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A ESTABILIZAÇÃO HETERODOXA NO BRASIL: idéias e redes políticas * Carlos Pio RBCS Vol. 16 n o 46 junho/2001 Até 1984, o Brasil era um país caracterizado pelo autoritarismo. O sistema político era controla- do pelo establishment militar, ainda que as elei- ções, os partidos e o Parlamento existissem. Da mesma forma, a economia era fechada: o prote- cionismo era a regra, tanto como mecanismo para promover a industrialização, quanto como uma maneira de resolver os crescentes desequilíbrios no balanço de pagamentos. A Industrialização por Substituição de Importações (ISI) combinada com uma estratégia de crescimento “para dentro”, que caracterizaram o modelo econômico desde a déca- da de 30, não apenas causaram problemas no balanço de pagamentos, mas também foram res- ponsáveis pelas elevadas taxas de inflação, que eram típicas do Brasil. Passada pouco mais que uma década, em 1995, o país estava significativamente diferente: o sistema político poderia ser melhor descrito como democrático, a economia tinha sido vigorosamente liberalizada e a inflação estava fora do cenário. Como podemos explicar essas mudanças? Este artigo apresenta uma explicação não convencional para o sucesso da estabilização eco- nômica no Brasil. Em primeiro lugar, argumenta- se, a estabilização brasileira deve ser entendida como o processo pelo qual uma nova compreen- são acerca das causas da inflação no país se tornou hegemônica politicamente. Em segundo lugar, tra- ta-se de indicar as condições político-institucionais que favoreceram ou dificultaram a formulação de um programa de estabilização adequado à realida- de brasileira, ou seja, compatível com a nova compreensão sobre as causas da inflação. Estas questões são abordadas a partir do estudo de dois programas de estabilização heterodoxos que deri- varam da “Teoria da Inflação Inercial” — o Plano Cruzado (1986) e o Plano Real (1993 até os dias atuais). Procurei identificar as origens dessa formu- * Este artigo corresponde a uma versão resumida e con- densada dos capítulos 1, 3, 4 e 7 de minha tese de doutorado em Ciência Política, defendida em janeiro de 2001 junto ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) (cf. Pio, 2001). Versões anteriores deste trabalho foram apresentadas no seminário Pro- gress & Challenges of Democratization and Economic Liberalization, Michigan State University, abril de 2000, e no GT Política e Economia, XXV Encontro Anual da Anpocs, outubro de 2000. Este texto beneficiou-se dos comentários feitos por Eduardo Kugelmas, Ricardo Bi- elschowsky e Jonas Zoninsein. Não lhes cabe, no entanto, qualquer responsabilidade pelas idéias aqui contidas. Marília Mochel ajudou-me com a tradução do original em inglês.

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A ESTABILIZAÇÃOHETERODOXA NO BRASIL:idéias e redes políticas*

Carlos Pio

RBCS Vol. 16 no 46 junho/2001

Até 1984, o Brasil era um país caracterizadopelo autoritarismo. O sistema político era controla-do pelo establishment militar, ainda que as elei-ções, os partidos e o Parlamento existissem. Damesma forma, a economia era fechada: o prote-cionismo era a regra, tanto como mecanismo parapromover a industrialização, quanto como umamaneira de resolver os crescentes desequilíbriosno balanço de pagamentos. A Industrialização porSubstituição de Importações (ISI) combinada comuma estratégia de crescimento “para dentro”, quecaracterizaram o modelo econômico desde a déca-da de 30, não apenas causaram problemas no

balanço de pagamentos, mas também foram res-ponsáveis pelas elevadas taxas de inflação, queeram típicas do Brasil.

Passada pouco mais que uma década, em1995, o país estava significativamente diferente: osistema político poderia ser melhor descrito comodemocrático, a economia tinha sido vigorosamenteliberalizada e a inflação estava fora do cenário.Como podemos explicar essas mudanças?

Este artigo apresenta uma explicação nãoconvencional para o sucesso da estabilização eco-nômica no Brasil. Em primeiro lugar, argumenta-se, a estabilização brasileira deve ser entendidacomo o processo pelo qual uma nova compreen-são acerca das causas da inflação no país se tornouhegemônica politicamente. Em segundo lugar, tra-ta-se de indicar as condições político-institucionaisque favoreceram ou dificultaram a formulação deum programa de estabilização adequado à realida-de brasileira, ou seja, compatível com a novacompreensão sobre as causas da inflação. Estasquestões são abordadas a partir do estudo de doisprogramas de estabilização heterodoxos que deri-varam da “Teoria da Inflação Inercial” — o PlanoCruzado (1986) e o Plano Real (1993 até os diasatuais). Procurei identificar as origens dessa formu-

* Este artigo corresponde a uma versão resumida e con-densada dos capítulos 1, 3, 4 e 7 de minha tese dedoutorado em Ciência Política, defendida em janeiro de2001 junto ao Instituto Universitário de Pesquisas do Riode Janeiro (Iuperj) (cf. Pio, 2001). Versões anterioresdeste trabalho foram apresentadas no seminário Pro-gress & Challenges of Democratization and EconomicLiberalization, Michigan State University, abril de 2000,e no GT Política e Economia, XXV Encontro Anual daAnpocs, outubro de 2000. Este texto beneficiou-se doscomentários feitos por Eduardo Kugelmas, Ricardo Bi-elschowsky e Jonas Zoninsein. Não lhes cabe, noentanto, qualquer responsabilidade pelas idéias aquicontidas. Marília Mochel ajudou-me com a tradução dooriginal em inglês.

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lação no plano das idéias, assim como os mecanis-mos por meio dos quais tais idéias influenciam oprocesso decisório governamental.

De acordo com o argumento aqui proposto,as idéias de política defendidas pelos membros daequipe econômica são um elemento central para aexplicação do sucesso de qualquer programa deestabilização. Portanto, a análise que se seguiráprivilegiará a identificação dos mecanismos quelevaram as idéias heterodoxas às posições-chavedos respectivos governos. Para tanto, far-se-á usodo conceito de “rede política”, como representan-do um conjunto de vínculos políticos, estabeleci-dos a partir de relações pessoais, profissionais e/oupartidárias, que ligavam os economistas heterodo-xos da academia a indivíduos bem posicionadosno sistema político, capazes de indicar seus nomesao presidente da República ou a algum ministro daárea econômica para ocupar postos relevantes naestrutura da burocracia econômica (cf. Pio, 2001).Quase sempre essas redes envolvem o ministro deEstado, já que, nos casos aqui analisados, trata-seda própria constituição da equipe econômica, ouseja, dos principais assessores do Ministério. Oestudo dessas redes é uma das principais chavespara que se possa entender o processo de nomea-ção política dos formuladores da política econômi-ca, que, por sua vez, é fundamental para determi-nar o conteúdo dos programas de estabilização.

O foco da análise também recairá sobre osobstáculos políticos encontrados pelos economis-tas heterodoxos durante a formulação e a imple-mentação dos dois programas estudados, assimcomo sobre as variáveis político-institucionais quenos ajudam a entender por que, no caso do PlanoCruzado, esses obstáculos se mostraram intranspo-níveis, enquanto no caso do Real logrou-se aviabilização política do programa de estabilizaçãopretendido pelos economistas heterodoxos.

O principal argumento aqui desenvolvido é ode que o sucesso das políticas de estabilizaçãoeconômica se deveu à ascendência das idéias deum grupo de acadêmicos do Departamento deEconomia da Universidade Católica do Rio deJaneiro (PUC-RJ) sobre a política econômica dosgovernos de Itamar Franco (1992-93) e FernandoHenrique Cardoso (desde 1994). Esses economis-

tas não apenas se tornaram profundos conhecedo-res das questões envolvidas na estabilização, mastambém se dispuseram a participar das equipeseconômicas que formularam programas de estabi-lização no âmbito federal. Uma simples compara-ção entre a legislação federal e sua produçãoacadêmica revela o quão cruciais foram suas idéiasno processo de tomada de decisão. Logo, um dospropósitos deste artigo é explicar como aquelasidéias alcançaram as mais altas posições dentro dogoverno.

O artigo está dividido em quatro partes. Aprimeira apresenta o grupo de economistas daPUC-RJ. Na segunda parte analiso as principaisidéias desses economistas sobre a estabilização, emespecial a proposta heterodoxa conhecida comoTeoria da Inflação Inercial. A terceira parte analisa oprocesso decisório dos dois planos de estabilizaçãoheterodoxos implementados no Brasil — o Cruza-do e o Real. A quarta parte é a conclusão.

O grupo de economistas heterodoxos

O grupo de economistas da PUC-RJ envolvi-do na compreensão do problema inflacionáriobrasileiro e na formulação de alternativas concretasde estabilização para o Brasil pode ser facilmenteidentificado. Ele foi criado no início dos anos 1980,logo após o retorno de Pérsio Arida e de AndréLara Resende dos Estados Unidos, onde cursaramdoutorado em Economia no Massachusetts Institu-te of Technology (MIT). Na PUC-RJ, eles se junta-ram a outros três expertos em estabilização tambémtreinados em universidades norte-americanas —Chico Lopes (Harvard), Edmar Bacha (Yale) eEduardo Modiano (MIT, Sloan Business School) —e uns outros poucos interessados em questõestangenciais à estabilização, como política trabalhis-ta (José Márcio Camargo), economia do setorpúblico (Rogério Werneck) e questões relaciona-das ao endividamento externo (Pedro Malan).

Lopes, Arida e Lara Resende desenvolveramuma nova interpretação do processo inflacionáriobrasileiro. Após empreenderem diversas investiga-ções sobre a validade da Curva de Philips paraexplicar a escalada da inflação no Brasil, eleschegaram a uma conclusão muito diferente, que

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destacava a importância de mecanismos institucio-nais — cláusulas de indexação — para explicar afalha dos programas de estabilização ortodoxosimplementados no início da década de 80. Suacontribuição teórica foi chamada de Teoria daInflação Inercial.

Alguns dos membros do grupo de estabiliza-ção da PUC-RJ fizeram parte do governo federalnas administrações dos presidentes Sarney, Collor,Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Ari-da e Lara Resende eram filiados ao partido gover-nante — o PMDB — e se juntaram à equipeeconômica de Sarney na segunda metade de 1985.Uma vez no governo, ajudaram a projetar o primei-ro plano de estabilização, o Cruzado (1986).1 OPrograma Cruzado foi, em grande parte, influenci-ado por suas idéias, ainda que incluísse um conge-lamento de preços, derivado da abordagem deChico Lopes — ao qual Arida e Lara Resende seopunham.

Eduardo Modiano, que trouxe importantescontribuições ao desenvolvimento da Teoria daInflação Inercial, fez parte da primeira equipeeconômica de Fernando Collor. Ele tinha sido umdos que haviam mostrado os impactos negativosdos mecanismos de indexação salarial sobre aeficácia das políticas ortodoxas, baseadas no usode técnicas de administração da demanda. A des-peito disso, não se pode dizer que os Planos CollorI e II derivaram da idéia da inflação inercial. Osheterodoxos estiveram afastados da formulação dapolítica de estabilização entre 1987 e 1993.

Quando Fernando Henrique Cardoso foi in-dicado ministro da Fazenda por Itamar Franco, emmarço de 1993, os economistas da PUC-RJ retorna-ram ao governo. Naquela época, eles fizeram suasmais importantes contribuições ao processo deestabilização no Brasil, como principais arquitetose administradores do Plano Real (1993 até hoje), omais exitoso plano de estabilização jamais imple-mentado no país. Como resultado do processo deaprendizado derivado dos fracassos anteriores daspolíticas de estabilização, de um lado, e do totalcontrole sobre o processo de policy-making exer-cido pelos economistas da PUC-RJ — particular-mente Arida, Lara Resende, Bacha, Winston Fritsche Gustavo Franco —, de outro, o Plano Real é

muito mais semelhante à proposição inicial deArida e Lara Resende (1984a) do que o Cruzado. Apróxima seção discutirá o processo de policy-making dos dois planos.

A formulação heterodoxa brasileira

O Brasil teve uma longa história de inflação.De fato, está claro agora que a inflação era umcomponente-chave do modelo ISI voltado “paradentro” seguido a partir da década de 30 (verFranco, 1999). Uma especificidade sobre a duraçãode taxas anuais de inflação de dois/três dígitos portanto tempo foi a instituição de um complexosistema de indexação (pós-fixada) que atravessavatoda a economia — de impostos a instrumentosfinanceiros e de salários a preços.2 No entanto, sea indexação evitava distúrbios contratuais de curtoprazo causados pela inflação, também criava enor-mes dificuldades para os programas de combate àinflação. Desde 1970 Mário Henrique Simonsenenfatizava que os obstáculos estruturais/institucio-nais à estabilização colocados pelos mecanismosde indexação reduziam a eficácia de programasortodoxos de estabilização — baseados em políti-cas monetárias e fiscais restritivas (ver Simonsen,1970).

A inflação elevada geralmente provocava avalorização da taxa de câmbio, o que incentivavaas importações. No entanto, a crise da dívida, nocomeço dos anos 80, forçou o Brasil a adotarpolíticas econômicas que gerassem reservas exter-nas. Com a repentina retirada do capital externocomo uma alternativa de financiamento, o Brasilteve de contar basicamente com o comércio exte-rior para aumentar as reservas. As escolhas políti-cas feitas pelo governo brasileiro de modo a atingirelevados excedentes comerciais envolviam cons-tantes desvalorizações reais da moeda nacional.Isso, por sua vez, aumentou o valor da dívidaexterna em moeda nacional e também o preço dasimportações, que pressionavam a inflação (verCardoso e Fishlow, 1988).

Uma combinação de preços crescentes deimportações — particularmente do petróleo —com a indexação de toda a economia levou ainflação a seus mais altos níveis na história. Como

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corretamente colocado por uma respeitada publi-cação econômica:

[...] sem a indexação, um aumento no preço deuma matéria-prima importada deveria causar umaumento único nos preços. Haveria uma queda narenda real, mas nenhuma mudança duradoura nastaxas de inflação ou de desemprego. Quando ossalários são indexados, no entanto, o primeiro

aumento dos preços mais altos põe em movimen-to um círculo vicioso. Primeiro, os preços aumen-tam; o que significa maiores salários, que levam a

outro aumento nos preços e assim por diante. (TheEconomist, 30/3/1985, p. 75)

A associação de choques externos (as crisesdo petróleo e o aumento das taxas de juros nosEUA) às maxidesvalorizações (30% em 1979 enovamente em 1983) fez as taxas anuais de infla-ção pularem de 40%, em 1979, para 100% em 1980,180% em 1983 e 240% em 1985.

Ao lado disso, a inflação crescente induziu adiminuição dos intervalos de tempo dos mecanis-mos de indexação, causando um crescimento ain-da mais rápido na oferta monetária. Nesse contex-to, programas ortodoxos de estabilização foramimplementados sem nenhum sucesso de 1980 a1985, parte do tempo (1983-85) sob a rígida super-visão do FMI. Tais políticas não foram exitosasporque não levaram em conta a necessidade dedesmantelar o sistema de indexação (cf. Arida eLara Resende, 1984a).3

Motivado pelo fracasso da estabilização orto-doxa, o grupo da estabilização da PUC-RJ produziuuma série de estudos econométricos para avaliar avalidade da Curva de Philips para explicar a infla-ção brasileira daquele momento. A partir dessesestudos, eles derivaram uma nova teoria baseadana noção de “inércia”, que enfatizava o papeldesempenhado pelos esquemas de indexação. Aentão chamada Teoria da Inflação Inercial foidesenvolvida por André Lara Resende e PérsioArida, de um lado, e por Francisco Lopes, de outro.Os dois primeiros propuseram a combinação depolíticas ortodoxas para controlar os fundamentos(os agregados monetário e fiscal) com uma refor-ma monetária para abolir mecanismos de indexa-

ção montados em todas as formas de relaçõescontratuais (ver Arida e Lara Resende, 1984a).Lopes, por outro lado, propôs um sistema decongelamento ao invés da reforma monetária (verLopes, 1984).4 Ambas as perspectivas eram consi-deradas “heterodoxas”, uma vez que lançavammão de algo mais do que apenas o controle daoferta monetária e do déficit público.

Para os economistas heterodoxos, a elimina-ção do componente inercial da inflação requeria ouso de um artifício para coordenar as expectativasdos agentes econômicos no sentido de uma situa-ção de estabilidade de preços. Esse artifício estabe-leceria, essencialmente, os valores iniciais (entryvalues) dos novos contratos (não-indexados) quesubstituiriam aqueles que continham cláusulas deindexação. Essa conversão dos contratos vigentespoderia ser feita tanto por meio de uma reformamonetária — a criação de uma nova moeda parasubstituir a antiga, de modo a promover umatransição completa para um ambiente estável —,como proposto por Lara Resende e Arida, quantopor meio de uma política de renda — com o uso deum congelamento de preços e salários ou a institui-ção de controles administrativos sobre os aumen-tos de preço —, como sugerido por Lopes (1984) eBresser Pereira e Nakano (1984).

O apelo a um artifício dessa natureza é o quedistingue os programas heterodoxos de estabiliza-ção dos ortodoxos. A rejeição por Arida e LaraResende de um esquema de congelamento depreços como uma forma de imobilizar as expecta-tivas inflacionárias já era forte em sua formulaçãoinicial.5 Isto é uma expressão clara de seu fortecompromisso com os mecanismos de mercado econtrato voluntário como principais regras gover-nando as interações econômicas mesmo duranteprogramas de estabilização.

Em suma, durante períodos de inflação eleva-da ou crônica, os preços relativos estão constante-mente mudando, já que os aumentos de preços nãosão perfeitamente sincronizados. Por essa razão, opreço relativo de um produto tendia a se deteriorarimediatamente depois de ter sido aumentado. Des-se modo, na opinião de Arida e Lara Resende,congelamentos de preços quase certamente cristali-zariam os desequilíbrios entre preços relativos. O

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resultado provável seria que os agentes/indivíduosnegativamente afetados pelo congelamento seriamtentados a aumentar seus preços logo depois que oscontroles de preço fossem relaxados.6 Em outraspalavras, os agentes econômicos não compartilhari-am a expectativa de estabilidade de preços se elespensassem que os preços dos produtos que ven-dem tivessem sido injustamente convertidos para anova moeda. O equilíbrio distributivo seria quebra-do pelo congelamento de preços e a inflaçãotenderia então a reaparecer logo após o relaxamen-to dos controles administrativos.

Seguindo seu compromisso com uma admi-nistração conservadora dos fundamentos, Arida eLara Resende apontavam a necessidade de umcontrole firme do déficit público anterior à imple-mentação da reforma monetária, uma vez que areforma sozinha afetaria apenas o componenteinercial da inflação. Dado o controle do déficitoperacional do setor público (o déficit ajustado àinflação) e a identificação clara do caráter inercialda inflação, eles apresentaram sua proposta dereforma monetária:

O governo deveria introduzir o cruzeiro novo(NC), cujo valor aumentaria de acordo com ospreços expressos em cruzeiro velho. O governo

conduziria suas próprias transações em NCs ime-diatamente; as pessoas comuns poderiam trocarseu dinheiro antigo por NCs à taxa de conversãofixada pelo governo.Suponha que a taxa inicial de conversão fosse 10cruzeiros por NC. Se os preços (no dinheiro velho)

subissem 10% no mês seguinte, o governo ajusta-ria a taxa de conversão, e trocaria 1 NC por 11cruzeiros. Desse modo, o poder de compra do NC

não seria alterado: a inflação em termos de NCseria zero por definição. Todos logo veriam avantagem de receber seus salários e pagar suas

contas em NCs. (The Economist, 1985, p. 75; grifomeu).7

Portanto, a idéia central da reforma monetá-ria era a criação de uma nova moeda, seguida deuma conversão voluntária de todos os contratosvigentes para ela, sem violar a estrutura de preçosdo mercado. Não seria permitido que contratos na

nova moeda abrigassem provisões de indexação.O governo fixaria uma taxa de câmbio para conver-sões de contratos na nova moeda, baseada nadedução completa da inflação. Isso criaria um forteincentivo para conversões voluntárias porque fun-cionaria como se a nova moeda fosse, ela própria,indexada (cf. Lara Resende, 1984a; Arida e LaraResende, 1984a). E os contratos — salários, preços,investimentos de capital, empréstimos, dívidas etc.— convertidos na nova moeda conteriam expecta-tivas sobre a estabilidade dos preços por duasrazões: primeiro, os contratos convertidos estabe-leceriam novos valores (entry values), tornando aoferta e a demanda compatíveis, e segundo, ascláusulas de indexação não mais existiriam.

Durante um período de transição, as duasmoedas existiriam ao mesmo tempo. Uma vez quea conversão dos contratos vigentes para a novamoeda preservaria o mesmo equilíbrio distributivoverificado no equilíbrio (inflacionário) anterior,não haveria fontes de tensão entre as partes contra-tantes e, conseqüentemente, nenhuma resistênciaao fim da inflação. Se não houvesse outras fontesde pressão inflacionária — e, novamente, elesacreditam que o déficit público é a principal causada inflação porque estimula a impressão de dinhei-ro —, esta reforma seria suficiente para derrubar ainflação. Se os fundamentos não estivessem sobcontrole, a inflação remanescente seria do tipoconvencional (excesso de demanda), que requere-ria o uso das técnicas de administração de deman-da — políticas restritivas (ortodoxas) monetária efiscal.

A reforma monetária evitaria, na prática, osproblemas envolvidos no congelamento de preçosporque os agentes econômicos converteriam vo-luntariamente seus contratos (incluindo preços)para a nova moeda. Essa conversão voluntária sóaconteceria se a nova moeda provasse ser umíndice melhor que os que vinham sendo utilizadosanteriormente. Parte do estímulo derivaria do fatode que a nova moeda teria uma taxa diária deapreciação em relação à antiga — atraente paratodos os contratos que não tivessem uma indexa-ção diária.8

A reforma monetária funcionaria, então,como impressão de dinheiro indexado, ou seja,

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dinheiro protegido da inflação. A esse respeito, elasignificaria a indexação radical de toda a econo-mia, mas, desta vez, uma indexação pelo mesmoíndice (um processo que eles acreditavam quelevaria dois meses), e quando os aumentos depreço estivessem inteiramente sincronizados, opróprio índice se tornaria a nova moeda — ou seja,uma unidade da nova moeda seria cotada comouma unidade do índice.

Agora, passamos à análise dos dois progra-mas de estabilização projetados e implementadospelos economistas da PUC-RJ — o Cruzado e oReal.

Os planos heterodoxos deestabilização

O Plano CruzadoRedes políticas e de política. A decisão gover-

namental de lançar um plano heterodoxo foi, emgrande parte, influenciada pelo fato de que aArgentina tinha lançado um programa semelhante,que parecia funcionar. Os economistas argentinosresponsáveis pelo Plano Austral (1985) tinhamtrabalhado no Departamento de Economia daPUC-RJ e o seu programa foi visto como variaçãoda proposta Lara Resende-Arida (Larida).

A ascensão de Arida e Lara Resende àsposições mais altas na estrutura decisória do gover-no brasileiro deve ser creditada às redes políticasàs quais ambos estavam ligados como um resulta-do do amplo reconhecimento acadêmico de quedesfrutavam e devido à sua filiação ao PMDB — opartido mais forte da coalizão que dava sustenta-ção parlamentar ao presidente Sarney. Ademais, ofato de que eles fossem amplamente reconhecidoscomo grandes críticos das políticas recessivas deestabilização do início dos anos 80, bem comoproponentes de políticas de estabilização não-recessivas, colocou-os numa posição central entreos economistas do PMDB. No passado, eles tinhammantido relações profissionais, acadêmicas e pes-soais com dois importantes membros do governoSarney, João Sayad (ministro do Planejamento) eFernão Bracher (presidente do Banco Central).Também um economista acadêmico, Sayad pres-

sionou fortemente pela nomeação de Lara Resendee Arida para posições-chave na equipe econômica,já que via o programa Larida de estabilização comoa solução perfeita para combinar crescimento econtrole da inflação.9

Há três importantes questões políticas a se-rem esclarecidas com respeito à natureza do gover-no Sarney. Primeiramente, com a eleição de Tan-credo Neves à Presidência, a tarefa de escolher aequipe econômica ficou sujeita, mais do que noregime anterior, a arranjos políticos. O PMDB, oprincipal partido no Congresso, adquiriu uma in-fluência decisiva sobre as decisões econômicas. Aescolha de João Sayad representou um claro desejodo presidente de conquistar o apoio do PMDB deSão Paulo, representado por Ulysses Guimarães,Fernando Henrique Cardoso e pelo governadorFranco Montoro.

Em segundo lugar, como o governo era oresultado da aliança entre o PMDB e o PFL, e comoTancredo decidira iniciar o governo com umapolítica financeira conservadora, para ganhar cre-dibilidade internacional, ele indicou FranciscoDornelles como ministro da Fazenda.10 Excetopelo congelamento dos preços dos serviços presta-dos pelas companhias estatais, a política de estabi-lização de Dornelles, na primeira metade de 1985,foi claramente ortodoxa. No entanto, uma vez queTancredo (que era tio de Dornelles) jamais assu-miu a Presidência, Dornelles perdeu o apoio polí-tico necessário para manter um rígido controle daspolíticas monetária e fiscal, fundamentais para umapolítica ortodoxa efetiva. Suas sérias divergênciascom a visão desenvolvimentista de Sayad, e dopróprio Sarney, foram suficientemente fortes paratornar difícil sua posição no governo. Ele renun-ciou finalmente em agosto de 1985, quando opresidente Sarney apoiou o novo Plano de Metasde Sayad, que implicava um aumento substancialdos gastos em programas sociais — enquantoDornelles propunha um corte geral de 10% nasdespesas do governo.

Com a renúncia de Dornelles, Sarney indicouDilson Funaro, um industrial de São Paulo, para oMinistério da Fazenda.11 Funaro tinha íntimas liga-ções com o PMDB de São Paulo, representandouma real mudança nas políticas econômicas do

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governo. O novo ministro trouxe para a equipeeconômica dois economistas da Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp) que dispunham deimportantes credenciais políticas no PMDB — JoãoM. Cardoso de Mello e Luiz G. Belluzzo. Eles foramtambém decisores-chave no Plano Cruzado, aindaque não fossem expertos em questões monetárias epolíticas de estabilização. Eles também não conhe-ciam em detalhes a natureza da proposta Larida.

Finalmente, as mudanças no Ministério daFazenda com a chegada de Funaro se refletiramobviamente nas indicações para o Banco Central(Bacen). O perfil da diretoria do Bacen foi sensivel-mente alterado com a saída dos economistas con-servadores que assumiram a instituição nos mesesda gestão Dornelles, quando o Banco foi presididopor Antônio Carlos Lemgruber. Na gestão de Funa-ro, o Bacen tornou-se um locus central na elabora-ção do programa heterodoxo, especialmente de-pois de outubro de 1985. Fernão Bracher foi indica-do presidente por Funaro. Como ele era ligado aogrupo heterodoxo, convidou Lara Resende e Aridapara integrar a diretoria. Arida se mudou do Ministé-rio do Planejamento (Seplan) para o Bacen no finaldo ano. Lara Resende foi nomeado diretor deDívida Pública e Mercado Aberto, responsável peladeterminação das taxas de juros, e Luís C. Mendon-ça de Barros — outro banqueiro, que mantinhafortes vínculos com Lara Resende —, diretor doMercado de Capitais. Pode-se dizer então que,depois da renúncia de Dornelles, o foco de resistên-cia política à nomeação de economistas heterodo-xos para a diretoria do Bacen foi eliminado.

Bracher, com a autoridade de presidente doBacen, assumiu a responsabilidade de fazer aequipe econômica heterogênea trabalhar, sob aorientação de Lara Resende e Arida, na formulaçãodo conjunto de medidas de estabilização. Assim, apartir de outubro, o núcleo da equipe, constituídopor economistas da Seplan, do Bacen e do Minis-tério da Fazenda, começou uma série de encontrospara planejar a reforma monetária. Chico Lopes foiincorporado como consultor informal até o mo-mento em que ficou claro para os demais que ogoverno lançaria o programa. Nesse ponto, apenasaqueles que ocupavam cargos no governo partici-param das discussões.12

O aspecto mais importante do processo polí-tico por trás do planejamento e da implementaçãodo Plano Cruzado foi que os dois expertos queprimeiramente projetaram a tecnologia da reformamonetária — Lara Resende e Arida — estavam emposições subordinadas no aparato decisório dogoverno. Enquanto fosse apenas uma questão deplanejamento, sua capacidade de controle do pro-cesso era quase absoluta, uma vez que a tecnologiaque eles haviam criado não era inteiramente co-nhecida por nenhum dos colegas do governo. LaraResende e Arida foram os únicos com credenciaisno governo que sabiam, por exemplo, como escre-ver a lei, como promover a reforma monetária,como determinar o mecanismo para a conversãodos contratos e uma série de detalhes técnicos quenão estavam à disposição de outros decisores —fossem eles políticos ou tecnocratas.13

Esse controle técnico do conteúdo da políti-ca exercido pelos expertos, no entanto, declinou àmedida que o pacote de medidas ganhava subs-tância e se tornava conhecido por aqueles queocupavam as posições propriamente políticas.Logo que o conjunto final de medidas foi comple-tado, a centralidade política dos expertos chegouao fim. Como eles ocupavam apenas cargos tecno-cráticos, não tinham nenhuma autoridade paramudar as decisões que vinham de seus superioreshierárquicos, ou de políticos importantes, mesmoquando tais decisões eram totalmente contrárias àlógica básica do programa que eles haviam plane-jado.

Desse modo, ambos os superiores na estrutu-ra burocrática (ministros e políticos importantes) eoutros tecnocratas auxiliares com conexões políti-cas — o caso de Belluzzo e João Manoel, os doisprincipais auxiliares do ministro da Fazenda —eram capazes de mudar as medidas econômicaspropostas por Lara Resende e Arida. Isso é aindamais importante quando consideramos que ne-nhum dos outros membros do governo, mesmo oseconomistas, tinha entendido a lógica básica doprograma heterodoxo como Lara Resende e Aridao haviam formulado.14

Em suma, foi apenas após a definição doconjunto básico de medidas pelos dois expertosque todos os outros membros do governo — não

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apenas os membros da equipe econômica e dacoalizão política no Congresso — tiveram a chancede alterar o conteúdo do pacote. Nesse ponto, acapacidade dos planejadores para manter intacta alógica básica do programa foi sensivelmente redu-zida. A busca de acordo entre diferentes princípioseconômicos e políticos tornou-se então preponde-rante. Os conflitos surgiram e foram resolvidos pormeio de barganhas.

As disputas dentro da própria equipe econô-mica caracterizaram os processos decisório e deimplementação do Plano Cruzado. As questõessobre as quais essas disputas se desenvolveram sãodiscutidas abaixo.

Medidas heterodoxas. Características básicasdo programa:

(i) uma nova moeda: o cruzado (Cz$) substi-tuiu o cruzeiro (Cr$) em 28 de fevereiro de 1986, naproporção de Cr$ 1 mil para Cz$ 1;

(ii) os preços foram congelados, por decreto,por tempo indeterminado. A taxa de câmbio tam-bém foi fixada. Essas duas ações tiveram por basea idéia de que a meta de inflação zero seriaimediatamente atingida e mantida;

(iii) na conversão dos contratos salariais vi-gentes para cruzados, os valores iniciais (entryvalues) deveriam ser iguais à média do poder decompra nos seis meses anteriores, acrescidos deum abono de 8% (15% para o salário mínimo).Anualmente, os salários seriam ajustados em pelomenos 60% da taxa de inflação acumulada desde oajuste anterior. Os outros 40% deveriam ser nego-ciados entre trabalhadores e patrões;

(iv) criou-se uma cláusula de indexação de-terminando que, toda vez que as taxas mensais deinflação acumuladas atingissem 20% ou mais, to-dos os salários seriam automaticamente ajustadospela taxa total de inflação acumulada (gatilho);15

(v) depósitos, cédulas de cruzeiro e açõesnos fundos financeiros públicos foram convertidosem cruzados imediatamente. A Tablita — ummecanismo de desvalorização diária baseado nodesconto de valores indexados implícitos nos con-tratos futuros — foi estabelecida para a conversãodos passivos com vencimentos futuros. Passivosindexados explicitamente não estavam sujeitos àTablita;

(vi) indexação: novos contratos só poderiamser indexados (oficialmente) se durassem mais deum ano. Nesse caso, o índice seria a OTN —Obrigações do Tesouro Nacional, que substituiu aORTN como índice de preços públicos. A OTNseria congelada por doze meses, quando seriaajustada à inflação. A indexação de contratos emvigência por menos de um ano foi proibida.

Embora tanto Arida quanto Lara Resendefossem teoricamente contra a idéia de um congela-mento de preços, especialmente devido a seusefeitos de longo prazo na economia, eles aceitaramsua inclusão no Plano como instrumento de curtoprazo. Como já expliquei, eles estavam convenci-dos da importância do sistema de preços paradeterminar uma alocação eficiente de recursosentre diferentes setores da economia, mas escolhe-ram o congelamento de preços por três razões.Primeiramente, havia problemas constitucionaisenvolvidos na idéia de criar um período de transi-ção, durante o qual a nova e a antiga moedasfossem válidas. Pode um país ter duas moedasdiferentes? Apenas em 1992, depois do fracasso dequatro choques de estabilização não-ortodoxos,Arida planejou uma forma de evitar esse debatepor meio de uma idéia muito criativa: a novamoeda seria apenas virtual, isto é, ela não precisa-ria circular na economia como meio de troca —essa foi a lógica aplicada no Plano Real.

Em segundo lugar, um congelamento depreços a curto prazo (entre trinta e noventa dias)ajudaria a controlar ataques especulativos contra oPlano resultantes de potencial ceticismo (um com-portamento do tipo não-vai-funcionar-então-dei-xe-me-aumentar-meus-preços). Finalmente, seriaum importante fator para trazer o apoio necessárioda opinião pública, especialmente porque haviagrande suspeita sobre o modo como os trabalha-dores organizados reagiriam à fórmula de conver-são dos salários (cf. Solnik, 1987, pp. 90-91 e 160-161).16

Além do congelamento de preços, outrasmudanças na formulação original foram introduzi-das seja para convencer outros segmentos dogoverno a adotar a nova opção de política, sejapara criar cooperação entre os grupos sociais. Duasdessas mudanças tinham um impacto distributivo:

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o abono salarial e a criação do gatilho. O critérioda neutralidade a ser aplicado na conversão doscontratos vigentes foi, então, definitivamenteabandonado. Essas duas medidas eram contrárias àlógica original do programa, mas foram considera-das necessárias para ganhar o apoio do ministro doTrabalho, Almir Pazzianotto (PMDB), e para facili-tar o apoio das centrais sindicais.17 No caso espe-cífico dos abonos salariais, estes não foram sequeraprovados pelos dois expertos que planejaram opacote. (Como um deles reportou a este autor, osabonos foram decididos na madrugada do dia deanúncio do programa, depois que Lara Resende eArida tinham deixado a reunião com a equipe.18 )

A despeito da oposição de toda a equipeeconômica, durante sua implementação, o Planofoi erroneamente associado com o congelamentode preços. O apoio público derivado da repentinaderrubada da inflação foi importante economica-mente para o governo, mas fez com que os políti-cos (especialmente o presidente Sarney) relutas-sem em abolir o congelamento de preços. Estavaclaro para todos aqueles (economistas) envolvidosna implementação do programa que o congela-mento de preços não poderia durar muito tempo,porque até mesmo razões climáticas — por exem-plo, a redução da oferta de verduras na estaçãoseca — ou o aumento do preço internacional deum produto importado qualquer requereriam algu-ma mudança nos preços relativos. Como conse-qüência de um longo congelamento de preços,desequilíbrios nos preços relativos certamente ge-rariam problemas de oferta e o desenvolvimentode práticas de mercado negro.

Por outro lado, a combinação de congela-mento de preços, aumento de salários e baixastaxas de juros fixadas politicamente criou repenti-namente um “excesso de demanda” — por exem-plo, um nível agregado de demanda incompatível(mesmo no curto prazo) com a capacidade deoferta da economia doméstica.19 Isso foi aindamais agravado pela necessidade de promoverenormes excedentes na balança de transaçõescomerciais. O crescimento da demanda foi identi-ficado em abril, menos de 60 dias depois dolançamento do Plano. Naquele ponto, parte daequipe econômica — particularmente Lara Resen-

de e Arida — sabia que o nível agregado dedemanda mais elevado teria um impacto negativosobre o balanço de pagamentos, uma vez quemenos produtos estariam disponíveis para a expor-tação.20 Além disso, a combinação de limitações naoferta e um teto para as taxas de juros significavaque importações seriam necessárias para satisfazera demanda doméstica, debilitando ainda mais ascontas externas.

Depois de lançada a reforma monetária — aconversão dos contratos vigentes a novos valores(entry values) compatíveis com o nível corrente deoferta de bens na economia —, o componenteinercial da inflação foi bloqueado. Daí para frente,decisões macroeconômicas deveriam se basearapenas no uso de técnicas convencionais de admi-nistração da demanda. Naquele momento, no en-tanto, não havia um claro reconhecimento danatureza expansionista de programas de estabiliza-ção heterodoxos. A questão de lançar controlesrígidos sobre a demanda agregada foi, conseqüen-temente, imprevisível para a maioria daqueles queacreditavam que heterodoxia significasse a ausên-cia de restrições sobre o consumo — entre eles, osministros Funaro e Sayad.21

Medidas convencionais durante a implemen-tação. Para evitar as conseqüências negativas dademanda excessiva, Lara Resende e Arida defende-ram um ajuste fiscal de longo prazo, a ser precedidopor um endurecimento da política monetária — istoé, por um aumento substancial nas taxas de jurosreais, de modo a reduzir a demanda agregada.

O Ministério da Fazenda estava internamentedividido em relação à questão do aumento dastaxas de juros. Contrários ao aumento estavam opróprio ministro Funaro e Cardoso de Melo.22 Ooutro auxiliar econômico do ministro, Luiz Gonza-ga Belluzzo, tinha uma posição mais próxima à deLara Resende e Arida, a favor de taxas de juros maisaltas. A respeito de outra questão — de que deveriahaver um corte geral no nível de gastos do governo—, esse grupo de economistas do Ministério daFazenda e do Bacen concordava plenamente. En-tretanto, devido a provisões legais, os cortes orça-mentários estavam sob a responsabilidade da Se-plan. Nesse sentido, o ministro da Fazenda apoiouum importante princípio da formulação original do

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Plano: de que o déficit público teria de ser zero. Noentanto, a Seplan resistiu aos cortes orçamentários.O ministro da Fazenda também preferia aumentosnos impostos indiretos — por exemplo, na produ-ção e no consumo de bens particulares — aaumentos nos impostos diretos, como o impostode renda.

Em geral, os ajustes publicados em julho (o“Cruzadinho”) seguiram a linha das percepções doMinistério da Fazenda, ainda que o congelamentode preços fosse mantido por decisão do própriopresidente. Com o objetivo de reduzir o excessode demanda, ele introduziu os empréstimos com-pulsórios por meio da criação de impostos tempo-rários sobre o preço de venda de automóveis egasolina, que deveriam ser restituídos aos consu-midores após três anos. Além disso, o “Cruzadi-nho” instituiu novos impostos sobre a compra demoedas estrangeiras para viagens internacionais enas compras de passagens aéreas internacionais.As taxas de juros foram levemente aumentadas,devido a uma decisão individual de Lara Resende,contra a vontade de Funaro.23 A despeito de suaintenção de usar instrumentos para reduzir a de-manda agregada, esse pacote foi complementadopor um “Plano de Metas” — um documento escritopela Seplan estabelecendo a intenção explícita de

promover um aumento de 7% ao ano nas taxas decrescimento por meio de gastos públicos.

Naquele momento, o ministro Sayad pressio-nou pela decisão de baixar as taxas de juros, nãoapenas para promover investimentos privados,mas também para reduzir os efeitos negativos dosjuros sobre a dívida interna. Ele também resistiaaos cortes nos gastos públicos, devido ao impactoque teriam na economia, reduzindo os incentivospara os investimentos privados.24 Como uma alter-nativa tanto às taxas de juros mais elevadas quantoaos cortes nos gastos públicos, Sayad propôs umaredução dos subsídios e cortes nas transferênciasde receita do governo federal para os estados, bemcomo um aumento nos impostos diretos (particu-larmente, os impostos sobre a renda). A Seplanvisava promover o crescimento econômico sem apreocupação de curto e médio prazo com a capa-cidade de oferta da economia. A demanda crescen-te era vista por Sayad como uma “bolha” transitóriade consumo, que diminuiria num futuro muitopróximo.25

O presidente e seu grupo mais próximoestavam, de fato, resistindo a medidas que pudes-sem prejudicar o apoio popular ao Plano, o queestava claramente refletido na sua aversão ao cortena demanda. Taxas de juros baixas, aumentos nos

Tabela 1O Pacote “Cruzadinho” (Julho, 1986), Conflito Interburocrático sobre os

Instrumentos de Política e Conjunto Final de Medidas Corretivas

Política Monetária Ajuste Fiscal Congelamento de Preços(aumento nas taxas (corte Duran t e Depois de maio

de juros mais corte no nos gastos a formulação (encontro decrédito privado) públicos) do processo Carajás )

Ministério da Fazenda Parcialmente a favor Proponente A favor ContraB a c e n Proponente Proponente Teoricamente contra, mas Contra

de acordo como segundamelhor alternativa

Sep lan Contra Contra A favor ContraPre s id ên c ia Contra Contra A favor A favor“Cruzadinho” Pequeno aumento NÃO — Cont inuou(Julho/1986) das taxas de juros, (alguns impostos por um

devido a decisão indiretos foram pe r í odopessoal de aumen t a d o s , inde t e rminadoLara Resende apenas para

reduzir o consumode bens específicos)

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gastos públicos e a manutenção dos controles depreços foram então intensamente favorecidos.26

Se é verdade que as taxas de inflação conti-nuaram num patamar muito baixo durante o anoaté outubro, uma série de pressões inflacionáriasse desenvolveram sob o controle de preços. Pri-meiro, o simples fato de que mais pessoas deseja-vam gastar um montante maior de dinheiro emconsumo criou a disposição nos comerciantes deaumentar os preços. Segundo, como alguns setoresse aproximaram da situação de capacidade plena,gargalos tenderam a se desenvolver. Terceiro,tanto a oferta de matérias-primas como a de bensintermediários se tornou escassa, como resultadotanto dos eventos sazonais como da elevada de-manda. Quarto, o pacote econômico adotado emjulho — o “Cruzadinho” — aumentou alguns cus-tos de produção e, ao mesmo tempo, assinalou queo congelamento de preços não se aplicava a todosos produtos. Finalmente, houve alguns setores emque o congelamento de preços nunca foi efetivo —como vestuário, carros usados, ferragens, entreoutros. Nesses setores, ou o custo final do produtoenvolvia o pagamento de ágio, ou pequenas mu-danças na aparência do produto eram feitas demodo a burlar as regulações (cf. Modiano, 1988).

A inflação recrudesceu, mesmo durante osperíodos do congelamento de preços. Conseqüen-temente, o mercado negro se desenvolveu, a taxade câmbio se valorizou e a acumulação mensal detaxas crescentes de inflação tornou o acionamentodo gatilho salarial uma possibilidade real.

De outubro em diante, o impacto negativo docongelamento de preços sobre a balança comercialse tornou claro. Uma queda acentuada no exce-dente de comércio refletiu a combinação de preçosmais elevados no mercado doméstico — devido aoágio e ao nível elevado de demanda agregada —com crescente especulação sobre a possibilidadede uma maxidesvalorização do cruzado em relaçãoao dólar.27 Como as receitas da exportação eramtransferidas aos exportadores em cruzados, usan-do a taxa de câmbio oficial, a possibilidade de umaacentuada desvalorização naturalmente motivavaatrasos na contratação de exportações. A frágilposição externa tornou urgente o planejamento deduras medidas corretivas, mas a proximidade de

eleições para o Congresso criou um constrangi-mento político sobre a equipe econômica. Umnovo pacote, o Cruzado 2, foi lançado em novem-bro, duas semanas depois de uma notável vitóriada coalizão governista.

O Plano Cruzado 2 consistia basicamente de:(i) um aumento acentuado nos impostos indiretossobre a compra de alguns bens específicos (80%sobre automóveis novos, 120% sobre cigarros e100% para bebidas alcoólicas); (ii) os preços dealguns produtos fornecidos ou controlados pelogoverno também foram aumentados, ainda quetivessem de permanecer congelados (gasolina 60%,energia e telefone 35% e serviços postais 80%); (iii)restabelecimento de um sistema de uma minidesva-lorização para a determinação de uma nova taxa decâmbio nominal, baseada no total abatimento dasáreas de inflação; e (iv) reindexação de todos oscontratos financeiros às Letras do Banco Central(LBC), que refletiam as expectativas do mercadosobre as futuras taxas de juros.

Tabela 2O Cruzado 2, Conflito Interburocrático

sobre os Instrumentos de Política e ConjuntoFinal de Medidas Corretivas

Aumen t o Aumen t o Aumen t o Cor t e snas taxas d o n o s n o sreais de impos to impo s t o s g a s t o s

j u r o s de renda indi r e to s púb l i c o sMinistério Vetou* Contra Propôs Apoiouda FazendaSeplan Apoiou Propôs Contra VetouBacen Propôs Contra Contra PropôsCruzado 2 NÃO NÃO SIM NÃO

* “Veto” significa que a agência tinha o poder de impedir aescolha do instrumento de política.

A Tabela 2 sintetiza as diferenças básicasentre as três áreas técnicas em relação ao estabele-cimento daquelas medidas. Desta vez, o presidentenão interferiu na decisão, mas impeliu seus minis-tros a apresentar um pacote consensual. O con-senso não foi alcançado, uma vez que as opiniõesde dois ministros eram opostas em quase todas asquestões. As posições defendidas pelo ministro daFazenda — aumento nos impostos indiretos e

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controle tanto sobre o nível das taxas de juroscomo sobre o de impostos diretos — prevaleceramem quase todas as decisões, já que Funaro tinhauma influência mais forte sobre o presidente Sar-ney. A Seplan conseguiu evitar cortes orçamentá-rios, já que, na verdade, eles dependiam da suavontade para serem implementados. Finalmente, oBacen, onde tanto Lara Resende como Arida esta-vam lotados, não teve nenhuma de suas propostasaprovadas (taxas de juros elevadas, cortes orça-mentários e nenhum aumento de impostos). OCruzado 2 foi, então, exatamente o oposto daquiloque “os pais” do Cruzado desejavam.

Como o Cruzado 2 era visto como altamenteinflacionário, previa-se que as taxas futuras de jurosaumentariam substancialmente, criando uma prote-ção extra para os contratos financeiros correntes.

De novembro a dezembro, a inflação maisque dobrou, de 3,3% para 7,3%. Depois que ogatilho foi utilizado pela primeira vez, a inflaçãotornou-se ainda maior e inevitável, mesmo que amaioria dos preços permanecesse congelada. Vio-lações ao congelamento de preços tornaram-semuito prováveis, uma vez que elementos essenci-ais da estrutura de custos das empresas foramsubstancialmente aumentados. A oferta monetáriachegou a seu nível mais alto neste momento,aumentando ainda mais a pressão por aumento depreços. Em janeiro de 1987, a taxa de inflaçãosuperou a de um ano atrás, que tinha motivado olançamento do Cruzado. Os preços da grandemaioria dos produtos foram liberados oficialmenteem fevereiro, criando expectativas de uma taxa de20% para a inflação, o que não se materializoudevido a um forte aumento da taxa real de juros. Ainflação daquele mês foi de 13,9%. Finalmente, aindexação geral da economia seguiu o fim docongelamento de preços.

Em suma, há quatro fatores decisivos paraexplicar o afastamento das decisões tomadas du-rante os processos de formulação e de implemen-tação do Plano Cruzado em relação às idéiasoriginais de Arida e Lara Resende. Primeiro, ocrescente apoio popular ao novo presidente (com-binado com o apoio ao regime) foi consideradoessencial pelo próprio Sarney e seu grupo político.Sarney precisava consolidar sua posição como

presidente após um ano de incertezas devido àmorte de Tancredo.

Segundo, velhas idéias desenvolvimentistas— muito semelhantes ao que Dornbusch e Edwar-ds (1990 e 1991) denominaram “populismo econô-mico” — estavam fortemente representadas tantona Seplan como no Ministério da Fazenda. Essasidéias foram um importante fator por trás damudança da política econômica do governo Sar-ney, em agosto de 1985, quando o presidentedecidiu substituir seu ministro da Fazenda, Dorne-lles, por Funaro. A importância atribuída à promo-ção do crescimento a qualquer custo era evidentenos programas sociais, que envolviam tanto pro-postas de aumento nos gastos públicos comopolíticas distributivas, para amenizar os custos daestabilização.28

Terceiro, uma preocupação genuína com overdadeiro impacto do Plano sobre os saláriossurgiu dentro do governo, especialmente no Minis-tério do Trabalho, dando ao programa uma cono-tação mais (re)distributiva e não neutra. Esta últimapreocupação é explicada, em parte, pelo fato de oPMDB ter centrado suas campanhas eleitorais ante-riores na questão do arrocho salarial, e também poruma clara preocupação sobre a necessidade degerar apoio popular e dos sindicatos nas fasesiniciais do Plano.

Finalmente, e mais importante, exceto pordois expertos que haviam formulado o primeiroesboço do pacote — Lara Resende e Arida —, etalvez Belluzzo no Ministério da Fazenda, nenhumdos outros decisores que influenciaram o projeto eas medidas corretivas do Plano Cruzado tinha umentendimento claro da sua natureza. Além do mais,aqueles que entendiam o Plano não ocuparam asmais altas posições burocráticas.

Em 20 de fevereiro de 1987 o Brasil decidiudeclarar a moratória da dívida externa. Naquelemomento, nenhum dos expertos que planejaram opacote inicial e demandaram reformas durante asua implementação permanecia no governo: LaraResende renunciara em dezembro, Pérsio Arida eFernão Bracher em fevereiro. Os dois ministros eseus auxiliares ainda permaneceram por algumtempo: Sayad saiu em março, enquanto Funaro,João Manoel e Belluzzo ficaram até abril.

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O Plano RealRedes políticas e de política. O Real é, de

longe, o mais bem-sucedido e consistente plano deestabilização implementado no Brasil desde o co-meço da crise econômica, na década de 1980. É umplano heterodoxo mas, além disso, é quase umaimplementação exata das idéias iniciais apresenta-das na proposta Larida, em 1984, e esboçadas naparte inicial deste artigo. Lara Resende e Aridatambém desempenharam papéis importantes naequipe econômica que formulou e implementou opacote, como altos decisores no Ministério daFazenda.

Fernando Henrique Cardoso foi o ministro daFazenda de junho de 1993 a abril de 1994, quandodeixou o governo para concorrer à Presidência.29

Ainda no governo Itamar, Lara Resende foi onegociador-chefe da dívida externa, no Ministérioda Fazenda, Arida foi presidente do Banco Na-cional de Desenvolvimento Econômico e Social(BNDES), Pedro Malan foi presidente do Bacen eChico Lopes e Gustavo Franco tornaram-se mem-bros da diretoria do Bacen. Edmar Bacha ocupouuma posição consultiva no Minstério da Fazenda.Estas foram posições formais e não refletiam umarígida distinção hierárquica na equipe que formu-lou o Real. Lara Resende deixou o governo emnovembro de 1993, quando a fase de formulaçãodo programa de estabilização já estava bastanteavançada. Depois que Cardoso assumiu a Presi-dência, Malan tornou-se ministro da Fazenda,Arida, presidente do Bacen, e Lopes e Francopermaneceram como diretores do Banco. Bachafoi para a Presidência do BNDES. Arida deixou oBacen no final de 1995, quando foi substituído porGustavo Loyola, um funcionário de carreira doBanco. Depois que Loyola decidiu deixar o Bacen,em 1998, Gustavo Franco o substituiu. Lopes per-maneceu na diretoria do Bacen.

Com efeito, todos aqueles envolvidos na for-mulação do Real eram parte de uma equipe extre-mamente homogênea, comprometida com o plane-jamento do programa de estabilização. Entre eles, aabordagem da reforma monetária de Lara Resendee Arida era totalmente hegemônica. Na verdade,uma característica distintiva do processo políticopor trás da formulação e da implementação do Real

foi o baixo grau de conflito intra e interburocrático apartir do momento em que Cardoso assumiu oMinistério da Fazenda, em 1993. Outros ministériosforam excluídos do processo decisório e até mesmoo presidente Itamar Franco deixou de interferir nasdecisões tomadas pela equipe econômica. Os deba-tes internos entre os economistas foi muito intenso,mas a capacidade de controle técnico do processoaproximou-se de um padrão ideal.30

Desde o fracasso do Cruzado, o grupo centralde economistas da PUC-RJ — Lara Resende, Arida,Bacha e Malan — tinha decidido não integrar outrogoverno caso a estabilização da economia nãofosse vista como o seu principal projeto político.31

Eles tinham a clara percepção de que a garantia deum horizonte de tempo extenso para a equipeeconômica trabalhar era uma condição essencialpara o sucesso de qualquer tentativa de estabiliza-ção. Na sua opinião, a credibilidade das políticasde estabilização dependia diretamente da habilida-de do governo em persuadir os agentes econômi-cos sobre a sua durabilidade. Então, eles demanda-ram competência completa para tomar e imple-mentar decisões técnicas sem a necessidade deaceitar qualquer sorte de veto ou demanda políticacontrária à lógica básica do programa. Na prática,a equipe teria de assumir e manter as mais impor-tantes posições no governo, mas ainda dependeriada confiança dos políticos mais importantes.

As circunstâncias políticas por trás da indica-ção de Fernando Henrique Cardoso para o Minis-tério da Fazenda, na primeira metade de 1993,criaram este conjunto de condições. Primeiro, Fer-nando Henrique era o quarto ministro da Fazendade Itamar em menos de um ano. Isso implicavauma continuação de incertezas políticas significati-vas originadas após o impeachment do presidenteCollor. Indicadores macroeconômicos refletiamdiretamente tais vacilações — por exemplo, taxasde juros positivas eram menos capazes de reduzira aceleração da inflação. Segundo, como um pré-requisito para aceitar a indicação do presidenteItamar, Fernando Henrique Cardoso exigiu e con-seguiu total autonomia e responsabilidade sobre asdecisões econômicas do governo. Terceiro, comoum respeitado senador de um partido moderado, aindicação de Fernando Henrique Cardoso também

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implicou uma base mais forte de apoio ao governono Congresso.

Desse modo, Cardoso estava livre para esco-lher sua equipe econômica e estabelecer os objeti-vos macroeconômicos básicos. O grupo de econo-mistas heterodoxos da PUC-RJ mereceu a totalconfiança de Fernando Henrique Cardoso por trêsrazões básicas: primeiro, porque eles já haviamtrabalhado juntos no Cruzado — Cardoso, comoum senador da corrente não-desenvolvimentista doPMDB, fora um aliado natural de Lara Resende eArida —; segundo, porque esses economistas játinham entrado no PSDB, o partido de Cardoso,antes que ele se tornasse ministro; terceiro, como opróprio Cardoso, o grupo central da PUC-RJ eracomposto por distintos acadêmicos, e isso certa-mente serviu para reforçar a confiança de Cardosona equipe e vice-versa. Como um dos membrosdeste grupo explicitamente disse ao autor: “Não erasimplesmente uma equipe de economistas do mes-mo partido político do ministro. Era um grupo comlaços pessoais com o próprio ministro [...] baseadosna confiança mútua e na lealdade pessoal.”

Em contraste com os ministros Funaro eSayad no governo Sarney, Cardoso conhecia pes-soalmente os integrantes da equipe econômica,assim como o conteúdo de suas idéias para oprograma de estabilização. De acordo com a per-cepção de um dos membros principais da equipeeconômica, o ministro Cardoso tinha total conheci-mento sobre a necessidade de cortar as despesaspúblicas e implementar uma reforma fiscal drásticano início do programa, assim como sobre o con-teúdo da política cambial, as exigências de umfirme controle da demanda agregada via taxas dejuros positivas após a reforma monetária, a políticasalarial etc.32

Desse modo, uma característica distintiva doprocesso político do Real é que o político respon-sável por tomar as decisões finais e negociá-lascom o Congresso — e também com o presidente(populista) — sabia exatamente em que consistia opacote antes que ele tivesse sido lançado. Issoprovou ser essencial no sentido de filtragem dasdemandas políticas e de superação das resistênciaspolíticas que surgiram tanto dentro quanto fora doCongresso durante a negociação do pacote.

Dentre os membros mais importantes daequipe econômica, Bacha foi escolhido para nego-ciar com os líderes dos partidos aliados, governa-dores estaduais e congressistas mudanças margi-nais no conjunto básico de medidas. Não houvequaisquer mudanças na estratégia da reforma mo-netária nem nas políticas monetária e cambialcomo resultado daquelas negociações. Entretanto,o componente fiscal do programa — o FundoSocial de Emergência (FSE) — terminou por sermais fraco do que inicialmente proposto, uma vezque alguns interesses lograram reduzir seus custosde curto prazo no pacote de estabilização por meioda pressão política.33

Comparado ao Cruzado, o Real dependeumuito mais do apoio do Congresso, devido a duasmudanças introduzidas pela Constituição de 1988:primeiro, o fato de ter sido abolido o instrumentodos decretos-leis, por meio dos quais o governoSarney legislava acima do Congresso; segundo, asobrigações fiscais do Executivo federal foram au-mentadas e sua remoção, com vistas a se atingir oequilíbrio orçamentário, passou a depender dereformas constitucionais. A partir de outubro de1988 o Executivo passou a dispor do instrumentodas Medidas Provisórias, por meio das quais quasetodas as medidas econômicas foram lançadas.34

De modo a mudar a Constituição e evitar asconseqüências inflacionárias de déficits fiscais qua-se inevitáveis, o governo teria de manter umaaliança no Congresso igual a 3/5 dos membros dasduas Casas, uma proporção que se revelou quaseimpossível de assegurar, dado o caráter controversoda maior parte das reformas constitucionais propos-tas, bem como os seus custos sociais e políticos decurto prazo — especialmente em um ano eleitoral.O tênue apoio político é ainda mais importante seconsiderarmos que o governo Itamar Franco eraapoiado no Congresso por uma maioria fluida departidos de centro-direita. Logo, a maioria de 3/5precisou ser trabalhada para cada votação.

Medidas convencionais. O Plano foi divididoem quatro partes. Primeiro, a equipe econômicatrabalhou com um conjunto medidas — chamadode Programa de Ação Imediata (PAI) — visando aoequilíbrio do déficit orçamentário previsto para1993. Na primeira metade daquele ano, essa fase

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envolveu: definição de cortes nos gastos públicos;aumento da eficiência dos mecanismos de recolhi-mento de impostos; retomada dos pagamentos dasdívidas de estados e municípios com o governofederal; controle da alocação dos recursos dosbancos públicos; recuperação da saúde financeirados bancos federais; e melhoria e expansão doprograma de privatizações. Os resultados de curtoprazo foram substanciais: um aumento de US$ 500milhões (15%) nas receitas mensais de impostos,devido principalmente ao combate à sonegaçãofiscal; um corte de US$ 6 bilhões nas despesasanteriormente incluídas no orçamento federal; aretomada dos pagamentos de estados e municípiosao governo federal. O mais importante indicadorde sucesso foi o déficit público ajustado à inflação,que se aproximou de zero no final de 1993. Comovimos, esse era considerado um dos requisitosfundamentais para o lançamento do pacote deestabilização baseado na proposta Larida.

A segunda fase foi, na sua essência, outroconjunto de medidas de emergência, agora destina-das a equilibrar o orçamento federal de 1994, quefora enviado ao Congresso em agosto de 1993. Asmedidas foram decididas pela equipe econômicaem dezembro daquele ano e então submetidas aoCongresso pelo presidente Itamar Franco. Aquelasmedidas não enfrentavam as causas estruturais dosdesequilíbrios fiscais no Brasil, o que, para a maio-ria dos economistas heterodoxos, requeriria a apro-vação de diversas mudanças constitucionais (ver aterceira parte do Plano abaixo).

A proposta inicial para o orçamento federalde 1994 incluía um déficit estimado de US$ 22,2bilhões — 4,9% do PIB (US$ 456 bilhões em 1994)— a ser financiado por meio de fontes inflacioná-rias. Isso era visto como um peso sobre o mercadofinanceiro doméstico, uma vez que o déficit exigi-ria maiores aumentos nas taxas de juros internas.Decidido a adotar uma política de estabilizaçãoheterodoxa, o governo optou por cortar o déficitajustado à inflação, tomando medidas fundamen-tais: um corte geral nas transferências voluntáriasde capital do governo federal para os estados emunicípios; imposição de rígidos limites à criaçãode títulos do governo; criação de controles maisfirmes para o uso de fundos do Tesouro, especial-

mente para gastos com pessoal e investimento; ecorte geral nos gastos públicos, incluindo pessoale benefícios sociais.

A despeito de todos esses esforços paraequilibrar o orçamento, o déficit fiscal estimadopara 1994 ainda era elevado, US$ 9,3 bilhões (2%do PIB). O governo optou então pela criação dochamado Fundo Social de Emergência (FSE), umconjunto de medidas de ajuste para financiar odéficit restante. O FSE, inicialmente planejado paradurar apenas dois anos (mas ainda vigente), impli-cava a aprovação pelo Congresso de uma emendaconstitucional permitindo ao presidente zerar odéficit público ajustado à inflação.35 O FSE dava aopresidente autoridade para reter até 20% das recei-tas de todos os impostos federais, o que significavaque a participação dos estados e municípios nadistribuição das receitas produzidas por aquelesimpostos, conhecidos como gastos vinculados,seria reduzida no mesmo montante.36 As receitasdo FSE transferidas ao governo federal financiari-am 20% das despesas totais não-financeiras dogoverno em 1994, e se mostraram fundamentaispara eliminar o déficit orçamentário.

Como o FSE vem sendo prorrogado desdeentão, o governo federal ainda está circunstancial-mente liberado das obrigações constitucionais dedividir aquelas receitas tributárias com estados emunicípios, enquanto uma reforma fiscal definitivanão é aprovada pelo Congresso, eliminando o queé conhecido como obstáculo constitucional aoequilíbrio fiscal.

A terceira fase do Real seria uma série dereformas constitucionais destinadas a aumentar aeficiência geral da economia e do governo. Asreformas se estenderiam por uma enorme varieda-de de matérias constitucionais: previdência, admi-nistração pública, modernização econômica (pri-vatização, desregulamentação do capital estrangei-ro, quebra de monopólios das empresas estatais,lei de concessões para oferta privada de serviçospúblicos), reforma tributária, orçamento e o fede-ralismo fiscal. Essa fase nunca foi inteiramenteimplementada devido, em parte, às intrincadasrelações Executivo/Legislativo, mas também à na-tureza muito controversa das questões envolvidas.Como resultado, o governo optou pela reedição do

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FSE, e deixou as causas estruturais do desequilíbriofiscal sem solução definitiva.

Medidas heterodoxas. A reforma monetária,quarta fase do Real, foi apresentada em fevereiro de1994, imediatamente após o Congresso ter aprova-do o FSE.37 É nessa etapa do programa que aimportância das formulações originais de Arida eLara Resende se torna mais evidente. Esta fasepretendia eliminar o componente inercial da infla-ção, identificado no sistema de indexação doscontratos, por meio do qual toda a economia estavaamarrada às taxas passadas de inflação. Além dascausas da inflação ligadas aos “fundamentos” — odéficit público e a oferta monetária —, a “memória”do sistema de indexação era o obstáculo maisimportante à redução da inflação.

A despeito dos avanços no controle do déficitpúblico, a taxa de inflação manteve uma trajetóriaascendente na primeira metade de 1994. O IPC-FIPE passou de 40,3% em janeiro para 50,75% emjunho. Como explicado pelo próprio governo:

[e]sses aumentos devem ser creditados em grandeparte à inércia inflacionária, fortalecida pela inde-xação generalizada decorrente da introdução daURV, às incertezas quanto às segunda e terceirafases do Plano de Estabilização, e à pressão exer-

cida pelo excesso de oferta de divisas sobre aexpansão da base monetária (e conseqüente au-mento da dívida pública, usada para esterilizaressa expansão). (Bacen, 1995, p. 8)38

Diferentemente do Cruzado, o Real estabele-cia que a desindexação deveria ser precedida pelaadoção de medidas convencionais de controle dademanda. A desindexação não seria parte de umaterapia de choque (por exemplo, um congelamentode preços), o que já se sabia prejudicar os contratosexistentes. A desindexação resultaria antes de umacordo voluntário de todos os atores econômicospara o uso de um mesmo índice — a Unidade Realde Valor (URV). Essa mudança na percepção daequipe econômica se deveu, em grande parte, àidéia de que, com o objetivo de alterar as expectati-vas inflacionárias dos atores privados, o governonão poderia começar eliminando sua fonte primáriade proteção contra a inflação.39 Os atores privados

seriam convencidos de que o novo sistema eramelhor em si mesmo, e voluntariamente migrariampara ele. A esse respeito, o Plano Real não envolveunenhum congelamento de preços. Como alternati-va, o programa desenvolveu um criativo processode conversão gradual de todos os contratos de umamoeda para a outra durante um período de transi-ção que durou três meses. Todo o processo estavabaseado na criação, entre os atores privados, deexpectativas econômicas adequadas para promo-ver a estabilização de preços.

O Real significava a indexação de todos oscontratos vigentes a um mesmo indexador, a URV.O governo, por intermédio do Bacen, fixaria umataxa diária de desconto para a conversão da moedaantiga para a URV, refletindo a taxa real de inflação(como uma desvalorização cambial).40 Decidiu-seassociar a taxa de desvalorização da antiga moeda auma medida independente de inflação, de modo adar mais credibilidade ao Plano e, assim fazendo,promover a conversão voluntária dos contratospara a nova moeda. Esse mecanismo de conversãofoi, de fato, muito semelhante ao que regulavanaquele momento a conversão da moeda nacionalem dólares americanos, conhecido pelos brasileirosdesde a década de 1960 (minidesvalorizações cam-biais).

O valor de uma URV foi inicialmente estabe-lecido em US$ 1,00. Como a taxa de inflaçãocorrente foi usada, a partir de então, para desvalo-rizar a antiga moeda (o cruzeiro real) tanto emtermos de URV como em relação ao dólar america-no, uma paridade fixa entre a nova moeda e o dólarfoi mantida durante o período de transição. Quan-do o real finalmente substituiu o cruzeiro real essaparidade com o dólar foi transformada no limitesuperior (desvalorização) do novo regime de flutu-ação cambial administrada.

Quando esse processo foi completado, isto é,quando toda a nova economia estava indexadapelo mesmo índice (a URV), o próprio índice setornaria a nova moeda — uma URV valendo umreal. A URV era, então, uma moeda “virtual”, o queevitou todas as dificuldades associadas ao uso deduas moedas ao mesmo tempo. Em outras palavras,a URV servia apenas como unidade contábil, já queela nunca foi impressa, não serviu nem como

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reserva de valor, tampouco como meio de troca. Acrença da equipe econômica era de que quandopredominassem as expectativas de que os contratosconvertidos em URV estariam completamente pro-tegidos contra a inflação, o real poderia substituir aURV com segurança. O sistema de minidesvaloriza-ções, por meio do qual o valor de uma URV eraprotegido contra a inflação em cruzeiros reais,garantiria que a inflação fosse mantida apenas emcruzeiros reais — a moeda antiga. A esse respeito, ataxa de inflação em URV seria zero por definição.41

A abordagem gradual que orientou o PlanoReal também é notada na maneira como diferentestipos de contrato foram regulados. Três tipos bási-cos de contrato foram definidos (salários/benefíciossociais; não-financeiros; e contratos financeiros):

(i) os salários permaneceram indexados àstaxas passadas de inflação durante a fase dos ajustesfiscais emergenciais, descritos anteriormente. En-tão, no início do período de transição (1º de maio de1994), todos os salários e benefícios sociais foramconvertidos discricionariamente em URVs pelosvalores médios dos quatro meses anteriores (no-vembro 1993-fevereiro 1994).42 A despeito disso,foi permitido que os salários aumentassem comoresultado de negociações diretas entre patrões eempregados, com o objetivo de garantir que as di-versas categorias se beneficiassem proporcional-mente a suas diferentes capacidades de mobiliza-ção. Depois da conversão, os salários estariam pro-tegidos da inflação diária, promovendo a aquiescên-cia dos sindicatos. Finalmente, uma política salarialde transição garantiu que os salários seriam corrigi-dos pela inflação no primeiro ano do Real, e entãoseria estabelecido um sistema de negociação direta.

a) mesmo depois de junho de 1994, quandoos contratos começaram a ser escritos emreais, foi ainda permitido que incluíssemcláusulas de indexação. Essas cláusulas deve-riam ser negociadas entre as partes, mas sóseriam aplicadas para intervalos iguais ousuperiores a 12 meses;b) a indexação dos salários não foi suprimidaaté junho de 1995 (MP 1.053).(ii) próximo ao final do período de transição,

todos os contratos não-financeiros da economia(aluguéis, escolas particulares, planos de saúde,

leasing etc.) foram obrigatoriamente convertidosem URV, por meio de acordos entre as partes.43 Foipermitido, por exemplo, o aumento de preçosdurante o período de transição, visto que se tratavade acordo tácito com os consumidores. O governoproibia apenas que, uma vez convertidos em URV,os contratos incluíssem cláusula de indexação oumecanismo de ajuste de preços aplicáveis emintervalo de tempo inferior a um ano;

(iii) os contratos financeiros (poupanças, bemcomo todos os tipos de transações financeiras) sóseriam convertidos depois que o real substituísse ocruzeiro real e não no período de transição. Essadecisão foi tomada para reduzir a propensão dospoupadores a retirar seu dinheiro e consumir (ex-cessivamente). As cláusulas de indexação para oscontratos financeiros nunca foram abolidas.

Havia uma evidente vantagem para todos osoutros contratos que não os salários, ainda que nãohouvesse uma perda imediata para os últimos. Ospreços estariam livres para serem convertidos emreais até o último minuto do período de transição,a única restrição seria o montante de dinheiro àdisposição dos consumidores. A ameaça potencialaos trabalhadores causou uma reação política den-tro do aparato governamental. O próprio presiden-te Itamar Franco demandou a criação de instru-mentos de proteção para evitar quaisquer conse-qüências sociais negativas. Mecanismos de contro-le de preços foram então criados, contrariamente àvontade da equipe econômica. Estes, no entanto,jamais foram aplicados.44

Quando a lei que continha a reforma monetá-ria foi anunciada pela primeira vez, em 27 defevereiro de 1994, foi estabelecido que o período detransição deveria durar um ano.45 Ele acabariaquando as primeiras cédulas de real fossem impres-sas. Em decisões posteriores, o governo definiu quea primeira impressão de reais, e conseqüentementeo fim do período de transição, seria anunciada com35 dias de antecedência.46 Em 27 de maio, menosde dois meses depois dessa última decisão, oCongresso finalmente aprovou a MP 482, transfor-mada na Lei 8.880. Essa lei definia que as notas dereal seriam impressas em 1º de julho de 1994.

Nesse ponto, também foi estabelecida umaâncora monetária para o programa — um teto para

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a impressão de reais. A fixação de um teto para aimpressão da nova moeda tentou sinalizar para osagentes econômicos que não haveria impressãoinflacionária, tanto para promover sua confiançano governo quanto para limitar sua propensão aaumentar os preços desproporcionalmente. O limi-te de emissão foi ampliado duas vezes, sem conse-qüências importantes para a credibilidade da novamoeda.

Todo o processo de reforma monetária foi,então, previamente anunciado e negociado noCongresso, indicando seu objetivo principal: a neu-tralidade em relação aos contratos existentes. Poroutro lado, o fato de o período de transição ter sidomuito inferior ao que fora divulgado (quatro mesese não um ano) é um sinal de que os mecanismos deindução estabelecidos pelo governo para promovera conversão voluntária dos contratos privados paraa nova moeda foram, de fato, efetivos.

O papel do governo na mudança das expec-tativas dos atores privados foi o de assegurar que ascausas da inflação ligadas aos “fundamentos” esta-vam sob controle, isto é, não haveria déficit fiscale, como conseqüência, não haveria expansão infla-cionária da oferta de dinheiro. O valor real da novamoeda seria garantido e isso daria credibilidade aoPlano. Como uma forma de criar essa credibilida-de, todas as tarifas públicas e preços de serviçospúblicos, bem como a maioria dos impostos, foramimediatamente convertidos em URV. Como o go-verno não pretendia criar desequilíbrios fiscais, aconvertibilidade das suas fontes de renda paraURV indicava a sua forte inclinação de manter anova moeda protegida da inflação.

Essa inclinação para proteger a nova moedatambém seria assegurada via convertibilidade livrede reais em dólares americanos, por meio de ummercado cambial flexível. Segundo a lei que imple-mentou a reforma monetária, a impressão de novascédulas estava sujeita ao nível real de reservasinternacionais.47 O alto nível de reservas externasno Bacen, associado com a entrada de capitalfinanceiro externo atraído pelo nível interno maiselevado de taxas de juros, criou uma firme tendên-cia de valorização do real.48 A valorização, aomesmo tempo, tornou mais fácil para o governogarantir a conversão de reais em dólares e fortale-

ceu os incentivos para atores privados atuarem emconformidade com a estabilização.

A valorização do real criou incentivos natu-rais para o aumento das importações. Por outrolado, a existência de um nível confiável de reservasinternacionais tornou possível que o governo per-mitisse um aumento das importações de bens desetores caracterizados por baixos níveis de compe-tição interna (oligopólios e monopólios).49 Devidoao aumento substancial nas importações que seseguiu ao Plano Real, os preços internos caíram,principalmente nos setores que sofreram com aconcorrência imediata dos importados, o que libe-rou o governo do ônus de implementar controlesde preços.

O sucesso do Plano foi imediato, tanto emtermos econômicos como eleitorais. As taxas deinflação começaram a declinar consistentementedepois de julho, caindo de 5,5% (julho) para 1,55%(setembro), 2,55% (outubro), 2,47% (novembro) e0,57% ao final de 1994. Superávits públicos foramverificados tanto em termos ajustados à inflação(operacional) quanto primário — respectivamente,4% e 0,4% em 1994.50 As taxas elevadas de jurosforam mantidas e a política creditícia foi apertada,de modo a ajustar a oferta à demanda. O aumentodas importações, como assinalado anteriormente,também desempenhou um papel-chave a esserespeito.

Na arena política, as eleições presidenciais de1994 foram facilmente vencidas por Cardoso e onível de apoio público às duras medidas econômi-cas permaneceu alto até 1998. Nesse ano, a despei-to das conseqüências sociais negativas dos baixosníveis de crescimento econômico causados pelastaxas de juros muito elevadas, o presidente Cardo-so foi reeleito.

Observações finais: duasexperiências de estabilizaçãoheterodoxa no Brasil

Ao longo deste artigo, procurei demonstrarque as idéias dos decisores públicos explicam, emgrande medida, o conteúdo das políticas econômi-cas. Dizer isso não significa defender que as idéiassão as únicas variáveis explicativas para o conteú-

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do das políticas, mas apenas indicar que seu pesorelativo é muito maior do que se pode derivar dasanálises comumente realizadas por especialistasdo processo decisório governamental, no Brasil eno exterior. Um dos pressupostos de minha análiseé que as idéias serão tão mais importantes quantomaior a autonomia do Estado, ou seja, quantomaior a liberdade de ação dos decisores públicospara elaborar análises e programas de ação (polici-es), independentemente dos interesses dos grupossociais, políticos e econômicos.

Considerar as idéias como uma variável inde-pendente no processo de formulação, decisão eimplementação da política econômica implica en-contrar os mecanismos (channels) por meio dosquais essas idéias se fazem presente no processodecisório. Afinal, é preciso demonstrar claramentecomo determinadas idéias afetaram decisões espe-cíficas. Tradicionalmente, as visões estadocêntricasenfatizaram que essa influência se dá por intermé-dio dos burocratas de carreira (cf. Nordlinger,1981). No entanto, para mim os funcionários doEstado não são os responsáveis pela indicação doconteúdo das políticas, mas, em geral, apenas (e demodo limitado) por sua implementação. Nessesentido, chamei a atenção para o processo denomeação de decisores governamentais como sen-do o mecanismo fundamental para se entender apenetração do Estado por determinadas idéias depolítica econômica. Denominei esse mecanismode “rede política” (political network), tendo emvista o fato de que os escolhidos para assumir oscargos mais importantes da burocracia encontram-se vinculados a indivíduos centralmente posiciona-dos no sistema político, e que fazem parte de suasredes de relações sociais.

As redes políticas são construídas a partir dasidéias criadas, professadas e/ou compartilhadaspelos economistas de fora do governo. Essas idéiasmoldam suas relações profissionais e políticas,limitando os seus contatos com outros economis-tas, com políticos profissionais e com os partidos.Portanto, as possibilidades de que esses economis-tas sejam nomeados para ocupar posições dedestaque no governo dependerão, em grandeparte, da ascensão política dos políticos e partidosaos quais estejam mais fortemente ligados.

No âmbito do sistema político, os partidos eas lideranças políticas do país (presidente, minis-tros e políticos profissionais ligados ao governo eà oposição) se destacam em pelo menos doissentidos. De um lado, são eles que nomeiam ouinfluenciam a nomeação da equipe de economistasde fora do governo que irá formular, decidir eimplementar as políticas econômicas. De outrolado, os partidos e as lideranças políticas afetam aspróprias políticas, por meio tanto de comandosexplícitos aos formuladores quanto do veto amedidas sugeridas por estes. Por razões óbvias, ospartidos e as lideranças políticas que apóiam ogoverno têm maior capacidade de exercer essasduas formas de influência.

Ao analisar as escolhas feitas pelas liderançaspolíticas, devem ser levados em conta os valorespredominantes nos seus partidos e ou no governo,que constituem uma “subcultura política”. Nos ca-sos tratados em meu estudo, o principal corte a serfeito no que diz respeito à cultura política predomi-nante no governo é aquele entre as concepçõespolíticas que reforçam o papel do Estado comoagente do desenvolvimento e as que enfatizam aimportância do mercado como princípio ordenadorda economia. Os primeiros, freqüentemente cha-mados desenvolvimentistas, manifestam o compro-misso com um nível elevado de investimento públi-co, ora para estimular a industrialização, ora paraevitar a recessão. Também defendem a manutençãode um alto grau de proteção da economia paraestimular o setor privado a realizar determinadosinvestimentos, como iniciar a produção em umdado setor ou modernizar-se tecnologicamente.Assim, quando predomina no governo uma subcul-tura política desenvolvimentista, deve-se esperaruma maior resistência à adoção de medidas paradiminuir os déficits orçamentários e para reduzir ograu de proteção da economia. Medidas dessanatureza são justamente aquelas consideradas es-senciais pelo segundo grupo. Este, cujos membrossão chamados de liberais (e às vezes, monetaristas),é ainda comprometido com o combate à inflação ecom a mudança do papel do Estado na economia,mediante a desregulamentação do mercado e aadoção de medidas para aumentar o grau de con-corrência, entre as quais se destaca a liberalização

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do comércio. Para esse grupo, o mercado, leia-se aconcorrência, deve prover os sinais essenciais paraque os agentes econômicos realizem a poupança eos investimentos necessários ao desenvolvimentoeconômico. A tarefa básica do Estado, em sua opi-nião, seria manter as regras necessárias ao funcio-namento do mercado e realizar investimentos pú-blicos de caráter universal para garantir a ordem epara ampliar as capacidades dos cidadãos de tirarproveito das interações econômicas, e.g. educação.

A predominância de uma subcultura desen-volvimentista ou liberal entre os partidos e asprincipais lideranças políticas vinculadas ao gover-no é um importante filtro que limita a influência dedeterminadas concepções de política econômicasobre o conteúdo dos programas governamentais.Esse filtro opera de duas formas. De um lado, elese faz presente no processo político de escolha dosintegrantes da equipe econômica — ou seja, nanomeação dos ministros e de suas respectivasequipes de assessores. De outro, a subculturapolítica afeta a formulação da política econômicaporque são os partidos e os políticos que, emúltima instância, aprovam ou vetam as medidaspropostas pela equipe econômica e que, emmenor grau, indicam à equipe os objetivos a seremmaximizados.

Uma das principais contribuições da análisede redes é a possibilidade de explicar, com maiorpropriedade do que as correntes alternativas, oscontextos em que se realizam mudanças nas con-figurações institucionais da economia.

Os conteúdos dos dois programas de estabi-lização discutidos neste artigo foram fortementeinfluenciados pelas idéias dos economistas doDepartamento de Economia da Pontifícia Universi-dade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Essainfluência pode ser percebida de duas formas.Primeiro, antes de terem ocupado posições-chavenas equipes econômicas dos governos Sarney,Itamar Franco e Cardoso, esses economistas jáhaviam escrito extensivamente sobre as políticaseconômicas seguidas por administrações anterio-res. Nesses trabalhos, eles discutiam as razões queexplicavam o insucesso de tais políticas e propu-nham estratégias alternativas. Segundo, o conteú-do das políticas econômicas sob sua responsabili-

dade nos períodos em que estiveram no governoseguiram claramente as orientações expressas nes-ses trabalhos acadêmicos.

Os programas de estabilização analisadosaqui, o Cruzado e o Real, derivaram de um mesmoreferencial teórico, a Teoria da Inflação Inercial.Essa teoria foi desenvolvida simultaneamente portrês economistas da PUC-RJ, Francisco Lopes, An-dré Lara Resende e Pérsio Arida, e por dois daFundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP),Luiz Carlos Bresser Pereira e Yoshiaki Nakano. Essegrupo de economistas, complementado por outrosque adotaram a mesma perspectiva, desenvolveuuma estratégia heterodoxa de combate à inflação.Essa se propunha a complementar o receituárioortodoxo advogado pelas instituições financeirasinternacionais e pelos governos dos países credoresda dívida brasileira, em especial pelo Departamentodo Tesouro dos Estados Unidos.

A proposta heterodoxa foi parcialmente apli-cada no Plano Cruzado (1986) e seguida integral-mente no Plano Real (1993). Nos dois casos, oseconomistas heterodoxos ocuparam posições naequipe econômica que lhes permitiram influenciardecisivamente a formulação do programa de com-bate à inflação. Sua nomeação se deveu, nas duasoportunidades, aos vínculos políticos que manti-nham com integrantes do partido principal nacoalizão governamental — o PMDB em 1986 e oPSDB a partir de 1993. A natureza desses vínculospolíticos mudou com o passar do tempo, no quediz respeito tanto ao tipo de relação que manti-nham com determinados políticos quanto à proe-minência do político ao qual estavam vinculados.

Entre agosto de 1985 e dezembro de 1986,Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, exerceuo papel de broker político para os economistas doseu partido. Tendo em vista a centralidade doPMDB na coalizão parlamentar que dava sustenta-ção ao governo, Ulysses teve a incumbência denomear os dois ministros da área econômica dogoverno Sarney, tendo sido suas as escolhas deDilson Funaro e João Sayad para ocupar os Minis-térios da Fazenda e do Planejamento, respectiva-mente. Arida e Lara Resende foram atraídos aogoverno por Sayad, ele próprio um economista-acadêmico com longa militância no MDB e no

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PMDB, ligado à ala desenvolvimentista do partido— portanto, um “economista-político”. Sayad jáhavia servido como secretário da Fazenda doEstado de São Paulo, no governo Montoro, emantinha uma estreita vinculação política comUlysses. Ele conhecera os economistas heterodo-xos por meio dos círculos acadêmicos nacionais ecompartilhava de suas idéias a respeito da ineficá-cia das políticas ortodoxas de combate à inflação.

Apesar de, naquela ocasião, Arida e LaraResende também serem filiados ao PMDB, suanomeação política se deveu à ação direta de Sayad,que funcionou como elo entre os dois heterodoxose o governo. Eles não dispunham de vínculospolíticos sólidos com o partido ou com qualquerpolítico influente, razão pela qual ocuparam ape-nas posições marginais dentro da equipe econômi-ca. Havia uma clara divisão na equipe entre os doisheterodoxos e todos os demais, no que diz respei-to às opções de política de estabilização. Arida eLara Resende eram essencialmente liberais e pre-gavam uma combinação de instrumentos conven-cionais (juros e ajuste fiscal) e heterodoxos (desin-dexação) para eliminar a inflação. Por outro lado,os dois ministros (Sayad e Funaro), seus respecti-vos assessores (especialmente Luiz Gonzaga Bellu-zzo e João M. Cardoso de Mello) e a maior partedas lideranças políticas do PMDB (incluindo seupresidente, Ulysses Guimarães, e o ministro doTrabalho, Almir Pazzianotto) eram desenvolvimen-tistas, portanto, naturalmente contrários ao uso deinstrumentos de política que pudessem afetar ne-gativamente o crescimento.

Apesar dessa diferença, Arida e Lara Resendenão tiveram dificuldade para convencer os demaisintegrantes da equipe (principalmente os ministrosSayad e Funaro) da necessidade de se implementarum programa heterodoxo de estabilização. Navisão de Sayad e Funaro, essa alternativa nãocontrariava suas orientações desenvolvimentistasna medida em que se apresentava como umaestratégia de estabilização com crescimento, naqual a recessão não desempenharia um papelrelevante no combate à inflação. No entanto, du-rante a formulação e a implementação do PlanoCruzado, os economistas heterodoxos não conse-guiram resistir às pressões contrárias às medidas de

controle da demanda agregada necessárias aosucesso do programa antiinflacionário. Essas resis-tências surgiram de dentro e de fora da equipe e,no limite, foram o resultado de escolhas feitaspelos ministros e pelo próprio presidente Sarney.

Assim, as inconsistências internas do PlanoCruzado resultaram da fragilidade dos vínculospolíticos dos economistas heterodoxos e da hete-rogeneidade ideológica dos integrantes da equipeeconômica do governo.

O retorno de Arida e Lara Resende à equipeeconômica, em 1993, se fez em condições muitodistintas das que marcaram sua atuação durante oCruzado. Em primeiro lugar, eles estavam vincula-dos política e pessoalmente ao ministro da Fazen-da, Fernando Henrique Cardoso, homem forte dopresidente Itamar Franco. O governo, que atéaquele momento era dominado por uma culturapolítica populista/desenvolvimentista, estava en-fraquecido politicamente, de modo que, ao dele-gar a formulação da política econômica a Cardoso,o presidente assumiu o compromisso tácito degarantir autonomia à equipe econômica nomeadapelo ministro. Uma prova disso é que, uma semanaantes de ser nomeado para integrar a equipe deCardoso, Gustavo Franco havia publicado um arti-go no jornal no qual usava as expressões “populis-mo”, “idiotice” e “irresponsável” ao se referir aalgumas idéias do presidente Itamar sobre a políti-ca econômica (cf. Franco, 1993b).

Em segundo lugar, a equipe econômica foiescolhida apenas por Cardoso e era compostasomente por economistas que conheciam profun-damente a proposta heterodoxa. As divergênciasentre os integrantes do grupo, como a que levou àsaída de Lara Resende alguns meses depois deiniciados os trabalhos da equipe, não disseramrespeito à opção fundamental de fazer um progra-ma heterodoxo, mas a quais instrumentos utilizar.Em terceiro lugar, a capacidade de articulaçãopolítica do ministro da Fazenda junto às principaislideranças políticas do Congresso e mesmo juntoao presidente e aos demais ministros permitiu quea equipe formulasse e implementasse uma série demedidas necessárias ao equilíbrio fiscal e resistisseàs demandas que implicavam perda de coerênciadessas medidas.

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NOTAS

1 Arida foi assessor especial do ministro do Planejamento,João Sayad, enquanto Lara Resende serviu como diretorde Mercado Aberto do Banco Central.

2 Há pelo menos dois tipos diferentes de indexação,dependendo do período de referência usado pelaspartes de um contrato. As cláusulas de indexaçãopodem ser pré-fixadas (forward-looking) — se o meca-nismo é uma tentativa de antecipação da taxa deinflação que ocorrerá durante o contrato — ou pós-fixada (backward-looking) — se o contrato toma algu-ma referência do passado como parâmetro para oconjunto de ajustamentos a serem feitos durante operíodo. As cláusulas de indexação desse último tiposão freqüentemente baseadas na taxa de variação depreços num determinado período de tempo igual, queprecedeu a assinatura do contrato.

3 Um exemplo simples pode mostrar como a indexaçãotornou os programas ortodoxos inadequados. Imagine-mos que o governo lançasse um plano ortodoxo quereduzisse a inflação em 2% ao mês por seis mesesconsecutivos, de modo que as taxas mensais de inflaçãodepois do lançamento do plano fossem: 18%, 16%, 14%,12%, 10% e 8%. Devido a obrigações contratuais, nosétimo mês os salários seriam corrigidos em 107%. Oproblema era que, imediatamente antes do ajuste dossalários, a estrutura de preços era compatível com acapacidade de consumo da população, medida pelomontante de oferta monetária. O aumento de saláriossolaparia a continuidade nas reduções nos preços, vistoque aumentaria a demanda agregada.

4 A formulação de Lopes era coincidente com a de BresserPreseira e Yoshiaki Nakano, professores da FundaçãoGetúlio Vargas de São Paulo (cf. Bresser Pereira eNakano, 1984). Para uma discussão pormenorizada dasdiferenças e semelhanças entre as formulações de Aridae Lara Resende, Lopes e Bresser Pereira e Nakano, verPio (2001).

5 Na visão deles: “[s]ob inflação rigorosa, os preçosrelativos são muito voláteis. Uma fotografia da econo-mia num dado ponto do tempo mostraria preços relati-vos em desequilíbrio. É apenas ao longo do tempo queos preços relativos alcançam um equilíbrio débil. Ocongelamento dos preços nominais por determinaçãolegislativa inevitavelmente congelaria preços relativosem desequilíbrio. Se o congelamento anunciado fossemuito breve, fracassaria no objetivo de suprimir oimpulso inflacionário herdado do passado; se muitolongo, a inconsistência dos preços relativos, bem comoquaisquer choques sobre a oferta ou demanda, teriamde ser absorvidos pelo racionamento. A suspensão docongelamento seria seguida, provavelmente, por fortespressões para se restabelecerem as relatividades prévi-as, que fariam reacender a inflação. [...] A demanda pormoeda durante o congelamento se eleva. Na ausênciade uma expansão monetária, o congelamento deflagra-ria pressões deflacionárias.” (Arida e Lara Resende,1984a, pp. 16-17).

6 Este ponto é particularmente importante para um enten-dimento claro das razões pelas quais congelamentos depreços não podem ser acompanhados por grandesdesvalorizações, ou por aumentos nos preços dos servi-ços oferecidos pelo governo (como eletricidade, telefo-nia, água etc.), ou por qualquer tipo de aumento“artificial” na renda dos agentes econômicos (comosalários, por exemplo). Aqueles agentes afetados porum aumento no valor de sua renda imediatamente antesou depois do congelamento relutarão em aceitar essasperdas fixadas.

7 Cf. Lara Resende (1984a e 1984b); Arida e Lara Resende(1984a).

8 É importante notar que em 1984 não havia uma basediária de indexação no Brasil. Esse índice só foi criadoalguns anos mais tarde, como uma resposta natural domercado à inflação crescente. A teoria, então, estava àfrente de seu tempo.

9 As conexões políticas do próprio Sayad derivavam tantode suas ligações pessoais com o governador do Estadode São Paulo, cujo filho tinha sido seu colega naUniversidade de Yale, como de sua filiação ao PMDB.Sayad foi secretário de Fazenda de São Paulo de 1983 a1985, quando desenvolveu laços íntimos com a correntedesenvolvimentista (pró-crescimento econômico) dopartido. Foi o governador de São Paulo, Franco Monto-ro, quem sugeriu seu nome para ocupar a Seplan depoisque Tancredo Neves foi eleito presidente. Depois queSayad foi indicado, convidou imediatamente Lara Re-sende para auxiliá-lo na Seplan. Lara Resende recusou,uma vez que tinha uma clara preferência pelo trabalhono Bacen. Pérsio Arida, a escolha seguinte de Sayad,aceitou o cargo prontamente. Ele se tornou então oauxiliar econômico mais próximo de Sayad (cf. Solnik,1987; Sardenberg, 1987).

10 Na definição da nova equipe econômica, o presidenteeleito Tancredo Neves se recusou deliberadamente adesignar Lara Resende ou Arida para quaisquer dasposições-chave disponíveis. Ainda que eles fossem im-portantes economistas nas fileiras da oposição, seusnomes estavam associados com a idéia de política deestabilização heterodoxa, conhecida por ser abertamen-te rechaçada pelo FMI. Uma vez que Tancredo queriapromover uma abordagem mais ortodoxa para conquis-tar credibilidade internacional, não aceitou a recomen-dação inicial de Lara Resende por Sayad para dirigir oBacen (ver Sardenberg, 1987; Solnik, 1987). Lara Resen-de e Lopes foram vetados por Dornelles para integrar adiretoria do Bacen quando seus nomes foram propostospor Fernão Bracher — um potencial candidato parapresidir o Bacen antes da posse de Tancredo. MárioHenrique Simonsen também propôs Lara Resende paraa diretoria.

11 Funaro era, então, presidente do BNDES — o principalbanco federal de desenvolvimento. Ele já tinha trabalha-do tanto como secretário de Planejamento como deFazenda no governo de São Paulo, na gestão de AbreuSodré, no início da década de 70. A despeito disso, noinício dos anos 80 ele desempenhou um papel impor-

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tante como representante da comunidade empresarialde São Paulo no movimento pela restauração da demo-cracia (“Diretas-Já”).

12 A equipe econômica do Cruzado foi então formada por:Lara Resende (Bacen), Pérsio Arida (Seplan/Bacen),Luis G. Belluzzo (Ministério da Fazenda), João ManoelCardoso de Mello (Ministério da Fazenda), L.C. Men-donça de Barros (Bacen), Francisco Lopes (auxiliarinformal do grupo), alem de João Sayad (ministro doPlanejamento), Dilson Funaro (ministro da Fazenda),Fernão Bracher (presidente do Bacen), Edmar Bacha(IBGE) e Andrea Calabi (Seplan).

13 Entrevista com Pérsio Arida.

14 Pérsio Arida, apud Solnik (1987, pp. 13 e 71).

15 O gatilho foi acionado pela primeira vez em dezembrode 1986, logo depois que o governo lançou o entãochamado Cruzado 2 — um pacote de emergência,abrangendo um aumento nos impostos indiretos e emalguns preços públicos. O primeiro uso também foicaracterizado por uma alteração na legislação: o gatilhofoi ativado, mas os ajustes salariais deveriam se limitar a20%. O restante contaria como um resíduo, contribuin-do para a contagem dos próximos 20%.

16 Um aspecto importante da decisão de lançar um conge-lamento de preços é que até mesmo Chico Lopes, quehavia sido o mais importante defensor da terapia dechoque e um membro informal da equipe econômicaque planejou o Plano Cruzado, já tinha sido convencidoda adequação de uma estratégia (gradual) de reformamonetária ao invés de um congelamento de preços.Assim, a opção pelo congelamento de preços não foiaceita por nenhum dos expertos em política monetária ede estabilização envolvidos no Plano.

17 André Lara Resende, apud Solnik (1987, pp. 155-157).

18 Entrevista com Pérsio Arida.

19 Pérsio Arida, apud Solnik (1987, pp. 88-89); Luís G.Belluzzo, apud Solnik (1987, pp. 96 e 100); André LaraResende, apud Solnik (1987, p. 158).

20 Belluzzo, apud Solnik (1987, p. 102); Lara Resende,apud Solnik (1987, p. 166).

21 Entrevista com Pérsio Arida. A melhor ilustração doentendimento de Funaro é a definição de um teto paraas taxas de juros. Para cortar excesso de demanda,Funaro não concordava com a pressão de Arida e LaraResende por taxas de juros mais altas. Em resposta, eleoptou por pedir, em pronunciamento pela TV, que opovo poupasse ao invés de consumir (cf. Dilson Funaro,apud Solnik, 1987, pp. 141 e 148). Como industrial,Funaro tinha uma percepção muito particular da ordemeconômica ideal, que rejeitava algumas soluções contra-intuitivas requeridas pela alternativa heterodoxa. O fatode que ele não entendesse a lógica básica do programaexacerbava os conflitos com a equipe (entrevistas comArida e Lara Resende). Na visão de Arida, Funaro tinhapreconceitos típicos da comunidade empresarial. Eleveio de um mundo em que altas taxas de juros eliberalização comercial eram vistos como necessaria-

mente prejudiciais, um mundo em que demanda agre-gada crescente é um bem absoluto. Isso inclui umacrença implícita de que padrões de consumo maiselevados internamente geram um aumento no investi-mento, de modo que um aumento na oferta sempre vaise seguir. Não obstante, segundo Arida, uma análisemais desenvolvida sustenta que “o ritmo através do qualuma economia adiciona capacidade de oferta nuncaserá adequado para compensar o excesso de demanda”.Quando é claro o excesso de demanda, é necessáriocortá-lo, aumentando as taxas de juros no curto prazo.Obviamente algum investimento também será cortadocomo um subproduto de taxas de juros mais elevadas,mas as taxas de juros devem ser aumentadas de qual-quer maneira. É contra-intuitivo, nas palavras do pró-prio Arida. No caso de Funaro, a despeito de seucomprometimento cívico, sua intuição o levou na dire-ção errada (cf. Arida, apud Solnik, 1987, pp. 131-133).

22 Lara Resende, apud Solnik (1987, pp. 164-165); Bellu-zzo, apud Solnik (1987, p. 100).

23 Lara Resende, apud Solnik (1987, p. 172).

24 O programa supunha que o déficit público ajustado àinflação (déficit operacional do setor público) fossepróximo de zero. Isso implicava uma trajetória de rígidocontrole dos gastos públicos, mas “o comportamento dogoverno depois do lançamento do Cruzado foi deaumento de gastos públicos” (Arida, apud Solnik, 1987,pp. 83-84).

25 Lara Resende, apud Solnik (1987, pp. 164-165).

26 Belluzzo, apud Solnik (1987, p. 97); Lara Resende, apudSolnik (1987, pp. 162-163).

27 Naquele momento, o preço do dólar no mercado negroera 90% mais alto que a taxa de câmbio nominal fixadapelo governo. O nível de ágio era, pelo menos, trêsvezes maior que antes do lançamento do Cruzado.

28 Ver, a esse respeito, o documento lançado pela Seplanem julho de 1986, durante a crise do aumento dedemanda, intitulado “Aspectos macroeconômicos doPlano de Metas” (Revista de Economia Política, 6, 4). Odocumento foi chamado “Plano de Metas” e continhauma clara proposição de retomada da trajetória decrescimento rápido — 7% ao ano.

29 Na época em que Fernando Henrique Cardoso foinomeado ministro da Fazenda, ele ocupava o cargo deministro das Relações Exteriores. Cardoso foi substituí-do por Rubens Ricúpero, um diplomata que havia sidoassessor para assuntos econômicos internacionais dopresidente Sarney. Ricúpero renunciou em agosto de1994, depois que uma declaração sobre as conseqüên-cias eleitorais do sucesso do Plano Real sobre a candida-tura de Cardoso foi tornada pública pela televisão. Foientão substituído por Ciro Gomes, então governador doCeará pelo PSDB. Gomes permaneceu no Ministério daFazenda até a posse de Cardoso na Presidência, emjaneiro de 1995. É possível afirmar que Ricúpero eGomes não tiveram capacidade para afetar as linhasgerais da política de estabilização. Isso é facilmentedemonstrado pelo fato de que eles não tiveram autono-

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mia para alterar a equipe econômica indicada porCardoso, cujos integrantes permaneceram no governoaté o final do mandato do presidente Itamar Franco.

30 Ver, a esse respeito, as entrevistas de Franco, Arida, LaraResende, Lopes e Bacha nas coletâneas organizadas porBiderman et al. (1996) e Mantega e Rêgo (1999).

31 Entrevista com Pérsio Arida.

32 Entrevistas com Pérsio Arida, André Lara Resende eAlkimar Moura.

33 Entrevista com Pérsio Arida.

34 A Medida Provisória (MP) é uma fonte legislativa reser-vada ao Executivo federal no Brasil, por meio da qual ogoverno pode realizar ações imediatas sem a aprovaçãodo Congresso. As MPs se tornam leis por 30 dias,período durante o qual o Congresso deve debater evotar a medida. Mesmo que o Congresso não a rejeite,ela perde a eficácia depois de um mês. O Congressopode aprovar, emendar ou rejeitar a MP. Quandoaprovada ou emendada pelo Congresso, a MP retornapara sanção presidencial, que pode vetar todas asmudanças introduzidas pelo Legislativo. Se isso aconte-ce, o processo continua, sendo os vetos presidenciaisvotados pelo Congresso. Se os vetos presidenciais sãoderrubados pela maioria dos congressistas, o Executivonão pode se sobrepor.

35 Cf. Congresso Nacional, Emenda Constitucional de Re-visão no 1, 1994. O Congresso aprovou o Fundo Socialde Emergência após um longo debate. Ao final, mudan-ças marginais foram introduzidas pelos congressistaspara reduzir o ônus dividido por estados e municípios,mas as características principais do FSE foram preserva-das.

36 O FSE representou mais que a retenção de 20% dosimpostos federais pelo governo federal. Além disso,implicou também a transferência ao governo federal deuma proporção da participação dos estados e municí-pios na arrecadação resultante de impostos específicos,como propriedade de terras (ITR), renda (IR), transa-ções financeiras (IOF), contribuições sociais (PIS,PASEP, Cofins), produção (IPI) etc. Essas participaçõessão definidas na Constituição.

37 Cf. Exposição de motivos da criação da URV, nº 47, 27de fevereiro de 1994. Essa foi a apresentação oficial dareforma monetária, e essencialmente seguiu as idéias játornadas públicas em 7 de dezembro de 1993 (cf.Exposição de motivos no 395, que acompanhou o FSE).Antes de o Plano Real ser aprovado pelo Congresso, em27 de maio (Lei 8.880), o presidente Itamar Franco tevede enviar três MPs contendo o programa de estabiliza-ção: a MP 434 (27 de fevereiro), a MP 457 (27 de março)e a MP 482 (28 de abril).

38 Aqui, o governo considera o ataque ao déficit públicocom a primeira fase do plano de estabilização, à qual seseguiram a criação da URV (a segunda) e a reformamonetária, isto é, a mudança da moeda de fato (aterceira). Não se refere às emendas à Constituição, jáque não eram medidas de estabilização, mas de ajuste

estrutural. Prefiro separar o combate do déficit públicoem duas fases distintas, o Programa de Ação Imediata(PAI) e as medidas destinadas a equilibrar o orçamentofederal de 1994. Faço também duas qualificações: incluoas reformas constitucionais como parte do Real e acriação da URV no processo de reforma monetária. Eispor que falo de quatro fases, enquanto o governodestaca apenas três.

39 A esse respeito, cf. §111, Exposição de motivos no 395,de 7 de dezembro de 1993. Aqui, o ministro da Fazendaassume que “[n]ão é viável eliminar a indexação antes daestabilização dos preços. Eliminar a indexação sem ascondições para assegurar que os preços não aumenta-rão implica a eliminação da única proteção que aeconomia tem para enfrentar a inflação. Assim fazendo,haveria o risco de desorganizar a atividade econômicafundamentalmente e definitivamente”.

40 O governo definiu que a inflação “oficial” variaria entrea menor e a maior taxa verificada em três diferentesíndices de inflação: o IPC — Índice de Preços aoConsumidor (da Universidade de São Paulo), o IPCA —Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (doIBGE), e o IGPM — Índice Geral de Preços do Mercado(da Fundação Getúlio Vargas). Desses, apenas o IBGE éuma agência do governo federal; as demais são organi-zações independentes.

41 É importante notar que esse processo de mudança demoeda, ainda que complexo, não era estranho para obrasileiro comum. A novidade era que, pela primeiravez na história econômica recente do país, a mudançade moeda era anunciada antes da sua adoção, isto é,sem surpresa.

42 A MP 434 é a primeira legislação a respeito da reformamonetária. Imediatamente depois de ter sido promulga-da pelo Executivo, foi aplicada a salários em 1º de maio.

43 A MP 457 (29 de março) estabeleceu que o governodeveria anunciar a primeira impressão de reais com,pelo menos, 35 dias de antecedência, já que este fatofinalizaria o período de transição. A MP 482 fixava quea primeira impressão ocorreria em 1º de julho.

44 A Lei Antitruste (Lei 8884) foi um desses instrumentos.Cf. Oliveira (1996, pp. 60-63).

45 Cf. MP 434 (27 de fevereiro). Esta medida provisória foisubstituída depois de 30 dias pela MP 457. Depois de 30dias, a MP 457 foi substituída pela MP 482 (28 de abril).Cada uma dessas reedições subseqüentes envolveumudanças marginais, as mais importantes das quais sãomencionadas neste artigo. A Lei 8.880 é o resultado finaldo debate e aprovação no Congresso da MP 482. Opresidente então vetou algumas das mudanças introdu-zidas pelos congressistas e esses vetos foram mantidospelo Congresso.

46 Cf. MP 457, 29 de março de 1994.

47 Cf. Exposição de motivos do lançamento da URV,assinada pelo presidente Itamar Franco, especialmente§ 71-72.

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48 Naquele momento, o Brasil já estava de volta à situaçãode fortes entradas de capital (atraídos pelo nível maiselevado de juros internos), o que criou uma tendêncianatural à queda do valor do dólar em relação à moedanacional.

49 É essencial considerar aqui que a situação externabrasileira era totalmente diferente após 1992. Depoisdaquele ano, o Brasil pôde considerar o aumento dasimportações devido à inversão da situação da conta decapital. Como as importações só começaram a crescerdepois de 1993, com o final da recessão (1990-92), osníveis de reservas aumentaram consistentemente. Entre1992 e 1994, a conta de capital apresentou excedentesde US$ 25,3 bilhões (1992), US$ 10,1 bilhões (1993) eUS$ 14,2 bilhões (1994). Em 1991, a conta de capitalapresentava um déficit de US$ 4,5 bilhões.

50 Cf. Bacen (1995, p. 10).

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