A FILM ABOUT WHAT? Reassemblage: the film and the...
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UM FILME SOBRE O QUÊ? Reassemblage: o filme e o caderno de campo.
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A FILM ABOUT WHAT? Reassemblage: the film and the fieldnote.
Gustavo Soranz2
Resumo: Apresentamos uma análise do filme Reassemblage – from the firelight to
the screen (1982), dirigido por Trinh T. Minh-ha, explorando como este apresenta
críticas às formas de representação cultural tradicionais, notadamente a
antropologia e o cinema documentário, enfatizando, em especial, o uso da voz over
como uma estratégia diferencial do filme. Para a análise detida deste recurso no
caso aqui proposto, realizamos uma comparação com três momentos distintos da
escrita etnográfica no trabalho de campo, conforme descritos por James Clifford
(1990): a inscrição, a transcrição e a descrição, a fim de evidenciar como o filme se
configura como um trabalho que expõe o caderno de campo da cineasta, ou seja,
apresenta as estratégias de elaboração do discurso, ao invés de optar por uma
descrição acabada e totalizante sobre os processos culturais que observa, uma das
estratégias para criticar a escrita etnográfica tradicional e os discursos de poder e
de autoridade, questão central do filme.
Palavras-Chave: Reassemblage 1. Caderno de campo 2. Trinh T. Minh-ha 3.
Abstract: We presentan analysis of the film Reassemblage - from the firelight to the
screen (1982), directed by Trinh T. Minh- ha, exploring how this presents criticism
of traditional forms of cultural representation, notably anthropology and
documentary filmmaking, emphasizing in particular the use of voice over as a
differential strategy of the film. For a careful analysis of this feature in the case
presented here, we compared three different moments of ethnographic writing on
fieldwork, as described by James Clifford (1990): inscription, transcription and
description in order to show how the movie is configured as a job that exposes the
filmmaker’s fieldnotes, ie, presents the strategies of the discourse, rather than opt
for a finished and totalizing description of the cultural processes that observes, one
of the strategies to criticize the traditional ethnographic writing and the discourses
of power and authority, a central issue of the film.
Keywords: Reassemblage 1. Fieldnotes 2. Trinh T.minh-ha3.
1. Introdução
O filme Reassemblage – from the firelight to the screen foi produzido em um período
histórico marcado pela ascensão dos estudos do pós-modernismo e do pós-colonialismo, que
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXIII Encontro
Anual da Compós, na Universidade Federal do Pará, Belém, de 27 a 30 de maio de 2014. 2Unicamp, Doutorando em Multimeios, [email protected]. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Amazonas (Fapeam)
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definiram um contexto de crítica e revisão epistemológicas de diversos campos do
conhecimento, sobretudo das ciências humanas. O filme materializa na estética
cinematográfica certa hermenêutica do discurso ocidental sobre a alteridade, refletindo, por
exemplo, uma tendência crescente de experimentação na escrita etnográfica, uma espécie de
reação filosófica às convenções de realismo que imperavam na antropologia. Estava em curso
um debate sobre a natureza da interpretação nas descrições etnográficas, destacando-se uma
consciência crescente por parte de destacados antropólogos, em sua maioria norte-
americanos, da evidenciação da estrutura narrativa e retórica da etnografia. Uma referência
importante para considerar esta ruptura epistemológica e seu impacto nas descrições
etnográficas é o livro Writing culture – the poetics and politics of ethnography, editado por
James Clifford e George E. Marcus, resultado de seminários avançados acontecidos na
School of American Research, em Santa Fé, Novo México, Estado Unidos, em abril de 1984.
Trinh T Minh-ha produziu um filme cuja forma fragmentada e descontínua critica o
paradigma clássico de cinema documentário, sobretudo do cinema de cunho etnográfico,
elaborando uma forma fílmica que coloca sob investigação práticas de representação cultural,
especificamente a antropologia e o cinema documentário, tradicionalmente ligadas à
descrição do Outro. Aqui a referência importante é a da vertente de estudos pós-
estruturalistas da teoria do cinema documentário, que tem se dedicado a refletir sobre como o
cinema documentário representa o mundo histórico, enfatizando seu caráter de constructo
social. Apoiamo-nos principalmente no trabalho de Bill Nichols, reunido e sintetizado em seu
livro Introdução ao documentário, para pensar o filme de Trinh T Minh-ha em seus aspectos
formais e estéticos.
Para abordar a forma fílmica inovadora de Reassemblage, buscamos nos deter nos
aspectos sonoros de sua composição, analisando a locução em voz over, escrita e narrada pela
própria diretora, como uma espécie de leitura de um possível caderno de campo, opção esta
que seria, em si, outra crítica às práticas da antropologia cultural tradicional, pois, iria contra
as convenções da disciplina, que mantém os cadernos de campo como trabalhos pessoais,
íntimos, geralmente inacessíveis. Para esta discussão nos apoiamos no texto Notes on
(Field)notes, de James Clifford (1990), que busca refletir sobre a função dos cadernos de
campo, complexificando e descentralizando a atividade da descrição na etnografia.
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2. A forma do filme e a crítica à representação cultural
No período em que o filme foi lançado, as discussões acerca da natureza do
documentário passaram a ganhar maior relevância nos estudos acadêmicos, lançando luzes
sobre questões relacionadas às particularidades do documentário enquanto gênero
cinematográfico e reflexões sobre o estatuto da representação do mundo histórico.
Conformou-se um corpus teórico mais denso, com a divisão entre basicamente duas vertentes
de estudo (RAMOS, 1991): uma de linha cognitivista-analítica, que buscava afirmar a
especificidade do cinema de não-ficção e outra de viés pós-estruturalista, que, ao contrário,
enfatizava a sua não-especificidade, borrando as fronteiras entre a ficção e a não-ficção. Dada
a forte influência das tendências revisionistas do período, neste contexto, a vertente tributária
do pós-estruturalismo vai enaltecer a valorização dos processos de subjetividade e da
autorreflexão em relação à representação do mundo histórico e da alteridade nos estudos
sobre o cinema documentário. Reassemblageé frequentemente citado na bibliografia que se
dedica ao cinema documentário como um exemplo de filme que apresenta uma estrutura
autorreflexiva, onde a preocupação está não apenas em o que está sendo representado, mas,
especialmente, sobre o modo como o filme elabora seu discurso, enfatizando que ele é um
discurso sobre o mundo histórico.
Em Reassemblage, Trinh T.Minh-ha rejeita deliberadamente os cânones do típico
documentário clássico, construindo um filme de estrutura fragmentada e disjuntiva, de ritmo
musical e disnarrativo, em uma estética que aposta na repetição para construir sua retórica,
onde imagem e som trabalham para provocar no espectador uma postura crítica em relação ao
filme. Desde sua primeira imagem, na verdade não uma imagem isolada, mas uma tela preta
que se prolonga por 43 segundos, acompanhada de sons de tambores e outros instrumentos,
temos as expectativas relacionadas a um filme etnográfico convencional frustradas. Cortes
abruptos, enquadramentos oblíquos, planos curtos, telas pretas e silêncios são recorrentes e
parte fundamental da estratégia narrativa do filme. A ênfase está centrada na opacidade da
linguagem cinematográfica e o foco do filme é a crítica aos modos de representação cultural,
notadamente em relação às etnografias tradicionais e ao cinema documentário.
No filme a relação da imagem com o som nunca é de ilustração ou descrição. A banda
sonora do filme é muito valorizada e utilizada de maneira inovadora, inserindo cada elemento
disponível de forma complexa na estrutura do filme. Podemos destacar três aspectos sonoros
distintos que são trabalhados pela diretora: em primeiro lugar o uso de paisagens sonoras,
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construídas com a repetição de músicas, sons de instrumentos musicais, cantos, conversações,
sons de insetos e de batidas no pilão, que são retiradas do seu contexto original, pois nunca
são utilizadas em sincronia com as imagens das respectivas ações, e passam a atuar como
formas expressivas autônomas, com presença marcante na estrutura rítmica elaborada para o
filme. A utilização dessa sonorização pontua o filme e ajuda a apresentar as diferentes regiões
e os seus diferentes povos, não de modo convencional, mas de maneira original, enfatizando
aspectos menos objetivos e mais ligados à sensibilidade em relação à dimensão sonora.
Segundo a diretora,
O que me interessa é o modo como certos ritmos retornavam a mim enquanto eu
estava viajando e filmando pelo Senegal, e como a entonação e inflexão de cada
uma das diversas línguas locais me informavam de onde eu estava. Por exemplo, o
filme trouxe a qualidade musical da linguagem dos Sereer por meio de trechos não-
traduzidos de conversação entre os aldeões e variando a repetição de certas frases.
Cada língua tem sua própria musicalidade e sua prática não tem que ser reduzida a
uma mera função de transmitir significado. A repetição de que fiz uso tem,
consequentemente, nuances e diferenças inseridas em si, então essa repetição aqui
não é apenas uma reprodução automática do mesmo, mas sim a sua produção com
as diferenças e nas diferenças. (TRINH, 1992, p.114)3
Em segundo lugar, podemos destacar a presença dos silêncios na banda sonora de
Reassemblage. Assim como as paisagens sonoras, a utilização dos silêncios é importante para
a estrutura rítmica do filme, pois, servem como marcações que ajudam ao filme a
desenvolver seus compassos e a dar andamento aos diversos temas que desenvolve (aqui me
refiro aos aspectos tipicamente musicais desses dois termos – compasso e andamento -, sendo
o primeiro responsável por dividir os sons em grupos e o segundo pela velocidade com que
esses grupos se alternam). Os silêncios tem, ainda, um importante papel de provocar
estranhamento, desnaturalizando as imagens e enfatizando a opção pela opacidade da
linguagem cinematográfica, demonstrando que cada aspecto presente em sua estrutura é
resultado de uma opção deliberada da cineasta. A justaposição de planos mais abertos ou
mais fechados de um mesmo objeto ou sujeito. Imagens acompanhadas de sonorização ou em
silêncio. Pontas pretas. As imagens saltam aos olhos do espectador, provocadas pelos jump
cuts. A descontinuidade visual e narrativa contribui para certo distanciamento crítico por
3What interests me is the way certain rhythms came back to me while I was traveling and filming across
Senegal, and how the intonation and inflection of each of the diverse local languages inform me of where I was.
For example, the film brought out the musical quality of the Sereer language through untranslated snatches of a
conversation among villagers and the varying repetition of certain sentences. Each language has its own music
and its practice need not to be reduced to the mere function of communicating meaning. The repetition I made
use of has, accordingly, nuances and differences built within it, so that repetition here is not just the automatic
reproduction of the same, but rather the production of the same with and in differences.
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parte do espectador, que é instado a uma reflexão não apenas devido a esse trabalho de
montagem, mas também pelas assertivas e declarações da cineasta na locução.
O terceiro e último aspecto sonoro que gostaríamos de ressaltar no filme é a utilização
da locução em voz over, recurso que, na tradição do cinema documentário, foi largamente
utilizado nos filmes de retórica mais objetiva, alvos preferenciais das críticas proferidas pela
diretora em Reassemblage. Com a intenção de elaborar uma descrição generalizante e
totalizante sobre o assunto abordado, os filmes associados ao que se convencionou chamar de
modelo clássico de documentário, demonstram uma postura onisciente sobre o mundo, no
que já foi identificado por muitos como “voz de Deus”. Elaboram discursos detentores de
saber sobre esse mundo histórico, que resultam em filmes descritivos, expositivos e
informativos.
Apesar de normalmente estar associada a esse modelo chamado de expositivo, a
locução em voz over foi utilizada de modo criativo e não convencional em diversos filmes
que se destacam na história do cinema documentário, demonstrando que a opção pela
utilização desse recurso não se resume a seguir ditames voltados a discursos objetivos, sendo,
muitas vezes, um recurso criativo e inventivo. Podemos citar aqui uma série de filmes de
diretores notáveis, como Chris Marker (Lettre de Sibérie, 1957), Jean Rouch (Moi, un noir,
1958) e Agnès Varda (Salut les cubains, 1963), para citar apenas alguns precursores, que
utilizaram locuções irônicas, poéticas, bem humoradas, com referências autobiográficas, com
fabulações, estruturas epistolares, em primeira pessoa, etc.
Consideramos que o aspecto original de Reassemblageem relação à locução em voz
over do filme, cujo texto foi escrito e narrado pela própria Trinh T. Minh-ha, é o fato de que
este se assemelha às anotações de um caderno de campo, recurso utilizado por diversos
profissionais quando em trabalho externo, no campo, consagrado, sobretudo, ao trabalho do
antropólogo, local onde reúne suas anotações e observações, que mais tarde serão elaboradas
em uma etnografia escrita sobre o fenômeno observado.
3. A voz over em Reassemblage
Um dos aspectos mais inovadores de Reassemblage reside no uso complexo e criativo
de sua banda sonora, conforme buscamos apresentar de forma sintetizada anteriormente neste
artigo. A utilização da locução em voz over, aspecto sobre o qual nos debruçaremos mais
detidamente de agora em diante, se destaca entre as estratégias utilizadas pela diretora na
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elaboração do filme e se caracteriza por se diferenciar profundamente da maneira como este
recurso foi mais geralmente usado na história do cinema documentário, um modelo que se
convencionou chamar de “voz de Deus”, tradição esta que, segundo Bill Nichols,
fomentou a cultura do comentário com voz masculina profissionalmente treinada,
cheia e suave em tom e timbre, que mostrou ser a marca de autenticidade do modo
expositivo, embora alguns dos filmes mais impressionantes tenham escolhido vozes
menos educadas, precisamente em nome da credibilidade que obtinham evitando
tanto treino (2007, p. 142).
É evidente que a opção de Trinh T. Minh-ha na utilização da locução em voz over no
filme aqui em questão em tudo se diferencia dos aspectos relacionados nessa proposição de
Bill Nichols, conforme podemos notar no fato de ser a própria diretora que realiza a locução,
em oposição à “voz masculina profissionalmente treinada”, em sua inflexão sutil e frágil,
quase introspectiva, em oposição à “voz cheia e suave em tom e timbre”, além da questão de
que a locução é feita em inglês, sendo que ela não é uma falante nativa dessa língua, ficando
sua pronúncia carregada de sotaque.
Conforme apontamos anteriormente, a locução não se limita a descrever a imagem em
nenhuma passagem do filme. Ao invés disso, elabora sentenças quase autônomas, que tem
diferentes efeitos em sua estrutura discursiva fragmentada. Faremos aqui um esforço em
propor uma categorização para os tipos de sentença que julgamos estarem presentes no filme,
de modo a permitir uma análise mais detalhada da locução do filme em comparação com
aspectos de um caderno de campo. Consideramos que podemos definir as passagens da
locução em Reassemblage à partir de cinco categorias:
A) Proposições assertivas – trechos em que a cineasta realiza afirmações enfáticas, que
são importantes para indicar como ela se posiciona em relação ao seu tema e seu objeto,
sem precisar fazer afirmações objetivas para isso, como na passagem inicial, “menos de
vinte anos foram suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definam
como subdesenvolvidas”, quando podemos inferir que ela escolheu falar do ponto de
vista do pós-colonialismo ou no trecho “filmar na África significa para muitos de nós
imagens cheias de cores, mulheres de seios desnudos, danças exóticas e ritos
temerosos. O incomum”, afirmação sobre a qual vai construir uma série de
contrapontos visuais no filme para exercer uma crítica sobre a representação da África
encontrada tradicionalmente no cinema.
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B) Aforismos – importantes para marcar a postura ética segundo a qual pautou suas
decisões na elaboração do filme, como na famosa sentença “Eu não pretendo falar
sobre. Apenas falar ao lado”, onde busca fazer uma afirmação de princípios e opor-se
ao típico “falar sobre” das representações culturais tradicionais ou na passagem
“documentário porque a realidade é organizada em uma explicação de si mesma”,
quando direciona sua crítica para as formas clássicas de documentários descritivos e
informativos, marcados pela pretensão da objetividade vinda da observação externa ao
processo cultural que está sendo descrito.
C) Descrições de cenas – em diversas passagens a cineasta descreve cenas, talvez
hipotéticas em alguns casos, mas possivelmente visualizadas por ela anteriormente em
outros, que nunca estão sendo vistas na imagem. Esta opção reforça a postura de
enfatizar que a realidade é mais complexa e intrigante do que é possível conceber em
uma descrição ou representação, seja ela escrita ou visual. Logo no início do filme
temos a passagem “em Enampor, Andre Manga diz que seu nome está listado em um
livro de informações para turistas. Sobre a entrada da sua casa há uma placa escrita à
mão que diz ´trezentos e cinquenta francos´. Um fato antropológico vazio”, trecho que
nos leva a refletir sobre a questão da intersubjetividade presente no trabalho de campo.
Em outro momento, mais adiante, ela descreve a seguinte cena: “um etnólogo e sua
esposa ginecologista voltaram por duas semanas a uma vila onde eles realizaram
trabalho de campo no passado. Ele se define como uma pessoa que ficou bastante
tempo na vila, tempo o suficiente, para estudar a cultura de um grupo étnico. Tempo,
conhecimento e segurança. `Se você não ficou tempo suficiente em um lugar você não
é um etnólogo`, ele diz. Mais tarde ao anoitecer, um círculo de homens se reúne em
frente da casa onde o etnólogo e sua esposa ginecologista estão. Um dos aldeões está
contando uma estória, outro está tocando música em seu alaúde improvisado, o
etnólogo está dormindo ao lado do seu gravador de áudio que está ligado. Ele pensa que
exclui valores pessoais. Ele tenta ou acredita, mas como ele pode ser um Fulani? Isso é
objetividade.” Aqui temos uma cena que descreve uma relação que implica em lugares
de poder determinados, que buscam se legitimar por critérios que seriam validados por
sua cientificidade e objetividade.
D) Indagações e reflexões – diversos trechos da locução do filme fazem perguntas e
proposições que problematizam definições que poderiam ser consideradas como
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inequívocas em um olhar mais apressado, como, por exemplo, a passagem “um filme
sobre o quê? Meus amigos perguntam. Um filme sobre o Senegal; mas o quê no
Senegal” Uma afirmação aparentemente trivial reverte-se em uma pergunta que toca no
ponto nevrálgico do projeto político, ético e estético de Trinh T. Minh-ha, qual seja, o
de que todo discurso implica em um sujeito histórico, com um olhar elaborado sobre
seu objeto. Dito de outro modo, ao propor essa questão, “mas o quê no Senegal?”, a
cineasta está afirmando que o Senegal, ou, por exetensão, qualquer outra realidade
cultural, não pode ser resumida a definições fechadas, objetivas, digamos, positivistas.
Outro exemplo a ser destacado é a pergunta “o quê podemos esperar da etnologia?”
Evidentemente não há uma resposta objetiva a esta questão, que adquire relevância e
densidade quando surge, uma vez que já houve, naquela altura do filme, um acúmulo
de informações, de construções e de argumentações que levam o espectador a
considerar a indagação e duvidar das afirmações peremptórias.
E) Repetições e reformulações – O filme tem uma estética baseada na repetição, algo
notado visivelmente em sua estrutura fílmica, na articulação das imagens com os sons.
Porém, é sobretudo na utilização da locução que a repetição adquire maior significação.
Não se trata de uma repetição mecânica, automática. Está mais relacionada a um
retorno a um argumento prévio para repensá-lo, confrontá-lo novamente para melhor
poder apresentá-lo outra vez. É mais propriamente uma reformulação, como se
acompanhássemos o próprio ato de reflexão da cineasta, que indaga mais uma vez seu
objeto e não só, mas se questiona novamente. Acompanhamos o amadurecimento de
questões e problemas com os quais a cineasta está em embate. Assim acontece com as
principais passagens da locução, como a colocada no início do filme: “menos de vinte
anos foram suficientes para fazer com que vinte bilhões de pessoas se definam como
subdesenvolvidas”, assim como com a questão “Eu não pretendo falar sobre. Apenas
falar ao lado”, que retorna mais ao final, já resumida e ressignificada, apenas com a
frase “falar sobre”. As reformulações configuram-se como anotações de um processo
de reflexão, a exposição de um processo intelectual de interpretação de uma realidade
cultural. Ao optar por esse procedimento, a cineasta está como que a desvelar as
convenções da construção de narrativas etnográficas, convenções estas que não estão
evidenciadas em seu produto final.
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4. Considerações sobre o caderno de campo
Em seu ensaio Notes on (field)notes, James Clifford traz para o centro de sua reflexão
os cadernos de campo dos antropólogos, deslocando o foco sobre a atividade da descrição
etnográfica, tradicionalmente reconhecida por seu texto final, elaborado, para a etapa de sua
gênese ainda no trabalho de campo, quando começa a tomar forma por meio de anotações,
registros e descrições de processos culturais. Para Clifford, “cadernos de campo são cercados
por lenda e frequentemente certo sigilo. Eles são registros íntimos, cheios de significados –
temos dito – apenas para o seu escritor.”4(1990, p. 52). Segundo o autor, não há definição
exata sobre o que constitui um caderno de campo. O trabalho de campo, seu lugar de origem,
pode incorporar diferentes fontes de informação e de evidências sobre as quais o antropólogo
se debruçará para elaborar sua etnografia, que, ao final, será o resultado de um processo de
generalizações, sínteses e teorização. “O trabalho de campo é um conjunto complexo de
experiências históricas, políticas e intersubjetivas que fogem das metáforas de participação,
observação, iniciação, harmonia, indução, aprendizado, e por aí adiante, frequentemente
adotadas para explicá-lo.”5(CLIFFORD, 1990, p. 53).
Em seu exercício de reflexão sobre a constituição do caderno de campo, Clifford vai
utilizar três fotografias que registraram diferentes etnógrafos em trabalho de campo,
especificamente em momentos de escrita, para “ilustrar e distinguir graficamente três
momentos distintos na constituição do caderno de campo (Eu posso apenas especular o que
realmente estava acontecendo em cada uma das três cenas de escrita).”6(CLIFFORD, 1990, p.
51).
4Fieldnotes are surrounded by and often a certain secrecy. They are intimate records, fully meaningful – we are
often told – only to their inscriber. 5Fieldwork is a complex historical, political, intersubjective set of experiences which escapes the metaphors of
participation, observation, initiation, rapport, induction, learning, and so forth, often deployed to account for it. 6… illustrated and to distinguish graphically three distinct moments in the constitution of fieldnotes. (I can only
guess what was actually going on in any of the three scenes of writing)
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Figura 1: Joan Larcom em campo em Malekula, Vanuatu.
FONTE – CLIFFORD, 1990, P. 48
Na figura 1temos a primeira das fotografias citadas por Clifford em seu ensaio, um
registro da etnógrafa Joan Larco, na ilha de Malekula, Vanuatu. Conforme podemos notar na
fotografia, ela está sob uma tenda, entre mulheres e crianças, olhando para um papel que tem
em mãos. Duas mulheres olham diretamente para fora do quadro na direção oposta à da
etnógrafa. Uma delas tem em seu colo um garoto, que olha atentamente para as mãos da
etnógrafa, que seguram papel e caneta. Um garoto, posicionado logo à frente dela olha
diretamente para a câmera, assim como outro garoto que está de pé ao fundo da cena.
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Figura 2: C.G. Seligman em campo na Nova Guiné.
FONTE – CLIFFORD, 1990, P. 49
A figura 2 apresenta a segunda fotografia da série, que mostra o etnógrafo C.G.
Seligman na Nova Guiné, no ano de 1898, sentado em uma mesa escrevendo suas notas. A
mesa está tomada por diversos objetos. Ao seu lado um dos homens está sentado em outra
cadeira, ambos são rodeados por um grupo de homens e garotos em pé, alguns dos quais
olham diretamente para a câmera.
Por fim, a figura 3 apresenta a terceira fotografia, que mostra o famoso etnógrafo
Bronislaw Malinowski trabalhando em uma mesa sob uma tenda nas ilhas Trobriand. Ele está
de perfil, aparentemente concentrado em seu trabalho no que parece ser uma máquina de
escrever. Ao fundo alguns garotos estão ajoelhados e homens estão de pé, do lado de fora da
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tenda. Há uma clara separação entre o etnógrafo, na penumbra da tenda, e dos nativos da ilha,
que estão do lado de fora, observando-o.
Figura 3: Malinowski em campo nas ilhas Trobriand.
FONTE – CLIFFORD, 1990, P. 50
Para Clifford, essas três fotografias “dizem muito sobre as ordens e desordens do
trabalho de campo”7. (1990, p. 51). Para detalhar sua proposta de reflexão, ele vai propor a
definição de três diferentes momentos no trabalho de campo. Optamos em transcrever aqui as
considerações do autor sobre esses momentos, deixando para compará-las mais adiante com
nossas proposições relacionadas ao texto da locução de Reassemblage.
Para o autor, a figura 1 representa um momento de inscrição.
Eu imagino que a foto de Joan Larcom olhando para suas notas registra uma pausa
(talvez por apenas um instante) no fluxodo discurso social, um momento de
abstração (ou distração) quando o observador-participante anota uma frase ou
palavra mnemônica para fixar uma observação ou para recordar algo que alguém
acabou de dizer. A foto também pode representar um momento quando a etnógrafa
se refere a alguma lista prioritária de questões, traços de personalidade, ou hipóteses
– uma relação pessoal de “notas e consultas”. Porém, mesmo que a inscrição seja
7… tell a lot about the orders and disorders of fieldwork.
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simplesmente uma questão de, como dizemos, “tomar uma nota mental”, o fluxo da
ação e do discurso foi interrompido, direcionado para a escrita8. (CLIFFORD,
1990, p. 51)
Seguindo as demais descrições de Clifford, a figura 2 representa um momento de
transcrição.
Talvez o etnógrafo tenha feito uma pergunta e esteja escrevendo a resposta: “Como
você chama isso e isso?” “Chamamos isso assim e assim” “Diga isso novamente,
lentamente.” Ou o escritor esteja tomando um ditado, registrando o mito ou a magia
associada a um dos objetos sobre a mesa. Esse tipo de trabalho era do tipo que
Malinowski tentou desalojar do papel central em favor da observação-participante:
se afastando da mesa da varanda e caminhando por aí, conversando, questionando,
ouvindo, observando – e escrevendo tudo mais tarde. Porém, apesar do sucesso do
método de observação-participante, a transcrição permaneceu crucial no trabalho de
campo, especialmente quando a pesquisa é orientada à linguística ou à filologia, ou
quando coleta (eu prefiro “produz”) textos indígenas extensos.9 (CLIFFORD, 1990,
p. 51)
Finalmente, ainda segundo o autor, a figura 3 representa um momento de descrição.
a realização de uma representação mais ou menos coerente de uma realidade
cultural observada. Ainda que fragmentada e rascunhada, tais descrições de campo
são designadas para servir como base de dados para escritas e interpretações
posteriores visando a produção de uma narrativa finalizada. Esse momento de
escrita no campo gera o que Geertz (1973) chamou “descrições densas”. Ela
envolve, como como a foto de Malinowski registra, um afastamento do diálogo e
observação para um lugar separado de escrita, um lugar para reflexão, análise e
interpretação.10
(CLIFFORD, 1990, p. 51-52)
Como enfatiza o próprio autor em seu texto, a descrição destes momentos foi um
exercício de abstração, uma vez que eles não existem em estado puro, separados, mas acabam
por se misturar e se alternar nas sequências de encontros e mudanças que acontecem no
8I imagine that the photo of Joan Larcomglancing at her notes records a break (perhaps only for an instant) in
the flow of social discourse, a moment of abstraction (or distraction) when a participant-observer jots down a
mnemonic word or phrase to fix an observation or to recall what someone has just said. The photo may also
represent a moment when the ethnographer refers to some prior list of questions, traits, or hypotheses – a
personal “Notes and Queries”. But even if inscription is simply a matter of, as we say, “making a mental note”,
the flow of action and discourse has been interrupted, turned to writing. 9Perhaps the ethnographer has asked a question and is writing down the response: “What do you call such and
such?” “We call it so and so.” “Say that again, slowly.” Or the writer may be taking dictation, recording the
myth or magic spell associated with one of the objects on the table-top. This kind of work was the sort
Malinowski tried to dislodge from center stage in favor of participant-observation: getting away from the table
on the verandah and hanging around the village instead, chatting, questioning, listening in, looking on – writing
it all up later. But despite the success of the participant-observation method, transcription has remained crucial
in fieldwork, especially when the research is linguistically or philologically oriented, or when it collects (I prefer
“produces”) extended indigenous texts. 10
… the making of a more or less coherent representation of an observed cultural reality. While still piecemeal
and rough, such field descriptions are designed to serve as a data base for later writing and interpretation aimed
at the production of a finished account. This moment of writing in the field what Gerrtz (1973) has called “thick
descriptions”. And it involves, as the Malinowski photo registers, a turning away from dialogue and observation
toward a separate place of writing, a place for reflection, analysis and interpretation.
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trabalho de campo. O exercício foi necessário para levar adiante a proposta que ele colocava
no texto sobre o qual estamos nos apoiando, quando buscava lançar uma reflexão sobre o
processo de elaboração do caderno de campo, ao invés de analisar etnografias escritas já
finalizadas. Aqui em nossa proposta servirão de apoio para a análise do filme Reassemblage.
5.Reassemblage – o filme como exposição do caderno de campo
Reassemblage desafia as convenções tradicionais encontradas na história do cinema
documentário. Não se trata evidentemente de um documentário clássico, não é um filme
eminentemente experimental, não é propriamente um filme etnográfico, não é simplesmente
um diário pessoal ou um filme de viagem. De certo modo, a um só tempo, o filme dialoga
com cada uma dessas expressões do cinema de não-ficção, deslocando as premissas
relacionadas a essas searas fílmicas, contribuindo para alargar as fronteiras da prática
cinematográfica. Ao não se enquadrar em definições rigorosas e categorizações previamente
definidas, o filme desafia o espectador a uma interpretação que dialogue com essas diferentes
tradições que ele coloca em contato.
O aspecto fragmentário e disnarrativo do filme nos provoca de tal modo, que somos
levados a pensar nas opções adotadas pela cineasta para definir suas estratégias, suas opções.
Uma maneira de buscarmos uma aproximação original a ele foi realizar uma análise
comparativa entre sua locução em voz over e a descrição dos momentos do trabalho de
campo do etnógrafo, conforme descritos por Clifford (1990). Seria possível considerar que o
filme se configura como a exposição de um caderno de campo? Ou seja, poderíamos
considerar que seu aspecto fragmentário e disnarrativo é resultado de uma estrutura de
anotações, de esboços, de impressões e interpretações ainda não completamente elaboradas,
não depuradas, como nas anotações de um caderno de campo? Poderia Reassemblage ser
considerado uma versão fílmica de um possível caderno de campo de Trinh T. Minh-ha no
período em que ela realizou suas filmagens no Senegal?
Para Clifford, os cadernos de campo “constituem uma base de dados descritiva, crua,
ou parcialmente cozida, para generalização, síntese e elaborações teóricas posteriores.”11
(1990, p.52). Como na metáfora da base de dados crua para os cadernos de campo, podemos
considerar que o texto de Trinh T. Minh-ha para a locução remete a essa ideia de algo não
acabado, portanto, próximo da imagem de algo ainda cru, proposta por Clifford. A locução
11
Constituting a raw, or partly cooked, descriptive database for later generalization, synthesis and theoretical
elaboration.
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do filme não tem uma estrutura narrativa clara, assim, para manter uma mesma chave de
análise, podemos considerar que apresenta uma estrutura parcialmente cozida, resultando em
um filme que não pode ser enquadrado em uma definição rígida, que se apresenta em
“preparo”, para ainda usar a metáfora do autor.
Tomemos os momentos do trabalho de campo propostos por Clifford (1990) para
iniciar nossa análise. Dos três momentos descritos pelo autor, um em especial pode ser
relacionado às categorias de análise que propusemos aqui. Trata-se do momento de inscrição,
que seria marcado por uma quebra no trabalho de anotações em favor de uma abstração ou
mesmo uma distração. Seria o momento das anotações e da recuperação de listas prévias de
questões e hipóteses, quando a observação se interrompe e o etnógrafo se volta para o ato da
escrita. Esse momento, segundo Clifford (1990), “é tanto o processo de fazer quanto de
refazer os textos. Escrever é sempre em algum grau reescrever”12
(1990, p.54). Em nossa
análise da locução de Reassemblage, definimos cinco categorias para a interpretação das
diferentes proposições do texto. Em uma comparação com o momento de inscrição
poderíamos considerar que todas as categorias tem relação estreita com a natureza das
anotações obtidas em um momento de inscrição. Talvez uma excessão possa ser feita em
relação à categoria descrição de cenas, que teria uma identificação maior com o momento de
descrição proposto por Clifford.
Evidentemente, dada a opção da cineasta em construir um filme que tece críticas às
formas convencionais de representação cultural, como temos insistido, o momento de
inscrição destaca-se dos demais, pois, trata-se justamente do momento em que o etnógrafo,
ou em nosso caso a cineasta, mergulha no mundo histórico em busca de um contato com o
processo cultural a ser observado. A questão relevante aqui é que as anotações resultantes
dessa observação, que ainda estão incompletas, parciais, impregnadas de subjetividade, são
alçadas ao primeiro plano. Em outras palavras, no caso de Reassemblage, o caderno de
campo não é uma etapa intermediária, que aguarda uma depuração, uma reflexão do
etnógrafo para chegar a uma forma final, mas passa a ser o produto principal, evidenciando
suas incompletudes e impropriedades deliberadamente, elaborando uma forma final onde sua
fragmentação visual e estrutura disjuntiva reforçam o caráter discursivo do relato. A escrita e
a reescrita estão presentes no filme, na forma de assertivas e aforismos presentes na locução,
assim como no fluxo de imagens e de sons, revelando um processo de elaboração de discurso
12
… is both theprocessof redoingdo aboutthe texts. Writing isalways in somedegreerewrite.
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sobre a realidade, não a busca por uma descrição objetiva desta. As anotações resultantes da
inscrição da cineasta nessa cultura estão impregnadas da intersubjetividade desse encontro,
que valorizam as abstrações em detrimento de descrições objetivas.
As categorias da locução que aqui elaboramos apresentam o aspecto ensaístico do
filme, de uma reflexão que se constrói no processo. Uma elaboração que surge de um
segundo pensamento, da reflexão sobre a descrição, sobre o lugar da cineasta e a alteridade,
sobre a relação intersubjetiva que afeta a ambas as partes. Um processo que coloca questões,
dúvidas e indagações ao invés de apresentar respostas. Com essa opção na locução do filme,
contendo características de momentos de inserção no campo, Trinh T. Minh-ha estaria
também realizando uma crítica às formas convencionais de etnografia, que se apresentam
apenas em suas formulações finais, já acabadas, relegando o processo de escrita, o processo
de formulação, para o obscurecimento. Com essa estratégia a diretora expõe o seu caderno de
campo no filme, trazendo para o primeiro plano o seu processo de elaboração, contribuindo
assim para a revisão das práticas de escrita etnográficas, que encontram no processo fílmico
um terreno fértil para a experimentação.
Como a opção da cineasta é criticar os discursos de representação cultural
convencionais, a opção deliberada da cineasta é se opor à descrição objetiva, evitar as formas
de representação que “aprisionam” as expressões culturais a significados específicos. Em
Reassemblage a transcrição é subvertida de sua função primordial, que seria a de registrar
aspectos e fragmentos das manifestações culturais, coletar evidências, no que implica uma
ideia de objetividade. No filme a transcrição torna-se a evidenciação do ato da escrita, da sua
elaboração. No caso, trata-se de uma escrita fílmica, cujas estratégias narrativas são
evidenciadas por sua forma. Os planos são curtos, justapostos em uma montagem
fragmentada que valoriza o ritmo mais do que a narratividade. Os diversos pontos de vista
sobre um mesmo sujeito ou objeto enfatizam que esse olhar sobre o mundo histórico depende
de escolhas. A transcrição não existe em plena objetividade, depende decisivamente da
subjetividade da cineasta.
O momento da descrição tem referência direta com as descrições de cenas que estão
presentes na locução em voz over de Reassemblage. Porém, mesmo nesses momentos,
podemos notar a crítica e a reflexividade. Não há no filme a opção pela descrição detida do
fenômeno observado, como temos insistido a diretora duvida da objetividade, mas sim uma
elaboração que constrói-se quase como uma fabulação, uma estória que é contada. Seriam
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realmente situações observadas in loco ou estórias que foram ouvidas pela diretora? Essas
fabulações vão contribuir com a complexidade do discurso do filme. Contribuem inserindo
dúvidas, flexionando a observação para realçar a relação construída no encontro, que afeta
quem observa e quem é observado, impregnando todo e qualquer relato. Trata-se de um
relato que é afetado por essa cultura visitada, mas que também imagina uma realidade à partir
dela.
6. Considerações finais
Como produto final, Reassemblage é um filme que provoca a tradição do cinema
documentário, propondo uma forma original que aproxima diferentes vertentes do cinema, do
filme etnográfico ao experimental, ao mesmo tempo em que desloca as fronteiras e
convenções desses subgêneros, contribuindo para a expansão do campo cinematográfico e
para o estabelecimento de estratégias fílmicas inovadoras no uso do som e da imagem. A
continuídade de nossa pesquisa sobre a obra de Trinh T. Minh-ha deve aprofundar questões
sobre a autoinscrição da cineasta em seus filmes e também a análise de como a cineasta utliza
de maneira inovadora estratégias típicas da tradição do cinema documentário, assim como
refletir sobre a forma ensaística que elabora nos diferentes trabalhos, que, no campo do
audiovisual, vão se estender para além do cinema em direção a instalações multimídia em
trabalhos seguintes.
Como vimos, o empreendimento eminentemente fílmico de Reassemblage pode ser
cotejado com a teoria social, de modo a contribuir para uma reflexão da qual é
contemporâneo em relação às descrições culturais e aos discursos que inscrevem e reforçam
lugares de poder. Do embate entre a estética fílmica e a teoria social vemos surgir uma forma
de etnografia que não mais pertence ao domínio estrito da antropologia como disciplina, mas
uma etnografia que reposiciona sujeitos e incorpora outros métodos, para além das
convenções tradicionais da disciplina na qual se originou. As questões ligadas ao diálogo
teórico de Trinh T. Minh-ha com diferentes campos do saber e diferentes epistemologias
ensejará análises futuras da relação entre a sua prática artística e sua produção intelectual.
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Referências
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Cornell University Press, 1990. pp. 47-70.
CLIFFORD, J. & MARCUS, G.E. Writing culture – the poetics and politics of ethnography. University of
California Press, 1986.
NICHOLS, B. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2007.
RAMOS, F. O quê é documentário? In: RAMOS, F. & CATANI, A. (orgs.)Estudos de Cinema SOCINE
2000, Porto Alegre: Editora Sulina, 2001. pp. 192-207.
TRINH, T. M. Framer framed.Nova York: Routledge, 1992.
___________. The totalizing quest of meaning. In: RENOV, M. Theorizing documentary. Nova York:
Routledge, 1993.