À Distinta Classe Médica

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VII JORNADA DE SOCIOLOGIA DA SAÚDE Saúde como objeto do conhecimento: história e cultura ISSN: 1982-5544 Curitiba –08 de novembro de 2013 TALIDOMIDA NO BRASIL: “À DISTINTA CLASSE MÉDICA” FrancieliLunelli Santos 1 José Augusto Leandro 2 RESUMO A mídia impressa no Brasil da década de 1950 desempenhou um papel preponderante na divulgação de medicamentos industrializados. A partir dos êxitos da quimiossíntese no período imediatamente pós Segunda Guerra, inúmeros novos produtos farmacêuticos foram apresentados ao público consumidor no país. Este texto pretende demonstrar como foram divulgadas as primeiras propagandas, em jornais brasileiros,de medicamentos com base na talidomida. Palavras-chave: talidomida; mídia impressa; indústria farmacêutica. INTRODUÇÃO A década de 1950 expressou uma ‘utopia incerta’. Uma das principais características do período residiu na valorização dos aspectos positivos da ciência e da indústria que, aliadas, foram capazes de espalhar novos produtos tecnológicos por várias partes do mundo, com destaque para os Estados Unidos da América como o país maior produtor e consumidor dessa nova tecnologia. No final daquele decênio o baby boom verificado a partir do pós Segunda Guerra atingia seu ápice e, segundo Brynner e Stephens (2001, p.1), no ano em que a talidomida foi lançada no mercado, 1957, uma atmosfera de “otimismo e energia contagiava todos os lugares”. Com efeito, de acordo com Hobsbawm (1995, p.15), após uma “era de catástrofe”, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, os 25 a 30 anos que se seguiram foram “de extraordinário crescimento econômico e transformação social”. Entre as características notáveis daquele momento, a expansão industrial destacou-se sobremaneira. Para o historiador (p.265), “as principais inovações que começaram a transformar o mundo assim que a guerra acabou talvez tenham sido as do setor químico e farmacêutico”. Estas áreas específicas, vale destacar,ao longo das décadas de 1940 e de 1950 fizeram a farmacoterapia 1 Historiadora, Mestre em Ciências Sociais Aplicadas, integrante do Núcleo de Estudos em Saúde Pública, Doença e Assistência em Saúde no Brasil, Universidade Estadual de Ponta Grossa. 2 Historiador, Pós-doutor Universidade do Texas-Austin, coordenador do Núcleo de Estudos em Saúde Pública, Doença e Assistência em Saúde no Brasil, Universidade Estadual de Ponta Grossa.

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Curitiba –08 de novembro de 2013

TALIDOMIDA NO BRASIL: “À DISTINTA CLASSE MÉDICA”

FrancieliLunelli Santos1

José Augusto Leandro2

RESUMO

A mídia impressa no Brasil da década de 1950 desempenhou um papel preponderante na

divulgação de medicamentos industrializados. A partir dos êxitos da quimiossíntese no

período imediatamente pós Segunda Guerra, inúmeros novos produtos farmacêuticos foram

apresentados ao público consumidor no país. Este texto pretende demonstrar como foram

divulgadas as primeiras propagandas, em jornais brasileiros,de medicamentos com base na

talidomida.

Palavras-chave: talidomida; mídia impressa; indústria farmacêutica.

INTRODUÇÃO

A década de 1950 expressou uma ‘utopia incerta’. Uma das principais características

do período residiu na valorização dos aspectos positivos da ciência e da indústria que, aliadas,

foram capazes de espalhar novos produtos tecnológicos por várias partes do mundo, com

destaque para os Estados Unidos da América como o país maior produtor e consumidor dessa

nova tecnologia. No final daquele decênio o baby boom verificado a partir do pós Segunda

Guerra atingia seu ápice e, segundo Brynner e Stephens (2001, p.1), no ano em que a

talidomida foi lançada no mercado, 1957, uma atmosfera de “otimismo e energia contagiava

todos os lugares”.

Com efeito, de acordo com Hobsbawm (1995, p.15), após uma “era de catástrofe”,

entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, os 25 a 30 anos que se seguiram foram “de

extraordinário crescimento econômico e transformação social”. Entre as características

notáveis daquele momento, a expansão industrial destacou-se sobremaneira. Para o

historiador (p.265), “as principais inovações que começaram a transformar o mundo assim

que a guerra acabou talvez tenham sido as do setor químico e farmacêutico”. Estas áreas

específicas, vale destacar,ao longo das décadas de 1940 e de 1950 fizeram a farmacoterapia

1Historiadora, Mestre em Ciências Sociais Aplicadas, integrante do Núcleo de Estudos em Saúde

Pública, Doença e Assistência em Saúde no Brasil, Universidade Estadual de Ponta Grossa. 2Historiador, Pós-doutor Universidade do Texas-Austin, coordenador do Núcleo de Estudos em Saúde

Pública, Doença e Assistência em Saúde no Brasil, Universidade Estadual de Ponta Grossa.

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evoluir extraordinariamente pelo desenvolvimento da penicilina, dos antibióticos e dos

quimioterápicos. Foi nesse mesmo ambiente que a talidomida foi lançada na Alemanha e

rapidamente comercializada em diversas partes do mundo com alto potencial sedativo e

antiemético.

Os novos produtos passaram a atuar no controle e cura de algumas doenças há muito

presentes em diversas sociedades tais como o tétano, a sífilis, a chamada ‘lepra’ e a

tuberculose, por exemplo. A aplicação da penicilina, o grande destaque farmacêutico daquele

momento, fez com que pela primeira vez a pneumonia tivesse um tratamento eficaz. O

historiador Roy Porter (2004, p. 133), ao olhar para o período, destaca:“Sonhada e adiada por

tanto tempo, a revolução terapêutica tornou-se uma realidade. Seguiram-se novas drogas de

muitos tipos, na década de 1950, em especial a cortisona, de valor inestimável [...] e os

primeiros agentes psicofarmacológicos eficazes...”.

No entanto, os anos 50 e 60 apresentaram outras facetas não tão otimistas quanto ao

futuro da humanidade. Dois exemplos são ilustrativos do quanto a atmosfera de confiança

sobre os destinos dos indivíduos e das coletividades eram frágeis: a possibilidade de

aniquilação da espécie humana via guerra nuclear seguia como um dos resultados concretos

da divisão do mundo pós 1945; da mesma feita, porém voltada para uma espécie de

‘aniquilação individual’, a doença câncer era constantemente noticiada na imprensa como o

grande ‘inimigo’ que rondava a vida moderna dos homens e das mulheres.

Brynner e Stephens (2001, p.4) destacam que entre os elementos que reforçam a ideia

de uma ‘utopia incerta’ nos anos 50 estavam, inclusive, alguns produtos da nova revolução

farmacêutica do período: os calmantes e as pílulas para dormir. Para a Grã-Bretanha, por

exemplo, citam (sem mencionar o ano) que eram estimados em pelo menos um milhão as

pessoas que utilizavam algum tipo de sedativo diariamente e que cerca de uma a cada oito

prescrições do Serviço Nacional de Saúde consistia em receita de pílula para dormir. “Em

1955, os Estados Unidos produziram cerca de 4 bilhões de barbitúricos, o que representava 26

pílulas para cada homem, mulher e criança no país” (IBIDEM).

O evento da talidomida, isto é, a confirmação da relação do uso da droga por gestantes

aos efeitos teratogênicos nos corpos dos bebês,é considerado uma das grandes tragédias da

indústria (farmacêutica) no século XX. Lançado no mercado alemão em outubro de 1957, o

medicamento logo foi comercializado em dezenas de países que o venderam para as mais

diversas finalidades. Primeiramente, “a empresa alemã ChemieGrunenthal sintetizou a

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substância tendo como objetivo inicial a sua utilização como anti-histamínico. Estudos

realizados em animais falharam em confirmar esse efeito, mas demonstraram as propriedades

sedativas e hipnóticas da substância” (OLIVEIRA et al., 1999, pp.100-101). De fato, segundo

Brynner e Stephens (2001, p. 13) a talidomida foi de início testada como anti-convulsivo para

epiléticos. “Não prevenia as convulsões [...] mas levava os pacientes ao sono ‘natural’ durante

toda a noite. Esses testes clínicos iniciais demonstraram que a talidomida não era apenas um

sedativo que provocava relaxamento; era, na realidade, um hipnótico que induzia ao sono”.

Fato é que os medicamentos com base na talidomida produziram diversas

consequências danosas àqueles que os ingeriram. A iatrogenia medicamentosa gerou efeitos

colaterais que incluíam desde simples tonteiras a casos graves de neuropatias como a

polineurite, por exemplo; e, uma vez que a droga foi apresentada como um sedativo atóxico

inclusive com propriedades antieméticas, as repercussões mais terríveis da talidomida – seus

efeitos teratogênicos – começaram a ser observados sobretudo a partir do ano de 1960,

quando milhares de bebês nascidos de mães que tomaram o medicamento durante os

primeiros meses da gravidez, apresentaram sinais teratogênicos variados. Entre eles, a

focomelia, palavra que designa as “crianças com um tipo peculiar de malformação congênita,

caracterizada pelo desenvolvimento defeituoso dos ossos longos dos braços e pernas e cujas

mãos e pés variavam entre o normal e o rudimentar” (OLIVEIRA et al., p.102).

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Inicialmente pesquisamos artigos e livros que trazem informações sobre a história da

farmácia no Brasil, com objetivo de melhor situar o tema no contexto das décadas de 1940,

1950 e 1960, momento em que há uma revolução medicamentosa pautada na emergência dos

produtos industriais quimiossintéticos; e, também, com o objetivo de encontrar referências

quanto aos fatos relacionados especificamente à talidomida no país.

Vale destacar a quase inexistência de estudos que trazem aspectos históricos sobre a

presença da talidomida no Brasil. Somente um artigo, presente na base Scielo, discute a droga,

historicizandoo medicamento e apontando para certo entendimento acerca das dimensões da

circulação da droga no território nacional, porém a ênfase do texto volta-se para a questão da

vigilância sanitária. Trata-se do artigo Talidomida no Brasil: vigilância com responsabilidade

compartilhada?de autoria de Maria Auxiliadora Oliveira, Jorge Bermudez e Arthur Custódio

de Souza (1999). Nele, os autores fazem um amplo painel da trajetória histórica da droga,

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enfatizando a experiência brasileira no uso do medicamento; indicam eles pelo menos duas

gerações de portadores da síndrome da talidomida no país. A segunda geração teria sido

iniciada a partir de 1965 quando o medicamento foi liberado, sob controle específico, para o

tratamento da hanseníase. Ainda, uma monografia de especialização em Vigilância Sanitária

de Medicamentos defendida em 2004 na Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz traz dados

históricos interessantes sobre a talidomida em diversos países e discute a atualização da bula

no Brasil (MEIRA et al., 2004).

Para os propósitos da pesquisa, dois livros e um texto foram fundamentais para o

nosso entendimento acerca do funcionamento das estratégias de propaganda utilizadas pela

indústria farmacêutica a partir no período após a Segunda Guerra Mundial.

Flávio Edler, em sua obra Boticas e Pharmacias (2006); e Eduardo Bueno,no livro

Vendendo saúde (2008),são dois autores que produziram obras relevantes para se pensar

aspectos da trajetória histórica de medicamentos diversos no país, desde a prática da

utilização de sangrias do período colonial até a história da indústria farmacêutica após a

revolução operada pela quimiossíntese no pós Segunda Guerra. Muito embora a literatura

sobre a história da farmácia considere o evento da talidomida uma das grandes tragédias já

enfrentadas pela indústria farmacêutica, tal evento e seus desdobramentos no território

brasileiro não são estudados por pesquisadores das universidades no país. As duas obras

acima mencionadas, que se dedicam a discutir a história da farmácia no Brasil, e cujos

recortes cronológicos perpassam pelas décadas de 1950 e 1960, não mencionam os fatos

ligados à talidomida no país.Entretanto,foram de ampla relevância para compreensão do

contexto sócio-histórico relacionado à produção e divulgação publicitária de fármacos no

Brasil.

Na revisão bibliográfica, foi fundamental a leitura do artigo Estratégias

mercadológicas da indústria farmacêutica e o consumo de medicamentos (1983), escrito por

José Augusto C. Barros. Em texto inspirado, o autor associa o advento da medicalização à

expansão da publicidade no Brasil. Processo esse que, ao mesmo tempo em que dá

visibilidade para as novas conquistas científicas à população, acaba por incentivar a

automedicação e o desconhecimento sobre os efeitos nocivos – ou ainda desconhecidos – dos

químicos sobre o corpo humano. O autor ressalta a importância da publicidade para a

indústria farmacêutica através da figura do médico, figura essa que outros pesquisadores

(EDLER, 2006; BUENO, 2008), também consideram como um personagem fundamental na

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intermediação entre laboratórios e consumidores. Para ter acesso aos médicos, a maioria dos

laboratórios cria em seus quadros de recursos humanos a figura do propagandista de

medicamentos, um divulgador especializado das novas criações e descobertas científicas, e

que fornecia aos médicos amostras grátis de medicamentos recém lançados ou em testes.

Assim, a partir de meados da década de 1940 e sobretudo ao longo da década de 1950

a própria compreensão da função do medicamento no processo terapêutico sofre uma

profunda modificação; ele deixa de ser apenas um elemento auxiliar no processo de cura

(juntamente com outras medidas como, por exemplo, hábitos alimentares) para assumir o

papel de solução de muitos problemas de saúde. Como bem observou Barros (1983, p. 378):

No momento em que se instaura a quimiossíntese em um contexto capitalista

de produção, os medicamentos assumem a conotação de uma mercadoria

com a necessidade implícita de ser consumida em quantidade e qualidade

crescentes. Nesse sentido, o medicamento assume um importante e duplo

papel ao satisfazer, a um só tempo interesses do capital e do médico. A

difusão generalizada da ideia do medicamento como solução permite que o

médico ao prescrevê-lo satisfaça as expectativas do paciente e as suas

próprias. Para um e outro, na verdade, o momento mais importante da

consulta passou a ser o da prescrição, por um lado em detrimento ou às vezes

ocupando o lugar da anamnese e/ou do diagnóstico, por outro lado

substituindo crescentemente outras alternativas terapêuticas que, pelo menos,

para quadros clínicos específicos, eram dominantes no passado (grifos do

autor).

METODOLOGIA

Esta pesquisa pautou-se pela investigação em periódicos publicados no Brasil, nos

últimos anos da década de 1950 e início da década de 1960,especialmente jornais editados na

cidade do Rio de Janeiro, a fim de encontrar publicações relativas à divulgação e uso da droga

talidomida. Os periódicos foram pesquisados através da Hemeroteca online da Biblioteca

Nacional.

Para compreensão do fenômeno relativo à ligação entre farmácia e imprensa escrita no

Brasil, foi importante pensar, em termos metodológicos, as possibilidades da mídia impressa

enquanto fonte de pesquisa; e, mais do que isso, foi importante refletir sobre o uso de

propagandas/publicidade3na pesquisa histórica.

3Neste texto tomamos os termos propaganda/publicidade como sinônimos.

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Uma vez tomada como elemento do conjunto da sociedade capitalista em

que vivemos, a propaganda pode ser compreendida também como expressão

da época em que ocorre e, portanto, como uma fonte histórica de primeira

ordem, principalmente se o que temos em mente é pesquisar o recorte da

realidade para o qual ela se dirige, isto é, os sonhos, desejos, as expectativas

das pessoas, isoladas ou em grupos, às quais os anúncios se dirigem para

satisfazer e criar necessidades. É por vender mais do que produtos ou

serviços que a propaganda acaba por tornar-se uma referência fundamental

para o estudo do imaginário (CERRI, 2005, p. 321).

Desse modo, entendemos que o estudo da publicidade de uma determinada época

permite identificar não apenas aspectos da economia de uma dada sociedade - e, obviamente,a

dinâmica mercadológica embutida em diversos produtos -,como também auxilia na percepção

de valores intangíveis dessa mesma sociedade que se expressam através dos produtos

anunciados pelas propagandas. Pensadas assim, as propagadas da talidomida demonstraram,

como veremos mais adiante,que o mercado consumidor podia contar com um medicamento

novo que induzia ao sono – ‘destituído de barbitúricos’, um dos grandes causadores de

suicídios no período –, e, portanto, os anúncios agregaram à talidomida valores de

modernidade e segurança.

Inicialmente buscamos na mídia impressa notícias publicitárias com o termo

‘talidomida’ e ‘thalidomide’. Entretanto, para a década de 1950,nenhum resultado foi

encontrado nos periódicos pesquisados. Passamos, então, a investigar a base da Hemeroteca

da Biblioteca Nacional com os termos dos nomes-fantasia utilizados pela droga no

Brasil:Sedalis,Sedalis 100,Sedin,Slip,Ectiluran,OndasileVerdil. O termo ‘Sedalis’ possibilitou

captaro que cremos ser o primeiro anúncio do medicamento no país a partir de

propaganda/publicidade na imprensa escrita, em março de 1959.

RESULTADOS

Na onda de euforia do aumento no consumo de medicamentos a partir de meados da

década de 1940, os laboratórios farmacêuticos ampliavam seus negócios lançando

periodicamente produtos que prometiam o bem-estar, o corpo belo, a resistência física, a

vitalidade, o fim das dores indesejáveis e os desconfortos típicos da agitada vida moderna.

Vale destacar que na época em foco um mercado global de remédios também já existia

e companhias europeias e norte-americanas distribuíam, para diversas partes do mundo,

milhares de substâncias medicamentosas, bem como licenciavam suas descobertas para serem

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produzidas por laboratórios nacionais. De acordo com Brynner e Stephens (2001, p. 15)

“mesmo antes do sedativo ser introduzido na Alemanha, a Grunenthal já mirava o mercado

internacional em expansão; contratos foram assinados com a Astra Company, na Suécia, em

março de 1957, para distribuição no mercado escandinavo; e, em julho com a Distillers para

que ela detivesse os direitos para distribuição na British Commonwealth”.

Muitos laboratórios e indústrias farmacêuticas criados no Brasil, a partir da década de

1940, eram de origem estrangeira ou financiados com apoio de capital externo. Dessa feita, os

mais recentes lançamentos de medicamentos desenvolvidos na Europa e Estados Unidos não

tardavam a aportar no país. Ainda, a indústria farmacêutica brasileira também estava em

expansão no período. Duas empresas nacionais, o Instituto Pinheiros Produtos Farmacêuticos

e o Lafi - Laboratório Farmacêutico Internacional S.A., ambas situadas no estado de São

Paulo,obtiveram licença para produção no país de medicamentos com base na talidomida. O

outro laboratório também envolvido com a droga no país era de capital estrangeiro, o

Laboratório Americano de Farmacotherapia.

A primeira propaganda comercial da talidomida no Brasil, identificada pela nossa

pesquisa, foi publicada em três diferentes jornais de grande circulação no país, dois editados

na cidade do Rio de Janeiro, o Correio da Manhã e o Diário de Notícias, e outro editado na

cidade de São Paulo, O Estado de São Paulo. Em data de 22 de março de 1959, os veículos

mencionados, todos com destaque nas suas primeiras páginas, estamparam anúncio dirigido

“à distinta classe médica”. Tal anúncio afirmava que o Instituto Pinheiros, Produtos

Terapêuticos S/A havia acabado “de lançar, mediante acordo com a Chemie Grunenthal, da

Alemanha, o produto Sedalis”. Segundo a propaganda, tratava-se de um “sedativo-hipnótico

não barbitúrico” destituído de “efeitos secundários”. Ainda, o Sedalis podia ser tolerado

“mesmo por crianças e portadores de lesões hepáticas”.

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FONTE: CORREIO DA MANHÃ, 22 DE MARÇO DE 1959, P. 1

Através da análise dos periódicos e das propagandas sobre o medicamento Sedalis

entendemos que seus fabricantes e distribuidores no Brasil preferiram, inicialmente, dirigir

seus anúncios diretamente aos médicos. Isso se estendia a outros medicamentos no mesmo

período. Segundo Eduardo Bueno (2008, p. 99):

Quando se iniciou a década de 50, um grande número de novos

medicamentos chegou ao mercado. No entanto, não eram mais elixires,

xaropes e depurativos que enchiam as prateleiras das farmácias e sim

antibióticos, antidepressivos e ansiolíticos. E esses novos produtos não

podiam ser anunciados para o público. Não só não podiam como ao que tudo

indica, os proprietários das patentes sequer queriam fazê-lo: a indústria

farmacêutica parece ter chegado a conclusão que era mais barato, eficiente e

rentável centrar seus esforços mercadológicos nos próprios médicos.

Os anúncios do Sedalis – endereçados especificamente para a ‘distinta classe médica’

– são ilustrativos e representativos de um determinado momento da indústria e do comércio

farmacêutico no Brasil no qual emergiram técnicas de marketing que passaram a enfatizar e a

valorizar sobremaneira o papel do médico como fundamental “na cadeia de eventos: consumo

de medicamentos – medicalização – lucros” (Barros, 1983, p. 379). Temporão (apud Bueno,

2008, p. 100) vai ao encontro de Barros ao destacar que o propósito “dos laboratórios da

época era colocar no centro das preocupações mercadológicas o intermediador técnico das

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possibilidades de consumo: o médico”. A citação a seguir, de Barros (1983, p. 378), é

elucidativa:

No momento em que se instaura a quimiossíntese em um contexto capitalista

de produção, os medicamentos assumem a conotação de uma mercadoria

com a necessidade implícita de ser consumida em quantidade e qualidade

crescentes. Nesse sentido, o medicamento assume um importante e duplo

papel ao satisfazer, a um só tempo interesses do capital e do médico. A

difusão generalizada da ideia do medicamento como solução permite que o

médico ao prescrevê-lo satisfaça as expectativas do paciente e as suas

próprias. Para um e outro, na verdade, o momento mais importante da

consulta passou a ser o da prescrição, por um lado em detrimento ou às vezes

ocupando o lugar da anamnese e/ou do diagnóstico, por outro lado

substituindo crescentemente outras alternativas terapêuticas que, pelo menos,

para quadros clínicos específicos, eram dominantes no passado (grifos do

autor).

Além da propaganda/publicidade do Sedalis anteriormente mencionada, também

identificamos um outro anúncio do medicamento,a partir de matéria jornalística publicada em

1976, quando o Jornal do Brasil, em data de 27 de outubro, noticiou o início de ação

indenizatória impetrada contra a União e contra os laboratórios que produziram e

comercializaram a droga no país: Laboratório Sintex do Brasil (sucessor do Instituto

Pinheiros Produtos Farmacêuticos), Ceil Comercial Exportadora e Indústria Ltda (sucessor

do Lafi) e Laboratório Americano de Farmacotherapia. Esta propaganda do medicamento, ao

que tudo indica, foi endereçada diretamente ao grande público, uma vez que a talidomida foi

um produto comercializado livremente no balcão da farmácia, sem necessidade de receita

médica.

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Fonte: Jornal do Brasil, 27/10/1976, p. 7.

CONCLUSÃO

A mídia impressa, na década de 1950,foi utilizada constantemente como um dos

principais meios para divulgação de novos produtos industrializados para o consumo. Nesse

caso, enquadra-se o espaço concedido pela jornais às publicidades de medicamentos.

Concordamos com Jurema Barros Dantas (2010, p. 133), quando afirma:

…a publicidade de fármacos é a principal via pela qual as indústrias

farmacêuticas tornam seus produtos atraentes, em um primeiro momento, e,

logo depois, indispensáveis à vida do homem contemporâneo. Desta forma, a

propaganda - direcionada tanto aos médicos quanto ao público em geral -

pode ser vista como uma das principais responsáveis pela disseminação de

uma cultura que exalta os efeitos dos fármacos, promovendo a crença de que

para quase tudo na vida há um remédio e que estas fórmulas foram

desenvolvidas unicamente “para facilitar” a vida dos indivíduos, não

envolvendo, portanto, quase nenhum risco.

Vale destacar que os dois documentos históricos encontrados - as duas propagandas do

medicamento talidomida –ambos explicitaram claramente ao público leitor que o Instituto

Pinheiros Produtos Terapêuticos vendia, naquele momento, mais do que um produto com

poderes sedativos e hipnóticos; os anúncios vendiam, agregado ao produto,segurança:

“isento” ou “destituído” “de efeitos secundários” afirmavam os textos da publicidade do

Sedalis e do Sedalis 100.

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A propaganda do Sedalis, datada do dia 22 março de 1959,dirigida à distinta classe

médica, é indicativa de um momento em que os doutores da medicina passaram a

desempenhar um papel proeminente na trama entrelaçada entre laboratórios, propagandas de

medicamentos e consumidores. Quando possível, os esculápios dirigiam-se às salas

comerciais que representavam os laboratórios para apanhar suas amostras grátis; mais

comum, no entanto, e tornado praxe até os dias de hoje, os próprios consultórios médicos

passaram a reservar parcelas do seu tempo para o recebimento dos propagandistas dos

laboratórios que para lá iam (e vão) divulgar os novos fármacos para serem experimentados

em pacientes.

Inicialmente dirigidas aos esculápios, as propagandas da droga seriam,

posteriormente,direcionadas para o grande público consumidor. O produto foi disponibilizado

no balcão da rede comercial das farmácias do país, e também podia ser adquirido sem o aval

da ‘distinta classe médica’.

REFERÊNCIAS

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