A Fé de Um Império (G. Marcocci)

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Revista de História ISSN: 0034-8309 [email protected] Universidade de São Paulo Brasil Marcocci, Giuseppe A fé de um império: a inquisição no mundo português de Quinhentos Revista de História, núm. 164, enero-junio, 2011, pp. 65-100 Universidade de São Paulo São Paulo, Brasil Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022064003 Como citar este artigo Número completo Mais artigos Home da revista no Redalyc Sistema de Informação Científica Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto

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A fé de um império

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  • Revista de HistriaISSN: [email protected] de So PauloBrasil

    Marcocci, GiuseppeA f de um imprio: a inquisio no mundo portugus de Quinhentos

    Revista de Histria, nm. 164, enero-junio, 2011, pp. 65-100Universidade de So Paulo

    So Paulo, Brasil

    Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=285022064003

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    Projeto acadmico sem fins lucrativos desenvolvido no mbito da iniciativa Acesso Aberto

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    A f de um imPRio: A inquiSio no mundo PoRtuguS de quinHentoS

    Giuseppe MarcocciDoutor em Histria Moderna e investigador na

    Scuola Normale Superiore de Pisa Itlia

    ResumoO artigo apresenta a primeira tentativa de reconstruo das estratgias de difuso do tribunal da Inquisio nas diferentes regies do Imprio portugus durante o sculo XVI. Em particular, pretende-se estudar a formao de uma viso global do imprio nas autoridades centrais do Santo Ofcio, as ligaes entre Inquisio e expanso colo-nial, os modelos de atuao dos inquisidores e as suas relaes com os outros agentes eclesisticos, nomeadamente os bispos e os missionrios.

    Palavras-chaveInquisio Imprio portugus Igreja missionria.

    CorrespondnciaScuola Normale SuperiorePiazza dei Cavalieri, 756126 Pisa ItliaE-mail: [email protected]

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    fAitH And emPiRe: tHe inquiSition in tHe SixteentH-CentuRy

    PoRtugueSe WoRld

    Giuseppe MarcocciPh.D.in Social History of

    Scuola Normale Superiore de Pisa Italy.

    AbstractThis article attempts to reconstruct for the first time the strategies of propagation of the Inquisition in the different regions of the sixteenth-century Portuguese empire. In particular, it will be analysed the shaping of a global view of the empire by the cen-tral authorities of the Holy Office, the connections between Inquisition and colonial expansion, the patterns of activity of the inquisitors, as well as their relationship with other ecclesiastic agents, starting from bishops and missionaries.

    KeywordsInquisition Portuguese Empire Missionary Church.

    ContactScuola Normale SuperiorePiazza dei Cavalieri, 756126 Pisa ItalyE-mail: [email protected]

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    1. uma s f: o mundo visto de lisboa

    Na Lisboa da segunda metade de Quinhentos, uma conversa em frente a um mapa-mundi podia converter-se numa disputa sobre questes de f. Assim acon-teceu a 29 de maio de 1573. Em casa do prior da igreja de So Nicolau, Afonso Teles de Meneses, era hspede um gentil-homem arruinado de vora: a figura emagrecida pela idade, o rosto que lhe luze, Pedro Correia gabava-se de ter via-jado na Europa das guerras de religio e de manter relaes com ilustres telogos do reino; tinha tambm impresso um pequeno livro de contedo espiritual sem licena da Inquisio. Naquele dia, contemplando um planisfrio possudo pelo prior, pousou o olhar sobre a parte do globo onde estava pintado o senhorio do preste Joam e estava nelle pintada huma crux. Aquele smbolo universal ofereceu a Correia o motivo para uma aberta defesa da cristandade dispersa pelo mundo, que acabou por se traduzir na avaliao das diferenas exteriores entre distintas confisses. Era uma atitude conciliadora, que respondia s dvidas que desde h algum tempo, em Portugal, circundavam a ortodoxia dos etopes observantes de uma variante do culto monofisista copto e tradicionalmente identificados com os sditos do legendrio soberano. Correia parecia reagir ao firme fechamento ao cristianismo oriental, sancionado agora pelas autoridades eclesisticas lusitanas. Lanou-se ento num aberto elogio da Reforma, atacando o celibato eclesistico, proibies alimentares e, sobretudo, a confisso sacramental, alm de dar crdito ao rumor de que os luteranos praticavam a comunho dos bens. Em Lisboa, estava ainda fresca a memria da queima do luterano Manuel Travaos (1571), mas tambm do processo movido com a mesma acusao, por fatos que remontavam a mais de trinta anos antes, contra o ancio e aclamado humanista Damio de Gis (1571-1572). O prior Teles de Meneses no perdeu tempo: apresentou uma denncia que levou a Inquisio a ordenar um inqurito, cedo arquivado pela morte de Correia entretanto ocorrida.1 Mas de interesse aqui , acima de tudo, o movimento intelectual deste ltimo no qual se refletia uma capacidade nova de por em relao as muitas formas de uma geografia religiosa do mundo, cuja cada

    1 Denncia apresentada por Afonso Teles de Meneses, 4 junho de 1573 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo [ANTT]. Inquisio de Lisboa [IL], Livro 56, fls. 237-241v). Sobre os casos judiciais a que se faz referncia cf. PEREIRA, Isaas da Rosa. O processo de Manuel Travaos na Inquisio de Lisboa (1570-1571) e a priso de Damio de Gis. Anais da Academia Portuguesa da Histria 36, 1998, p. 157-173; e PAIVA, Jos Pedro. Catlico sou e no luterano. O processo de Damio de Gis na Inquisio (1571-1572). In: SERRO, Jos Vicente (coord.). Damio de Gis. Um humanista na Torre do Tombo. Lisboa: IAN/TT, 2002, p. 20-42.

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    vez mais madura conscincia distinguia a capital do extenso, mas descontnuo, imprio colonial construdo pelos portugueses em frica, sia e Brasil.

    Sob a escolta de Serge Gruzinski, no difcil imaginar como de Lisboa fosse ento verdadeiramente possvel pensar em contemplar o entrelaado do mundo, nas suas distncias e nas suas diferenas fsicas, como na variedade de costumes e crenas dos povos que nele habitavam.2 Mas o olhar de Correia no era totalmente inocente. Ele conservava a memria do silencioso conflito sobre a f dos etopes que havia percorrido a cultura lusitana nos decnios precedentes. Um ponto de no retorno fora transposto com a falhada tentativa de promover uma estratgia de conciliao no plano religioso, elaborada pelo humanista Damio de Gis. No ano de 1540, tinha publicado um tratado no qual exortava a reconhecer a substancial ortodoxia do cristianismo etope. No destino daquela obra, alcana-se o ocaso do objetivo mais amplo de uma reunificao consensual entre a S apostlica e as igrejas orientais no seio de um triunfo missionrio do Imprio portugus. Aparecida em Lovaina, aps ser examinada pelos censores do Santo Ofcio lusitano, a circulao da Fides, Religio Moresque foi proibida em Portugal (1541). O escrito de Gis tinha sido composto no calor da lio de Erasmo e era sustentado por profecias que viam no iminente retorno unidade da Igreja das origens (a chegada dos portugueses Etipia era disto um anncio) o sinal da natureza milenarista de um imprio escolhido para guiar a converso universal dos povos e o aniquilamento do secular inimigo muulmano. Foi re-futado, entre outros, pelo severo telogo Pedro Margalho, uma figura central na definio das orientaes religiosas em Portugal, inclusivamente no advento da Inquisio no reino (1536).3 Com o bloco de telogos e conselheiros em matria de religio que se impuseram na corte de Joo III entre os finais dos anos 1520 e o incio dos anos 1530, aquele intransigente homem da Igreja, que se formara em Paris e tinha disputado a Ctedra de Prima com Francisco de Vitoria em Salamanca (para alm de reprovar as teses de Erasmo na junta de Valladolid, em 1527), contribuiu de forma determinante para o enfraquecimento dos tons de entusiasmo pelos sucessos da evangelizao pelo retomar de contatos com o cristianismo oriental, por temor de que pudessem conduzir a um amolecimento

    2 GRUZNSKI, Serge. Les quatre parties du monde. Histoire dune mondialisation. Paris: Martinire, 2004.

    3 Permito-me reenviar para o meu estudo: MARCOCCI, Giuseppe.Gli umanisti italiani e limpero portoghese: una interpretazione della Fides, Religio, Moresque thiopum di Damio de Gis [2005]. In: LUPETTI, Monica (cura). Traduzioni, imitazioni, scambi tra Italia e Portogallo nei secoli. Firenze: Olschki, 2008, p. 61-124.

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    em relao aos erros de f.4 Em Portugal, a rgida aderncia ortodoxia catlica transformou-se, assim, num agressivo critrio de distino e de segregao, que favoreceu a criao do Santo Ofcio e o nascimento de uma censura organizada, bem como uma rpida clericalizao da vida poltica e cultural do reino.5 Cristos de rito no catlico e convertidos de diversas origens foram assim todos envol-vidos numa suspeita geral, que os transformou, em seguida, no alvo privilegiado da Inquisio. Em pouco tempo, num reino cuja uniformidade religiosa era produto da conjunta converso em massa dos judeus e da expulso dos muul-manos nos finais de Quatrocentos, difunde-se a tendncia de perceber em cada mnimo desvio um atentado integridade da f. Aquele processo complicou-se num jogo de espelhos entre o contexto ibrico e europeu de um lado e, do outro, uma representao da pluralidade religiosa do mundo reduzida oposio entre infiis (categoria em que os muulmanos eram considerados como um adver-srio quase irredutvel) e cristos (fiis de outras Igrejas, ou conversos). Entre referncias explcitas e aluses indiretas estabeleceu-se um paralelo entre frente interna, caracterizada por uma conspcua presena de judeus convertidos os chamados cristos-novos , mas tambm de luteranos (adjetivo aplicado, sem grandes cuidados, seja aos erasmianos, seja aos sequazes da Reforma, na sua complexidade), e frente externa: aos dois primeiros grupos corresponderiam, com mltiplas variantes na sua irredutvel diversidade, os novos convertidos de origem asitica, africana ou americana, de um lado, os cristos orientais do outro.6

    A comum acusao de heresia revestiu-se de um conjunto amplo e disforme de crenas e de comportamentos, como demonstrou a prpria recepo do tratado de Gis em Portugal: a sua proibio foi justificada ao autor com o risco de que os cristos-novos do reino retirassem convices errneas da excessiva abertura da Fides; todavia, como notava j Marcel Bataillon, a inquietar os inquisidores, que sabiam dos contatos de Gis com expoentes de proa da Reforma (de Lutero a Melanchton), deviam estar tambm as aparentes analogias entre aspectos do cristianismo etope e doutrinas reconduzveis ao mundo protestante (do matri-

    4 Apologtico, mas til, SOARES, Lus Ribeiro. Pedro Margalho. Lisboa: INCM, 2000. luz de figuras como Margalho, parece-me que se compreende melhor tambm a magistral reconstru-o de AUBIN, Jean. Le prtre Jean devant la censure portugaise [1980]. In: Idem. Le latin et lastrolabe. Lisboa: CNCDP-Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1996-2006, vol. 1, p. 183-210.

    5 Para uma anlise mais aprofundada ver o meu artigo: MARCOCCI, Giuseppe. A fundao da Inquisio portuguesa: um novo olhar. Lusitania Sacra, 2a s., 22, 2010 (no prelo).

    6 Nisto insistiu primeiramente, partindo do confronto entre cristos-novos e indianos convertidos, XAVIER, ngela Barreto. De converso a novamente convertido. Identidade poltica e alteridade no Reino e no Imprio. Cultura. Revista de Teoria e Histria das Ideias, 22, 2006, p. 245-275.

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    mnio de sacerdotes reiterao do batismo).7 No foi ento um acaso que, na origem daquela condenao, se encontrasse o prprio Margalho que, j num tratado de 1520, tinha liquidado os cristos orientais como herticos, precisando depois que os etopes admitem heresias e falsos dogmas, observam os preceitos da Lei Velha com a nossa e imitam os costumes dos outros infiis.8

    raro encontrar nas fontes lusitanas de incio de Quinhentos a palavra here-sia referida s igrejas orientais das quais Roma e a Europa tinham estado sepa-radas durante sculos. A redescoberta daquela cristandade de traos msticos (do preste Joo aos cristos de so Toms) tinha alimentado, desde a metade do sculo anterior, a retrica oficial de um expansionismo colonial portugus ainda em busca de legitimao.9 Mas, tons de amarga desiluso no tardaram a emergir. Por volta de 1530, lvaro Penteado, missionrio portugus em Kerala, rotulou os habitantes cristos, que se pretendiam descendentes dos convertidos do apstolo Toms, como nestorianos (Nestor, cuja seita e erro seguem).10 Penteado tinha inaugu-rado por isso o uso de lhes administrar um segundo batismo, uma prtica que, em meados de Quinhentos, foi muitas vezes retomada por missionrios e alargada aos cristos orientais em geral, contra quem as autoridades lusitanas nutriam agora um total juzo negativo: de potenciais aliados na guerra contra os infiis, tornaram-se, deste modo, nos destinatrios de uma poltica de converso e de controle.11

    2. marcas para uma histria global da inquisio no imprio portugusA par da anulao violenta das minorias judia e muulmana do reino de Por-

    tugal em finais do sculo XV, a gradual intransigncia face s igrejas orientais um fator que, talvez subvalorizado, se reveste de uma importncia decisiva para

    7 BATAILLON, Marcel. Le cosmopolitisme de Damio de Gis [1938]. In: Idem. tudes sur le Portugal au temps de lhumanisme. Paris: Fundao Calouste Gulbenkian-Centro Cultural Portugus, 1974,2 p. 121-154: 149-150.

    8 hereses et falsa admittunt dogmata et legalia veteris legis cum nostra observant aliosque infideles mores imitantur. MARGALHO, Pedro. Phisices Compendium. Salmantice, 1520, fls. iiijrv.

    9 ROGERS, Francis M. The quest for Eastern christians. Travels and rumor in the age of discovery. Minneapolis: Minnesota University Press, 1962.

    10 Carta ao cardeal infante d. Afonso, s.d. [ca. 1529-1530]. In: Documentao para a histria do padroado portugus do Oriente. ndia. Coligido e anotado por Antnio da Silva Rego. Lisboa: Fundao Oriente-CNCDP, 1991-2000,2 vol. 2, doc. 108. Atenua o tom de reprovao THOMAZ, Lus Filipe F. R. Were Saint Thomas christians looked upon as heretics? In: MATHEW, K. S.; SOUZA, Teotnio R. de; MALEKANDATHIL, Pius (ed.). The Portuguese and the socio-cultural changes in India, 1500-1800. Tellicherry: Fundao Oriente-Meshar, 2001, p. 27-91, p. 35.

    11 Exemplar o tratamento reservado aos escravos etopes em Ormuz pelo jesuta Kaspar Berz, que se discute numa carta de 1 de dezembro de 1549: WICKI, Josef e CORREIA, John (ed.). Docu-menta Indica [DI]. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1948-1988, vol. 1, doc. 87A.

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    compreender a fundo a evoluo da relao entre os portugueses e as regies no europeias e, no meio disto, a tortuosa histria das estratgias de evangelizao no imprio lusitano.12 Na elaborao do ideal de reduzir a um modelo uniforme de catolicismo a excepcional variedade que caracteriza os mundos a que os por-tugueses acederam, a Inquisio ofereceu tambm um contributo.

    A ao concreta do Santo Ofcio lusitano nas regies do ultramar gozou de um constante, mas desigual interesse historiogrfico. Subsiste o paradoxo de uma forte diferena entre a abundncia de investigaes sobre o Brasil, onde porm os inqui-sidores tardaram a penetrar e no tiveram nunca uma sede estvel, e as tmidas pes-quisas sobre o Estado da ndia, a unidade administrativa que compreendia os territ-rios do Imprio portugus disseminados entre a frica Oriental e o Sudeste asitico, sujeita, pelo contrrio, desde 1560 a uma Inquisio com sede na capital Goa.13

    Os trabalhos de Jos Gonalves Salvador e de Anita Novinsky sobre os cris-tos-novos, as principais vtimas do Santo Ofcio na colnia lusitana na Amrica, abriram um caminho longo no qual se inseriram desde ento estudiosos sensveis tambm aos aspectos institucionais da presena da Inquisio no Brasil na Idade Moderna, de Snia Siqueira a Bruno Feitler; enquanto que Ronaldo Vainfas trouxe luz centralidade do controle exercido sobre a esfera da sexualidade.14 Sobre o tribunal lusitano na ndia, pelo contrrio, continua ainda fundamental a monografia dedicada por Antnio Baio, na primeira metade do sculo passado, sua organizao interna e ao seu funcionamento.15 Charles Amiel teve depois o

    12 Sobre as consequncias do dito de expulso de judeus e de muulmanos ver SOYER, Franois. The persecution of the Jews and the Muslims of Portugal. King Manuel and the end of religious tolerance, 1496-7. Leiden-Boston: Brill, 2007. Sobre as discusses que se seguiram converso dos judeus, permito-me reenviar para o meu estudo: MARCOCCI, Giuseppe. per capillos adductos ad pillam. Il dibattito cinquecentesco sulla validit del battesimo forzato degli ebrei in Portogallo (1496-1497). In: PROSPERI, Adriano (cura). Salvezza delle anime, disciplina dei corpi. Un seminario sulla storia del battesimo. Pisa: Edizioni della Normale, 2006, p. 341-423.

    13 A hiptese de abrir um tribunal no Brasil foi discutida no tempo da dominao espanhola; ver FEITLER, Bruno. Usos polticos del Santo Oficio portugus en el Atlntico (Brasil y frica Occidental). El perodo filipino. Hispania Sacra, 59, 2007, p. 269-291.

    14 SALVADOR, Jos Gonalves. Cristos-novos, jesutas e Inquisio. Aspectos da sua atuao nas capitanias do Sul, 1530-1680. So Paulo: Livraria Pioneira, 1969; NOVINSKY, Anita. Cristos novos na Bahia. So Paulo: Perspectiva, 1972; SIQUEIRA, Snia A. A Inquisio portuguesa e a sociedade colonial. So Paulo: tica, 1978; VAINFAS, Ronaldo. Trpico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisio no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1989; FEITLER, Bruno. Inquisi-tion, juifs et nouveaux-chrtiens au Brsil. Le Nordeste, XVIIe-XVIIIe sicles. Leuven: Leuven University Press, 2003. Tambm se insere nesta tradio PEREIRA, Ana Margarida Santos. A Inquisio no Brasil. Aspectos da sua atuao nas capitanias do Sul, de meados do sc. XVI ao incio do sc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2006.

    15 BAIO, Antnio. A Inquisio de Goa. Lisboa: Academia das Cincias, 1930-1945. til tambm a sntese, editada postumamente (o texto remonta a 1965), de RVAH, Isral-Salvator. Pour lhistoire

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    mrito de iluminar os traos principais da histria do Santo Ofcio de Goa, apesar da perda quase total dos processos.16 Como demonstrou Ana Isabel Cannas da Cunha, a expanso da Inquisio at s costas do oceano ndico foi determinada pelo objetivo de atingir os cristos-novos que tinham procurado refgio nos maiores centros do Imprio portugus.17 Por isso, os historiadores encontram informaes preciosas sobre o tribunal de Goa tambm nos estudos de James Boyajian, especialista nas redes comerciais internacionais, e de Jos Alberto Tavim, especialista na dispora sefardita.18 O Santo Ofcio deu provas tambm na sia de concentrar a represso mais dura sobre os judaizantes, a categoria a que foi infligido, de longe, o maior nmero de condenaes morte; e todavia, a atividade quotidiana dos inquisidores de Goa foge ainda aos historiadores, uma vez que no se alarga o campo de investigao aos outros delitos perseguidos segundo estratgias mutveis, a partir da apostasia dos hindus convertidos (genti-lidade), o delito que mais ocupou os magistrados de um tribunal da f empenhado tambm em estimular uma poltica de anulao da prtica pblica dos cultos locais, como observava j h meio sculo Anant Priolkar.19

    A Inquisio portuguesa teve, alm disso, autoridade sobre algumas regies costeiras do continente africano, onde interveio com procedimentos e eficcia desiguais. Se, para Marrocos, se dispe de uma slida monografia de Jos Al-berto Tavim sobre a comunidade de judeus e de cristos-novos, como quase em todo lado o grande alvo do Santo Ofcio lusitano, tempos e formas das incurses inquisitoriais na frica sub-saariana, episdicas mas no incuas, beneficiaram-se das pesquisas de estudiosos como Jos da Silva Horta e Peter Mark.20 Pronto

    religieuse de lAsie portugaise: lactivit du tribunal de Goa. In: Memorial I.-S. Rvah, p. 545-560.16 AMIEL, Charles. LInquisition de Goa. Survol historique. In: LInquisition de Goa. AMIEL, Char-

    les e LIMA, Anne (ed.). La relation de Charles Dellon (1687). Paris: Chandeigne, 1997, p. 61-74; AMIEL, Charles. LInquisition de Goa. In: BORROMEO, Agostini (cura). LInquisizione. Atti del simposio internazionale. Citt del Vaticano: Biblioteca Apostolica Vaticana, 2003, p. 229-250.

    17 CUNHA, Ana Isabel Cannas da. A Inquisio no Estado da ndia. Origens (1539-1560). Lisboa: ANTT, 1995.

    18 BOYAJIAN, James C. Goa Inquisition. A new light on the first 100 years (1561-1660). Purabhilekh-Puratatva, 4, 1986, p. 1-40; Idem. Portuguese trade in Asia under the Habsburgs, 1580-1640. Baltimore-London: The Johns Hopkins University Press, 1993; TAVIM, Jos Alberto R. S. Judeus e cristos-novos de Cochim. Histria e memria, 1500-1662. Braga: APPACDM, 2003. Sem qualquer utilidade GINIO, Alisa Meyuhas. The Inquisition and the new christians: the case of the Portuguese Inquistion of Goa. The Medieval History Journal, 2, 1999, p. 1-18.

    19 PRIOLKAR, Anant K. The Goa Inquisition. Being a Quatercentenary Commemoration Study of the Inquisition in India. Bombay, 1961, p. 114-149. Para um rpido balano sobre a perseguio aos hindus ver AMIEL, Charles. LInquisition de Goa. Survol historique, p. 71-72.

    20 TAVIM, Jos Alberto R. S. Os judeus na expanso portuguesa em Marrocos durante o sculo XVI. Origens e actividades duma comunidade. Braga: APPACDM, 1997. De Jos da Silva Horta

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    a perseguir os judaizantes nos entrepostos do comrcio colonial, o tribunal foi capaz de alargar o raio de ao at atacar tambm as crenas dos africanos con-vertidos pelos missionrios, como se conclui da leitura das atas de um precioso colquio de 2003, que marcou um passo importante para uma nova imagem do impacto da Inquisio em frica.21

    A tendncia para superar a tradicional separao dos estudos sobre reas geogrficas particulares onde operou o Santo Ofcio emergiu em meados dos anos noventa do sculo passado, sem que, no entanto, se encontrassem investigadores dispostos a cultiv-la e aprofund-la. O livro de Francisco Bethencourt sobre trs inquisies modernas contribuiu para um olhar mais alargado sobre os tribunais apostlicos delegados no mundo catlico entre os finais de Quatrocentos e os incios de Oitocentos. A sua anlise cruza em diversos momentos as caracters-ticas da atividade inquisitorial nos territrios imperiais portugueses, s vezes acercando os diversos contextos no sentido de chegar a uma primeira comparao entre os modelos que a se impuseram. Muitas vezes preciosas, as consideraes de Bethencourt ficam, no entanto, dispersas no interior de uma obra de carter mais geral e no chegam a fundir-se numa sntese compacta.22 Sobre as regies do padroado da coroa lusitana, pelo contrrio, concentra-se, de modo especfico, um artigo de Caio Boschi que tem o mrito de introduzir os casos da Inquisio depois de ter resumido a extenso da rede eclesistica diocesana e missionria no Imprio. E, todavia, os diversos aspectos so apenas justapostos, sem indagar as suas conexes profundas; e a parte sobre o tribunal da f, embora correta, limitada por uma rgida distino entre mbitos territoriais.23

    ver HORTA, Jos da Silva. Africanos e portugueses na documentao inquisitorial de Luanda a Mbanza Kongo (1596-1598). In: ENCONTRO DE POVOS E CULTURAS EM ANGOLA. Actas do seminrio. Lisboa: CNCDP, 1997, p. 301-321; autor de estudos a quatro mos com Peter Mark, entre os quais HORTA, Jos da Silva e MARK, Peter.Two early seventeenth-century Sephardic communities on Senegals. Petite Cte. History in Africa, 31, 2004, p. 231-256; e Duas comunidades sefarditas na costa norte do Senegal no incio do sculo XVII: Porto de Ale e Joala. In: BARRETO, Lus Filipe et. al. (coord.). Inquisio portuguesa. Tempo, razo e circunstncia. Lisboa-So Paulo: Prefcio, 2007, p. 277-304. Ver tambm GREEN, Tobias. Further considera-tions on the Sephardim of the Petite Cte. History in Africa, 32, 2005, p. 165-183.

    21 BETHENCOURT, Francisco e HAVIK, Philip (org.). Inquisio em frica. Revista Lusfona de Cincia das Religies, 3, 2004, p. 21-173. O ensaio de Filipa Ribeiro da Silva retoma a indita tese de mestrado da autora sobre a Inquisio entre Cabo Verde, Guin e ilha de So Tom e Prncipe (2002), qual no tive acesso.

    22 BETHENCOURT, Francisco. Histria das Inquisies. Portugal, Espanha e Itlia. Lisboa: Crculo de Leitores, 1994.

    23 BOSCHI, Caio. Estruturas eclesisticas e Inquisio. In: BETHENCOURT, Francisco e CHAUDU-RI, Kirti (dir.). Histria da expanso portuguesa. Lisboa: Crculo de Leitores, 1998, vol. 2, p. 429-452.

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    Num panorama constelado de estudos de indubitvel qualidade, continua-se a descurar o n que ligou Inquisio e conquista. O vazio de conhecimento, que aqui no se pretende certamente colmatar, no explica, no entanto, a falta de uma assuno, por parte dos historiadores, de uma perspectiva global. Se o tempo para uma sntese completa da histria do Santo Ofcio no Imprio portugus no parece ainda maduro, o presente contributo centrar-se- na adaptao de um tribunal europeu nascido com uma funo antijudaizante aos diferentes contextos do ultramar lusitano. Que razes ditaram as formas que a Inquisio assumiu no imprio? Existia uma linha que as unia? Em que modelos foram inspiradas? Que peso teve a experincia ibrica, no s portuguesa? E ainda: como se relacionou o tribunal da f com os agentes da Igreja missionria? So perguntas de resposta inesperada, sobretudo se se exploram as conexes entre as solues adotadas nas vrias reas do imprio lusitano numa estreita relao com as decises tomadas em Lisboa e, em menor grau (pelo menos no sculo XVI), em Roma. Entre as questes espera de serem afrontadas de forma preliminar, est, antes de mais nada, a da emergncia de uma viso unitria, escala mundial, do objetivo de vigiar a ortodoxia no espao imperial portugus entre as autoridades centrais da Inquisio no reino; e, em segundo lugar, a identificao de algumas constantes nas todavia mutveis estratgias de ao de um tribunal com um papel especial no projeto imperial lusitano.

    3. inquisio e imprio: nas origens de uma expanso (ca. 1545-1560)No primeiro difcil decnio de atividade do Santo Ofcio, os inquisidores de

    Lisboa receberam denncias relativas ao Brasil e ao norte de frica, estas ltimas relacionadas sobretudo com apostasia de judeus convertidos retornados sua religio original.24 Entre os vrios documentos, no entanto, ressalta sobretudo a petio enviada em finais de 1546 pelos conselheiros municipais da ilha de San-tiago, no arquiplago de Cabo Verde: a se acusava um grupo de cerca de duzentos cristos-novos portugueses de terem encontrado refgio em terra firme, vivendo entre os africanos da costa, onde no s teriam tornado s prticas pblicas das cerimnias mosaicas, mas teriam cedido aos cultos locais e poligamia.25 No vazio de autoridade causado pela morte do bispo Jean Petit (talvez provido de

    24 Vrios exemplos so referidos em BAIO, Antnio. A Inquisio em Portugal e no Brasil. Subsdios para a sua histria. Lisboa: Edies do Arquivo Histrico Portugus, 1920, passim.

    25 ANTT. Inquisio de vora [IE], Livro 588, fls. 8-11v (descoberto por MOTA, Adelino Teixeira da. Alguns aspectos da colonizao e do comrcio martimo dos portugueses na frica ocidental nos sculos XV e XVI. Lisboa: Junta de Investigaes Cientficas do Ultramar, 1976, p. 15).

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    uma delegao inquisitorial da qual, em qualquer caso, no fez uso), os pedidos de uma interveno do Santo Ofcio permaneceram inatendidos.26 O tribunal encontrava-se ainda na fase mais delicada de uma disputa com a S apostlica sobre os procedimentos seguidos com os cristos-novos, que tinha j forado a Inquisio a suspender a execuo das sentenas (1544). De fato, foi s depois do acordo com Roma do definitivo reconhecimento dos plenos poderes (1547) que, em conjunto com os seus mais fiis colaboradores (o dominicano Jronimo de Azambuja e os canonistas Ambrsio Campelo e Jorge Gonalves Ribeiro), o cardeal infante d. Henrique, irmo de d. Joo III (1521-1557) e inquisidor geral a partir de 1539, iniciou a projetar uma extenso efetiva do raio de ao do tribunal da f para alm dos confins do reino.27

    Um primeiro momento de viragem ocorreu por volta de 1550, quando um Santo Ofcio aparentemente dbil, reduzido a apenas duas sedes (contra as seis que tivera nos anos quarenta), apostou com convico no alargamento da competncia geogrfica dos inquisidores de Lisboa, que vigiavam tambm o interior do terri-trio de Portugal, excluindo a arquidiocese de vora, que mantinha o seu prprio tribunal local.28 Foi ento, de fato, que a Inquisio reivindicou expressamente uma jurisdio sobre as possesses da Coroa lusitana no norte de frica e sobre os arquiplagos da Madeira, Cabo Verde e So Tom.29 Aquela poltica de projeo atlntica foi inaugurada nos mesmos meses em que o tribunal emergia como uma arma privilegiada para reconduzir os humanistas mais inquietos para os limites da ortodoxia doutrinria, que devia constituir o nico fundamento da cultura oficial de um reino amparado na misso de construir um imprio catlico pelo mundo. Disto colhem-se marcas evidentes na priso dos professores do Colgio das Artes de Coimbra, em agosto de 1550, como nos novos depoimentos contra Gis feitos no Santo Ofcio de Lisboa pelo provincial jesuta Simo Rodrigues (os primeiros

    26 A expresso usada pelos conselheiros de Santiago (Com a vinda do bispo Dom Joham Parvy a estas Ilhas ficamos providos da Samta Inquisio sobre a qual lhe tinhamos tantas vezes esprito) deixa supor que Petit tivesse tido especial delegao inquisitorial.

    27 Os poderes de Azambuja, Campelo e Gonalves Ribeiro foram definidos, uma primeira vez, por um decreto inquisitorial de 15 de outubro de 1549 (PEREIRA, Isaas da Rosa. Documentos para a histria da Inquisio em Portugal, sculo XVI. Lisboa: Critas Portuguesa, 1987, doc. 3).

    28 A competncia do tribunal de Lisboa foi clarificada por um decreto inquisitorial de 8 de maio de 1551 (ivi, doc. 2), emitido em favor de Campelo, Gonalves Ribeiro e do frade dominicano Jorge de Santiago (ivi, doc. 28).

    29 SILVA, Filipa Ribeiro da. A Inquisio na Guin, nas ilhas de Cabo Verde e So Tom e Prncipe. In: Inquisio em frica, p. 157-173: 158. Com o decreto de 4 de agosto de 1552, o cardeal infante d. Henrique confirma que os inquisidores de Lisboa tinham jurisdio sobre pessoas de toda las partes destes reinos e senhorios deles e das Ilhas (ivi, doc. 23).

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    remontavam a 1545). Todos foram acusados de luteranismo.30 Mas quo ampla pudesse ser a acepo daquela heresia, na mente dos inquisidores portugueses, revelado no processo do cronista rgio portugus Ferno de Pina, deposto do cargo depois de ser condenado, a 31 de maro de 1550, a abjurar os seus erros, entre os quais a ideia de que aquelas pesoas que no tevero noticya da ley de Christo como avya muitas terras omde nam foram os apstolos, que estas pesoas se salvario posto que no recebessem a agoa do bautismo.31

    Foi numa data contida entre o fim da causa contra Pina e o incio daquela contra os docentes de Coimbra que os mesmos juzes de Lisboa transmitiram, ao juiz civil do Funchal, Fernando Cardoso, a faculdade de indagar e de proceder s prises em Ponta do Sol, na ilha da Madeira, no caso de delytos de heresias e apostasias, feytiarias, blasfemias e sortilegios e outros crimes asy tocamtes a Samta Imquisio, como a jurdio eclesiastica ordinaria, e tambm de delitos que so da jurdio ordinria que no pertencem a Samta Imquisio em virtude de um especial poder que lhes foi concedido pelo cardeal infante d. Henrique e pelo nncio apostlico Pompeo Zambeccari.32 Aquela delegao singular num magistrado secular era acompanhada por um regulamento no qual se inseriram medidas para limitar os riscos de usos arbitrrios por parte de Cardoso, o qual foi proibido de encarcerar suspeitos na ausncia de pelo menos trs testemunhas (contra as duas habituais).33 Por norma, semelhana do reino, tambm no espao atlntico se procurou a colaborao do clero diocesano, com a emisso de procu-raes que permitissem aos representantes dos bispos do ultramar procederem ao envio dos presos para o tribunal de Lisboa.34 E, todavia, nos primeiros passos da nova estratgia imperial, colhe-se o eco do incmodo, ento amadurecido em Portugal, dos inquisidores em relao a uma atividade autnoma da justia epis-

    30 BRANDO, Mrio. A Inquisio e os professores do Colgio das Artes. Coimbra: Imprensa da Uni-versidade, 1949-1968, 2 vols. Rodrigues foi convocado a 24 de setembro de 1550 pela Inquisio de Lisboa para confirmar as declaraes de 1545: tudo foi depois unido aos autos processuais (HEN-RIQUES, Guilherme J. C. Inditos goesianos. Arruda do Vinhos: Arruda Editora, 2002,2 vol. 2).

    31 Denncia do clrigo Jorge Manuel, 12 de maro de 1545 (ANTT. IL, proc. 12.091, fls. 26v-27).32 Proviso de 22 de julho de 1550 (ANTT. IL, liv. 840, fls. 2-3). As concesses do inquisidor geral

    e do nncio encontram-se em PEREIRA. Documentos, docs. 67-68.33 A 26 de julho de 1550, o regimento (ANTT. IL, liv. 840, fls. 3-4v) foi consignado pessoalmente

    a Cardoso por Campelo e Gonalves Ribeiro. Uma sntese sobre a presena do Santo Ofcio est em SIQUEIRA, Snia A. O Santo Ofcio e o mundo atlntico: ao inquisitorial na Madeira. In: VAINFAS, Ronaldo; FEITLER, Bruno; LAGE, Lana (org.). A Inquisio em xeque. Temas, controvrsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006, p. 13-24.

    34 Para o reino cf. PAIVA, Jos Pedro. Les vques et lInquisition portugaise, 1536-1613. In: AUDISIO, Gabriel (dir.). Inquisition et pouvoir. Aix-en-Provence: Publications de lUniversit de Provence, 2004, p. 147-169.

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    copal.35 Disso prova a insistncia sobre a jurdio ordinaria na delegao para a Madeira.36 Uma confirmao provm do caso de Cabo Verde, onde, em 1551, o vigrio geral local, Gaspar Silveira, suscitou a profunda irritao do cardeal infante d. Henrique por ter-se intrometido, sem mandato, em algumas cousas que tocavo ao Santo Officio da Imquisyo. Apesar do global entendimento entre o Santo Ofcio e as autoridades diocesanas no mundo portugus, tratava-se de um ponto que se devia rebater com firmeza: Silveira foi por isso intimado a desistir de qualquer futura iniciativa, sob a severa ameaa de excomunho, de 500 cruzados de multa e de um procedimento contra si.37

    Aquele modelo integrado dava, em qualquer caso, os seus resultados. Desde o incio dos anos cinquenta vinha sendo experimentado tambm no norte de frica onde, para alm da presena de cristos-novos, um objetivo primrio era representado pelo refrear das fugas para terra muulmana dos convertidos aps-tatas, mas tambm dos portugueses que a renegavam, por necessidade ou por escolha, a f dos antepassados. Naquele contexto, para favorecer a sua reentrada na Igreja, a Inquisio revelou-se disposta a mostrar uma face misericordiosa, reservada pelo contrrio aos cristos-novos somente no circunscrito tempo da graa que precedia a recolha de denncias depois da leitura do dito da f. No reino, tornara-se um limite no mais superado depois da humilhante concesso de dois perdes gerais aos cristos-novos, imposta aos inquisidores em 1535 e em 1547 por causa da excessiva violncia da sua represso. No imprio, pelo contrrio, a relativa fragilidade do poder poltico lusitano constringiu os juzes da f a seguir muitas vezes um modelo capaz de atrair os fiis que tinham errado, sem que a ameaa do castigo os dissuadisse. A sua origem vai individuada na proviso enviada a 21 de julho de 1550 pelo inquisidor geral a todos os vigrios gerais e oficiais da justia eclesistica dos lugares dAfrica, nos quais se fixavam as etapas que garantiriam aos convertidos apstatas e aos renegados um percurso protegido pelo segredo da confisso sacramental no momento do retorno a terra crist, seguida ento de um registo de forma privada, perante o Santo Ofcio de

    35 Sobre este ponto permito-me reenviar para o meu livro: MARCOCCI, Giuseppi. I custodi dellortodossia. Inquisizione e chiesa nel Portogallo del Cinquecento. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004, p. 160-175.

    36 O peculiar modelo da Madeira levou a um equilbrio entre o delegado da Inquisio e o bispo do Funchal: em 1556, o novo antstite, o frade Jorge de Lemos, recebeu dos inquisidores de Lisboa o mandato de priso contra o cristo-novo Jorge Lopes para que o transmitisse ao juiz civil da Madeira (ANTT. IL, liv. 840, fl. 18v).

    37 Proviso inquisitorial de 10 de junho de 1551 (ivi, fl. 8). A infrao de Silveira consistia talvez em proceder em nome de uma delegao inquisitorial que nunca tinha recebido.

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    Lisboa, da ocorrida reconciliao.38 Ao mesmo tempo, fez-se recurso tambm aos jesutas ativos alm da fronteira com o mundo islmico. A iniciar uma tradio de confiana e de estreitas relaes entre missionrios e inquisidores no Imprio portugus esteve o padre Joo Nunes. Munido de licena do cardeal infante d. Henrique, recolheu ento em Tetuo o fruto do seu zelo de evangelizador tam-bm mediante a absolvio de um nmero impreciso de arrependidos que se tinham tornado judeus ou muulmanos.39 Eram os primeiros sinais de uma dupla estratgia que caracterizaria a histria da presena inquisitorial nos territrios do Imprio portugus: foi o resultado no s de um tratamento diverso reservado aos diferentes tipos de heresia, mas tambm talvez, sobretudo da capacidade poltica varivel do domnio lusitano nos distintos contextos coloniais.

    O encaminhamento do processo de expanso extra-europeia do tribunal da f verificou-se em paralelo sada em estampa dos primeiros volumes das crnicas oficiais das conquistas portuguesas em frica e sia (Ferno Lopes de Castanheda, 1551; Joo de Barros, 1552). Aquelas edies foram a data de nascimento de uma disciplinada literatura imperial, na qual se refletia a nova or-dem de uma cultura agora capaz de recompor, numa viso unitria, a experincia colonial lusitana. Daquele movimento geral participou tambm o Santo Ofcio. As marcas de uma gesto centralizada da Inquisio do ultramar aparecem com toda a evidncia a quem desfolha o registo do tribunal de Lisboa em que foram recolhidas em conjunto as minutas das correspondncias enviadas aos agentes delegados fora da Europa. Aquele registo, do qual retirei os dados apresentados nas pginas precedentes, abre-se com a comisso enviada Madeira em 1550.40 Assim permite seguir, durante os anos 1550, o lento consolidar de um modelo para o imprio idealizado no reino, atravs das instrues sobre a reintegrao

    38 Proviso inquisitorial de 21 de julho de 1550 (ivi, cc. 5-6), em que se sublinhava a importncia de agir com muita caridade e benignidade. Para um aprofundamento ver BRAGA, Isabel M. R. M. Drumond. Entre a cristandade e o Islo (sculos XV-XVII). Cativos e renegados nas franjas de duas sociedades em confronto. Ceuta: Instituto de Estudios Ceutes, 1998.

    39 Uma relao encontra-se na carta de Antnio de Quadros a Incio de Loyola, escrita de Lisboa a 16 de maro de 1554 (Litterae Quadrimestres. Madrid-Roma: A. Avrial-Administratio-IHSI, 1894-1932, vol. 2, doc. 280). Sobrevive uma cpia de um decreto inquisitorial sem data, no qual se regulava a obra de Nunes (PEREIRA. Documentos, doc. 26). Este ltimo, alm disso, figurava entre os vinte e nove jesutas a que, a 22 de maio de 1551, o geral Loyola confere ad personam a faculdade de absolver por heresia in foro coscientiae (Monumenta Ignatiana. Series prima. Sancti Ignatii de Loyola, Societatis Iesu fondatoris, epistolae et instructiones. Madrid: G. Lpez del Horno, 1903-1911, vol. 3, doc. 1820).

    40 Trata-se do cdice que tem por ttulo Livro em que se registo as provises que vo para fora (ANTT. IL, liv. 840). A se encontram tambm disposies sobre localidades do reino sob a jurisdio da Inquisio de Lisboa.

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    de apstatas e renegados, as normas para impedir o contato entre convertidos e infiis, as ordens de captura, as dispensas.41 Sempre no seu interior encontra-se a primeira proviso na qual se ordenava o denunciar ao Santo Ofcio quem infringisse a proibio sancionada pelo direito cannico e pela bula In coena Domini de vender aos infiis armas, metais, madeira e outras mercadorias que podiam ser usadas na guerra contra os cristos (1550).42 Sem uma competncia direta sobre aquele delito, o tribunal procurava assim estender a sua autoridade sobre uma esfera de importncia vital no mundo portugus: o comrcio nas co-lnias. Tratou-se, de qualquer modo, de um elemento dissuasor, de uma ameaa de natureza simblica mais do que real, como se deduz do nmero exguo de processos celebrados depois que a Coroa acordou aos inquisidores a jurisdio na matria.43 No registo da Inquisio de Lisboa conserva-se, por fim, o Regimento de 1554 para o tribunal de Goa, testemunho da primeira tentativa de abrir uma sede ultramarina, sob pedido tambm dos missionrios franciscanos e jesutas.44 Aquelas normas refletiam tambm a recente elaborao do primeiro Regimento geral do Santo Ofcio (1552).45

    A atividade quotidiana dos juzes de Lisboa foi um fator que influiu nas esco-lhas adotadas. No foi irrelevante, por exemplo, que, no mesmo decnio em que o Santo Ofcio lanou as prprias bases para alm dos confins do reino, aqueles mesmos inquisidores puderam criar uma opinio pessoal dos problemas religio-sos nas diferentes reas do imprio graas abertura de causas no apenas por delitos de cripto-judasmo cometidos pelos cristos-novos fugidos nas colnias, mas tambm por crimes de outro tipo. Assim acontece com o grupo de mouriscos libertos que ganhavam a vida na Ribeira de Lisboa, acusados em 1550 de atentar

    41 Assinalo a carta de 28 de novembro de 1552 ao vigrio geral de Tnger para autorizar o regresso em terra crist de pesssoas que habitavam em Tetuo (ivi, fl. 15v); o decreto inquisitorial de 21 de maio de 1557 sobre a vigilncia da entrada de judeus e muulmanos em Tnger e Ceuta (fl. 20rv); os mandatos de priso de 19 e 22 novembro 1558, enviados respectivamente ao bispo de Angra para que fizesse prender Jorge Dias, mercador de Ponta Delgada, e ao vigrio geral de Tnger para que capturasse o cristo-novo Rui Mendes (fl. 25v); o inqurito de 20 de novembro de 1559 ao bispo de Cabo Verde para ratificar os testemunhos contra os acusados Manuel Dias e sua mulher (fl. 29).

    42 Proviso inquisitorial, 25 de setembro de 1550 (ivi, fls. 6v-7v; agora em PEREIRA. Documentos, doc. 13).

    43 Alvar rgio, 1 de fevereiro de 1552 (ivi, doc. 21). Foi concedido Inquisio para punir alguns agentes comerciais do banqueiro Luca Giraldi, processado ele mesmo, sem consequncias, entre 1553 e 1555 (PEREIRA, Isaas da Rosa. Lucas Giraldi, um mercador florentino na Inquisio de Lisboa. Anais da Academia da Histria Portuguesa, 2a s., 28, 1982, p. 287-314). O alvar tambm declarou de competncia inquisitorial o delito de entrar em terra muulmana sem licena.

    44 BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 27. Para um seu enquadramento na histria do advento do tribunal na ndia ver CUNHA. A Inquisio, p. 129-130 (ivi, p. 290-295).

    45 BAIO. A Inquisio em Portugal e no Brasil, doc. 31.

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    contra a f de nefitos muulmanos que nem sequer sabiam falar portugus.46 De 1553 datam tambm os processos contra trs escravos wolof provenientes da Se-negmbia, onde tinham recebido uma rudimentar educao islmica, para depois serem batizados em Portugal, embora se possam nutrir fortes dvidas, tendo por base os autos judicirios, sobre o seu real conhecimento das vrias passagens de identidade religiosa.47 Entre 1557 e 1558, finalmente, foram apresentadas aos inquisidores de Lisboa as primeiras denncias contra escravos de origem india-na.48 Aquelas experincias contriburam tambm para dar substncia dimenso imperial que desde ento constituiria um novo horizonte da Inquisio lusitana.

    4. inquisidores e missionrios: provas de entendimento (c. 1560-1575)A seguir uma reorganizao da administrao eclesistica no Imprio (em

    1557 foram criadas as dioceses de Cochim e de Malaca, sujeitas autoridade da S de Goa, elevada a arquidiocese), a segunda fase de expanso da Inquisio teria continuado a andar em torno aos bispos e seus oficiais, mas foi marcada por uma relao sempre mais orgnica entre inquisidores e missionrios, em particular jesutas. A rpida difuso destes ltimos na ndias orientais e no Brasil ofereceria s autoridades do reino, s quais a Companhia estava j solidamente ligada, a ocasio para dar uma nova roupagem formal jurisdio do Santo Ofcio nas terras do ultramar.49

    A colonizao lenta e contrastada do Brasil desaconselhava ento a tentativa de introduzir um tribunal na Amrica. Mas, no entanto, a Inquisio reforou o seu controle. O bispo da Bahia, Pedro Leito, residia no reino. No podendo tomar parte de alguns processos em curso em Lisboa contra fiis da sua diocese (erigida em 1549), resolveu-se a indicar o inquisidor Ambrsio Campelo como seu substituto na qualidade de ordinrio tambm para as causas futuras. Tal deciso foi tomada em 1559, dois anos depois da chegada ao Brasil de um governador com um passado de inquisidor, Mem de S, que guiaria, com o auxlio dos padres jesu-tas, uma agressiva campanha militar contra os ndios que opunham resistncia.50

    46 ANTT. IL, proc. 1636. O processo, conduzido pelos inquisidores Gonalves Ribafria e Campelo, desenrolou-se entre junho e julho de 1550 e concluiu-se com penas leves.

    47 SAUNDERS, A. C. de C. M. A social history of black slaves and freedmen in Portugal, 1444-1555. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, p. 158-164.

    48 Assim interpreto o termo ndio nas denncias resumidas em BAIO. A Inquisio em Portugal e no Brasil, p. 177, 179.

    49 Sobre a expanso da Igreja no Imprio portugus ver BETHENCOURT, Francisco. A Igreja. In: Histria da expanso portuguesa, vol. 1, p. 369-386.

    50 A comisso de 10 de maio de 1559 encontra-se editada em PEREIRA. Documentos, doc. 81. Sobre

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    Assim, o primeiro verdadeiro teatro de uma sistemtica colaborao entre inquisidores e missionrios foi Goa, a capital do Imprio portugus na sia, onde as todavia instveis condies de um domnio fixado no controle dos maiores entrepostos comerciais ao longo das rotas da navegao no oceano ndico per-mitiu instituir, em 1560, o primeiro grande tribunal extra-europeu na histria das Inquisies.51 A deciso foi tomada depois que uma campanha judiciria desencadeada contra os cristos-novos de Cochim, com o empenho ativo do jesuta Gonalo da Silveira, tinha levado transferncia dos presos para Lisboa e abertura de processos por cripto-judasmo.52 diferena do Brasil, de fato, o objetivo de perseguir os judaizantes foi a razo principal da penetrao do Santo Ofcio na ndia, ainda que h tempo que o tribunal era invocado tambm para impedir que os convertidos locais fossem assediados pelos antigos correligio-nrios.53 As instrues da nova Inquisio previam procedimentos moderados para os cristos da terra, como eram chamados os nefitos de origem hindu ou muulmana, mas no se acolheram os pedidos de repetir nos trpicos o exemplo seguido no reino com os judeus na altura do batismo forado, quando se lhes concedeu uma imunidade de vinte anos para os delitos de f.54

    Alcanou-se assim uma geografia institucional destinada a no sofrer mu-danas. O tribunal de Lisboa consagrou-se prpria vocao atlntica, enquanto

    a governao de Mem de S, cf. WETZEL, Herbert Ewaldo. Mem de S, terceiro governador geral (1557-1572). Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1972. Com a proviso de 12 de junho de 1541, o infante d. Henrique, inquisidor-mor, tinha nomeado S como substituto para a arquidiocese de Lisboa no caso da sua ausncia (Biblioteca da Ajuda [BdA], cod. 54-X-17, n. 7). Limita-se a assinalar a sua assinatura no final dos autos de um processo daquele mesmo ano. FARINHA, Maria do Carmo Jasmins Dias. Ministros do Conselho Geral do Santo Ofcio. Memria, 1, 1989, p. 101-206: 105.

    51 O nico precedente era aquele do efmero tribunal aberto pela Inquisio espanhola no norte de fri-ca, entre 1516 e 1525, sobre o qual ver ACERO, Beatriz Alonso. LInquisition espagnole la fron-tire de berbrie. Oran-Mazalquivir, XVIme et XVIIIme sicles. In: Inquisio em frica, p. 65-82.

    52 CUNHA. A Inquisio, p. 131-139.53 Assim j fazia Francisco Xavier numa carta escrita a Francisco Mansillas a 7 de abril de 1545

    (SCHURHAMMER, George e WICKI, Josef (ed.). Epistolae S. Francisci Xaverii aliaque eius scripta. Roma: Institutum Historicum Societatis Iesu, 1996, vol. 1, doc. 50).

    54 Pediu-o o jesuta Melchior Carneiro na missiva a Francisco Borja de 6 janeiro de 1555 (DI, vol. 3, doc. 65). Pelo contrrio, os captulos para a Inquisio de Goa, de 2 de maro de 1560 chegados ndia alguns meses depois, junto com os novos inquisidores, Aleixo Dias Falco e Francisco Marques Botelho, acompanhados pelo primeiro arcebispo, Gaspar de Leo Pereira , conferiram aos cristos da terra apenas a iseno quinquenal do confisco dos bens, alm do privilgio de evitar, no final do primeiro processo, a reconciliao formal e a abjurao, que eram tidas apenas em caso de reincidncia, justo ate se aver proviso pera no serem relapsos seno quamdo parecer aos inquisidores (includos tambm em ANTT. IL, liv. 840, fls. 5-8, 2a num., so editados por BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 30-35; e CUNHA. A Inquisio, p. 295-301).

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    que o mundo que se abria a este do cabo da Boa Esperana ficou reservado para a autoridade do novo tribunal inquisitorial instaurado em Goa, criado tambm para superar as ineficincias de uma justia episcopal que tambm se ocupara de judaizantes nos decnios precedentes (em 1543, o bispo franciscano Juan Alfon-so de Albuquerque chegou at a publicar a bula da Inquisio no dia seguinte queima do cristo-novo Jernimo Dias).55 No primeiro vintnio de atividade no Estado da ndia, o Santo Ofcio reprimiu duramente aqueles conversos que tinham seguido as direes dos negcios portugueses na ndia, o outro grande ponto de chegada dos itinerrios marranos nas colnias ibricas, ao lado das possesses na Amrica estudadas por Nathan Wachtel (mas no Brasil foi somente entre os sculos XVII e XVIII que a Inquisio desencadeou uma macia perseguio contra os descendentes dos judeus convertidos).56

    Chegados de Portugal, os inquisidores de Goa encontraram-se perante uma sociedade fervilhante de crenas, lnguas e costumes, que tornavam incertas as fronteiras no interior do Imprio lusitano nas ndias orientais. Misses e Inqui-sio tornaram-se assim nas duas faces, nem sempre fceis de distinguir, de uma poltica fundada sobre a converso das populaes locais, com prevalncia para hindus e muulmanos. A aceitao do catolicismo impe-se como a via principal para a integrao civil na sociedade colonial lusitana, debaixo da presso de um proselitismo cada vez mais agressivo, destinado extirpao total das diferenas religiosas de localidades como Goa, Bardez e Salsete, segundo formas em parte inspiradas na anulao de qualquer sinal exterior das antigas minorias religiosas em Portugal entre finais do sculo XV e incios do sculo XVI. Um complemento daquela estratgia foi o intenso controle sobre a f dos convertidos que o Santo Ofcio acabou por exercitar. E, todavia, apesar da destruio dos templos, a proi-bio dos cultos e festas locais em pblico, os grandes batismos solenes e uma legislao discriminatria direcionada para favorecer os nefitos, o programa de evangelizao, partilhado por tantos servidores daquela que foi, em todos os efeitos, uma Igreja militante, mas tambm pelas autoridades da Coroa, revelou-se superior aos excepcionais esforos profusos.57 Disto oferecem numerosos testemunhos as fontes inquisitoriais.

    55 Sobre a bula do Santo Ofcio promulgada em Goa em 1543 cf. BAIO. A Inquisio de Goa, p. 263-264. A primeira queima de um judaizante remonta a 1539 (CUNHA. A Inquisio, p. 126-127).

    56 WACHTEL, Nathan. La foi du souvenir. Labyrinthes marranes. Paris: Seuil, 2001, a comple-mentar com QUEVEDO, Ricardo Escobar. Inquisicin y judaizantes en Amrica espaola, siglos XVI-XVII. Bogot: Editorial Universidad del Rosario, 2008.

    57 Para Goa e territrios limtrofes, cf. MENDONA, Dlio de. Conversions and citizenry. Goa under Portugal, 1510-1610. Nova Dehli: Concept Publishing, 2002; XAVIER, ngela Barreto.

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    Os inquisidores, assistidos muitas vezes por deputados provenientes das ordens regulares, num primeiro momento dominicanos e jesutas (mas tambm franciscanos e, mais tarde, agostinhos) atacaram de imediato os cristos da ter-ra.58 J no primeiro auto da f, que teve lugar no interior da catedral de Goa em 1562, ressoaram as abjuraes dos convertidos de origem hindu.59 Ainda mais frequentes seriam aquelas por cripto-islamismo, a comear pelas pronunciadas pelo georgiano Abraham e pelo armnio Cobar Gorgi, sempre em 1562.60 As condenaes morte foram, no entanto, reservadas para os cristos-novos. As primeiras remontam a 1563. Se no nesse momento, certamente no ano seguinte os jesutas prestaram o conforto aos justiados, uma atividade de contornos judi-cirios nada irrelevantes se as confisses feitas aos sacerdotes antes de subirem ao patbulo fossem transformadas em revelaes para uso dos inquisidores.61 A dupla identidade de juzes e assistentes espirituais (os jesutas ocuparam-se tambm da reeducao dos condenados a penas menores) caracterizou em Goa uma figura tpica do mundo portugus, o missionrio-inquisidor, que no mbito imperial levou mxima expresso uma aliana entre a Companhia de Jesus e o Santo

    A inveno de Goa: poder imperial e converses culturais nos sculos XVI e XVII. Lisboa: ICS, 2008. Permito-me tambm reinviar para o meu estudo: MARCOCCI, Giuseppe. Costruire un outro Portugal. Strategie di conversione a Goa fra Cinque e Seicento. In: CAFFIERO, Marina (ed.). Forzare le anime. Conversioni tra volont e costrizione in et moderna. Atti del convegno internazionale. Rivista di Storia del Cristianesimo, 7, 2010 (no prelo).

    58 Seguidamente, foram regulares tambm entre os inquisidores: o primeiro foi o dominicano Gaspar de Melo, nomeado em 1583. Um elenco dos juzes e dos deputados da Inquisio de Goa encontra-se em BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 163-178. til tambm CUNHA. A Inquisio, p. 151-166.

    59 Biblioteca Nacional de Portugal [BNP], cd. 203, passim. Sobre a importncia desta fonte ver TAVIM, Jos Alberto R. S. Um inquisidor inquirido: Joo Delgado Figueira e o seu Reportrio, no contexto da documentao sobre a Inquisio de Goa. Leituras. Revista da Biblioteca Nacional, 1, 1997, p. 183-193. Para uma panormica geral sobre a documentao do tribunal de Goa, sobretudo conservado na Torre do Tombo, ver CUNHA, Ana Cannas da. A Inquisio de Goa. Notas de estudo. CONFERNCIA INTERNACIONAL VASCO DA GAMA E A NDIA. Atas. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1999, vol. 3, p. 59-70, a integrar com o catlogo dos cdices guardados na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: MORENO, Carmen Tereza Coelho (coord.). Inquisio de Goa: inventrio analtico. Anais da Biblioteca Nacional, 120, 2000 [2006], p. 7-272.

    60 BNP, cd. 203, fls. 94 e 212. Os dois foram ento enviados para o reino, como se conclui tambm da carta dos inquisidores de Goa para o inquisidor geral Henrique de 23 de dezembro de 1562 (BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 38-45).

    61 Para aprofundamento permito-me reenviar para o meu estudo: MARCOCCI, Giuseppe. La salvezza dei condannati a morte. Giustizia, conversioni e sacramenti in Portogallo e nel suo impero, 1450-1700 ca. In: PROSPERI, Adriano (ed.). Misericordie. Conversioni sotto il patibolo tra Medioevo ed et moderna. Pisa: Edizioni della Normale, 2007, p. 189-255. Aos condenados que no falavam portugus, os padres aproximavam-se atravs de tradutores, como informava Sebastio Fernandes na carta ao geral Borja de finais de Novembro de 1569 (DI, vol. 8, doc. 12).

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    Ofcio tornando-se ento cada vez mais slida no reino (at se reservar em 1571 um lugar permanente no Conselho Geral para um padre jesuta).62

    Aquele modelo, encarnado na Goa dos anos 1560 por Antnio de Quadros e por Francisco Rodrigues, seria depois difundido, talvez com sensveis dife-renas, no resto do imprio: em 1571, o jesuta Antonio Monserrate, em viagem da Europa para a ndia (de onde seria depois levado em misso com Rodolfo Acquaviva corte do Gro Mogol), chegou at a lanar um mandato de priso na fortaleza de Mazago, no norte de frica, contra o agostinho Sebastio Saa-vedra, que conseguiu no entanto salvar-se fugindo para territrio muulmano.63 Enquanto se perseguia com dureza crescente os cristos-novos, entre os anos 1560 e 1570, o tribunal de Goa constitui um laboratrio onde foram experimentadas novas estratgias de ao, acompanhadas de uma precoce tentativa de adoptar os decretos do Conclio de Trento, em que, porm, as questes missionrias ti-nham encontrado um espao bastante reduzido.64 Como na Amrica, s prticas religiosas dos hindus foi aplicada a etiqueta de idolatria, mas no faltaram casos classificados como feitiaria.65 O primeiro, em ordem de tempo, foi aquele de uma javanesa de Cochim, batizada com o nome de Violante, condenada em 1565 a abjurar perante os inquisidores de Goa a culpa de chupar mininos e ter ajuntamento por vezes com o diabo.66 No seu complexo, a de Goa foi sobretu-

    62 Para os casos do reino remeto o leitor para o meu artigo: MARCOCCI, Giuseppe. Inquisio, jesutas e cristos-novos em Portugal no sculo XVI. Revista de Histria das Ideias, 25, 2004, p. 247-326. Com a expresso missionrio-inquisidor refiro-me ao tipo de missionrio ao servio do Santo Ofcio, quer como inquisidor ou deputado, quer como visitador ou comissrio.

    63 BAIO. A Inquisio em Portugal e no Brasil, p. 282.64 REGO, Antnio da Silva. Trents impact on the Portuguese patronage missions. Lisboa: Centro

    de Estudos Histricos Ultramarinos, 1969. Em Bassein, em 1573, o respeito pelos decretos do conclio provincial de Goa foi imposto pelo inquisidor Bartolomeu da Fonseca (DI, vol. 9, doc. 61).

    65 Para a Amrica espanhola ver BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. De lidolatrie. Une archologie des sciences religieuses. Paris: Seuil, 1988.

    66 BNP, cd. 203, fl. 638v. J um ano antes o moambicano Antnio tinha tido uma condenao por adivinhao (ivi, fl. 96v). Entre os casos coevos destaca-se aquele de uma escrava birmanesa batizada, declarada culpada em 1574 de ter feito um pacto com o demnio a quem deu sangue da mo esquerda, lhe aparecia e tinha com ella aiuntamento e por cuia ordem soube e usou feitiarias e estando prenha lhe matou o demonio a criana (ivi, fl. 389v). Faltam estudos sobre Inquisio e feitiaria na ndia, diferena do que sucede para o Brasil (SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Com-panhia das Letras, 1987; EAD. Inferno atlntico. Demonologia e colonizao, sculos XVI-XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 1993; PIMENTEL, Helen Ulha. Universo mgico colonial. Feiticeiros e inquisidores nos dois primeiros sculos da colonizao do Brasil. Tese de doutorado apresentada na Universidade de Braslia, 2005) e frica (CALAINHO, Daniela Buono. Africanos penitenciados pela Inquisio portuguesa. In: Inquisio em frica, p. 47-63; HAVIK, Philip. La sorcellerie, lacculturation et le genre: la perscution religieuse de lInquisition portugaise contre les femmes africaines converties en Haut Guine (XVIIe sicle), ivi, p. 99-116). Para uma

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    do uma Inquisio de fronteira. Por isso, como no norte de frica, tambm nas ndias orientais se ofereceu aos convertidos a possibilidade de uma reentrada doce na Igreja, protegida por procedimentos secretos nos quais estava prevista a colaborao de missionrios e clero diocesano. Se necessrio, aquela soluo podia ser adoptada at em Lisboa: por exemplo, o sacerdote Loureno Afonso, acabado de regressar a Portugal da ndia, talvez tenha tido um papel decisivo na comparncia de um escravo indiano (1566), fugido em terra muulmana onde havia apostatado.67 Em geral, para remediar os frequentes episdios de fuga para alm das fronteiras, se promulgaram ditos de graa vlidos por seis meses a favor de quem em terra de infiis tinha feito o retorno prpria religio de origem.68 Precoces foram, finalmente, os processos abertos contra hindus e muulmanos no batizados, acusados de dificultar as converses dos seus correligionrios, ou de atentar contra a frgil f dos nefitos.69 Por vezes, aquelas causas judicirias resolveram-se com a concesso do perdo em troca do batismo, como acontece com o naique Vitul, que tentara consignar um jovem convertido a um muulmano. Processado em 1568, evitou o castigo s porque se converteu juntamente com toda a sua famlia.70 No ano seguinte, sob parecer positivo da Mesa da Conscincia e Ordens tribunal especial encarregado de exprimir-se sobre decises rgias em matria de competncia eclesistica a Coroa autorizou de forma oficial aqueles procedimentos contra os infiis na ndia.71

    sntese geral ver PAIVA, Jos Pedro. Inquisizione e stregoneria in Portogallo nella prima et moderna. In: CORSI, Dinora e DUNI, Matteo (eds.). Non lasciar vivere la malefica. Le streghe nei trattati e nei processi (secoli XIV-XVII). Firenze: Firenze University Press, 2008, p. 115-127.

    67 BAIO. A Inquisio em Portugal e no Brasil, p. 222.68 A estratgia baseada no dito da f extenso e sobre a reconciliao secreta foi sancionada pelas

    instrues do inquisidor geral Henrique a 13 de fevereiro de 1576 (Idem. A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 295-300), em resposta a questes solevadas de Goa. Ilustra-se o procedimento obser-vado, no qual estavam envolvidos, de maneira especial, confessores da Companhia de Jesus, na carta do inquisidor Fonseca de 8 de novembro de 1576 (ivi, vol. 2, doc. 5). Uma confirmao da parte jesutica na carta de Duarte de Sande ao geral Claudio Acquaviva de 5 de dezembro de 1583 (DI, vol. 12, doc. 142).

    69 Os primeiros quatro, movidos contra mercadores hindus em 1565, resolveram-se com a absolvio por ausncia de provas (BNP, cd. 203, fls. 177v, 353, 557).

    70 BNP, cd. 203, fl. 639v. O mesmo ocorreu, em 1575, a um hindu de Salsete (ivi, fl. 105), enquanto trs anos antes o brmane Loku Sinay foi condenado a aoites e a cinco anos nas gals por induzir os cristos a se fazerem gentios (ivi, fl. 442v). Ainda em 1587, um hindu de Salsete de nome Rama foi perdoado em troca da converso, depois de ter sido processado por convencer alguns catecmenos de Goa a fugirem para terra muulmana (ivi, fl. 593v).

    71 A sentena de 2 de maro de 1569, assinada por Martim Gonalves da Cmara, Gonalo Dias Carvalho, Jernimo de Valadares, os jesutas Miguel de Torres e Leo Henriques e os dominicanos Antnio Bernardes e Antnio de So Domingos, recitava: Tem Sua Alteza obrigaa de castigar gravemente, e mandar inquirir dos que por si, ou por outro, direct, ou indirect, por obra, ou por

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    A inquisio portuguesa, um tribunal para o mundo (ca. 1575-1600)Os processos da Inquisio de Goa na segunda metade de Quinhentos abra-

    am uma variedade nica de acusados, entre os quais convertidos originrios de regies compreendidas entre o Corno de frica e a China, para alm dos arm-nios (adjetivo muitas vezes usado para indicar pessoas provenientes da rea da Alta Mesopotmia) que, como se ver, foram vtimas de uma campanha especial de perseguio.72 Nos primeiros dois decnios de atividade, o alvo principal do tribunal continuou a ser os europeus, portugueses sobretudo (cristos-novos, mas tambm aqueles colonos que sentiram a atrao dos cultos locais), mas no s, considerada a presena no espordica de protestantes entre os condenados.73 Em qualquer caso, depois que foi assegurada uma ampla jurisdio sobre os in-dianos, foram estes ltimos a ocupar sempre os inquisidores de Goa, que talvez escolheram moderar os procedimentos, num esquema geral de vigilncia que s em casos excepcionais revelou aos convertidos os traos mais agressivos do tribunal. Tratou-se mais do que outra coisa de gerir e conter as tenses de um ambiente em risco de exploses de violncia e de revolta. A Inquisio tendeu a assumir funes de polcia dos costumes, ao objetivo de proibir as cerimnias e manifestaes exteriores reconducentes religio de origem dos nefitos.74 Sobretudo na regio de Goa, circundada como estava de formaes polticas hostis que, com a sua simples existncia, alimentavam sentimentos de resistncia ao domnio dos portugueses (exgua minoria em relao populao local), foi necessrio encontrar compromissos e evitar, se possvel, o uso de castigos pbli-cos de resultados imprevisveis (escolha partilhada tambm pelos missionrios jesutas). A deciso de no celebrar autos da f entre os anos 1580 e 1590 resultou de avaliaes como as que chegavam ainda do reino, uma vez constatado que

    palavra impedem o negocio da conversa: e parece que se deve mandar fazer diligencia sobre isto ordinariamente pelos Inquisidores da India (MENESES, Manuel de. Chronica do muito alto e muito esclarecido D. Sebastio decimosexto Rey de Portugal Segunda parte. Lisboa Occidental: na Officina Ferreyriana, 1730, p. 88).

    72 A amplitude da geografia humana objeto da perseguio da Inquisio de Goa emerge de con-denaes como aquela infligida por cripto-hindusmo escrava bengalesa Isabel em 1565 (BNP, cd. 203, fl. 385v), por cripto-islamismo ao escravo chins Francisco em 1578 (ivi, c. 308v), por palavras contra a f crist ao chins Baslio Vaz em 1595 (ivi, c. 191), alm do duplo processo por cripto-islamismo contra um escravo abissnio de Chaul, que tinha nome cristo de Gabriel, hoje conservado na Torre do Tombo (ANTT. IL, proc. 4937).

    73 J em 1562 (carta supra citada n. 60), eram referidas as prises de luteranos franceses, sublinhando que he couza mui importante pureza e conservao da fee nom passar c nenhum estrangeiro.

    74 Emblemtica uma carta de 1579 na qual se invocam solues contra os ritos no publico em forma de festas e casamentos de costume das gentes (BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 2, doc. 14).

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    a maior parte dos processos se referia aos cristos da terra, a alguns mestios e a portugueses fugidos para terra de infiis: tereis muita conta de no tratardes com muito rigor os novamente convertidos por se no escandalisarem os gentios e se impedir a converso delles nestas partes.75

    Assim, apesar da primeira queima em efgie de um condenado por cripto-hindusmo, o mestio Lus Pereira (1587), a condio de instabilidade perma-nente, agravada pela expanso do Imprio mogol, e a desilusiva experincia de campo dos missionrios induziram os inquisidores a pedir com cada vez mais insistncia a faculdade de evitar a condenao morte para os convertidos relapsos, uma escolha que se reclamava abertamente do exemplo seguido pela Inquisio espanhola com os moriscos.76 A sua concesso foi muitas vezes dis-cutida na regular correspondncia que, com cadncia anual, o tribunal de Goa trocava com as autoridades centrais do Santo Ofcio de Lisboa. S depois de muitos esforos, em 1559, ao tempo da unio dinstica entre Espanha e Portugal, a Congregao romana do Santo Ofcio conferiu o poder de absolver nas ndias orientais os nefitos reincidentes no delito de heresia.77 Confirmado cada cinco anos, daquele privilgio fez-se um uso frequente, que permite explicar, frente

    75 Carta do cardeal arquiduque Alberto dAustria, inquisidor geral, aos inquisidores de Goa, 24 de maro de 1589 (cit. ivi, vol. 1, p. 420). De uma missiva do ano seguinte se retirava que, em 1588, no se realizou o auto-da-f porque os penitenciados eram quase todos homens da terra (ivi, vol. 1, p. 269). Sobre a posio dos jesutas cf. a carta de Francisco Fernndez para Acquaviva de 15 de outubro de 1593 (DI, vol. 16, doc. 39).

    76 Recordou-se, numa carta de Lisboa de 1587, na qual se informava o inquisidor de Goa, Rui Sodrinho de Mesquita, de se terem encontrado breves anlogos a favor dos moriscos do reino de Arago (ivi, vol. 1, p. 266-269). Aquele poder tinha sido concedido na primeira metade dos anos 1530 aos inquisidores de Valencia (CRCEL, Ricardo Garca. Hereja y sociedad en el siglo XVI. La Inquisicin en Valencia, 1530-1609. Barcelona: Pennsula, 1980, p. 29). Da ndia pedia-se aquele poder pelo menos desde a carta de 3 de janeiro de 1569 (ivi, vol. 2, doc. 1). Sobre a sentena capital contra Pereira ver BNP, cd. 203, fl. 450. Uma breve referncia na carta dos inquisidores de Goa, Sodrinho de Mesquita e frei Toms Pinto, ao inquisidor geral Alberto de 2 de dezembro de 1587 (BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 2, doc. 25). O peso do estado de guerra, especialmente depois do cerco de Goa por parte das tropas do sulto de Bijapur (1570-1571), incide sobre o funcionamento do tribunal, como se denunciava numa carta de 1574 (ivi, vol. 2, doc. 2).

    77 Breve Sedes Apostolica de 22 de janeiro de 1599 (In: Corpo diplomatico portuguez contendo os atos e relaes politicas e diplomaticas de Portugal com as diversas potncias do mundo desde o sculo XVI ate aos nossos dias. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1862-1959, vol. 12, p. 77-79). Sobre a deliberao do Santo Ofcio romano ver Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede [ACDF], Decreta S.O. 1597-1598-1599, c. 229). Os cardeais inquisidores tinham-se expressado uma primeira vez em sentido negativo, em 1595, como informava Filipe II numa carta ao Conselho Geral de 5 de fevereiro de 1596 (PEREIRA, Isaas da Rosa. A Inquisio em Portugal, sculos XVI-XVII. Perodo filipino. Lisboa: Vega, 1993, doc. 5). Pode-se imaginar a dificuldade criada pela grande demora se se pensar que, desde as instrues de 1576, o inquisidor geral Henri-que tinha ordenado a suspenso das causas de relapsos, na espera do breve (doc. supracitado, n. 68).

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    ao nmero extremamente alto de processos contra convertidos indianos nos dois sculos sucessivos, a raridade das sentenas capitais. Alm disso, deveu-se fornecer uma interpretao alargada (de fato, dever-se-ia considerar apenas os nefitos descendentes dos gentios e dos infiis), a ter em conta do caso de Francisco Rangel, um mestio de origem portuguesa residente na vila de Cortim, nos arredores de Goa: depois de um primeiro processo por cripto-hindusmo em 1592, em 1605, enfrentou uma nova causa pelo mesmo crime, mas sai com uma condenao a abjurao e ao exlio (o uso da faculdade de absolver os relapsos foi pois aprovado pelo Conselho Geral).78

    Pouco atenta at ento aos territrios do Imprio portugus, alguns decnios antes a Congregao romana do Santo Ofcio no tinha mostrado tanta relutncia em relao aos ndios da Amrica convertidos (jamais sujeitos ao direta da Inquisio espanhola), a favor dos quais, em 1577, tinha concedido Compa-nhia de Jesus importantes privilgios em matria de casamento.79 Um reflexo daquela diversa sensibilidade dos principais inquisidores em relao s ndias Ocidentais se pode colher talvez na soluo, adotada dois anos mais tarde pelo novo inquisidor geral portugus, Jorge de Almeida, de reservar ao bispo da Bahia, Antnio Barreiros, e aos padres jesutas (em particular, Lus da Gr) a gesto dos eventuais casos de heresia entre os ndios convertidos, recomendando particular moderao para que se no intimIdem os outros. Tratava-se, por um lado, de uma ratificao das funes de proteo que o prelado e os missionrios j prati-cavam com respeito s autoridades civis e aos colonos, que arriscavam virar, para seu prprio proveito, a arma do Santo Ofcio. Por outro lado, era o resultado de uma reorganizao das estratgias de controle religioso estendidas a uma rgida repartio entre as competncias dos inquisidores (cristos-novos judaizantes e outros cristos europeus responsveis por crimes contra a f) e aquelas do bispo (nefitos), observando que, no tocante aos casos que tocavam Inquisio, ele no teria mais jurisdio que a que tem como prelado.80 Aquele esquema tentava

    78 BNP, cd. 203, c. 327v. Baio (A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 8) escreve que o breve Sedes Apos-tolica reconheceu um poder exercitado s de maneira descontnua; na realidade, foi confirmado constantemente e estava ainda em vigor no tempo de Inocncio XI (ACDF, St. St. LL 4-h, c. 133).

    79 Faculdade concedida a 17 de julho de 1577 (ACDF. St. St. D 4-f, c. 80).80 Proviso de 12 de fevereiro de 1579 (PEREIRA. Documentos, doc. 52). O acordo entre o bispo

    da Bahia e os jesutas sobre a estratgia a seguir com os ndios, consolidada no ano precedente no confronto sobre as condies de tratamento destes ltimos (LEITE, Serafim. Histria da Com-panhia de Jesus no Brasil. So Paulo: Edies Loyola, 2004,2 vol. 1, p. 72), foi sublinhado com fora pelo prelado num certificado de 26 de maro de 1582 (ivi, vol. 1, p. 422). Ignora a proviso WADSWORTH, James E. Jurema and Batuque: Indians, Africans and the Inquisition in colonial Northeastern Brazil. History of Religions, 46/2, 2006, p. 140-162, em que se reconstri uma tenta-

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    superar os limites de ao do tribunal lusitano no mundo atlntico (aspecto que poderia ter contribudo a fazer dele um espao de maior tolerncia, se se partilha a proposta de Stuart Schwartz), mesmo num momento de reorientao geral do eixo central do Imprio portugus do oceano ndico para a Amrica, a luz da qual se compreende tambm o impulso para a expedio militar em Marrocos, concluda com a morte em batalha do rei d. Sebastio em Alccer-Quibir (1578).81 Aquele acontecimento, que abriu uma crise dinstica destinada a resolver-se com a assun-o da coroa de Portugal pela parte de Filipe II (1580), teve repercusses imediatas sobre o Santo Ofcio, e no apenas pela alternncia frente do tribunal da f a seguir sada para o trono do ancio cardeal d. Henrique. A rota do exrcito de d. Sebastio, com a queda em mo muulmana de centenas de guerreiros, determinou uma renovada ateno ao norte de frica por parte da Inquisio: a necessidade de gerir os retornos de quantos tinham renegado a f crist levou as autoridades centrais do Santo Ofcio a redefinir as normas para a sua absolvio, com o ple-no envolvimento dos vigrios diocesanos das praas portuguesas, mesmo nos prprios dias em que se emitia a referida proviso a favor do bispo da Bahia.82

    Se ali se fez um uso imediato desta ltima no se sabe, mas os poderes de Barreiros e do jesuta Gr foram prontamente desafiados pelo movimento da santidade de Jaguaripe, estudado por Ronaldo Vainfas: j nos anos 1580, de fato, tomou corpo s portas da Bahia um movimento de rebelio de milhares de ndios, guiados pelo profeta Antnio, um ndio batizado pelos jesutas. Alm de muitos escravos fugitivos, aderiram tambm alguns portugueses. A revolta foi definitivamente reprimida pelo governador do Brasil, Manuel Teles Barreto, em 1585.83 Seis anos mais tarde chegou Bahia o primeiro visitador inquisitorial da histria do Brasil, Heitor Furtado de Mendona, encarregado de uma inspeo que, segundo as primeiras instrues, devia depois tocar as principais localida-des portuguesas do mundo atlntico.84 Assistido constantemente pelos jesutas,

    tiva do sculo XVIII de recorrer Inquisio contra os cultos locais de ndios e escravos africanos.81 A referncia em corpo de texto de SCHWARTZ, Stuart B. All can be saved. Religious tolerance

    and salvation in the Iberian Atlantic world. New Haven: Yale University Press, 2008.82 Proviso inquisitorial para os provisores e vigrios gerais dos lugares da Africa de 9 de fevereiro

    de 1579 (PEREIRA. Documentos, doc. 51), acompanhada por uma comisso para os inquisidores de Lisboa, emitida no mesmo dia (ivi, doc. 50). Ambos os documentos, como a patente a favor do bispo da Bahia e dos jesutas missionrios no Brasil, foram assinadas pelos deputados do Conselho Geral e passadas em nome de el rei como Inquisidor Geral.

    83 VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos ndios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. Outra leitura em METCALF, Alida C. Millenarian slaves? The San-tidade de Jaguaripe and slave resistance. American Historical Review, 104, 1999, p. 1531-1559.

    84 Depois da Bahia, a visita de Furtado de Mendona limitou-se s capitanias de Pernambuco, Ita-marac e Paraiba, evitando tocar, na via de retorno, nos arquiplagos de So Tom e Prncipe e

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    o visitador ocupou-se dos clamorosos casos do decnio precedente, mas evitou com cuidado indagar os ndios.85

    Apesar da extrema diversidade de solues, aqueles episdios denunciavam uma preocupao nova para a Inquisio que, a partir de ento, foi cada vez mais atenta a contrariar a ameaa de uma contaminao religiosa que nos trpicos j no tocava s aos convertidos, mas aos prprios portugueses. Mais uma vez, o terreno de maior experimentao foi a ndia. Condenados a exemplares penas pblicas no decorrer dos grandiosos autos da f (at o ano de 1600, as senten-as capitais foram mais de oitenta), em Goa, como em Portugal, misericrdia e procedimentos secretos foram pontualmente negados aos cristos-novos judaizantes. Apesar da substancial falncia da proibio de livre circulao no imprio que lhes foi imposta em 1567, o alarme de cripto-judasmo parece subitamente esgotar-se nos princpios dos anos 1580, como sublinharam mais de uma vez as cartas ento enviadas pelos inquisidores de Goa s autoridades centrais em Portugal.86 Talvez fosse tambm por isso que nos mesmos meses em que a Coroa promulgava um ineficaz dito de expulso dos cristos-novos da ndia, se isentou o tribunal de Goa da obrigao de consultar o Conselho Geral antes de emitir sentenas, garantindo assim uma maior autonomia e rapidez de interveno (1585).87 Foi ento que, ao lado dos cristos da terra punidos pelos

    de Cabo Verde, com base no que foi ordenado pelo Conselho Geral na carta de 1 de abril de 1593 (In: BAIO, Antnio. Correspondncia indita do inquisidor geral e Conselho Geral do Santo Ofcio para o primeiro visitador da Inquisio no Brasil. Braslia, 1, 1942, p. 543-551, p. 548).

    85 Para a bibliografia sobre a primeira visita ao Brasil ver a introduo a VAINFAS, Ronaldo (org.). Confisses da Bahia. Santo Ofcio da Inquisio de Lisboa. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. Peculiar a anlise de AUFDERHEIDE, Patricia. True confessions: The Inquisition and social attitudes in Brazil at the turn of the XVII century. Luso-Braziliane Review, 10, 1973, p. 208-240.

    86 Em novembro de 1580, o inquisidor de Goa, Fonseca, denunciava ao inquisidor geral Jorge de Almeida que o o negocio da India do Santo Offiio dos christos novos estava esgotado (BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 2, doc. 19). Sobre os nmeros da perseguio at 1600, cf. BOYAJIAN. Goa Inquisition, p. 7-8. Para os decnios seguintes, ver Idem. Portuguese trade in Asia, p. 174-184. Tendo por base um alvar rgio de 2 de novembro de 1567 (ANTT. IL, m. 31, doc. 4, num. 3 devo o seu conhecimento a Hugo Crespo), cabia aos inquisidores conceder derrogaes no caso de delito de circulao no imprio estabelecido por proviso de 30 de junho de 1567. Casos de concesso de tais licenas, entre 1567 e 1570, so registados em ANTT. IL, liv. 840, fls. 73-80v. A 15 de maro de 1568, foi emanado um novo alvar rgio que proibia a entrada na ndia sem licena (BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 315). Um quadro sobre as restries circulao de cristos-novos em CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial em Portugal e no Brasil colnia. Os cristos-novos e o mito da pureza do sangue. So Paulo: Perspectiva, 2005, p. 74-88.

    87 Assim estabelecia uma proviso inquisitorial de 31 de maro 1573, confirmada em 1583, quando se pretendia tambm o envio de nove processos especficos para submeter a revises processuais (BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 288-289, 308-312). Sobre a inaplicabilidade do dito de expulso de 1585 cf. BOYAJIAN. Goa Inquisition, p. 5.

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    crimes mais graves com aoites e as galeras, encontraram cada vez mais lugar tambm aqueles portugueses acusados de terem aderido aos ritos e crenas de origem hindu, uma ocorrncia nada rara a julgar pelos processos abertos pelo culto e pela oferta de sacrifcios s divindades locais, por exemplo para conhecer o futuro. Tambm naquele caso se tentou cominar castigos que no comportassem infmia pblica. Estava em risco, de fato, a mesma imagem do poder imperial que era difundida pela retrica oficial dos representantes da Coroa, eles mesmos implicados em algumas causas judicirias, cujo incio se coloca na fase inicial das tenses com as autoridades civis que tinham tenazmente constelado a histria da Inquisio de Goa.88 Em 1589, foi colocada ao inquisidor geral a questo de como comportar-se com os portugueses que tratam misticamente com feiticeiros gentios.89 A resposta fornecida marcou uma viragem no ltimo, atormentado, decnio de Quinhentos:

    Acerca das pessoas que consultam os pagodes dos gentios, e lhes offeree[m] offertas e presentes, e tratam com os bramenes e feiticeiros gentios, que se inquira meudamente dellas e, sendo suas culpas de modo que pertenao ao Santo Officio por serem notoriamente

    heresias, ou que sapiant haeresim manifeste, se castiuem conforme a ellas com o rigor e severidade que os casos requerem, e achando que pertencem somente ao ordinario, e no ao Santo Officio, os podero remetter [].90

    No ano seguinte, por aquele delito foram abertos processos contra vrios portugueses, inclusivamente contra o governador da ndia, Manuel de Sousa Coutinho, e parte da sua famlia.91 Mas a vigilncia sobre as formas hbridas da religiosidade colonial voltou-se tambm na direo oposta, como mostra a denncia de um culto local que surgiu em torno esttua de Afonso de Albuquer-que, colocada junto ao sepulcro do antigo governador, nos arredores da cidade.

    88 Sobre conflitos com o vice-rei e governadores e mais, em geral, com as outras autoridades locais ver BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 1, p. 53-162. Um caso de Seiscentos est no centro do recente estudo de CANNAS, Ana. F e poder: o conflito entre a Inquisio de Goa e o vice-rei Antnio de Melo de Castro (1663-1670). In: BARRETO, Lus Filipe et al. Inquisio portuguesa. Tempo, razo, circunstncia. Lisboa-So Paulo: Prefcio, 2007, p. 257-275.

    89 Carta de 20 de novembro de 1589 (BAIO. A Inquisio de Goa, vol. 2, doc. 27).90 Carta do inquisidor geral Alberto, 20 de maro de 1591 (ANTT. Conselho Geral do Santo Ofcio

    [CGSO], liv. 298, p. 103-104; ANTT. CGSO, liv. 100, c. 47v; tambm em Lembranas parti-culares, determinaes e resposta que se enviaram por cartas de S.A. e Conselho Geral a esta Inquisiam de Goa as quaes servem de Regimento nella. ANTT. CGSO, liv. 207, c. 289v.).

    91 Descrevi este acontecimento na conferncia lites imperiali e culti locali. Usi politici del sincre-tismo religioso nella Goa di fine Cinquecento, apresentada no seminrio internacional de estudo Sola una ley se tenga: hacia una nueva historia de las minorias en el mundo ibrico (Pisa, 15-16 dezembro 2008).

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    Em 1593, os inquisidores perguntaram a Lisboa como se deveriam comportar e expressaram o temor de que hindus e convertidos julgassem aquela esttua como a imagem de algum santo e como tal fazerlhe reverencia.92 O Conselho Geral limitou-se a ordenar aos juzes que transmitissem o caso ao arcebispo.93

    6. Caractersticas da inquisio no mundo portugus em finais de quinhentosNo seu conjunto, o funcionamento institucional do Santo Ofcio no mundo

    portugus na segunda metade de Quinhentos foi estruturado no sistema da de-legao do poder inquisitorial aos representantes de uma cada vez mais extensa rede eclesistica. Dado o espao imenso da sua jurisdio, o tribunal de Goa encontrou-se a recorrer de imediato queles agentes, apoiando-se tambm nas autoridades seculares, como mostra o decreto com que, em 1566, o vice-rei da ndia, Anto de Noronha, obrigou a todas as embarcaes destinadas capital que transportassem os suspeitos herticos presos pelos bispos de Cochim e de Malaca, pelos vigrios ou pelos administradores espirituais de outras localidades.94 A assistncia das autoridades episcopais foi ento decisiva tambm no norte de frica e nas ilhas atlnticas, da Madeira aos Aores, de Cabo Verde a So Tom, tambm se no faltaram casos nos quais a Inquisio de Lisboa recorreu aos magistrados civis.95 Seja como for, nas diversas regies do imprio instaurou-se uma confiana cada vez maior nos missionrios que, graas cobertura do seu hbito, prometiam penetrar profundamente no segredo dos coraes dos conver-tidos (tambm no Brasil, embora com menor intensidade).

    Nem sempre os religiosos de que