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1 A esperança cristã e as questões atuais da escatologia: novas leituras e novas abordagens Aluno: Lucíola Paiva Tisi Orientador: Cesar Augusto Kuzma INTRODUÇÃO A sociedade hodierna é sociedade da produção e da técnica. As pesquisas científicas vieram trazer inovações em todas as áreas das ciências tecnológicas às humanas, trazendo mais longevidade conforto e qualidade de vida. Ao menos é assim que vive grande parte da população mundial enquanto ainda há áreas no planeta onde a fome e a desolação são a realidade cotidiana. O slogan tempo é dinheiro rege o mercado de trabalho, conduzindo o cidadão a um equívoco. Dinheiro e conforto são importantes, mas não geram felicidade, podem no máximo ser uma complementaridade. Tempo é vida só é vida quando fundamentada em relações. Para a vida humana ter sentido, ser frutuosa e gerar felicidade, quatro relações são então necessárias. O ser humano não vive só, nunca está só, precisa se relacionar com sua realidade vivida no seu cotidiano, com seu cosmos, do micro ao máximo hoje muito alargado devido ao desenvolvimento das telecomunicações que nos garantem informações dos fatos ocorridos do outro lado do planeta em tempo real. Precisa ser vigilante e atento aos pequenos eventos tanto humanos inter-relações como os da natureza que se manifestam a nossa volta provocando e construindo sua história. Dessa forma, o ser humano precisa se relacionar com os outros, com todos aqueles que o interpelam na sua realidade do dia a dia. Mesmo em silêncio nos comunicamos, por gestos e olhares, sinais faciais e corporais expressam uma linguagem, expressam nosso humor, nossas vontades, alegrias e desprazeres. Precisamos também nos relacionar com nós mesmos, com o nosso ego, com nossos desejos e aspirações e procurar dar conta de nos realizarmos de maneira justa e coerente. Mas o que seria para o ser humano essa possível realização? Desenvolvimento tecnológico? Conforto? Sucesso profissional? Todas essas perguntas se encontram sem resposta nos momentos de tribulação, nos momentos de crise profunda, onde olhamos o futuro e não vemos o desenvolvimento que gostaríamos, uma grande frustração nos invade e pode inclusive nos levar ao desânimo, desgosto pela vida, depressão ou até mesmo ao desespero e a morte. Encontramos então sentido na quarta e fundamental relação de nossa existência, que é

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A esperança cristã e as questões atuais da escatologia: novas

leituras e novas abordagens

Aluno: Lucíola Paiva Tisi

Orientador: Cesar Augusto Kuzma

INTRODUÇÃO

A sociedade hodierna é sociedade da produção e da técnica. As pesquisas

científicas vieram trazer inovações em todas as áreas das ciências tecnológicas às

humanas, trazendo mais longevidade conforto e qualidade de vida. Ao menos é assim

que vive grande parte da população mundial enquanto ainda há áreas no planeta onde a

fome e a desolação são a realidade cotidiana.

O slogan tempo é dinheiro rege o mercado de trabalho, conduzindo o cidadão a

um equívoco. Dinheiro e conforto são importantes, mas não geram felicidade, podem no

máximo ser uma complementaridade.

Tempo é vida só é vida quando fundamentada em relações. Para a vida humana

ter sentido, ser frutuosa e gerar felicidade, quatro relações são então necessárias. O ser

humano não vive só, nunca está só, precisa se relacionar com sua realidade vivida no

seu cotidiano, com seu cosmos, do micro ao máximo – hoje muito alargado devido ao

desenvolvimento das telecomunicações que nos garantem informações dos fatos

ocorridos do outro lado do planeta em tempo real. Precisa ser vigilante e atento aos

pequenos eventos tanto humanos – inter-relações – como os da natureza que se

manifestam a nossa volta provocando e construindo sua história. Dessa forma, o ser

humano precisa se relacionar com os outros, com todos aqueles que o interpelam na sua

realidade do dia a dia. Mesmo em silêncio nos comunicamos, por gestos e olhares,

sinais faciais e corporais expressam uma linguagem, expressam nosso humor, nossas

vontades, alegrias e desprazeres. Precisamos também nos relacionar com nós mesmos,

com o nosso ego, com nossos desejos e aspirações e procurar dar conta de nos

realizarmos de maneira justa e coerente. Mas o que seria para o ser humano essa

possível realização? Desenvolvimento tecnológico? Conforto? Sucesso profissional?

Todas essas perguntas se encontram sem resposta nos momentos de tribulação, nos

momentos de crise profunda, onde olhamos o futuro e não vemos o desenvolvimento

que gostaríamos, uma grande frustração nos invade e pode inclusive nos levar ao

desânimo, desgosto pela vida, depressão ou até mesmo ao desespero e a morte.

Encontramos então sentido na quarta e fundamental relação de nossa existência, que é

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geradora de vida, que traz a novidade, que tem o poder de tudo transformar com uma

inversão da lógica racional humana. É a nossa relação com o Deus Criador e Salvador,

que nos promete vida e vida em abundância (cf. Jo 10,10), o Deus de amor que tanto

amou a humanidade que não quis deixa-la órfã, adotando a todos como filhos (cf. Jo

17,21), e para tal se esvazia encarnando -se na história como homem (cf. Jo 11,14;

Fl2,6-11), para poder elevar a todos à sua imagem e semelhança dando a eles o domínio

sobre tudo, e a liberdade para agir e amar.

É Deus da esperança por ser a própria esperança, esperança que não se encontra

em algo que podemos alcançar com nossos esforços, com nossas ações. É o Deus que

nos eleva, que se faz presente em silêncio, que manso e humilde opera e age nos

detalhes de nossa existência gerando transformações, nos transformando também em

criadores, geradores e promotores de vida. É Deus a própria esperança na sua

encarnação em Jesus Cristo, Deus do inesperado, do inovador, do surpreendente. Deus

que vencendo a morte, venceu o mundo, nos transformando também em viventes. É o

Deus que nos convoca e invoca a ação nos potencializando para agir em seu nome,

como sua extensão, como sacramento – manifestação visível do Deus invisível – para

nos tornar agentes transformadores de justiça e paz, nos levando a construção da história

em direção ao seu Reino (cf. Is 35).

METODOLOGIA

Nossa pesquisa se desenvolve através da leitura e estudo de autores na área da

teologia cristã que produzam uma reflexão teológica na área da esperança e escatologia

cristã com o objetivo de poder identificar a visão própria de cada autor estudando suas

diferentes perspectivas e pontos de contato – levando em consideração expressões e

movimentos teológicos atuais que tenham em seu conteúdo epistemológico a

compreensão do Reino de Deus como esperança, justiça força vital, e plenitude – como

potencial ponto de transformação da sociedade atual.

Partindo da seleção desses dois autores, pertencentes a Igrejas cristãs de

confissões diferentes, pretendemos identificar suas perspectivas teológicas, verificar

suas semelhanças e diferenças, para isso foram realizados recortes dos

textos selecionados para obtenção de uma melhor compreensão do pensamento de cada

um deles no que diz respeito à esperança e à escatologia cristã. Nesses textos, procurou-

se averiguar e compreender o verdadeiro significado do que seria a

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esperança escatológica, no ponto de vista de cada um desses autores e sua visão

do porvir, o futuro escatológico que nos aguarda.

Esta esperança em que as Sagradas Escrituras fundamentam a escatologia está

no Cristo ressuscitado, que como sinal escatológico desperta em nós a expectativa para

a sua vinda futura, possibilitando-nos, na confiança de sua promessa, antever o futuro e

a nossa plena realização.

A escolha dos autores teve a intenção de verificar e demonstrar similaridades de

pensamento, mesmo em culturas e posicionamentos diferentes, estabelecendo um

diálogo entre eles, ressaltando os pontos comuns. Dando continuidade a essa pesquisa

escolhemos dessa vez dois autores de Igrejas cristãs diferentes da Igreja Católica.

Jürgen Moltmann é teólogo alemão, de tradição cristã, reformado, um

exponencial pensador europeu do século XX, estabeleceu com o Brasil um contato

diferenciado nos meios acadêmico e eclesiais. Tem desfrutado de amplo trânsito dentro

dos mais diversos segmentos da tradição cristã, do catolicismo pós concílio do Vaticano

II ao Pentecostalismo. Jürgen Moltmann nos mostra o sentido reverso da lógica de

Deus, um Deus que é amor e que a todos quer acolher, se revelando na obscuridade da

existência, na dor do oprimido, na angústia do erro. Deus que é amor e comunga com a

humanidade em sua maior vulnerabilidade e fragilidade de maneira ainda mais especial.

Onde achamos que há silêncio, ali ele se encontra e faz o surpreendente acontecer.

Paul Evdokimov nasceu em São Petersburgo, na Rússia, em 1901. Imigrou para

Paris em 1923, onde viveu até sua morte em 1970. Foi professor de teologia ortodoxa

no Instituto Saint Serge em Paris e observador convidado no Concílio Vaticano II. Entre

suas diversas obras encontramos: O Cristo Dentro do Pensamento Russo e O Espírito

Santo Dentro da Tradição Ortodoxa. Foi personalidade do ecumenismo e uma das

grandes figuras da Igreja ortodoxa Russa. A escolha desse autor se dá pelo fato de ser

sua teologia e espiritualidade intimamente vinculada à vida prática, as obras,

fomentadas e alimentadas pelo culto da liturgia. Sua obra por nós apresentada, fomenta

a percepção do ser humano, estimulando a perceber no livro da natureza e da vida a

poesia da ação de Deus no cotidiano, geradora de esperança e sentido, valorizando a

liturgia e os atos de louvor como diálogo privilegiado entre o ser humano e Deus.

Procuraremos com essas leituras fazer uma aproximação entre as concepções

desses autores a uma diretriz convergente de suas opiniões, atingindo o tema da

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esperança cristã e as questões atuais da escatologia, com novas leituras e novas

abordagens.

OBJETIVO

Observar e apontar as questões atuais da esperança cristã e da escatologia

aprofundando o estudo diante de novas leituras e abordagens que possam fomentar e

estimular a abertura do ser humano a um sentido gerador de novas perspectivas e

possibilidades de futuro. Procuramos buscar em teólogos cristãos de nossa

contemporaneidade novas chaves de leitura e interpretação que possam contribuir para a

compreensão atualizada da esperança cristã e as questões da escatologia.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Autor: Jürgen Moltmann Livro: O Deus Crucificado – A cruz de Cristo como base crítica da teologia cristã A ESPERANÇA NO INEXPLICÁVEL

A esperança cristã vai surgir no inexplicável, no profundo da experiência da dor. Do

lugar onde não se acredita haver saída. Torna-se assim difícil a compreensão para os

que não creem acreditar que onde o fim parece ser lógico à razão humana, a Graça de

Deus vai agir transformando a realidade de maneira surpreendente e nova.

Nossa fé começa aqui, onde os ateus dizem que ela acabou. Nossa fé começa naquela

dureza e poder; onde a noite da cruz, da solidão da tentação e da dúvida está por toda

parte! Nossa fé precisa nascer onde os fatos a abandonam; precisa nascer do nada.

Precisa experimentar o nada de tal forma que nenhuma filosofia niilista consiga

imaginar1.

O nosso mal-estar, depressão, desesperança, sentimento de vazio que nos penetra

o fundo do nosso ser, trazendo-nos não só a escuridão, mas também as sensações de

impotência completa, na maioria das vezes, provêm das realidades externas, do

sofrimento do outro que presenciamos, daqueles que nos são próximos, mas que nada

ou quase nada podemos fazer para modificar sua situação. Não nos damos conta que

quando a questão é conosco, nos sentimos provocados a uma reação, seja ela qual for,

1 MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: A cruz de Cristo como base crítica da teologia cristã

(tradução: Juliano Borges de Melo) – Santo André (S.P.): Academia Cristã, 2014, p. 57.

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mas vamos reagir mesmo que não seja em direção a melhor solução. No entanto,

quando se trata do outro a coisa muda de figura, nossa impassividade gera em nós a

sensação de impotência, que muitas vezes por não reconhecê-la desviamos nossa

atenção para satisfações vãs, distrações, que na ilusão de nos tirar daquele contexto nos

leva a um enorme e escuro caminho. No livro do Apocalipse, na carta a Laudiceia,

podemos ler:

15 Conheço tua conduta: não es frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente.

16 Assim

porque es morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca.17

Pois

dizes: sou rico, enriqueci-me e de nada mais preciso. Não sabes, porém, que és tu o

infeliz: miserável, pobre, cego e nu!18

aconselho-te a comprares de mim ouro purificado

no fogo para que enriqueças, vestes brancas para que te cubras e não apareça a vergonha

de tua nudez, e colírio para que unjas os olhos e possa enxergar.19

Quanto a mim,

repreendo e corrijo todos os que amo. Recobra, pois, o fervor e converte-te!20

Eis que

estou a porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e

cearei com ele, e ele comigo.21

ao vencedor concederei sentar-se comigo em meu trono,

assim como eu também venci e estou sentado com meu Pai em seu trono.22

Quem tem

ouvidos ouça o que o Espírito diz às Igrejas (Ap 3, 14-22).

Não podemos ler esse texto como ameaça, algo de castigo ou punição, mas como

exortação e alerta para a nossa vida, para a nossa felicidade e para um interagir no meio

social, procurando nele o melhor, fazendo movimentar a vida e encontrar no substrato

dos fatos ocorridos–situação vivenciada – um novo começo. Aí jaz a esperança cristã,

onde a misericórdia de Deus que é o próprio Cristo surge do inesperado, do escondido,

da camuflagem criada por nós mesmos e nos aponta a direção da ação.

O momento muitas vezes é difícil, paralisante, mas ao deixarmos de lado as

nossas impressões, nossas perspectivas de soluções, nossas culpas ou julgamentos, nós

conseguimos abertura para ver além da neblina causada por nós mesmos. Por medo,

entrando em desespero, obstruímos a condição de enxergar e acolher o amor de Deus.

Já no Antigo testamento vemos a interpelação do profeta Elias que vem em

socorro a viúva de Sarepta (1Rs 17, 7-15) não vem facilitar-lhe a situação, ela

deprimida, angustiada em profunda pobreza e carência está pronta a preparar para si e

seu filho ainda menino, a última refeição, para depois esperar a morte. Ao interpelá-la,

aparentemente, Elias pede, não dá. Pede que dívida com ele aquele último pão como se

pedisse que dividisse com ele a sua angústia, sua solidão, sua desesperança. Comem

juntos, vem a promessa de que não lhe faltará mais o alimento enquanto a seca não

acabar. A viúva não estará mais só, na realidade nunca esteve, mas foi necessário seu

completo esvaziamento – talvez de seu orgulho, medo, acomodação, etc... – Para que

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pudesse ver a realidade de maneira criativa e proativa. O milagre ocorreu, sua fome foi

saciada.

No Evangelho de Lucas, na narrativa dos discípulos de Emaús (Lc 24,13-35),

isso é colocado com muita clareza; a impotência é total; o fracasso, uma realidade. Não

há mais o que esperar. Na escuridão provocada pela cruz, podemos ver a luz do Cristo

brilhar em nós como semente, como gérmen a ser cultivado, que traz possibilidades

inimagináveis e que exige de nós parceria. É assim que Deus age, é através do ser

humano, em parceria com sua criatura, que por misericórdia e amor o eleva à sua

imagem, pois, é pelo ser humano que percebemos sua presença, semelhança, por torná-

lo também criativo. É na cruz que se realiza esse encontro, porque é na cruz que surge a

grande interpelação à nossa fé: Quem é esse homem? Homem que por sua confiança e

obediência nos revela a face do próprio Deus. É Jesus de Nazaré, o Cristo de Deus que

se entregou por todos nós e nos deu a salvação.

O crucificado foi compreendido à luz de sua ressureição, à luz de seu futuro com Deus

que vem em sua glória. Por isso, sua crucificação histórica foi entendida como evento

de julgamento escatológico e sua ressureição como antecipação oculta do reino

escatológico da gloria, no qual os mortos serão ressuscitados2.

O futuro que é aqui referido, sinal da ressureição do Cristo não pode ser

compreendido como história futura parte de uma transitoriedade que se supera com o

decorrer do tempo, mas como futuro último, escatológico. Como futuro da própria

história, antecipação da nova criação – novo céu e nova terra

1Vi então um céu novo e uma nova terra – pois o primeiro céu e a primeira terra se

foram, e o mar já não existe, 2Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade

santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para o marido. 3Nisto ouvi uma voz forte que, do trono dizia: “Eis a tenda de Deus com os homens. Ele

habitará com eles: eles serão o seu povo, e ele será Deus -com -eles, será seu Deus (Ap

21,1-3).

A Páscoa do Cristo é antecipação real do futuro qualitativo de Deus e da nossa

criação no meio da história de sofrimento do mundo. Isto é, a esperança trazida a nós

pelo Cristo, é promessa, que não apenas ilumina adiante o nosso caminhar histórico

gerando perspectivas e possibilidades, mas alimenta também um povo. Também não se

refere a uma realidade “extra-mundi” onde perdemos nossa referência e identidade. O

novo desconhecido da história que se abre a cada dia por tal esperança, ilumina também

2 Ibidem, p.203

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o passado, a estrada percorrida, os caminhos traçados por toda uma Igreja que se fez

presente na comunhão com sua origem, o Cristo crucificado.

A ressureição dos mortos que é constitutiva da fé do cristão, professada no

símbolo apostólico, ligou o próprio futuro de Deus com o passado de toda essa Igreja

padecente expressando esperança, não apenas a sua configuração atual ou futura, mas

em comunhão com todos aqueles que já passavam em Deus. A esperança na ressureição

é iluminada pelas aparições do Jesus depois de sua morte na cruz. O ressuscitado acende

a esperança dando animo, aquecendo os corações, sinalizando e comunicando o

caminho a ser transposto (cf. Lc 24,13-35). É esperança que se propaga apenas do

Cristo sobre vivos e mortos. “9

Com efeito, Cristo morreu e reviveu para ser o senhor

dos mortos e dos vivos” (Rm 14,9).

Ao falarmos de Jesus de Nazaré, falamos no sentido histórico, temporal, sua

origem, que vai iluminar seu futuro. No entanto, a fé escatológica fala do mesmo Jesus,

ressuscitado citado por Deus, Jesus como o Cristo de Deus. O que prepara o lugar para a

Vinda do Reino de Deus. O título cristológico ilumina sua origem e seu fim. (cf.

Ap22,13-14)

Vinculando Jesus de Nazaré ao seu passado em sua existência histórica,

percebemos por sua vida, paixão morte e ressureição o surgimento do Cristo

escatológico que vincula o seu futuro. Nesse sentido Jesus só é entendido como

fenômeno histórico na sua relação com seu futuro. A fé presente tem aí sua participação

com seu futuro, é responsabilidade – sua própria historicidade surge apenas da relação

escatológica com o futuro que ele descobre. Fala-nos do Reino, já iniciado, mas não

acabado, da experiência iniciada, mas não plenificada, não vivemos o fim da história e

sim no seu decorrer ligamos mesmo que de maneira inconsciente a lembrança do

passado as esperanças ou apreensões do futuro procurando explicar o passado com um

olhar no futuro situado no presente – “com a lembrança histórica, vinculamos um

esboço de toda história ao fim da história”3.

Como se sabe, radical relaciona-se as raízes de alguma coisa. Fé cristã radical só pode

significar ter a mais profunda relação com o Deus Crucificado. Isso e perigoso, ela não

assegura a aprovação de ideias, esperanças e boas intensões. Ela assegura em primeiro

lugar, a dor da conversão e da mudança total. (....) A Religião da Cruz, se e que a fé

pode ser chamada assim, a partir das razoes dadas, não é solene nem motivante no

sentido mais comum, mas traz escândalo, e na maioria das vezes aos companheiros de

3 Ibidem, p. 205

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fé dentro do próprio círculo. Mas ele traz, por meio desse escândalo, libertação em um

mundo criativo.4

Culturas que estão alicerçadas na produtividade e no prazer afastam a morte e a

dor do âmbito social do público deslocando para a vida privada a angustia, para que o

mundo não seja visto de forma negativa, como obstáculo.

Nesse contexto o Deus crucificado não e apenas estranho, mas impopular.

Provoca a saída da alienação, da mecanização da vida, das respostas fáceis, do

consumismo e no depositar no conforto e no prazer a felicidade. Causa estranhamento

nos alienados, habituados a alienação. A Fé na Cruz de Jesus Cristo e adequada a

libertar as pessoas de suas ilusões culturais, convidando-as a ultrapassar seus contextos

ofuscantes para o confrontamento com a verdade de sua existência e de sua sociedade

que pode ser atestada pela dor.

É na dor que experimentamos a realidade a nossa volta, realidade que não é por

nos criada nem imaginada, e através dessa dor que desperta em nos um amor que não

consegue ser indiferente a tudo, mas que se compadece com o feio, com o indigno de

amor para amá-lo. E dor que questiona o mais profundo de nós mesmos que no fundo

do nosso poço interior quer receber na penumbra o formato das pedras e a qualidade da

água que jaz em seu interior, e ao encontramos a nos mesmos deixando a apatia de lado

somos impelidos a sair, a ir ao encontro do outro para a novidade do encontro, para

celebrar as novas descobertas, que já estavam em nos, mas encobertas com a poeira da

negligencia, da falta de vigilância (cf. Fil 2,12-18).

12Portanto meus amados, como sempre tendes obedecido, não só na minha presença,

mas também particularmente na minha ausência, operai com temor e tremor, 13

pois é

Deus quem opera em vós o querer e o operar, segundo a sua vontade.14

Fazei tudo sem

murmurações nem reclamações, 15

para vos tornardes irreprováveis e puros, filhos de

Deus sem defeito, no meio de uma geração má e pervertida, no seio da qual brilhais

como astros no mundo,16

mensageiros da Palavra de vida. Assim no Dia de Cristo eu

terei a glória de não ter corrido nem ter-me esforçado em vão.17

Mas se o meu sangue for

derramado em libação, em sacrifício e serviço da vossa fé., alegro-me e me regozijo

com todos vós; 18

e vós também alegrai-vos e regojizai-vos comigo (Fl 2,12-18).

A Cruz de Deus na comunidade, na Igreja simboliza então uma contradição, que

conduz ao seu interior pela parte de Deus, que foi crucificado fora dela.

O símbolo da cruz visto sobre o altar nos remete então para o próprio Jesus

crucificado no Calvário entre dois ladrões há cerca de2000 anos fora dos muros de

4 Ibidem, p. 61

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Jerusalém, e por nos remeter ao Cristo nos leva a olhar nossa realidade com compaixão,

nos leva a perceber o sofrimento camuflado ou exposto dos homens e mulheres que

interagem na nossa vida, que participam da nossa história mesmo por um momento, mas

que comunga conosco vida. Ao refletir a cruz, começamos a nos dar conta da

responsabilidade de nossos pequenos e não tão pequenos atos e somos impelidos a

colocar em cada um deles uma dose de amos, de solidariedade, de compaixão.

A cruz, então, não é símbolo religioso, de cumprimento de ritos e preceitos, mas

símbolo de vida, e orientação de direção, de caminho, de lugar de culto que não é físico,

mas que e o próprio Cristo que se faz presente na pessoa do necessitado. E no amor–

serviço que encontramos o Cristo.

Todo símbolo aponta para outro que está além de si. Todo símbolo aponta para a

reflexão. O símbolo da Cruz remete a Deus, não aquele que está entre dois castiçais

sobre um altar, mas ao que crucificado entre dois ladrões no Calvário dos perdidos,

diante dos portões da Cidade (...) A Cruz e um símbolo que conduz para afora da Igreja

e anelo religioso para dentro da comunhão com os oprimidos e perdidos. E no sentido

reverso, ela e símbolo que chama os oprimidos e os ímpios para a Igreja e, por meio

dela, para a comunhão do Deus crucificado. Esquecida a contradição da cruz e sua

inversão de valores religiosos, ela deixa de ser símbolo e se torna um ídolo que não

convida mais a reflexão, mas que fomenta o fim da reflexão em um auto aprovação5.

Recentemente ouvi jovens afirmarem ser Cristo uma fantasia, e ainda um que

afirmava ser o amor uma fantasia dolorosa. Nas conversas foram lembradas a questão

da esperança, e tudo o que foi dito se referia a esperança em algo, em conquistas

humanas algumas muito éticas, politicamente corretas e de solidariedade, todas utopias

que seriam realizadas em um futuro que não seria o nosso.

No entanto, no reverso disso, ao olharmos para a cruz no símbolo que nos

remete a memória de alguém, que historicamente encarnado, trazia em si o próprio

Deus.6

6 Ele, estando na forma de Deus

não usou de seu direito de ser tratado como um deus 7mas se despojou,

tornando-se semelhante aos homens

e reconhecido em seu aspecto como um homem

5 Ibidem, p. 62

6 O interessante, o que me faz trazer aqui esta experiência e que essa esperança colocada por esses

jovens também no final da conversa foi considerada fantasia. Saíram tristes do encontro. Saíram com uma tristeza conformada como se fosse parte da realidade da vida não poder ter esperança em nada além das conquistas materiais que trazem o conforto e o bem-estar a uma vida de dor que não e nada além de um caminho para a morte.

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8abaixou-se

tornando-se obediente até a morte ,

à morte de cruz 9Por isso Deus soberanamente o elevou

e lhe conferiu o nome que está acima de todo nome 10

a fim de que ao nome de Jesus todo joelho se dobre

nos céus, sobre a terra e debaixo da terra, 11

e que toda língua proclame que o Senhor é Jesus Cristo

para a glória de Deus Pai (Fil 2,6-11).

Vemos que Ele penetra na nossa história para trazer esperança não só aqueles

que são bons e se consideram éticos, constituídos de um saber privilegiado, mas para os

oprimidos e desesperados, aos desajustados e marginalizados. É a esperança que

extrapola ritos litúrgicos e doutrinas, e é esperança que vai fazer movimentar os

privilegiados, gerando neles a vontade de agir e de andar na contramão, que vai suscitar

o movimento de amor, pela consciência de que a beleza de atitudes éticas e solidárias

não é para ser apenas planejada e discutida, pintada como num quadro para ser

admirado pendurado em alguma parede de museu para entrar assim na história. Será

preciso ação diferente, ação viva, laboriosa que envolve e se deixa envolver, ação que

move montanhas, daquelas que não se pode realizar sozinho e que por isso mesmo não

tem um único autor, precisam ser de todos para todos.

O Deus crucificado então não é ídolo ou símbolo de fantasia social, mas

exemplo de um mundo possível, convite a uma conversão histórica vivida pelo homem

simples de Nazaré, que há mais de dois milênios nos mostrou que o Reino de Deus era

possível já naquela época. É reino que nasce pequeno no coração de cada um

individualmente, no verdadeiro encontro com o Ressucitado, mas que pequeno como

um grão de mostarda, (Cf. Mc 4,30-32) pode germinar, brotar e frutificar gerando frutos

a trinta, sessenta ou cem por um. (Mt 13,1-9.19-23)

A mensagem a nós deixada por esse homem simples que é o próprio Deus é que

no encontro com ele, de forma madura, relacional, baseada na entrega e na confiança

fundamentada, não em preceitos ou legalidades, mas no amor que gera vida e que

constrói, nasce a esperança que floresce e extrapola através da relação na alteridade. Na

relação com o outro, meu próximo, com a realidade onde consigo agir, meu cosmo, na

relação comigo mesmo, gerando em mim uma nova consciência e que junto com Deus

em relação de amor posso transformar a realidade a minha volta ajudando a gerar um

mundo novo.

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Autor: Paul Evdokimov Livro: O silêncio amoroso de Deus

ESPERANÇA E LOUVOR

Deus está sempre a nossa procura, a provocar o encontro, toda a natureza

proclama sua beleza e bondade, sua poesia, usa do livro da natureza, para podermos

compreender sua grandiosidade, para nós é necessário apenas a abertura, a observação e

o acolhimento de sua ação, de seu amor.

Como imensa parábola, o mundo oferece uma leitura da “poesia” divina inscrita em sua

carne. As imagens das parábolas evangélicas ou a matéria cósmica dos sacramentos não

são fortuitas. As coisas mais simples são conformes a seu destino mais preciso. Tudo é

imagem e semelhança, participação na economia da salvação. Tudo é cântico e

doxologia.7

Ao ser humano é impossível falar ou mesmo compreender o inefável, a

grandiosidade de Deus. No entanto podemos perceber suas manifestações, sua presença,

sua comunicação e seu amor através da criação. No dia a dia, no cotidiano da vida, nos

detalhes com que somos interpelados a todo momento, visualizamos a sua ação. Todo

ser humano tem em si a semente do criador, a semente do Verbo, a semente do Espírito

Santo. Assim como o artista ao concluir sua obra imprime nela sua assinatura, Deus

pelo batismo imprime em nós seu selo, garantindo nossa proveniência e nosso fim. Por

ele fomos criados e para ele retornaremos. Somos criaturas dotadas de dons e carismas

que determinam não só essa nossa vocação comum – ser em Deus – mas também nossa

missão – a sua imagem e semelhança – criadora, criativa e transformadora da realidade.

Devemos cultivar o imenso campo do mundo, é nosso papel gerar também coisas novas,

desenvolver as artes e a ciência, construindo uma sociedade mais humana de forma que

sua existência seja querida por Deus. A nossa missão, de todo ser humano, deve estar

alicerçada no serviço, que vai além do serviço social. No sentido bíblico, serviço

significa ato de curar e restaurar o equilíbrio e a justiça. É comunhão entre todos

inserida no absolutamente novo – Reino de Deus – projeto do Pai e o absolutamente

desejável. Para aprofundar esse nosso raciocínio podemos ler nas sagradas escrituras:

7EVDOKIMOV, Paul – O Silêncio Amoroso de Deus – Tradução Ivo Storniolo – Aparecida; S.P.

Editora Santuário,2007, p. 114

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1Vi então um céu novo e uma nova terra – pois o primeiro céu e a primeira terra se

foram, e o mar já não existe. 2Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade

santa, uma Jerusalém nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido. 3Nisto ouvi uma voz forte que, do trono, dizia:

“Eis a tenda de Deus com os homens.

Ele habitará com eles;

Eles serão o seu povo,

E ele, Deus-com -eles, será o seu Deus (Ap 21,1-3).

O pensamento da tradição patrística, já descreve a grandiosa filosofia da

criação, é muito mais ampla do que uma justificação da cultura, ao se tornar ministério

de serviço do Reino de Deus, é a cultura que justifica a história, o homem e seu

sacerdócio – serviço e louvor – no mundo. Complementando nosso pensamento,

usamos a citação da carta aos Hebreus:

20 Nele temos um caminho novo e vivo que ele mesmo inaugurou através do véu, quer

dizer: através da sua humanidade.21

Temos um sacerdote eminente construído sobre a

casa de Deus.22

aproximemo-nos então de coração reto e cheios de fé, tendo o coração

purificado de toda má consciência e o corpo lavado com agua pura. 23

Sem esmorecer,

continuemos a afirmar nossa esperança, porque é fiel quem fez a promessa.24

Velemos

uns pelos outros para nos estimularmos à caridade e as boas obras .25

Não deixemos

nossas assembleias, como alguns costumam fazer. Procuremos, antes, animar-nos

sempre mais, à medida que vedes o Dia se aproximar (Hb 10, 20-25).

Preexistência ideal em Deus, chega a atribuir um valor especial à ação desses

“operários de Deus”, pessoas que se colocam a serviço da construção do Reino de deus,

lutando pela justiça e caridade, com o intuito de preparar sua secreta germinação. Trata-

se de construções – “partos”, o irromper da demostração do amor fraterno que manifesta

a grandeza e o amor de Deus, pela ação daquele que responde ao Pai – que pela fé nos

são próprios, revelando, ordenando a marcha coerente da história, chamando o mundo à

maturidade e a preparação para a vinda do Senhor. (cf. 2Pd 3,9-12)

O sentido de nossa existência não pode se limitar a sobrevivência, o ser humano

é dotado de dons e carismas que determinam sua vocação. Vocação esta que cabe a ele

cultivar, desenvolvendo suas potencialidades, inaugurando as novidades, das artes e das

ciências, construindo e contribuindo para a história da salvação, e dessa forma, uma

existência querida por Deus.

É a própria abundância da Igreja, não a autoridade, mas a fonte da superabundância, a

graça sobre graça, a liberdade sobre liberdade e que suprime toda “objetivação”, todo

conflito, todo tremor de escravo. 8

8 Ibidem, Pág. 143.

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O autor evidencia a importância de ser Igreja, como principal depósito da

esperança cristã. Procura realçar a atenção à opção de ser cristão, como adesão a Cristo

pensada como vivência eclesial, como Igreja de Cristo, notamos aqui uma ressonância

com a Igreja católica apostólica Romana, que atribui a Igreja o conceito de povo de

Deus, assim definida pelo concílio Vaticano II9. A autoridade então é dada à Igreja, que

paradoxalmente vai negar ser autoridade no sentido de poder de restrição, mas sim

como portadora da verdade com quem se identifica. Nesse sentido, não é autoridade

assim como Deus não é autoridade e nem Cristo não o foi, vemos isso nos evangelhos;

porque autoridade é sempre algo exterior a nós. Não é, portanto, autoridade que

aprisiona, mas a autoridade da verdade que liberta (cf. Gl 5,1).

Toda a sociedade, a imagem dos blocos políticos, coloca a liberdade como uma

escolha entre realidades. O ser humano é livre para escolher, mas uma vez que a escolha

é feita deixa de sê-lo – o ser humano já não é mais livre, se torna integrante,

aprisionado a realidade que escolheu. A boa nova do evangelho vem trazer uma

perspectiva inteiramente diferente: chama a conhecer, à relação com a verdade que

liberta de maneira radical. Isso significa que toda a oposição entre liberdade e

autoridade se coloca em um plano extra eclesial, em que a vitória de uma sobre a outra

não liberta mais. No entanto, no sentido da revelação cristã, onde nos é dito: “O espírito

sopra onde quer” (cf. Jo3,8) quem pode medi-lo? Conhecemos sua presença, mas

ignoramos sua ausência, talvez até inexistente.

Um dos mais antigos símbolos da fé cristã confessa: “e no Espírito Santo, a

Igreja” identificação mistérica, que tem por significado o crer na Igreja, em sua

superabundância, de “graça sobre graça” sem limites e medidas. “Porque a lei foi dada

por meio de Moisés; A graça e a verdade Vieram por Jesus Cristo” (Jo1,17).

A sede da verdadeira liberdade é a sede do Espírito Santo que liberta sem

medida (cf. Jo 3,34). São Paulo vai dizer: “ tudo me é permitido, mas nem tudo

convém” (cf. 1 Co 6,12). Deus não é lei ou proibição, no livro do Genesis:

E Iahweh Deus deu ao homem esse mandamento: “Podes comer de todas as árvores do

jardim. Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque no dia

em que dela comeres terás de morrer”. (Gn 2,16-17)

9 Constituição Dogmática Lumen Gentium capítulo II.

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Não é uma ordem que é dada, mas um conselho, uma advertência de destino

livremente escolhido. Não se trata então de uma simples desobediência, mas de falta de

atenção para com a comunhão viva com o Senhor da vida. Em sua atitude – o pecado –

o ser humano o discernimento da verdade, reivindicando uma autonomia moral pela

qual o ser humano nega sua condição de criatura.

A gravidade do pecado original é justamente transformar Deus em autoridade

exterior, em Lei que logicamente vai conduzir a transgressão Lei- Deus. Era preciso

então que Jesus – Filho – revelasse o verdadeiro rosto do Pai, rosto de autoridade -

justiça. O ser humano objetivou Deus e o colocou à distância, em espaço exterior. A

partir daí, procura a obscuridade e fabrica para si mesmo uma existência de prisioneiro.

Esconde-se. Vemos então em Jesus a proclamação da esperança e de libertação:

“Replicou-lhe Jesus: “ Está escrito: Adorarás ao senhor teu Deus, e só a ele prestarás culto” (Lc

4, 8).

Que tua vontade não seja feita”, e até Deus nada pode fazer contra essa palavra. Por

causa das razões de nosso coração sentimos que nossa visão de Deus se torna

inquietante, caso Deus não ame sua criatura até renunciar a puní-la por meio de uma

cruel separação; ela também é inquietante se Deus não salvar o amado sem tocar nem

destruir sua liberdade(...). O Pai envia seu Filho sabe sempre que até o inferno é seu

domínio e que a “porta da morte” é transformada em “porta da vida”. O homem nunca

deve cair no desespero; ele pode cair apenas em Deus e é Deus quem jamais se

desespera.10

O autor argumenta a questão da esperança falando do extremo da desesperança,

o desespero, o inferno pessoal causado pela própria pessoa, por negar sua vocação

inicial de criatura, filho de Deus. Mas há a misericórdia, e a de Deus é infinita, tão

imensa que envia seu filho para salvar da morte a humanidade (cf.Jo 13,2-30).

Deus nos escuta e está sempre ao nosso lado, mas respeita as nossas escolhas,

quer ser amado em retorno, no entanto, nada pode fazer contra a nossa vontade, sua

fidelidade amorosa o impede a ação. Daí o perigo de nossa onipotência, porque quando

usamos e acreditamos em nossas próprias forças, ele nada pode fazer além de subtrair as

suas e esperar que novamente encontremos o caminho na sua direção, nossa conversão.

Aí ele pode agir, e com sua misericórdia, nos elevar com seu abraço de Pai

misericordioso.

10

EVDOKIMOV, Paul. O Silêncio Amoroso de Deus (Tradução Ivo Storniolo): Aparecida/SP: Editora Santuário, 2007, p. 98-99.

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Eis meu irmão um sacramento que lhe dou: que a misericórdia sempre pese mais em sua

balança, até o momento em que você sentir em si mesmo a misericórdia que Deus tem

pelo mundo.11

Nos momentos de grande crise e aflição, muitas vezes nos desesperamos e

buscamos soluções imanentes, não admitindo não estar no controle, no comando da

situação. Dessa forma não permitimos a leitura das possibilidades que suscitam nosso

ser criativo não conseguindo ver a realidade diante de nós com maior clareza, não

conseguindo enxergar a “luz no final do túnel”. Vale a pena então pensar na viúva de

Sarepta (cf. 1Rs 17, 1-16) que como vimos anteriormente, não tendo mais condições de

sobreviver a seca, prepara-se para fazer sua última refeição e aguardar a morte. Aparece

então um forasteiro, Elias, que não traz presentes nem recursos materiais, muito ao

contrário, a interpela a partilhar com ele ainda o pouco que lhe resta e ainda pede a

prioridade de convidado. Traz, no entanto, consigo, a benção da esperança, da vida para

ela e seu filho ainda menino.

Quantas mães e mulheres de hoje que quando não abandonadas pelos maridos,

sofrem o abuso ou o descaso de toda a sociedade? São essas as viúvas de Sarepta, que

muitas vezes fazem o papel do próprio Elias, agindo em suas comunidades de forma

proativa, testemunhando a ação do Espírito Santo de Deus não apenas em suas vidas,

mas fazendo-o também presente em toda a comunidade. Mulheres que não se

aprisionaram nos seus problemas pessoais, mas que lutam para a melhorar sua realidade

mais ampla. Promovendo a vida, com movimentos de solidariedade e amor. São mães

de família que as vezes sem dizer uma palavra, mas com o testemunho da condução da

própria vida, de forma livre, coerente e responsável, encontram forças para não se

abater, testemunhando a alegria da esperança em sua comunidade com seu exemplo.

Mulheres que se esvaziam de seus sonhos e desejos e se colocam na luta para promover

a vida, para ir em socorro daquele que sofre, do caído, que se esquecem muitas vezes da

própria condição de dificuldade e conseguem olhar para baixo, para a dor de quem se

encontra em um abismo maior. Por que creem, acreditam na ressureição, acreditam no

Cristo esperança que ao ressuscitar dos mortos abriu a porta da felicidade, não há mais o

medo da morte, não há mais o que temer, o túmulo se encontra vazio, porém cheio de

sentido e esperança.

11

Santo Isaac, o Sírio – Sentenças, no48. Apud: EVDOKIMOV, Paul. O Silêncio Amoroso de Deus (Tradução

Ivo Storniolo): Aparecida/SP: Editora Santuário, 2007, p.99.

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Foi primeiramente em Jerusalém onde se encontraram os primeiros relatos sobre o

túmulo vazio; algo que eles tomaram como confirmação para a fé escatológica de Jesus,

que eles traziam. Conforme a análise da visão e aparição pascal, o sentido original da fé

pascal faz no fato das testemunhas oculares terem visto o Jesus terreno, crucificado e

morto, na glória do Deus que vem e tiraram as conclusões das experiências de chamado

e envio. Então é preciso dizer que Jesus ressuscitou para o futuro de Deus e que ele foi

visto e crido como representante presente desse futuro de Deus, do novo homem livre e

da nova criação(...) Ele ressuscitou no “Juízo final de Deus”, do qual fé e querigma

testemunham.12

A esperança cristã envolve o Cristo como um todo, em toda a sua integralidade:

nascimento – encarnação – sua vida e missão, paixão, com todo o sofrimento que a

envolve, morte e ressurreição – glorificação por Deus Pai. É a reflexão de todo o evento

do Cristo que fundamenta o sentido e a esperança que é o próprio Cristo.

Na visão pós-pascal do Cristo ressuscitado e que se percebe, se fecha toda a

compreensão de sua pessoa, de sua missão, não é, portanto, em um aspecto ou outro

isolado. O Cristo precisa ser lido e compreendido em sua integralidade para se poder

perceber a redenção e salvação do ser humano trazida por ele por meio de seu amor

obediente. Ele venceu a morte! O túmulo está vazio! Nele a morte perde seu sentido!

1Cesse de perturbar -se vosso coração!

Credes em Deus, credes também em mim. 2na casa de meu Pai há muitas moradas.

Se não fosse assim, eu vos teria dito,

Pois vou preparar-vos um lugar, 3e quando eu for, e vos tiver preparado o lugar,

Virei novamente e vos levarei comigo,

afim de que, onde eu estiver, estejais também. 4E para onde vou, conheceis o caminho. (Jo 14,1-4)

Nessa compreensão faz-se necessário o movimento de quem crê, não se admite

mais a esterilidade da semente, é preciso enxergar com os olhos da fé, é através desse

olhar que se faz possível vislumbrar o futuro em Deus, um futuro com ele e nele, é

necessário penetrar em sua realidade e viver já a promessa.

24 Em verdade, em verdade, vos digo:

Se o grão de trigo que cai na terra não morrer,

Permanecerá só;

Mas se morrer

Produzirá muito fruto. ( Jo 12,24)

O vazio do túmulo não é ausência e sim presença que transborda barreiras,

presença sem limites que invade o coração de todo que a ele busca, e que confia. É grito

EVDOKIMOV, Paul. O Silêncio Amoroso de Deus (Tradução Ivo Storniolo): Aparecida/SP:

Editora Santuário, 2007, p. 209/210.

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de júbilo e de esperança. É experiência que faz esquecer protocolos e preceitos, que nos

faz agir como Pedro em (cf. Jo 21,7) que ao perceber a presença do Senhor, atirou-se ao

mar, mergulhando, para ir ao seu encontro em contraponto do mesmo Pedro que

amando não compreendia e por isso afunda ao tentar caminhar em sua direção (cf. Mt

14,25-33). Agora, já não há mais o medo de se afogar, de se envergonhar, de morrer. O

Cristo é referência, opção fundamental, caminho único a se seguir porque se percebeu

que nele está a verdade e a vida! Não há então barreiras para o amor.

Optar pelo Cristo é optar pelo Reino de Deus, é fazer dele também a nossa

missão, é se converter em igreja que orienta e anuncia a esperança, o Cristo esperança

que no vazio de uma sepultura abre a porta para a felicidade do encontro, fundamento

de toda a criação, o encontro e o abraço com o próprio Deus.

CONCLUSÃO

“Andai como filhos da luz. Pois o fruto da luz consiste em toda bondade e

justiça e verdade” (Ef 5,8b-9). A esperança cristã está diretamente ligada a proposta

cristã de salvação. Não apenas na perspectiva da salvação em plenitude, quando Deus

será tudo em todos (cf. 1Cor 15,28), mas salvação no cotidiano do dia a dia, em

pequenas doses que revelam essa perspectiva. Uma salvação em forma de semente, que

precisa ser plantada, semeada e cuidada para que seja frutuosa. É salvação iniciada,

germinando como se uma árvore, que inicia sua existência na semente escondida na

terra, mas que contém o potencial da árvore inteira contida em si. Assim como podemos

pensar em todo o esforço da semente para chegar a luz do sol e se fazer broto, podemos

pensar em desenvolver nossas potencialidades, nossos dons, nossos talentos, para

também cumprirmos nossa verdadeira vocação. Vocação de filhos e amados, a imagem

e semelhança do criador, que tem capacidade criativa e criadora.

O Cristo, nossa esperança, rosto humano do Pai veio trazer, se tornar essa

esperança anunciando e concretizando o Reino de Deus que é nossa responsabilidade

fomentar e construir. Pela Cruz, nos liberta do medo, da morte, dos condicionamentos

que aprisionam. Foi para a liberdade, que Cristo nos libertou (Gl 5,1) Paulo ainda nos

exorta, a permanecer firmes sem nos deixarmos nos submeter ao jugo da escravidão. A

escravidão dos condicionamentos e valores culturais destorcidos, de tradições

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opressoras, do poder que subjuga e quer dominar, condicionados e acomodados a

realidade do consolo material e do conforto, nos colocamos em situação de uma

sobrevivência sem sentido, deixando a vida passar nos satisfazendo por prazeres

passageiros e relações fugazes. No entanto, libertos, com o coração cheio da esperança

que é o próprio Cristo, somos chamados a vida, nos tornamos viventes e agentes na

história, trabalhando e respondendo por sua construção caminhando para o Reino. No

Cristo encontramos o caminho, a verdade e a vida (cf. Jo 14,6) caminho que leva a

comunhão com o Pai e a unidade com ele. Vida que será plenificada, não substituída,

onde teremos preservada nossa essência, aquilo que verdadeiramente somos, nossa

identidade mais profunda, nossa perseidade. O que somos, acreditamos e fazemos não

será descartado, esquecido ou abandonado em uma vida anterior, ao contrário, a

responsabilidade de nossas atitudes nos constitui, nos modela e nos transforma. Daí a

necessidade da opção fundamental pelo Cristo, e a necessidade de colocá-lo no centro

de nossa existência.

Para o cristão a vida é essa que se plenificará. É uma só e precisa ser vivida com

responsabilidade e coerência, vida que será perpetuada e estendida à uma realidade que

por ora não compreendemos por fugir a nossa capacidade. Encontramos aí caminhando

juntos a esperança e o louvor, a fé na promessa, o reconhecimento e a gratidão de nossa

criaturidade que nos permite a abertura e o diálogo silencioso com o criador, permitindo

que ele se manifeste em nós, nos potencializando e conduzindo para a realização de seu

projeto que é também o sonho e a felicidade de todo ser humano, a vida em plenitude,

onde não há medo, não há morte, pois essa também foi vencida pela cruz e ressurreição

do Cristo que pelo Pai foi assim glorificado.

Esperança e louvor se encontram também unidos de maneira intrínseca na

liturgia, oração pública e comunitária, lugar onde a Igreja reunida em ação de graças se

abre ao diálogo e ao encontro com o Deus uno e trino da fé cristã. É lugar privilegiado

onde pela ação ritual fazemos memória do Mistério Pascal, celebrando a encarnação,

vida paixão morte e ressurreição do Cristo que é o próprio Deus. Nos colocando então

em postura de escuta e resposta, em diálogo com Deus Criador e Salvador que ama seu

povo e quer permanecer no meio dele se manifestando pelo seu Espírito como alimento,

em comunhão, dividindo com ele suas dificuldades, angústias, desafetos e aflições,

trazendo consolo e sinalizando novas possibilidades, perspectivas de esperança de um

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mundo novo (cf. Jo1,51) fundamentado na promessa do Antigo testamento renovada

pela cruz de Cristo.

8Lembra-te de Jesus Cristo,

Ressuscitado dentre os mortos, da descendência de Davi. (...) 11

Fiel é esta palavra: Se com ele morremos,Com ele viveremos. 12

Se com Ele sofremos, com ele reinaremos.

Se nós o renegamos, também ele nos renegará. 13

Se lhes somos infiéis,Ele permanecerá fiel, pois não pode renegar-se a si mesmo.

(2Tm 2,8.11-13)

A maioria das religiões e culturas por mais diferentes que sejam uma das outras

têm em comum a crença na vida após a morte ou em um porvir ou uma continuidade,

vida eterna. No cristianismo, no entanto, há a crença em uma vida em continuidade com

essa que já vivemos, que vai se constituindo, se desenvolvendo em processo crescente, a

caminho da plenitude que já é iniciado em nossa existência terrena, que no porvir, será

alcançada com a completude de nossas realizações como seres humanos que somos. Em

comunhão com o Criador.

Ajudar construir um mundo melhor e mais justo, trabalhar para isso, é então

necessidade, é obrigação de todos, procurar realizar mudanças mesmo que pequenas no

momento, mas que germinam como a erva que se espalha sobre a terra, reverbera e

aquece os corações trazendo vida. Pequenas ações e atitudes irradiam e podem alcançar

distâncias inimagináveis, devido ao tamanho e ao poder da graça e do amor de Deus. A

semente de mostarda, a menor de todas as sementes se transforma na maior das

hortaliças, grande o suficiente para abrigar os ninhos dos pássaros (Mt 13,31-32).

As leituras dos dois autores por nós escolhidos, nos trazem a luz para o sentido

da esperança ligada ao louvor, louvamos o que amamos, amamos o que conhecemos. É

somente no amor que podemos esperar no que não conseguimos explicar, somente no

amor encontramos a fé que nos anima e nos dá coragem de traçar nossa história

rompendo barreiras, vencendo obstáculos, como o objetivo de encontrar o amado.

Somente assim temos a coragem amorosa de seguir adiante na fé rumo a promessa com

a fidelidade que se torna identidade.

REFERÊNCIAS:

MOLTMANN, Jürgen – O Deus Crucificado – A cruz de Cristo como base crítica

da teologia cristã – tradução: Juliano Borges de Melo – Santo André (S.P.), Academia Cristã; 2014

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EVDOKIMOV, Paul – O Silêncio Amoroso de Deus – Tradução Ivo Storniolo –

Aparecida; S.P. Editora Santuário; 2007.