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Revista de Direito, Santa Cruz do Sul, n. 5, out. 2014 237 A DIVERSIDADE CULTURAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E SUA INTRÍNSECA RELAÇÃO COM OS DIREITOS HUMANOS Roberta da Silva 1 RESUMO O presente texto trata daefetivação dos direitos humanos frente a diversidade cultural.Utilizou-se para tanto o método de estudo bibliográfico, buscando analisar fontes de pesquisa que versem sobre a temática. Constatou-se que a sociedade globalizada clama pela concretização dos direitos humanos e, em contrapartida, com a diversidade cultural visualizam-se incessantes disputas pelo reconhecimento de identidades particulares. A abordagem leva à conclusão que a universalidade dos direitos humanos está incitada a mediar os limites entre a igualdade e a diferença nas relações culturais, como limite ético para o reconhecimento das particularidades e para a afirmação das igualdades que não homogeneízem e não sufoquem a humanidade presente na experiência de cada homem isoladamente. Palavras-chave: Diversidade cultural. Identidade. Direitos humanos. ABSTRACT This paper deals with the realization of human rights against cultural diversity. Was used for both the method of literature research, trying to analyze research sources that deal with the issue. It was found that the global society calls for the realization of human rights and, in return, with cultural diversity visualize yourself ceaseless struggles for recognition of particular identities. The approach leads to the conclusion that the universality of human rights is urged to mediate the boundaries between equality and difference in cultural relations, as an ethical threshold for recognizing the particularities and the affirmation of equality that does not homogeneízem and not stifle humanity Gift experience of each man alone. Keywords: Cultural diversity. Identity.Humanrights. 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS A humanidade vivenciou uma intensa luta pela promoção e reconhecimento dos direitos humanos. Na Modernidade os direitos humanos representaram, pela 1 Mestranda em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa registrado no CNPQ: Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos. Especializanda em Direito Penal e Orientação Educacional pela Universidade Leonardo da Vinci – UNIASSELVI. Advogada. Professora da rede pública de educação básica do Município de Santo Ângelo. Contato: [email protected]

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Revista de Direito, Santa Cruz do Sul, n. 5, out. 2014

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A DIVERSIDADE CULTURAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA E SUA

INTRÍNSECA RELAÇÃO COM OS DIREITOS HUMANOS

Roberta da Silva1

RESUMO O presente texto trata daefetivação dos direitos humanos frente a diversidade cultural.Utilizou-se para tanto o método de estudo bibliográfico, buscando analisar fontes de pesquisa que versem sobre a temática. Constatou-se que a sociedade globalizada clama pela concretização dos direitos humanos e, em contrapartida, com a diversidade cultural visualizam-se incessantes disputas pelo reconhecimento de identidades particulares. A abordagem leva à conclusão que a universalidade dos direitos humanos está incitada a mediar os limites entre a igualdade e a diferença nas relações culturais, como limite ético para o reconhecimento das particularidades e para a afirmação das igualdades que não homogeneízem e não sufoquem a humanidade presente na experiência de cada homem isoladamente. Palavras-chave: Diversidade cultural. Identidade. Direitos humanos. ABSTRACT This paper deals with the realization of human rights against cultural diversity. Was used for both the method of literature research, trying to analyze research sources that deal with the issue. It was found that the global society calls for the realization of human rights and, in return, with cultural diversity visualize yourself ceaseless struggles for recognition of particular identities. The approach leads to the conclusion that the universality of human rights is urged to mediate the boundaries between equality and difference in cultural relations, as an ethical threshold for recognizing the particularities and the affirmation of equality that does not homogeneízem and not stifle humanity Gift experience of each man alone. Keywords: Cultural diversity. Identity.Humanrights.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A humanidade vivenciou uma intensa luta pela promoção e reconhecimento

dos direitos humanos. Na Modernidade os direitos humanos representaram, pela

1Mestranda em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa registrado no CNPQ: Fundamentos e Concretização dos Direitos Humanos. Especializanda em Direito Penal e Orientação Educacional pela Universidade Leonardo da Vinci – UNIASSELVI. Advogada. Professora da rede pública de educação básica do Município de Santo Ângelo. Contato: [email protected]

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primeira vez, um limite ao poder soberano e estabeleceram uma pauta objetiva de

proteção do indivíduo.Assim, só é possível falar em direitos humanos a partir da

Modernidade, do nascimento do Estado Moderno. A Declaração Universal de 1948

surge como resposta às atrocidades cometidas durante o nazismo, inovou

extraordinariamente a gramática dos direitos humanos ao instituir a proteção do

homem em âmbito universal.

No alvorecer do século XXI os direitos humanos permanecem na agenda

internacional, porém isso não impede que ocorram em qualquer cultura constantes

agressões à dignidade da pessoa humana e aos direitos básicos do indivíduo.Dessa

forma, torna-se necessária a proteção universal do indivíduo. Entretanto, as

demandas identitárias e comunitaristas reclamam seu lugar no mundo, incitando o

debate acerca da desconsideração das diferenças culturais em nome dos direitos

humanos. Nesse âmbito, o multiculturalismo e os direitos humanos remetem à

questão da igualdade e da diferença, do limite de diferenças que a igualdade suporta

na sociedade democrática contemporânea.Nessa perspectiva, não é possível mais

falar em igualdade, deixando de abranger a questão da diversidade e da diferença.

2. IDENTIDADES: O DESPERTAR PARA A DIFERENÇA

É possível vislumbrar que na antiguidade a relação de identidade, de

individualidade é uma decorrência da própria condição da vida feliz na Polis, isso

porque, o indivíduo depende da organização coletiva para existir.Em oposição ao

período pré-moderno, durante a Modernidade as identidades tornaram-se uma

construção, resultado de um processo. A Modernidade inaugurou um novo período,

transformando a identidade numa questão de realização (BAUMAN, 1998).

Dessa forma, “quando a Modernidade substituiu os estados pré-modernos

(que determinavam a identidade pelo nascimento e assim proporcionavam poucas

oportunidades para que surgisse a questão do “quem sou eu?”) pelas classes, as

identidades se tornaram tarefas que os indivíduos tinham de desempenhar (...) por

meio de suas biografias” (BAUMAN, 2005, p. 55).

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As transformações associadas à Modernidade libertaram o indivíduo de seus

apoios estáveis nas tradições e estruturas, as quais, anteriormente, se acreditava

que fossem divinamente estabelecidas, portanto, o status, a classificação e a

posição de uma pessoa na “grande cadeia do ser”, a ordem secular e divina das

coisas, predominavam sobre qualquer sentimento de que a pessoa fosse um

indivíduo soberano, assim, o nascimento do “indivíduo soberano” ocorreu entre o

Humanismo Renascentista do século XVI e o Iluminismo do século XVIII e

representou uma ruptura importante com o passado (HALL, 2011).

O individualismo moderno afirmou-se, com efeito, como individualismo liberal,

ou seja, como reivindicação dos direitos do indivíduo em relação à intervenção do

Estado Absoluto. Assim, “o reconhecimento do indivíduo isoladamente considerado

e sua proteção contra as intervenções arbitrárias do Estado é um traço marcante do

estatuto político e jurídico da Modernidade. A ideia de que o indivíduo é portador de

direitos que lhe são inerentes é determinante no surgimento do Estado moderno”

(LUCAS, 2012a, p. 5).

Na Modernidade surgiram na visão de Hall (2011),algumas concepções de

identidade, incialmente a identidade do sujeito do iluminismo, a qual estava baseada

numa concepção individualista do sujeito e de sua identidade, caracterizada pelo

indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de razão, de consciência e de ação,

desse modo, o centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa,que emergia

do nascimento e por toda sua vida, permanecendo totalmente o mesmo (HALL,

2011).

Assim, a figura do indivíduo como sujeito autoconsciente de sua própria

individualidade e identidade só vai ganhar relevo na Modernidade, sendo a

identidade compreendida como produto da consciência, ou seja, a forma como o

sujeito autoconsciente se percebe, já que é na consciência que se processam as

modificações que realmente importam para o indivíduo compreender-se como é

(LUCAS, 2012b).

Nesse contexto, “o estudo do indivíduo e de seus processos mentais tornou-

se o objeto de estudo especial e privilegiado da psicologia” (HALL, 2011, p. 31), da

descoberta do inconsciente por Freud e estudos de outros pensadores

psicanalíticos. Entretanto, a sociologia localizou o indivíduo em processos de grupo,

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desenvolvendo uma explicação alternativa do modo como os indivíduos são

formados subjetivamente por meio de sua participação nas relações sociais e de sua

contribuição pelo papel desempenhado, em outras palavras, a teoria da socialização

é constituída pela internalização do exterior no sujeito e pela externalização do

interior, por essa reciprocidade estável (HALL, 2011).

O primeiro nome moderno dado à identidade foi subjetividade (SANTOS,

1994), a qual foi constituída a partir do termo subjetivo, designando aquilo que

pertence a consciência individual, ao pensamento humano, porém, a subjetividade é

cruzada pela alteridade, já que o indivíduo, como ser autoconsciente, só será

possível se assentado na comunidade a que pertence, pelo sentimento de

pertencimento.

Desse modo, ainda era possível, no século XVIII, imaginar os grandes

processos da vida moderna como estando centrados no indivíduo sujeito da razão,

mas à medida que as sociedades modernas se tornaram mais complexas, elas

adquiriram uma forma mais coletiva e social, emergindo, então, o sujeito sociológico,

que reflete a complexidade do mundo moderno e a consciência de que esse núcleo

moderno não era autônomo e autossuficiente, mas, formado na relação com o outro,

que é mediador da cultura, do mundo habitado (HALL, 2011).

Dentro do conceito de sujeito sociológico a identidade é formada da interação

do eu e da sociedade, num diálogo contínuo com o mundo cultural, que costura o

sujeito à estrutura, ao mesmo tempo em que são internalizados seus significados e

valores, são alinhados os sentimentos subjetivos no mundo social e cultural que

habita (HALL, 2011).

Antes de qualquer coisa, o indivíduo desenvolve suas capacidades

caracteristicamente humanas em sociedade, sendo essa uma condição necessária

para o desenvolvimento da racionalidade. Nesse diapasão, a identidade cultural do

indivíduo moderno apresentava-se estável, localizada, naturalizada, sendo que era

vivenciada de maneira horizontal, compartilhando uma identidade unificada e

comum em torno de uma cultura nacional que primava pela homogeneidade e pela

igualdade.

No final do século XX houve muitos argumentos de que se estava no limiar de

uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder o que está levando a

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sociedade para além da própria Modernidade (GIDDENS, 1991). Inicia-se de tal

modo, a pós-Modernidade.Num mundo instável, numa sociedade de risco (BECK,

2003), numa Modernidade líquida (BAUMAN, 2001), o que se encontra na

atualidade foge do controle humano, parece um mundo em descontrole, já que se

supunha que o progresso da ciência e da tecnologia iria tornar a vida mais segura e

previsível e ocorreu exatamente o oposto (GIDDENS, 2007).

A discussão acerca da identidadepassou a ter maior relevância quando se

tornou desestabilizada, instável, transformando-se no foco das discussões

contemporâneas.Nesse líquido mundo moderno, “identificar-se com” significa dar

abrigo a um destino desconhecido que não se pode influenciar, muito menos

controlar (BAUMAN, 2005).

Nesse cenário, a identidade se tornou o “papo do momento, um assunto de

extrema importância e em evidência” (BAUMAN, 2005, p. 23), assunto que, há

algumas décadas atrás, não era o centro dos debates, era apenas objeto de

meditação filosófica, isso porque, o próprio conceito de identidade “é

demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco compreendido

na ciência social contemporânea para ser definitivamente posto à prova” (HALL,

2011, p. 8).

Para alguns teóricos, as velhas identidades estão em declínio, fazendo surgir

novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, abalando a ideia que tem

de si próprio como sujeito integrado, visto até então como um sujeito unificado,

abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem

estável no mundo social, causando uma perda de sentido de si (HALL, 2011). As

identidades modernas estão sendo descentradas, isto é, deslocadas ou

fragmentadas, estão entrando em colapso, constituindo-se uma crise de

identidade(HALL, 2011).

Na Modernidade a diferença começou a fazer parte do conceito de identidade,

já que deixa de ser considerado como um valor negativo e passa a ser considerado

um valor positivo (LUCAS, 2012a).Parece que, na pós-Modernidade,o maior

problema se constitui em qual das identidades escolher dentre as disponíveis, isso

porque a construção da identidade se tornou uma experimentação infindável, sendo

possível assumir uma identidade num momento, deixando de escolher uma

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infinidade existente delas, enquanto outras ainda estão para serem inventadas

(BAUMAN, 2005).

A pós-Modernidade ou Modernidade tardia é apocalíptica porque introduz

riscos que gerações anteriores não tiveram de enfrentar, se tornando cada vez mais

comum a influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos e sobre a

intimidade do eu (GIDDENS, 2002). O indivíduo pós-moderno enfrenta

problemasrepresentados pela perda do eu, pelo sentimento de vazio, pela

insegurança, pela monotonia, pela inutilidade, pela infelicidade, pela crise de

autoestima e pela perda do sentido da vida (BAUMAN, 2001).

O sujeito pós-moderno, surgiu como uma concepção de identidade muito

diferente e muito mais perturbadora, que é produzida pelo processo de identificação

que se tornou mais provisório, variável e problemático, com a identidade sendo

formada e transformada continuamente, sendo que o sujeito assume identidades

diferentes em diferentes momentos, pelas suas identificações estarem sendo

continuamente deslocadas (HALL, 2011).

Nesse sentido, “quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam

parecer natural, predeterminada e inegociável, a identificação se torna cada vez

mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um nós a que

possam pedir acesso” (BAUMAN, 2005, p. 30).A identidade surge não tanto da

plenitude da identidade que já está dentro dos indivíduos, mas de uma falta de

inteireza que é preenchida a partir do exterior, pelas formas por meio das quais

imagina ser vistos por outros(HALL, 2011, p. 39).

A “identidade tem se transformado numa categoria essencial para a

compreensão dos conflitos contemporâneos” (LUCAS, 2012b, p. 125).Sobretudo, na

pós-Modernidade é possível dizer que o indivíduo “é o que é por não ser outra coisa”

(LUCAS, 2012b, p. 132), assim, a característica principal da identidade “é qualquer

coisa de próprio que é tal porque pertence ao conjunto ou que é tal porque existe o

seu oposto” (RESTA, 2014, p. 24).

Desse modo, “a identidade não faz concessões e mediações. Ela afirma sua

existência em contraposição ao seu oposto. Nega para poder ser o que é” (LUCAS,

2012b, p.149). O sujeito é precisamente, porque não pode ser consciência absoluta,

porque algo constutivamente estranho o confronta(HALL, 2003), algo diferente. Para

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Dubar “laidentidad es la diferencia” (2002, p. 11), e é, sobretudo porque a

identidade é em si mesma e negação em relação àquilo que não é (HÖFFE,

2000).

O indivíduo somente é numa relação com o todo (LUCAS, 2012a). E nessa

necessidade do caráter relacional Honneth (2003)desenvolve uma teoria a partir do

conceito de reconhecimento, segundo o qual a compreensão pessoal do indivíduo

seria obtida por meio do reconhecimento do outro, de modo que a família, a

sociedade e o Estado seriam considerados fatores constitutivos da essência do

indivíduo. Para Honneth a base da interação é o conflito e sua gramática a luta por

reconhecimento (LUCAS, 2013).

Na visão de Taylor a questão do reconhecimento passa a ser vista como

“uma necessidade humana vital,” (1994, p. 45), já que a formação das identidades

está ligada diretamente ao reconhecimento. De acordo com Resta “a identidade é a

sua diferença (...). O espaço da identidade está sempre em percurso que vai de uma

coisa a outra, que necessita do outro para se realizar como identidade” (2014, p. 24),

em outras palavras, a identidade reclama o seu externo. E nesse contexto Resta

(2014) é categórico ao afirmar que uma existe porque tem a outra, é tal porque

existe o seu oposto.

Desse modo, “a identidade é sempre marcada pela diferença; sua

conformação é relacional, pois ela somente pode ser percebida como tal quando

relacionada ou comparada com outras culturas que não ela mesma (...), outras

serão sempre a base de sua diferença” (LUCAS, 2012a, p. 165).A identidade é um

ser que é em si e que também o é por não ser outra coisa, ou seja, a negação de

seu oposto é a condição de sua unidade, em outras palavras, separa para unir,

inventa ligações artificiais que impedem o reconhecimento dos traços de

humanidade comum em cada particularidade, alimentando diferenças excludentes

(LUCAS, 2012b).

Nos tempos pós-modernos, as fronteirasque tendem a ser ao mesmo tempo

mais fortemente desejadas e mais agudamente despercebidas são as de uma justa

e segura posição na sociedade, de um espaço inquestionável da pessoa, onde

possa planejar a sua vida com o mínimo de interferência, desempenhar seu papel

num jogo em que as regras não mudem da noite para o dia e sem aviso prévio,

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assim, é característica dos indivíduos contemporâneos, viverem constantemente

com o problema da identidade não resolvido, e sofrerem de uma crônica falta de

recurso para construírem uma identidade verdadeiramente sólida e duradoura,

ancorá-la e suspender-lhe a deriva (BAUMAN, 1998).

3. CULTURA, IDENTIDADE E DIFERENÇA

Na sociedade multicultural, as identidades culturais começaram a reclamar

seu lugar diante do mundo globalizado, que reclamam o reconhecimento e

afirmação de sua diferença. Tudo ο que identifica o indivíduo, não é simplesmente

fruto das escolhas individuais, mas acima de tudo, ο fruto dos laços que o ligam a

diversas instituições sociais como a família, a tribo, a nação, se consubstanciando

numa espécie de legado, ponto de partida moral. Portanto, dificilmente se pode

encontrar a identidade para fora do vínculo de pertença ou desligando-se desta.

A cultura é uma criação humana, fruto da capacidade do homem de organizar

seu modo de vida. Igualmente,“é uma elaboração comunitária mediante a qual os

indivíduos se reconhecem, se autorrepresentam e assinalam significações comuns

ao mundo que os rodeia” (SIDEKUM, 2003, p. 18).

A noção de cultura é altamente problemática em termos de sua definição,

entretanto, pode ser considerada “todo o conjunto de saberes, representações,

símbolos, costumes e formas de vida compartilhadas, elaboradas comunitariamente,

por uma coletividade de indivíduos e que a difere de outros grupos, reproduzindo

uma concepção particular de sociabilidade” (LUCAS, 2013, p. 166).

Nesse sentido, as culturas são modos particulares de vida, modos movidos

pelo princípio universal da vida humana de cada sujeito em comunidade (DUSSEL,

2002), igualmente “seriam todos os comportamentos, costumes, imagens, regras e

saberes que possibilitam definir os laços de lealdade e de pertença para com o outro

semelhante, capaz de estabelecer as diferenciações com outros não integrantes de

um mesmo grupo” (LUCAS, 2013, p. 166). Para que se possa conceituar cultura, é

necessário levar em conta a comunidade imaginada, as memórias do passado, o

desejo de viver em conjunto e a perpetuação da herança (HALL, 2011).

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No entendimento de Sidekum, “pelo fato de ser natureza, o sujeito é definido,

determinado, mas sempre como realidade singular livre, ele se distancia da

natureza, é mais que natureza, possuindo abertura para os valores. É uma

indeterminação a determinar-se no processo cultural” (2003, p. 244), e Sidekum

acrescenta que essa é a “natureza humana um ser cultural e intercultural” (2003, p.

244).

O ser humano no decorrer da evolução da espécie, adaptou-se ao meio

ambiente e transformou-se, porém, mais importante do que isso é considerar que as

pessoas são seres sociais e, que esta adaptação ao mundo depende das relações

construídas por esta espécie que necessita, impreterivelmente, de seu grupo, da sua

comunidade, para se humanizar (ANGELIN, 2010).

Assim, torna-se imperioso destacar que a cultura é como uma lente por meio

da qual o homem vê o mundo. A cultura fornece o vínculo entre o que os indivíduos

são intrinsicamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam, dito de

outro modo, o ser humano é um ser individual, mas sob a direção dos padrões

culturais modela como indivíduos separados (GEERTZ, 2008).Para além de suas

preferências individuais o indivíduo se confronta com as convenções sociais e

culturais para que possa adquirir um sentido pleno da sua própria identidade.

A cultura molda a identidade ao dar sentido à experiência (WOODWARD,

2013), assim, parece óbvio que a cultura não é uma entidade alheia ou separada

das estratégias de ação social, muito pelo contrário, a cultura é uma resposta, uma

reação à forma como se constituem e se desenvolvem as relações sociais,

econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados (FLORES, 2004).

Por meio da identidade surgem as noções de classe, gênero, grupo, etnias,

nacionalidades, sendo possível a construção da noção de pertencimento.

A identidade é marcada por meio de símbolos (WOODWARD, 2013),

símbolos estes caracterizados pela cultura por meio da socialização, dos ritos

religiosos, da alimentação, do trabalho, da legislação, das artes, da linguagem, dos

costumes, das concepções filosóficas e ideológicas, ou seja, tudo o que identifica

uma identidade.

Nesse sentido, diante das distintas identidades culturais, apresentam-se

sociedades cada vez mais multiculturais que estão em constantes transformações,

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minimizando-se as relações de alcance geográfico, porém extremamente

engrandecidas as questões culturais, históricas, econômicas e políticas. Na visão de

Kymlicka (1995), o multiculturalismo designa as diferenças nacionais e étnicas, sem

incluir as minorias e grupos sociais que estiveram excluídos historicamente, como

mulheres, gays, lésbicas, portadores de necessidades especiais, que passam a

fazer parte dos novos movimentos sociais.

Os indivíduos tendem a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao

longo do tempo, geram um sentimento de pertença e, uma identidade cultural,

comunitária, nas quais sãodefinidos e defendidos interesses comuns, a vida é de

algum modo compartilhada e um novo significado pode ser produzido (CASTELLS,

2003).Diante das comunidades as identidades se referem como sendo as entidades

que as definem (BAUMAN, 2005). Na concepção de Dubar as comunidades são

“consideradas como sistemas de lugares y nombrespreasignados a los indivíduos y

que se reproducen identicamente a lo largo de lasgeneraciones” (2002, p. 13).

De tal modo, “cada nova geração começa a sua vida no mundo dos objetos e

fenômenos criados pelas gerações precedentes” (LEONTIEV, 1980, p. 45), sendo

que, a comunidade não se resume numa simples conglomerado de indivíduos, muito

pelo contrário, a comunidade somente subsiste pela participação ativa e pelo

envolvimento de cada indivíduo, formando sua identidade cultural exclusivae

singular, diferenciando-se das demais. Entretanto, é necessário lembrar que “a

criação das condições de igualdade dentro da comunidade são, também, as

condições de diferença para fora dela” (LUCAS, 2012b, p. 2).

Nesse cenário, isso só ocorre porque toda a atividade racional do homem é

uma luta pela existência, isto é, uma luta para que todos os indivíduos possam

satisfazer suas necessidades, para que não conheçam carências, fome ou

extenuação (LEONTIEV, 1980), o que só será possível a partir do outro, até porque,

“o indivíduo só pode se constituir como sujeito autônomo por meio do

reconhecimento do Outro” (TOURAINE, 1998a, p. 81). Assim, o indivíduo vive

sempre sob o olhar do outro (TOURAINE, 2009).

E “reconhecer o Outro não consiste nem em descobrir nele, como em mim

mesmo, um Sujeito Universal, nem aceitar sua diferença, mas reconhecer que nós

fazemos, com materiais e em situações diferentes, o mesmo tipo de esforço para

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combinar instrumentalidade e identidade” (TOURAINE, 1998a, p. 82). Desse

modo,“as batalhas de identidade não podem realizar a sua tarefa de identificação

sem dividir tanto quanto, ou mais do que unir. Suas intenções includentes se

misturam com (ou melhor, são complementadas por) suas intenções de segregar,

isentar e excluir” (BAUMAN, 2005, p. 85).

É possível perceber, dessa forma, que se vive neste século uma problemática

jamais vivida com tanta magnitude no contexto da existência humana: de um lado a

igualdade, e por outro lado a questão das diferenças. É impensável e injustificável,

no atual estágio civilizatório que a humanidade se encontra, pensar na igualdade

sem trazer à tona a questão da diversidade e da diferença, até porque a diversidade

cultural é o conjunto de diferenças que reclamam por reconhecimento.

O mosaico das diferenças tende a aumentar toda vez que as particularidades

culturais, religiosas ou nacionais se chocam umas com as outras, reclamando cada

uma delas, reconhecimento e respeito as suas formas históricas de produção de

pertença. Não há pertença ou perspectiva identitária que não seja, ao mesmo

tempo, uma forma específica de estabelecer os limites da igualdade e da diferença

que separa o outro semelhante, do outro diferente (LUCAS, 2013).

A diversidade cultural refere-se à multiplicidade de culturas ou de identidades

culturais, assim sendo, as diversas culturas ao se aproximarem, estranham-se e

passam a olhar para si mesmas de forma diferente.Diante da diversidade cultural,

que traz intrinsecamente diversos olhares e formas de compreensão do mundo, o

multiculturalismo surge com a preocupação com o reconhecimento e proteção das

identidades, preocupação com as lutas pela dignidade, pela inclusão social, pela

autodeterminação, pelo direito das minorias, entre outros.

Devido a isso, para Benhabib (2006) o multiculturalismo não pode entender as

culturas como totalidades unificadas, holísticas e autoconsistentes,já que a defesa

cultural aprisiona o indivíduo e reduz suas intenções a estereótipos culturais.Na

verdade, o multiculturalismo não é uma única doutrina, há multiculturalismos

bastante diversos, o multiculturalismo, não caracteriza uma estratégia política, não

representa um estado de coisas já alcançado e não é uma forma de disfarçada de

endossar algum estado ideal ou utópico (HALL, 2003). Enfim, o multiculturalismo

discute o problema da identidade e seu reconhecimento (SEMPRINI, 1999).

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O multiculturalismo, segundo Abellán, “hace referencia, tanto enla teoria como

enlapractica, a lareivindicación de un modelo de sociedade que ceorganice de

maneracohrente com ele hecho de laexistencia em la sociedade de grupos humanos

culturalmente diversos” (2003, p.18). Sendo assim, o multiculturalismo pode

designar na atualidade, um complexo de problemáticas que remite a presença de

universos culturais diferentes (GALLI, 2006), produzindo a reivindicação do

reconhecimento das diferenças (AVILÉS, 2005).

Nesse viés, o multiculturalismo não é, consoante Parekh, “ni una doctrina

política conuncontenido programático, ni una teoría filosófica sobre elhombre y el

mundo, sino simplesmente una perspectiva sobre la vida humana” (2005, p.

491).Entretanto, para configurar-se o multiculturalismo necessita sempre de duas

características principais, a de reconhecer a natureza dialógica de todas as

identidades e a de discernir quais valores de cada cultura poderá ser aceitos ou não

(BAUMANN, 2001), já que apenas“o reconhecimento do outro não basta para

assegurar a comunicação, o debate, e, portanto, o acordo ou o compromisso com o

Outro” (TOURAINE, 1998a, p. 62)

Esse é um fenômeno inquietante e desafiador da contemporaneidade,

destacando-se como mais um desafio a sociedade contemporânea. Com a

globalização as tensões também afetam os modos de vida e as culturas tradicionais.

Assim,a cultura de uma comunidade choca-se com as múltiplas diferenças que

caracterizam outras culturas e que formam o entorno de sua própria condição

individual (LUCAS, 2013).

Desse modo, “não importa o quanto tentemos estender a nossa imaginação, a

luta da humanidade por autoafirmação não parece fácil, muito menos uma conclusão

inevitável. Sua tarefa não é apenas repetir mais uma vez um feito realizado muitas

vezes ao longo da história da espécie humana: substituir uma identidade mais estrita

por outra, mais inclusiva, e afastar a fronteira da exclusão. O tipo de desafio

enfrentado pelo ideal de “humanidade” (BAUMAN, 2005, p. 86).Nesse sentido, é

preciso estabelecer um novo paradigma no entendimento sobre a questão do

reconhecimento das identidades, já que defender o reconhecimento à diferença para

Lucas, “é defender o encontro do homem com ele mesmo, a busca do indivíduo por

seu lugar no mundo” (2013, p. 273).

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4.DIVERSIDADE CULTURAL E DIREITOS HUMANOS: A GLOBALIZAÇÃO E

SUAS TENDÊNCIAS HOMOGENEIZANTES

Na pós-Modernidade, o mundo e a vida humana tem sido moldados pelas

tendências em conflito da globalização e da identidade. Nesse cenário, “torna-se

cada vez mais difícil definir os limites de cada povo e de cada cultura e aqueles

entendimentos lastreados em conceitos como “os de fora” e “os de dentro”,

estrangeiro e nacional, tendem a ser substancialmente relativizados” (LUCAS, 2013,

p. 167), assim, “a fronteira entre o “dentro” e o “fora” não pode mais ser estabelecida

e muito menos mantida” (BAUMAN, 2003, p. 19).

É preciso “voltar a olhar as tendências que hoje ganham especial atenção sob

a palavra-chave globalização” (HABERMAS, 2007, p. 143). A globalização“pode não

ser um fenômeno revolucionário da sociedade contemporânea, mas é especialmente

desafiadora das formas tradicionais de produzir pertença e identidade” (LUCAS,

2013, p. 16). Isso porque, num mundo globalizante, todos estão regularmente em

contato com outros que pensam e vivem de maneira diferente de si (GIDDENS,

2007).

O termo globalização “significa que o Estado não tem mais o poder ou o

desejo de manter uma união sólida e inabalável com a nação” (BAUMAN, 2005, p.

34), traz uma nova e complexa relação entre o geral e o particular, o universal e o

singular. Isso porque, “o fechamento dos Estados em torno de si mesmos é, para a

globalização, uma realidade tão intensa e necessária quanto a sua capacidade de se

abrir às relações exteriores” (LUCAS, 2013, p. 167).

A globalização não é um fenômeno recente, mas se acelerou a partir da

segunda metade do século XX, envolvendo a ideia crescente de mundo sem

fronteiras, tem a ver também com a tese de que agora vivem todos num mesmo

mundo (GIDDENS, 2007). É, com toda certeza, a palavra mais usada, abusada,

nebulosa e mal compreendida e a menos definida dos últimos e dos próximos anos

(BECK, 1999), podendo ser considerada “nossa irreversível dependência mútua”

(BAUMAN, 2005, p. 96), já que “os seres humanos não vivem sozinhos, e suas

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condições de vida dependem das condições de vida dos outros” (TOURAINE, 2009,

p. 191).

Bauman acerca da globalização e da realidade do mundo contemporâneo traz

o exemplo de um cartaz espalhado pelas ruas de Berlin em 1994 que anunciava que

“Seu Cristo é Judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia,

grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Suas

letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro” (2005, p. 33). O que demonstra que as

identidades estão sendo deslocadas pelos processos de globalização (HALL, 2011,

p. 50).

Em nome da identidade visa-se restaurar um mundo idealizado de

simplicidade de vida, durabilidade, proximidade e confiabilidade das relações

interpessoais,contradizendo as tendências desestabilizadoras e a incertas da

contemporaneidade. Muito embora,no bojo da ideia de comunidade remetendo a

segurança e a estabilidade, sempre há um custo. Para Bauman (2003), o preço é

pago em forma de liberdade, autonomia, direito à autoafirmação e à identidade, ou

seja, por trás das sensações acolhedoras, o comunitarismo abrange processos de

exclusão daqueles que não compõe a comunidade.

À medida que o indivíduo se define por seu pertencimento a uma comunidade

julga o outro diferente como bárbaro, o que só pode se transformar numa guerra

cultural ou uma completa segregação (TOURAINE, 1998a).À medida que se busca

refúgio na identidade ou na comunidade homogênea acaba-se inevitavelmente por

rejeitar o outro, cuja diferença logo aparece como uma ameaça, trazendo consigo o

apeloà homogeneização, a unidade, reduzindo sua relação com o resto da

sociedade (TOURAINE, 1998b).

Muito embora os indivíduos vivam um pouco junto em todo o planeta, ao

mesmo tempo em que, fusionados e separados, é igualmente verdadeiro que por

toda a parte se reforçam e se multiplicam os grupos de identidade, as associações

baseadas na pertença comum, parecendo que as sociedades voltaram a ser

comunidades, reunindo-se estreitamente num mesmo território e essa volta traz

consigo o apelo à homogeneidade, à pureza e à unidade (TOURAINE, 1998b).

Mas ocorre que, na pós-Modernidade, as comunidades não têm como

manterem instransponíveis as fronteiras que separam o “dentro” e o “fora”. Para

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Bauman (2003) essa se transformou na “comunidade do entendimento comum”, que

por sua vez, mesmo se alcançada, permanecerá frágil e vulnerável, necessitando de

constante vigilância. Nessa comunidade, toda homogeneidade, toda unidade precisa

ser construídas e estarão sempre sujeitas a contestação, discussão e reflexão.

Os processos de globalização fazem surgir uma nova articulação entre o

global e o local e produzindo, simultaneamente novas identificações globais e locais

(HALL, 2011), assim, “em vez de as diferenças desaparecem no meio da

homogeneidade cultural perpetrada pela globalização, que influencia a um só tempo

todas as realidades particulares do planeta, novas formas identitárias passam a

conviver com as identidades nacionais em declínio, ou até mesmo assumem o seu

lugar” (LUCAS, 2013, p. 172).

A homogeneização cultural pode ser considerada “o grito angustiado

daqueles/as que estão convencidos/as de que a globalização ameaça solapar as

identidades e a unidade das culturas nacionais” (HALL, 2011, p. 77), isso porque,

“nada está mais distante do multiculturalismo do que a fragmentação do mundo em

espaços culturais, nacionais ou regionais estranhos uns aos outros, obsediados por

um ideal de homogeneidade e de pureza que os sufoca” (TOURAINE, 2009, p. 197).

A maior interdependência global leva a um colapso das identidades

tradicionais, ligadas ao local, e produz uma diversidade cada vez maior de estilos e

identidades (HALL, 2011). Isso porque, “como outros processos globalizantes, a

globalização cultural é desterritorializante em seus efeitos. Suas compreensões

espaço-temporais, impulsionada pelas novas tecnologias, afrouxam os laços entre a

cultura e o lugar” (HALL, 2003, p. 36). Assim, ocorre também, “uma globalização das

biografias, uma reinvenção do global e do local que afeta diretamente a

individualidade de cada um” (LUCAS, 2013, p. 168).

A globalização está tendo efeitos em toda a parte, um efeito pluralizante sobre

as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades, tornando as

identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas, menos fixas e

unificadas (HALL, 2011).É possível estar razoavelmente seguro de que as forças

globais tendem a “elevar as nossas identidades ao nível mundial – ao nível da

humanidade” (BAUMAN, 2005, p. 96). Para Hall (2011) as identidades flutuam

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livremente e se pode verificar uma certa homogeneização cultural, sinalizando para

um senso comum planetário.

O paradoxo que se vislumbra no mundo contemporâneo reside no fato de que

a abertura para novas possibilidades de acesso e trocas não significa que se

conseguiu formar uma aliança harmônica e solidária em projetos comuns. Para Hall

(2011) o futuro depende da faculdade que o homem terá para transcender os limites

das culturas individuais.

Quanto mais a vida social se torna mediada pelos processos de globalização,

mais as identidades se tornam desvinculadas, desalojadas e parece flutuar

livremente uma gama de diferentes identidades, mas que ficam reduzidas e

traduzidas a uma espécie de língua franca internacional, fenômeno conhecido como

homogeneização cultural (HALL, 2011). E a diversidade é percebida,

frequentemente, como disparidade, como pluralidade, contrária a ideia de

uniformidade e de homogeneidade.

Nesse mesmo sentido, juntamente com as tendências homogeneizantes da

globalização, há a proliferação das diferenças, tratando-se de um paradoxo da

globalização, já que culturalmente as coisas pareçam mais ou menos semelhantes

entre si e concomitante há a proliferação das diferenças (HALL, 2003). O

reconhecimento das diferenças tornou-se condição indispensável à participação

social das minorias, dos excluídos, ao fim das desigualdades, a não discriminação e

não submissão de uns pelos outros, a prevenção do sofrimento humano.

Diante disso, a luta pelo reconhecimento da diferença, se impõe na sociedade

globalizada, e é antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e

social, que os homens empregam em suas práticas cotidianas e se encontra inserida

no processo histórico. É, sobretudo, importante lembrar que a construção da

identidade respeitando as diferenças é um processo bastante complexo,

principalmente se considerado que a tendência da maioria dos grupos sociais é a de

colonizar o outro, buscando criar uma monocultura (ANGELIN, 2010).

A diversidade cultural é um dado da realidade e acompanha o processo de

globalização. Nesse mundo contemporâneo globalizado surge o intenso debate

acerca da diversidade cultural e dos direitos humanos, entre as teorias universalistas

e relativistas, haja vista que se desponta como necessário o reconhecimento da

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diversidade cultural, da necessidade de aprender a conviver com as diferenças, com

as diferentes culturas, mas, de forma que não se mitigue o reconhecimento de

proteção da própria condição humana, da humanidade que é inerente ao homem.

A universalidade se apresenta como uma das características básicas da

chamada concepção contemporânea dos direitos humanos, produto do movimento

de internacionalização, muito recente na história, que teve como marco o fim da

Segunda Guerra Mundial (PIOVESAN, 2004).Fundamenta-se na igualdade e na

dignidade, sendo incompatível com práticas de uma pretensa superioridade fundada

em raça, religião, sexo ou qualquer outro elemento.

Dessa maneira, a universalidade dos direitos humanos reconhece a

humanidade alguns valores comuns que devem ser partilhados por todas as

culturas. Ocorre que, mesmo diante de seu caráter universal, os direitos humanos

não estão sustentados em unanimidade de entendimento no contexto global. Na

pós-Modernidade houve uma atitude crítica em relação aos valores universais que a

Modernidade afirmou e definiu, nomeadamente em relação à universalidade dos

direitos humanos.

A diversidade cultural encontrada nas tradições dos povos se choca com a

ideia universalista de igualdade, por confrontar os valores universais

àsparticularidades das culturas, o que fez surgir a tese do relativismo cultural.

Entretanto, ao mesmo tempo, que essa tese pode significar proteção às minorias, às

diferenças culturais, igualmente pode representar a complacência com costumes e

práticas que atentem contra os direitos humanos.

Nesse viés, o multiculturalismo e a efetivação universal dos direitos humanos

remetem à questão da igualdade e da diferença.Assim sendo, “são as zonas de

igualdade e diferença existente entre as culturas que interessam para o debate entre

pluralismo cultural e a universalidade dos direitos humanos” (LUCAS, 2012a, p.

165). A universalidade dos direitos humanos não se contrapõe ao direito à diferença,

podendo, inclusive, ser a condição de possibilidade para que as diferentes

manifestações humanas possam se expressar e conviver em igualdade e sem

aviltamentos, impedindo que a universalidade seja confundida com homogeneização

e a diferença com desigualdade.

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O grande desafio do mundo contemporâneo é o de quejá não se pode mais

deixar de lado a questão da proteção aos direitos humanos a qualquer ser humano

independente do lugar onde se encontre.Isso porque, antes de ter uma identidade

cultural que lhe dá uma perspectiva de estar no mundo, uma identidade e uma

pertença, o homem é refém de sua própria condição humana universal

(FERNÁNDEZ, 2003).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O problema da contemporaneidade não consiste na capacidade humana de

assimilação da cultura ou de dar a sua contribuição para o progresso, mas sim, na

capacidade humana de destruir os efeitos monstruosos que a divisão, que a

segregação produz, para que todos os homens possam marchar pelo caminho do

desenvolvimento integral e harmônico, sem quaisquer limitações. Assim, os direitos

humanos se destacam como um porto seguro, uma âncora, diante das tempestades

impelidas pelo ódio, pela intolerância, pela discriminação e pelo desrespeito à

diferença.

A universalidade dos direitos humanos está contemporaneamente incitada a

mediar os limites entre a igualdade e a diferença nas relações culturais, baseada na

humanidade do homem enquanto tal, como limite ético para o reconhecimento

dasparticularidades e para a afirmação das igualdades que não homogeneízem e

não sufoquem a humanidade presente na experiência de cada homem isoladamente

considerado, assim, o ponto crucial é saber identificar o limite entre a aceitação e a

assimilação, compondo a noção de universalidade com as características comuns e

necessárias de cada cultura (LUCAS, 2013).A universalidade dos direitos humanos

é, acima de tudo, um dever pertencente ao projeto inacabado de tornar o homem

verdadeiramente humano.

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