu. Atrás é fácil de perceber por aquele aspecto de cópia mal
feita, a incapacidade de criar um estilo próprio, como se a gente tivesse condenado
sempre a fazer imitações sem sucesso. No entanto a gente ficava um passo a frente
também, porque se for pra levar a sério o Rancière e Lukács, o vazio em torno do qual o
romance se estrutura, e que os personagens românticos clássicos tentam escapar
procurando sem sucesso alguma totalidade, aqui já era dado de antemão, e os valores
burgueses nunca conseguiam fixar uma estrutura. Quer dizer, aqui já de saída os temas
do romance clássico europeu eram relativizados pela nossa posição periférica, deixando
bem claro que não são eles que definem sua modernidade. O que define sua
modernidade é a ausência de fundamentação e o que pra literatura europeia vai ser
colocada em questão bem mais a frente, sobretudo a partir do modernismo, era o nosso
ponto de partida incontornável, ao mesmo tempo uma oportunidade histórica e um
problema complicadíssimo. É o famosos privilégio epistemológico da periferia, que
nos permite contemplar a barbárie muito antes do centro, porque nós estamos atolados
nela até o pescoço.