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Editora CRV versão para revisão do autor Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão A EDUCAÇÃO FÍSICA NOS DOCUMENTOS CURRICULARES NACIONAIS DO ENSINO MÉDIO 1 Marcos Garcia Neira O entendimento de que o currículo é um dispositivo que exerce grande influência na constituição das identidades desencadeou uma série de políticas educacionais materializadas em documentos oficiais. Em que pese as singula- ridades, os textos que vieram a público nos últimos vinte anos anunciam, por meio das concepções embutidas, o cidadão ideal para construir ou consolidar um determinado modelo de sociedade. O presente capítulo se debruça os documentos curriculares de Educação Física no Ensino Médio elaborados pelo Ministério da Educação nesse pe- ríodo. Sem qualquer intenção de anunciar a verdade definitiva ou a “melhor interpretação”, submete os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (BRASIL, 1999), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006) e a versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) à análise cultural. Nessa vertente investigativa, a preocu- pação recai na maneira como um conjunto de forças opera para produzir e disseminar significados acerca das coisas do mundo, inferindo e avaliando não só as condições de emergência de um determinado discurso, como seus possíveis efeitos. Antes de adentrar às análises, é importante mencionar a raridade de estudos sobre os textos em questão. É interessante conjecturar as razões do silêncio da comunidade científica a respeito de um assunto de tamanho relevo. Afinal, não é segredo o incômodo que assola os professores de Educação Física diante das turmas do Ensino Médio. São várias as denúncias do abandono docente, desaparecimento da carga horária ou, até mesmo, opinião ruim que os estudantes nutrem sobre as aulas do componente nessa etapa da Educação Básica. Em sua maioria, julgam-nas desnecessárias ou lhes atribuem sentidos como relaxar, recrear-se, treinar para competições etc. Uma prova irrefutável 1 Dedico este texto à memória de Mauro Gomes de Mattos. Voltar aos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio levou-me a reviver as discussões travadas durante a elaboração há exatos vinte anos. O documento foi escrito num velho computador 386 que o amigo comprara para esse fim. Ele residia num pequeno trailer, situado num camping em Cotia (SP), o que me obrigava a lá permanecer nos finais de semana e feriados, quando digitava os rascunhos escritos à mão.

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A EDUCAÇÃO FÍSICA NOS DOCUMENTOS CURRICULARES NACIONAIS DO ENSINO MÉDIO1

Marcos Garcia Neira

O entendimento de que o currículo é um dispositivo que exerce grande influência na constituição das identidades desencadeou uma série de políticas educacionais materializadas em documentos oficiais. Em que pese as singula-ridades, os textos que vieram a público nos últimos vinte anos anunciam, por meio das concepções embutidas, o cidadão ideal para construir ou consolidar um determinado modelo de sociedade.

O presente capítulo se debruça os documentos curriculares de Educação Física no Ensino Médio elaborados pelo Ministério da Educação nesse pe-ríodo. Sem qualquer intenção de anunciar a verdade definitiva ou a “melhor interpretação”, submete os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (BRASIL, 1999), as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006) e a versão preliminar da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) à análise cultural. Nessa vertente investigativa, a preocu-pação recai na maneira como um conjunto de forças opera para produzir e disseminar significados acerca das coisas do mundo, inferindo e avaliando não só as condições de emergência de um determinado discurso, como seus possíveis efeitos.

Antes de adentrar às análises, é importante mencionar a raridade de estudos sobre os textos em questão. É interessante conjecturar as razões do silêncio da comunidade científica a respeito de um assunto de tamanho relevo. Afinal, não é segredo o incômodo que assola os professores de Educação Física diante das turmas do Ensino Médio. São várias as denúncias do abandono docente, desaparecimento da carga horária ou, até mesmo, opinião ruim que os estudantes nutrem sobre as aulas do componente nessa etapa da Educação Básica. Em sua maioria, julgam-nas desnecessárias ou lhes atribuem sentidos como relaxar, recrear-se, treinar para competições etc. Uma prova irrefutável

1 Dedico este texto à memória de Mauro Gomes de Mattos. Voltar aos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio levou-me a reviver as discussões travadas durante a elaboração há exatos vinte anos. O documento foi escrito num velho computador 386 que o amigo comprara para esse fim. Ele residia num pequeno trailer, situado num camping em Cotia (SP), o que me obrigava a lá permanecer nos finais de semana e feriados, quando digitava os rascunhos escritos à mão.

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desse fato é a pouca divulgação de relatos de prática no Ensino Médio na-queles eventos que congregam professores em atuação. Esse quadro tende a se agravar no futuro próximo, diante do risco de supressão da Educação Física com a Reforma do Ensino Médio imposta através da Lei nº 13.415 de 16/02/2017. Sobre o assunto, não são só os acadêmicos que silenciam, mas o próprio Conselho Federal de Educação Física, que deveria exigir o direito dos estudantes às aulas do componente, está mais preocupado em perseguir os professores que efetivamente trabalham nas escolas, exigindo a inscrição no órgão e o consequente pagamento.

A Educação Física nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM)

A primeira edição do documento foi publicada pela extinta Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Ministério da Educação, em 1999. Enquanto o Ensino Fundamental dedicou cada volume a um componente curricular, o texto curricular do Ensino Médio preferiu a organização em áreas, cada qual reunida em um volume específico: Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias; e Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, onde figuram os textos que orientam o ensino de Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, Artes, Informática e Educação Física. Uma encadernação contendo as Bases Legais desse segmento também compôs a publicação. Nele, entre outras questões, se explicitou que “as atividades físicas e desportivas [eram tomadas] como domínio do corpo e como forma de expressão e comunicação”.

No ano seguinte, uma nova edição foi publicada simultaneamente nas versões impressa e digital, sendo este o formato mais conhecido e ainda disponível no portal eletrônico2 do Ministério da Educação. A estrutura do documento dedicado à Educação Física repete a das demais disciplinas. Em poucas páginas e sob o título Conhecimentos da Educação Física constam os argumentos que fundamentam a concepção que perpassa a proposta e, ao final, são relacionadas as Competências e habilidades a serem desenvolvidas.

Os primeiros parágrafos não deixam dúvida que o modelo esportivista hegemônico no Ensino Médio dava sinais de esgotamento, contrariando o objetivo dessa etapa que, segundo o anunciado no Artigo 35 da Lei de Di-retrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394 de 20/12/1996, seria “a consolidação e aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino Fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos”.

2 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/14_24.pdf>. Acesso em: 01 set. 2018.

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Podemos constatar uma forte inclinação ao trabalho com os esportes e, prin-cipalmente, a mesma metodologia de ensino – a execução de fundamentos, seguida de vivência de situações de jogo. Contudo, é possível constatar em algumas escolas um aprofundamento tático das modalidades, o que nos dá a impressão de que o sentido da Educação Física passa a ser o compor-tamento estratégico durante a prática desportiva. Essa especialização, no entanto, não se mostra eficaz pois, de certa forma, podemos dizer que só é possível “jogar taticamente” aquele que domina os fundamentos do jogo. Não conseguimos imaginar um sistema 4 x 2 no voleibol, se os alunos não internalizaram a recepção, o levantamento e a cortada. Tem-se então, a característica recreativa da maior parte das aulas (BRASIL, 1999, p. 65-66).

Os PCNEM responsabilizam essa vertente de ensino pelo afastamento dos estudantes das aulas, o que não significa desinteresse dos jovens pelas práticas corporais, afinal muitos deles acumulam experiências extraescolares que lhes trazem satisfação e aprendizado.

Na visão oficial, a Educação Física deverá alinhar-se aos objetivos do Ensino Médio, isto é, proporcionar aos estudantes o “aprofundamento da sistematização do conhecimento”, afinal, é nessa etapa que “o aluno começa a compreender que há propriedades comuns e a lidar com a regularidade cientí-fica” (BRASIL, 1999, p. 67). Tal raciocínio constitui um primeiro argumento empregado para dar sustentação à concepção oficial. Em segundo lugar, os PCNEM buscam apoio no movimento europeu das duas últimas décadas do século passado que buscou a promoção da saúde na escola através da melhoria da aptidão física do alunado. Com esse sentido, afirma que

[...] uma Educação Física atenta aos problemas do presente não poderá deixar de eleger, como uma de suas orientações centrais, a da educação para a saúde. Se pretende prestar serviços à educação social dos alunos e contribuir para uma vida produtiva, criativa e bem-sucedida, a Educação Física encontra, na orientação pela educação da saúde, um meio de con-cretização de suas pretensões (p. 68).

O currículo federal parte do pressuposto que a função da Educação Física escolar é formar praticantes de atividades físicas, e não mais espectadores como, na interpretação oficial, vinha acontecendo. A defesa dessa concepção dá vazão ao discurso alarmista que relaciona a falta de atividade física à obe-sidade, aumento da incidência de doenças cardiovasculares e demais males causados pelo sedentarismo juvenil. Bem se sabe que tal produção discursiva tem como meta prioritária a formação de um certo tipo de sujeito, aquele que gerenciará sua rotina de exercícios e hábitos alimentares com vistas a bem exercer suas tarefas laborais sem afastar-se do posto de trabalho ou despender os parcos recursos financeiros do Estado.

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Tal representação acerca do papel que a escola pode exercer na promoção de um estilo de vida ativo entrou em voga no final da década de 1990. A cha-mada pedagogia do fitness3, procura impor como única possibilidade a adoção de uma dieta equilibrada e a incorporação da atividade física regular como forma de prevenir doenças que possam ser desencadeadas pelo sedentarismo.

Em termos didáticos, os PCNEM reconhecem a importância de elaborar um plano de trabalho envolvente a partir do perfil dos estudantes e coerente com os objetivos que se pretende alcançar. Para tanto, amparam-se na fle-xibilidade permitida pela LDB e chegam a propor a elaboração de projetos didáticos voltados à prática de atividades físicas. Como exemplo, sugerem que os estudantes trabalhadores do ensino noturno participem de programas a promoção de exercícios físicos com vistas à “reposição de energias, estímulos de compensação e redução de cargas resultantes do cotidiano profissional” (BRASIL, 1999, p. 71). Repudiando o senso comum, apoia-se em resultados de pesquisas para afirmar que a prática de atividades físicas à noite estimula a secreção de endorfina gerando efeitos positivos no organismo.

A justificativa reside no avanço tecnológico e a consequente modificação de hábitos, o que acaba por desencadear processos de estresse, ansiedade, frustração e depressão, prejudicando as relações interpessoais. Sem falar nos problemas respiratórios e musculares, distúrbios imunológicos, hipertensão arterial, arteriosclerose e cardiopatias. Na visão oficial, essas questões podem ser enfrentadas através de “programas escolares que valorizem o aprendizado e a prática de exercícios de elevação e manutenção da frequência cardíaca em limites submáximos, alongamento e flexibilidade, relaxamento e compensa-ção” (BRASIL, 1999, p. 71).

O documento curricular estabelece uma relação entre essa proposta e a recuperação do prestígio da Educação Física. Sugere que os resultados dos projetos realizados ganhem visibilidade em eventos como feira de ciências, painéis, cartazes ou a criação de eventos exclusivos como semana da saúde, sábados recreativos etc.

Ao longo das páginas, as recomendações metodológicas se misturam aos elementos conceituais. Desde a importância do trabalho em grupo, até sugestões de como envolver os estudantes na busca de respostas às dúvidas sobre os assuntos abordados. Na maioria dos casos, o documento oficial busca apoio no construtivismo pedagógico como base teórica para as ações didáticas. Tome-se como exemplo o fragmento a seguir:

3 César e Duarte (2009) pautaram-se nas noções de biopolítica e homo oeconomicus de Michel Foucault para identificar os dispositivos empregados pela escola para produzir sujeitos alinhados ao pensamento neoliberal.

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A proposição pelo professor de atividades de complexidade progressiva leva a uma necessidade de organização mental por parte do aluno. Constantes desafios aos alunos provocam desequilíbrios que precisam ser resolvidos e é nessa necessidade de voltar ao equilíbrio que ocorre a construção de pensamento (p. 79).

Com o mesmo sentido, os PCNEM afirmam:

É a atividade que deve adequar-se ao aluno e não o aluno à atividade. Ou seja, o professor, ao se manter rígido em atividades desinteressantes aos alunos, termina por afastá-los da disciplina. Não podemos, no entanto, esquecer que a falta de interesse origina-se, na maioria das vezes, no desconhecimento. Nesse sentido, o professor é responsável pela aproximação do educando a novos conhecimentos que contribuam com sua formação (p. 80-81).

No excerto acima são perceptíveis as influências do tecnicismo educa-cional, o qual responsabiliza o docente pela aprendizagem dos estudantes por meio da promoção de atividades de ensino atraentes e motivantes. Em meio ao discurso da educação para a saúde, sobressai a intenção de que, concluída a escolarização obrigatória, o cidadão possua sólidos conhecimentos sobre a cultura corporal. A questão que se coloca é qual o entendimento que se tem desse conceito. Afirma que o corpo é modo e meio de integração do indivíduo no mundo. É com o corpo que ele ouve, vê, fala, percebe e sente as coisas. As relações se estabelecem com os outros corpos por meio da comunicação e da linguagem corporal. “Os gestos, as posturas e as expressões faciais são criados, mantidos ou modificados em virtude de o homem ser um ser social e viver num determinado contexto cultural” (BRASIL, 1999, p. 75). A tentativa de travar um diálogo com a compreensão de que o corpo é uma construção cultural toma como base a Semiótica. Em função disso, proliferam as menções à ideia de que a leitura dos gestos consiste em acessar os seus verdadeiros significados. “Sentir as emoções, transmitir vontades, decidir sobre o que quer fazer e explorar as potencialidades com vigor são mensagens emitidas pelos alunos por meio dos movimentos corporais” (BRASIL, 1999, p. 75).

O ter e o poder corporal ainda predominam sobre o ser-corpo que pensa, age, sente e se comunica pelos seus gestos e expressões. O complexo organismo humano se relaciona com o mundo movendo-se. Quando o corpo se move, os sentidos captam informações. As terminações neurais enviam informações para os córtices sensoriais da visão, da audição, do paladar, do olfato e das sensações somáticas. Os sentidos possibilitam ler o mundo (p. 76).

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A certa altura, o texto faz uma inflexão, abandona a Semiótica e passa a pautar-se na Antropologia Social, influenciando as noções de corpo, lingua-gem corporal e, consequentemente, função da Educação Física. “Em primeiro lugar, deve-se levar em conta a relação do corpo e meio social: é aqui que se inserem o beijo, o abraço, o jogo de futebol, a brincadeira de criança ou os códigos motores utilizados por determinada comunidade” (BRASIL, 1999, p. 78). Literalmente, os PCNEM desejam do aluno do Ensino Médio “uma ampla compreensão e atuação das manifestações da cultura corporal” (BRASIL, 1999, p. 78). Assim, cabem propostas como “a elaboração de jogos, resgate de brincadeiras populares, narração de fatos e elaboração de coreografias etc.” (BRASIL, 1999, p. 78).

O flerte com as Ciências Humanas se explica pela tentativa de justificar a inserção da Educação Física na área das Linguagens, Códigos e suas Tecno-logias. É justo lembrar que o referencial disponível à época não possibilitava ir além de meras elucubrações teóricas. Prova disso é a absoluta desconexão entre elas e as competências e habilidades previstas, quase todas alinhadas à educação para a saúde. Ilustrações não faltam. “Assumir uma postura ativa na prática de atividades físicas, e consciente da importância delas na vida do cidadão” (BRASIL, 1999, p. 87) foi classificada como competência de representação e comunicação, enquanto “compreender o funcionamento do organismo humano de forma a reconhecer e modificar as atividades corpo-rais, valorizando como melhoria de suas aptidões físicas” (BRASIL, 1999, p. 87) encontra-se no grupo de competências voltadas para a investigação e compreensão.

Considerando que o debate cultural se instalara no campo, não há como negar que os PCNEM de Educação Física representam um retrocesso ao res-suscitar, mesmo que encobertas pelo discurso da educação para a saúde, as velhas preocupações com a aptidão física. Em sua defesa, é possível dizer que tal apelo decorreu do esvaziamento que o componente enfrentava no Ensino Médio. Toda a crítica (mal elaborada e tendenciosa) despejada pelos setores acadêmicos sobre a prática pedagógica realizada nas escolas “não colocara nada no lugar”. Por outro lado, a farta disseminação de discursos sobre os benefícios da atividade física para a saúde, a popularização das academias de ginástica, o culto a uma determinada estética corporal e o fortalecimento do campo não formal da Educação Física levaram muitos professores a modificarem suas aulas em busca de um reposicionamento do componente. O prenúncio dessa transformação já despontava nos PCN do Ensino Funda-mental (BRASIL, 1998), basta verificar o chamado “bloco de conteúdos” Conhecimentos sobre o corpo.

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A Educação Física nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM)

O documento produzido pela Secretaria de Educação Básica e ainda disponível no portal eletrônico4 do Ministério da Educação possui três vo-lumes: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e suas Tecnologias. Na apresentação anuncia o objetivo de contribuir para o diálogo entre professor e escola a respeito da prática docente. Entretanto, verdade seja dita, não foi o que aconteceu. O texto teve uma circulação bastante restrita, sendo acessado quase que exclusivamente pelos interessados no assunto e setores ligados às políticas públicas para o Ensino Médio. Ao contrário do que aconteceu com os PCNEM, sequer foi enviado às escolas. Elaboradas com vistas a suplantar o documento anterior, as OCEM repetem a configuração em áreas, alocando a Educação Física nas Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Embora a organização lembre os PCNEM, cada componente seguiu uma estrutura própria.

O documento federal de Educação Física possui uma configuração bastante peculiar, com seções dedicadas aos aspectos legais, identidade da disciplina, escola como espaço sociocultural e da diversidade, sujeitos do Ensino Médio e conteúdos. Causa certa estranheza não só a presença, como também, a extensão da seção destinada a criticar a forma esportiva/competitiva como método e princípio orientador das práticas pedagógicas. Os argumentos reproduzem o já dito em muitos outros textos, inclusive nos PCNEM, o que soa como tentativa inócua de marcar uma posição.

Na introdução, o documento curricular procura se diferenciar de seus assemelhados ao situar-se como produto do esforço “daqueles que compa-receram aos seminários, dos que participaram da rede virtual e de eventos científicos e acadêmicos em todo o Brasil, e da contribuição dos leitores críticos” (BRASIL, 2006, p. 214).

Enquanto pontos de partida para pensar a Educação Física no Ensino Médio, as OCEM alocam as práticas corporais no processo educativo como “chaves de leitura do mundo”, ou seja, consideram-nas mais uma linguagem para a leitura do real, pois, segundo o texto oficial, “as práticas corporais possuem valores nelas mesmas, sem a necessidade de serem ‘traduzidas’ para outras linguagens para obter o seu reconhecimento” (BRASIL, 2006, p. 218). Na mesma linha de raciocínio, revela a inspiração estruturalista que perpassa o conceito de práticas corporais:

4 Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>. Acesso em: 01 set. 2018.

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Por meio do movimento expressado pelas práticas corporais, os jovens retratam o mundo em que vivem: seus valores culturais, sentimentos, preconceitos, etc. Também “escrevem” nesse mesmo mundo suas marcas culturais, construindo os lugares de moças e rapazes na dinâmica cultural. Por vezes, acabam eles próprios se tornando “modelos culturais”, nos quais uma certa “ideia de juventude” passa a ser experimentada, copiada e vivida também por outras gerações (BRASIL, 2006, p. 218).

O interessante é perceber que ao retomar o tema na seção destinada aos sujeitos do Ensino Médio, as OCEM contradizem o afirmado quando assumem que “as formas como cada um dos jovens enxerga a escola e suas possibilidades de exercícios de práticas corporais são várias: como forma de ascensão social; como espaço de encontro, local de expressão e troca de afetos; como lugar de tédio e de rotinas sem sentido, entre outros” (BRASIL, 2006, p. 220). A mesma ideia é anunciada mais adiante: “entendemos que um dos papéis da Educação Física é compreender e discutir junto a esses jovens os valores e significados que estão por trás dessas práticas corporais” (BRASIL, 2006, p. 223). Entretanto, resvala novamente ao enfatizar que:

[...] o desafio de primeira hora passa a ser a disciplina se transformar num componente curricular que privilegie a movimentação dos jovens no sentido oposto ao discurso da competição de mercado, aos modismos acerca do corpo e às práticas prontas e vendidas (BRASIL, 2006, p. 223).

O documento oscila entre uma perspectiva estruturalista que fixa sig-nificados e concebe a experiência escolar como locus para transmiti-los aos alunos, e uma perspectiva pós-estruturalista, que reconhece que os significa-dos atribuídos às práticas corporais encontram-se em disputa e, nesse caso, precisam ser conhecidos e discutidos na escola. Os excertos abaixo explicitam a gangorra conceitual.

O que se espera é que os alunos do Ensino Médio tenham a oportunidade de vivenciarem o maior número de práticas corporais possíveis. Ao realiza-rem a construção e vivência coletiva dessas práticas, estabelecem relações individuais e sociais, tendo como pano de fundo o corpo em movimento. Assim, a ideia é de que esses jovens adquiram maior autonomia na vivência, criação, elaboração e organização dessas práticas corporais, assim como uma postura crítica quando esses estiverem no papel de espectadores das mesmas. Espera-se, portanto, que os saberes da Educação Física tratados no ensino médio possam preparar os jovens para uma participação política mais efetiva no que se refere à organização dos espaços e recursos públicos

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de prática de esporte, ginástica, dança, luta, jogos populares, entre outros (BRASIL, 2006, p. 224-225).

Dessa forma, tão importante quanto a decisão de se ensinar ou não um determinado esporte, dança, jogo, etc. é pensar que sentidos e significados são atribuídos a esse esporte, dança ou jogo pelos alunos nas aulas de Educação Física. Que significados culturais estão presentes em um jogo de futebol? Em um jogo de bocha? Em uma brincadeira de roda? Em uma dança de rua? O tratamento pedagógico dado a essas e a outras questões da cultura se reflete diretamente nas possibilidades de formação dos alunos e dos professores (BRASIL, 2006, p. 226).

Percebe-se, num primeiro momento, um certo caráter instrumental tradu-zido no papel que o componente desempenha na preparação dos jovens para organizar espaços e recursos, o que destoa do debate em torno dos sentidos e significados atribuídos às práticas corporais. A dificuldade de verter essa discussão para a sala de aula fica evidente quando espera que “as redes federal, estaduais, municipais ou cada escola ou conjunto de escolas possam formular outros documentos e avançar na perspectiva de definição de conjuntos de con-teúdos organizados e sistematizados a partir de interesses mais localizados” (BRASIL, 2006, p. 226). Ora, hoje se sabe que a definição e sistematização prévia de conteúdos é uma das facetas do mesmo tecnicismo educacional5 que políticas curriculares como essa quiseram suplantar.

O discurso alardeado no texto oficial contribui para a confusão conceitual instalada na área ao denominar, mais de uma vez, as práticas corporais como conteúdos da Educação Física. Algo que, como se pode notar nos fragmen-tos acima, soa profundamente contraditório. Se as ginásticas, jogos, lutas, esportes e danças são tratados metodologicamente dessa maneira (BRASIL, 2006, p. 229), não sobra espaço algum para as escolas definirem, organizarem e sistematizarem os saberes do componente.

Divergindo de muitas outras propostas curriculares da Educação Física, as OCEM não arrolam objetivos almejados ou expectativas de aprendizagem. Tal como anunciado na introdução do volume Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, a intenção é simplesmente apresentar um conjunto de reflexões que alimente a prática pedagógica. Nesse sentido, o texto cumpre o seu pro-pósito ao introduzir, pela primeira vez e mesmo que de maneira superficial e confusa, a comunidade da área na discussão em torno da significação das práticas corporais. Algo que não é pouco, se for considerado o contexto e a raridade de trabalhos sobre o assunto. A bibliografia disponível ao final do documento, por exemplo, não contém nenhuma obra que promova essa

5 O assunto foi abordado em trabalho recente (NEIRA, 2018a).

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discussão. Simplesmente chove no molhado, deixando o professor interessado em aprofundar os estudos abandonado à própria sorte ou, mais uma vez, sub-metido ao discurso hegemônico instalado na academia após a década de 1990.

A Educação Física na Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC)

Em dezembro de 2018, a Secretaria de Educação Básica disponibilizou no portal eletrônico6 do Ministério da Educação a versão da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio encaminhada ao Conselho Nacional de Educação para discussão. A primeira parte do documento contém a introdução, competências gerais para a Educação Básica, marcos legais, fundamentos pedagógicos e o pacto interfederativo, ou seja, simplesmente reproduz o documento da Educação Infantil e Ensino Fundamental, homologado pela portaria nº 1.570, de 21/12/2017. Na sequência, o texto oficial apresenta uma versão ampliada da estrutura da BNCC, pois uma parcela das explicações já existentes recebeu as informações sobre a configuração específica do Ensino Médio. A organização abarca as áreas do conhecimento, competências da área, habilidades por área, os componentes Matemática e Língua Portuguesa e as respectivas habilidades a serem desenvolvidas por essas disciplinas. Até aí, nenhuma surpresa. Convém lembrar que a Lei Federal nº 13.415, de 16/02/2017, reformou o Ensino Médio e anunciou a obrigatoriedade desses dois componentes nos cinco itinerários: Linguagens, Ciências Humanas, Matemática, Ciências da Natureza e Formação Técnica e Profissional.

As competências gerais da BNCC se desdobram em competências es-pecíficas para cada área e estas, por sua vez, são fracionadas em habilidades. Conforme já se disse, apenas Língua Portuguesa e Matemática possuem habilidades específicas. Como os conhecimentos historicamente trabalhados nas aulas de Arte, Educação Física, Física, Química, Biologia, Sociologia, História, Geografia, Filosofia e Língua Inglesa foram diluídos nas áreas, o leitor se obriga a um certo esforço de abstração para enxergar em meio às habilidades das áreas aquelas a serem desenvolvidas mediante o tratamento pedagógico dos conteúdos de uma certa disciplina.

O texto introdutório da área das Linguagens e suas Tecnologias reserva apenas cinco parágrafos para explicitar a concepção de Educação Física. Diga-se de passagem, além de insuficiente é extremante confuso.

6 Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/>. Acesso em: 01 set. 2018.

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A área contribui para formar sujeitos capazes de usufruir, produzir e trans-formar a cultura corporal de movimento, tomando e sustentando decisões éticas, conscientes e reflexivas sobre o papel das práticas corporais em seu projeto de vida e na sociedade. A cultura corporal de movimento é entendida como o conjunto de práticas culturais em que os movimentos são os mediadores do conteúdo simbólico e significante de diferentes grupos sociais. Por isso, sua abordagem na educação básica exige que as experiências corporais dos estudantes sejam integradas à reflexão sobre a cultura corporal de movimento (BRASIL, 2018, p. 475).

Vejamos. A primeira frase do parágrafo quer anunciar a área das Lin-guagens e não o componente. O problema reside no entendimento de cultura corporal de movimento presente na segunda frase. Ora, os movimentos não são mediadores de conteúdo algum. Somos nós, sujeitos da cultura que lhes conferimos significados. O que quer dizer amarrar o sapato se não houver alguém (quem amarra ou quem vê alguém amarrando) para atribuir-lhe o significado partilhado por um determinado grupo social? A questão se agrava justamente porque, na atualidade7, há quem compreenda que a expressão “cultura corporal de movimento” reduz o conceito aos saberes que implicam movimentação, deixando de fora toda a produção discursiva que abarca as práticas corporais. Aliás, a noção de práticas corporais quando vinculada à ideia de “movimento” também sofre amputações. Por essa razão, a termino-logia mais adequada e já analisada na literatura seria simplesmente “cultura corporal”, da mesma forma que ao invés de movimento ou movimentação, se a Educação Física figura na área das Linguagens, melhor seria “gesto” ou “gestualidade”, estes sim, passíveis de leitura, significação e produção. Logo, a Educação Física não estudaria o “amarrar o sapato”, mas sim, as práticas corporais que, por sua vez, são produtos da gestualidade, textos da cultura. Para piorar a miscelânea, a terceira frase do parágrafo afirma que “educação básica exige que as experiências corporais dos estudantes sejam integradas à reflexão sobre a cultura corporal de movimento”. Isso quer dizer que experi-ências corporais como amarrar o sapato, levar o copo à boca, dormir, tomar banho etc. devem ser estudadas nas aulas do componente. Insisto: a Educação Física não tematiza qualquer experiência corporal, mas sim as práticas cor-porais, isto é, as brincadeiras, danças, lutas, esportes e ginásticas. Todas elas na teorização cultural são entendidas como jogos8.

Além disso, a BNCC do Ensino Médio se equivoca propositadamente, penso eu, ao afirmar que o documento do Ensino Fundamental propõe a “re-flexão crítica sobre padrões de beleza, exercício, desempenho físico e saúde;

7 Neira e Gramorelli (2017) discutiram o assunto em artigo especialmente dedicado ao assunto.8 A questão foi enfrentada em trabalho anterior (NEIRA, 2014).

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das relações entre as mídias, o consumo e as práticas corporais; e da presença de preconceitos, estereótipos e marcas identitárias” (BRASIL, 2018, p. 475). É importante lembrar que a maior parte dessas preocupações, presentes na se-gunda versão, desapareceram9 no documento homologado em dezembro de 2017.

Outro problema identificado é a promessa de que a BNCC para o Ensino Médio cria “oportunidades para que os estudantes compreendam as inter--relações entre as representações e os saberes vinculados às práticas corpo-rais, em diálogo constante com o patrimônio cultural e as diferentes esferas/campos de atividade humana” (p. 475). O mesmo se pode dizer do seguinte fragmento. O documento afirma:

Tratar de temas como o direito ao acesso às práticas corporais pela comu-nidade, a problematização da relação dessas manifestações com a saúde e o lazer ou a organização autônoma e autoral no envolvimento com a variedade de manifestações da cultura corporal de movimento permitirá aos estudantes a aquisição e/ou o aprimoramento de certas habilidades (BRASIL, 2018, p. 476).

O engodo é facilmente flagrado quando os fragmentos citados são con-frontados com a única competência e suas três habilidades, onde, efetivamente, se pode visualizar saberes relativos às práticas corporais.

Competência específica 5: Compreender os múltiplos aspectos que en-volvem a produção de sentidos nas práticas sociais da cultura corporal de movimento, reconhecendo-as e vivenciando-as como formas de expressão de valores e identidades, em uma perspectiva democrática e de respeito à diversidade (BRASIL, 2018, p. 487).

(EM13LGG501) Selecionar e utilizar movimentos corporais de forma consciente e intencional para interagir socialmente em práticas da cultura corporal, de modo a estabelecer relações construtivas, éticas e de respeito às diferenças (BRASIL, 2018, p. 487).

(EM13LGG502) Analisar criticamente preconceitos, estereótipos e re-lações de poder subjacentes às práticas e discursos verbais e imagéticos na apreciação e produção das práticas da cultura corporal de movimento (BRASIL, 2018, p. 487).

(EM13LGG503) Praticar, significar e valorizar a cultura corporal de mo-vimento como forma de autoconhecimento, autocuidado e construção de laços sociais em seus projetos de vida (p. 487).

9 Em artigo recente (NEIRA, 2018b), sinalizei as incoerências e inconsistências da BNCC de Educação Física.

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A análise da competência e das habilidades deixa transparecer uma certa fragmentação (selecionar e utilizar movimentos) e instrumentalização das práticas corporais, dado que serão utilizados para estabelecer relações de uma determinada maneira. Ademais, onde está reflexão crítica sobre padrões de beleza, exercício, desempenho físico e saúde; das relações entre as mídias, o consumo e as práticas corporais? Embora seja desejável a problematização dos preconceitos embutidos nos discursos sobre as práticas corporais, é importante frisar que o desenvolvimento dessa habilidade depende de conhecimentos de ordem histórica, política, filosófica e sociológica, simplesmente ausentes no documento.

Finalmente, repetindo os equívocos da BNCC do Ensino Fundamental, o texto oficial do Ensino Médio despreza a condição exercida pelos estu-dantes como sujeitos da cultura e insiste em fixar os significados alusivos à cultura corporal. Ela própria, por sua vez, um terreno de disputas. Sendo assim, é simplesmente impossível levar uma pessoa a “significar” qualquer coisa de uma determinada maneira. A cultura corporal de movimento poderá ser significada e valorizada de muitas maneiras, até mesmo como forma de autoconhecimento, autocuidado e construção de laços sociais. O professor poderá, no máximo, disponibilizar situações didáticas em que os educandos acessem tais significados. Já a sua incorporação é outra história.

Destarte, a questão fulcral, é entender o lugar que a BNCC pretende ocupar no cenário educacional quando, no seu texto introdutório, apresenta as habilidades a serem desenvolvidas como aprendizagens essenciais. Afinal, quem pode arvorar-se a autoridade de definir o que todas as pessoas devem aprender? Ainda, a amputação dos conhecimentos da Educação Física e dos demais componentes, aliada à preocupação com saberes instrumentais e com a Reforma do Ensino Médio, leva a crer que está em marcha um projeto de escola voltado para a formação da mão de obra de baixa qualificação, mas flexível o suficiente para adaptar-se às funções que exijam competências de complexidade reduzida.

Considerações Finais

Muito embora qualquer prática discursiva possa ser submetida à análise cultural, a tarefa se mostra bem mais fácil quando o objeto foi produzido re-centemente. Sempre existe o risco de ser desleal nas críticas dado que o olhar contemporâneo, assim como qualquer outro, está nutrido pelas referências mais recentes. Em que pesem muitos outros deslizes, essa incorreção não foi cometida no presente trabalho.

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À época da produção dos PCNEM atuava na Educação Básica, numa escola pública, com as turmas do Ensino Médio. Posso afirmar que o contexto era bem distinto do atual. A Educação Física estava na iminência de ser retirada dessa etapa devido a leituras enviesadas da LDB 9.394/1996. A preocupação com o aluno trabalhador do ensino noturno não é por acaso. Ancorava-se em razões políticas, quais sejam, a defesa da permanência da Educação Física nesse segmento. Por isso, tudo o que pudesse colocar um ponto final nas aulas livres ou no absenteísmo que assolava o componente seria bem-vindo. A proposta expressa no documento fora experimentada com sucesso em algumas escolas paulistas e desfrutava de certa simpatia entre o professorado, obviamente influenciado pelas conexões da atividade física regular com a conquista de um estilo de vida saudável. Se hoje, esse argumento parece ultrapassado, na-quele contexto a receptividade era positiva. Sobretudo quando se recuperam os interesses político-econômicos que sustentavam inúmeros programas que difundiam os benefícios da vida ativa. O governo orquestrava um conjunto de políticas de cunho neoliberal, entre elas os PCN e PCNEM. Nesse sentido, a pedagogia das competências soava como música aos ouvidos de muita gente e a educação sucumbira de vez aos ditames do mercado.

As OCEM percorreram uma trajetória distinta, mesmo porque o momento era outro. O país era governado por uma frente popular e a publicação do documento foi precedida por debates e contribuições. O Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte engajou-se de maneira destacada na produção. Sendo a entidade reconhecidamente influenciada pelo discurso crítico, o resultado não poderia ser outro. Os problemas do documento residem na dificuldade de se fazer entender pelos professores, haja vista o distanciamento entre o enun-ciado e a ação. Quero destacar que em uma das reuniões em que se discutiu a versão preliminar, mais exatamente em 2005, na cidade de Porto Alegre, essa ressalva foi apresentada. Sendo um texto de apoio à prática pedagógica, desconsiderar o que acontecia nas escolas e, principalmente, quem eram os professores constituíram erros imperdoáveis. Dizer simplesmente que se deve fazer isso ou aquilo, sem exemplificar ou apontar o caminho pode ser fatal em um texto dessa natureza, voltado para um grande e diversificado público. Para muitos dos presentes esse detalhe passou despercebido, quando não pareceu irrisório. O fato é que a maioria absoluta dos professores em atuação naquela época haviam sido formados para atuar em outras vertentes, o que obviamente dificultava a compreensão e execução da proposta.

Quase tudo o que foi dito acima não cabe quando se mira a BNCC do Ensino Médio. O documento ainda está em discussão e a sociedade brasi-leira encontra-se em plena ebulição. Após o golpe político-jurídico de 2016, um novo grupo se apossou do Ministério da Educação, coincidentemente o

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mesmo que coordenou os PCNEM, e fez prevalecer uma única concepção pedagógica, aquela que submete a educação à lógica do sistema econômico. Ponto. A questão é que estamos em pleno século XXI, uma época em que os estudos curriculares compreendem que a educação a favor das diferenças é um caminho sem volta, a alternativa mais razoável para produzir uma sociedade menos desigual. Neste contexto, a Educação Física também é outra. Já se sabe como verter essa intenção político-social em práticas pedagógicas. Inúmeros professores fazem isso todos os dias pelo país afora. Entretanto, um conjunto de reformas que subtraem os direitos dos cidadãos vem sendo implementado e, entre elas, se destacam as mudanças no currículo do Ensino Médio. Não é tarde para lembrar que tais modificações foram impostas em 2016 por meio da Medida Provisória nº 746. Parece mentira, mas isso jamais havia acontecido, nem durante a ditadura. É dessa forma, autoritária e antidemocrática que age o grupo que está no poder. Conta com a apoio dos setores financistas, daqueles que têm como objetivo apropriar-se dos recursos públicos. Inexiste qualquer preocupação com a inclusão, com a democracia ou com a vida das pessoas. Tudo isso se reflete na BNCC do Ensino Médio. Um documento canhestro, esvaziado de conteúdo e repleto de equívocos conceituais. Perde a Educação Física, perde a população brasileira. A única alternativa é reunir as forças e resistir a ele e a tudo o mais que vier por aí.

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REFERÊNCIAS

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