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A DIDÁTICA E A COMPLEXIDADE DO TRABALHO DOCENTE: DA
RELAÇÃO COM O SABER À NOÇÃO DE ATIVIDADE
Andrea Calazans
Universidade Federal de Minas Gerais
Mariana Veríssimo
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
RESUMO
Neste artigo apresentam-se alguns resultados de uma pesquisa que buscou compreender
a relação com o saber dos alunos do oitavo ano na disciplina de Ciências e na disciplina
“Projeto Afetivo Sexual”. Sendo a mesma professora que ministrou as duas disciplinas
pode-se perguntar: a relação com o saber dos alunos era a mesma nas duas disciplinas?
A pesquisa se concentra nas implicações da relação professor aluno para a construção
da relação com o saber o que coloca em evidência a complexidade da atividade docente.
A principal técnica de coleta de dados foi o "Inventário de Saberes", instrumento
desenvolvido e aperfeiçoado por Bernard Charlot (1996). A ideia básica deste
instrumento de pesquisa é fazer algumas questões abertas para que os alunos respondam
por escrito, a fim de realizar um diagnóstico. As noções de “relação com o saber”
desenvolvida por Charlot e de “atividade” conforme proposta por Schwartz, criador da
ergologia, são centrais nas reflexões que se seguem. A noção de atividade é uma
capacidade criadora que cada humano tem para responder às infidelidades do meio
interno e externo no aqui e agora e sempre relativa às normas. Essa força criadora é
diferente em cada ser humano porque ela é composta pelo resultado das interações entre
três dimensões: biológica, social e metafísica que são inseparáveis no humano. Ao
lançar mão de outros conceitos da abordagem ergológica o texto destaca também o
conceito de “desconforto intelectual” que pressupõe uma postura de humildade do
docente e de “dramáticas do uso de si” que enfatiza a complexidade do trabalho
docente. Uma das conclusões da pesquisa é que na contramão do modelo opressor e
autoritário, o professor pode promover no estudante o reconhecimento dos seus
potenciais, limites, possibilidades humanas e, portanto seu reconhecimento como
construtor de saberes.
Palavras- Chave: Relação com o saber – Atividade - Prática docente
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 200204
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INTRODUÇÃO
A prática docente é marcada por dramáticas vivenciadas de forma particular
por cada professor e está relacionada à tentativa de superar seus desconfortos ao buscar
se tornar um profissional eficaz em sua profissão. A forma como é construída a
profissão docente na sociedade de produção e de consumo espera-se que o professor
seja responsável pelo produto do seu trabalho. Entretanto o resultado do trabalho do
professor está diretamente vinculado a relação que o aluno tem com o saber. Assim foge
ao controle do professor o domínio do saber que o aluno construiu em relação ao que o
professor tinha como função mobilizá-lo a construir ao apresentar os saberes
sistematizados.
Essa dramática serviu como mobile para se desenvolver uma pesquisa no
sentido de buscar analisar a prática que confrontava as pesquisadoras com o fato de que
alguns alunos fracassam e outros são bem sucedidos na escola. As pesquisadoras já
tinham por hipótese que suas práticas poderiam contribuir para a redução do fracasso
escolar dos seus alunos. Ao buscar entender por que alguns alunos não trilham o
caminho do sucesso escolar, por que não sabem e não constroem competências,
enquanto outros não apresentam dificuldades como estas é preciso buscar compreender
o que aconteceu em sua trajetória de vida e como se dá sua relação com o mundo, com o
outro e consigo mesmo. Com base nessas questões foi realizada uma pesquisa na Escola
Municipal Maria Verde Jardim da região metropolitana de Belo Horizonte.
Essa pesquisa teve como objetivo compreender a relação que os alunos do
oitavo ano da Escola Municipal Maria Verde Jardim estabeleciam com o saber a partir
do acesso ao conjunto de conteúdos desenvolvidos nas aulas da disciplina de Ciências e
na disciplina “Projeto Afetivo Sexual”. Ambas as disciplinas foram ministradas pela
mesma professora que ao mesmo tempo desenvolveu a pesquisa aqui apresentada. A
pesquisa tomou como base a teoria “da relação com o saber” desenvolvida por Bernard
Charlot e os conceitos “dramáticas do uso de si”, “desconforto intelectual” e “atividade”
desenvolvidos por Yves Schwartz (2007) criador da abordagem ergológica, para
analisar a atividade docente e suas implicações na construção da relação com o saber
dos alunos.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 200205
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ELEMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa foi realizada com duas turmas do oitavo ano, durante o
desenvolvimento das disciplinas de Ciências e da disciplina “Projeto Afetivo Sexual”. A
coleta de dados foi realizada nos meses de agosto, setembro e outubro de 2013 por meio
das seguintes técnicas de pesquisa: observação sistematizada pela professora e pelos
estudantes em diários de bordo; inventário de saberes; e filmagens pelos próprios alunos
durante o desenvolvimento das tarefas em sala de aula. A partir dos resultados foi
possível compreender como o ensino de ciências e o projeto afetivo sexual se
apresentam no universo explicativo dos alunos do 8º ano do ensino fundamental sujeitos
dessa pesquisa.
O "Inventário de Saberes" é um instrumento desenvolvido e aperfeiçoado
por Bernard Charlot (1996). A ideia básica deste instrumento de pesquisa é fazer
algumas questões abertas para que os alunos respondam por escrito, afim de realizar um
diagnóstico. Na pesquisa que este autor realizou, elaborou perguntas do tipo: Tenho...
anos. Aprendi coisas.... O que para mim é importante em tudo isso....... E agora o que
espero.....
Segundo CHARLOT, este modelo força o aluno a fazer escolhas e ao
mesmo tempo explicitá-las. O inventário não nos diz o que o aluno aprendeu, mas o que
faz mais sentido para ele naquilo que aprendeu. É isto o que interessa para esta
pesquisa, já que se pretende compreender a relação que os alunos estabelecem com o
saber a partir do acesso ao conjunto de conteúdos desenvolvidos nas aulas da disciplina
de ciências e do “projeto afetivo sexual”.
IDENTIFICAÇÃO DA ABORDAGEM DE ENSINO NA PRÁTICA
DOCENTE
Para analisar a prática docente da professora sujeito dessa pesquisa foi
utilizado como principal referência as reflexões desenvolvidas por Mizukami (2009). A
autora caracteriza de forma clara e didática as abordagens de ensino ou posturas
possíveis a ser adotada pelo professor. Na disciplina de ciências a professora adotou
uma abordagem de ensino tradicional cuja relação professor aluno era verticalizada, já
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que a professora se posicionava como detentora do conhecimento e tinha, portanto, que
transmitir conteúdos. Ao longo do desenvolvimento da pesquisa na disciplina de
ciências a professora trabalhou os conteúdos pré-definidos pelo livro didático adotado
pela escola. Dentre os conteúdos trabalhados estão os sistemas digestório, respiratório,
cardiovascular, urinário, endócrino e nervoso. Nas aulas foram utilizadas as seguintes
técnicas de ensino: aulas expositivas, realização de exercícios para fixação do conteúdo
lecionado (questionário), trabalhos em grupos no formato de oficinas e seminários. As
avaliações eram feitas com o objetivo de aferir a quantidade de conhecimento que os
alunos adquiriram. Elas eram realizadas por meio de prova escrita e era atribuído notas
as tarefas e aos trabalhos para ao final do trimestre conferir uma nota ao aluno na
disciplina e verificar se ele foi bem sucedido ou fracassado no seu processo de
escolarização. Entretanto a avaliação não servia para a retomada dos conteúdos não
consolidados.
No projeto afetivo-sexual, por outro lado, devido a uma maior liberdade de
planejamento curricular e ausência de livro didático norteador, a professora adotou uma
prática mais identificada com a abordagem de ensino humanista com enfoque na
realidade dos alunos. Ao longo da pesquisa na disciplina “projeto afetivo sexual” foram
trabalhados os conteúdos responsabilidade sexual, autoestima, diálogo, relacionamento,
aparelho reprodutor, fecundação, gravidez, parto, doenças sexualmente transmissíveis e
métodos anticoncepcionais. As aulas eram ministradas mediadas por técnicas de ensino
que promoviam a reflexão, a discussão e debates tais como: teatro, seminário de
discussão e debate e oficinas. A avaliação no projeto era feita de acordo com a
participação nas aulas e não havia atribuição de pontos para as tarefas realizadas.
AS IMPLICAÇÕES DA RELAÇÃO PROFESSOR ALUNO NA CONSTRUÇÃO
DE SABERES
A partir da análise do “inventário de saberes” foi possível verificar que os
alunos se sentem pouco mobilizados a se engajarem na construção dos saberes que o
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acesso aos conteúdos da disciplina de ciências possibilita. Esse engajamento só é
possível quando os estudantes encontram um sentido pessoal nos conteúdos, nas aulas e
na escola. Essa relação pôde ser verificada quando foi pedido ao aluno para dissertar
sobre a disciplina de ciências: “A disciplina de ciências é mais ou menos, porque apesar
de eu não ter livro eu não entendo nada, mas da professora eu gosto.” Dessa frase pode-
se inferir que apesar do bom relacionamento com a professora, o estudante não encontra
sentido pessoal naquilo que se quer que ele aprenda e, por isso mesmo sua relação com
o saber investido na disciplina não o permite fazer uso de suas potencialidades para
construir saberes. De acordo com Charlot (2005) o estudante só irá construir saberes se
ele estudar, então é preciso pensar o que o mobiliza a estudar, identificando se ele se
realiza no processo de construção de saberes, independente do esforço inerente ao ato de
estudar.
Mais que um processo cognitivo, construir saberes é, sobretudo, um
processo relacional, uma vez que aprendemos de nós mesmos, dos outros e dos
conhecimentos. Essa ampliação do sentido de aprender coloca em xeque a ideia da
escola que centra a aprendizagem na memorização e na reprodução de informação, que
separa o que se aprende do processo de aprender (PADILLA-PETRY; HERNÁNDEZ-
HERNÁNDEZ, 2013).
Construir saberes requer uma atividade intelectual intensa, que mobiliza o
corpo si ao entrar em movimento de reflexão e de escolhas contínuas, assim como para
a realização de qualquer outra tarefa. Ao considerar o processo de construção de
saberes, compreende-se que o papel do professor não é ensinar, mas sim compartilhar
saberes que precisam ser relacionados ao universo do aluno de forma a promover
sentido pessoal para que ele se engaje na construção de saberes. Percebe-se, então, que
o professor compartilha saberes, ajuda, orienta e acompanha o estudante. A partir dessa
constatação é importante ressaltar que talvez um dos papeis do professor seja trabalhar a
relação do aluno com o saber, já que ela é necessária para o sucesso escolar e será
construída e modificada ao longo do tempo e das relações que o indivíduo estabelece
com o mundo, com o outro e consigo mesmo.
Na medida em que o professor deixa de ocupar o lugar de transmissor de
conhecimentos para o lugar de quem promove a construção do saber por meio de
sentidos pessoais ocorre uma mudança na compreensão do papel desse profissional.
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Esse novo lugar promove no professor um desconforto intelectual que para a ergologia é
uma postura de humildade. Essa postura implica em reconhecer que o professor sabe
algumas coisas que o aluno não sabe, mas que o aluno também sabe coisas que o
professor não sabe. O desconforto intelectual é baseado no diálogo socrático de duplo
sentido em que a sala de aula é o local de compartilhar saberes. Essa nova forma de
compreensão do papel do professor promove a superação da dramática do uso de si pelo
outro, visto que os professores são cobrados pelos resultados da ação do
ensino/aprendizagem, apesar de não poderem produzir diretamente esses resultados.
Charlot (2010) considera que a relação com o saber não é uma resposta, é
uma forma de perguntar, ou seja, deve-se perguntar se a relação que o aluno tem com o
saber permite a ele aprender o que a escola deseja que ele aprenda. Deve-se considerar
que fora da escola o aluno possui formas diferentes de aprender que diferenciam das
formas de aprender dentro da escola. Os professores precisam ter conhecimento dessa
contradição, e não tentar estabelecer se a relação do aluno com o saber é “positiva” ou
não. É importante valorizar o que se aprende fora da escola sem, no entanto,
menosprezar o que se aprende dentro da instituição.
No diário de bordo das aulas da disciplina projeto afetivo sexual muitos
alunos expressaram saberes que não foram trabalhados em sala de aula, o que mostra
que o aluno já trazia saberes construídos na sua relação com o mundo e o associou a
conteúdos que foram desenvolvidos nas aulas. Pode-se verificar que quando o aluno
está engajado na construção do saber, porque faz sentido pessoal para ele aprender
determinado conteúdo, o estudante aprende fora do espaço da escola e independente do
professor.
A relação que os alunos estabeleceram com a disciplina “projeto afetivo
sexual” foram expressas em suas reflexões sobre as aulas do projeto. Um dos estudantes
considera que: "o projeto afetivo sexual é legal porque em afetivo os alunos falam mais
o que pensam, também é uma aula legal porque não tem que ficar todo mundo sentado
em cadeiras.” A partir dessa e de outras afirmações dos estudantes pode-se inferir que
os alunos estão em uma relação com o mundo (vontade de aprender sobre o que o cerca)
e em relação consigo (sentido pessoal) que permite a eles fazer uso de suas
potencialidades para aprender o conteúdo relacionado ao projeto afetivo sexual. Quando
o conteúdo está relacionado com o que faz sentido pessoal o mesmo é considerado fácil
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e a disciplina se torna um móbile para se construir o saber como se pode observar na
afirmação a seguir: “nas aulas do projeto afetivo sexual eu aprendi tudo porque não é
uma matéria difícil, só não aprende quem não quer.”
Para Charlot (2000) a criança é um ser inacabado em um mundo (meio)
preexistente e esse ambiente irá influenciá-la na medida em que ela se deixar ser
influenciada. Porém essa influência é individual e pode ter efeito sobre uma pessoa e em
mesma condição para outra não. Portanto a noção de "influência” para Charlot é uma
relação e, não, uma ação exercida pelo meio sobre o sujeito.
Analisar a relação com o saber é estudar o sujeito confrontado à
obrigação de aprender, em um mundo que ele partilha com outros: a
relação com saber é relação com o mundo, relação consigo mesmo,
relação com os outros. Analisar a relação com o saber é analisar uma
relação simbólica, ativa e temporal. Essa análise concerne à relação com
o saber que um sujeito singular inscreve num espaço social
(CHARLOT, 2000, p. 79).
A definição de Charlot (2000) para a teoria da relação com saber é
esclarecedora e ajuda os professores a entender que o saber é relação e que não haverá
saber se o aluno não tiver uma relação com esse saber. Sendo assim o que deve ser a
essência de uma educação integral é o processo que leva o estudante a adotar uma
relação de saber com o mundo e não a acumulação de conteúdos. O professor deve estar
atento a que tipo de relação com o saber seu aluno está construindo para que o mesmo
não aprenda com o objetivo de evitar notas baixas, de não ser punido pelos pais, de
passar de ano, ou até mesmo para agradar ao professor. Se esse for o caso “a
apropriação do saber é frágil, pois esse saber recebe pouco apoio do tipo de relação com
o mundo (descontextualização) que dá lhe um sentido específico” (CHARLOT, 2000,
p.64).
AS COMPLEXIDADES DA ATIVIDADE DOCENTE
A noção de Atividade em Ergologia (Schwartz, 2003) pode ser
compreendida pela identificação do que ela não é: ação, tarefa, trabalho, fazer,
movimento contrário à inércia, vida, etc. Não podemos adjetivar nem numerar
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atividade. Por isso o humano vivente está em atividade continuamente enquanto
vivencia as dramáticas do uso de si nas macro- micro decisões.
Trata-se de uma capacidade criadora que cada humano tem para responder
às infidelidades do meio interno e externo no aqui e agora e sempre relativa às normas.
Essa força criadora é diferente em cada ser humano porque ela é composta pelo
resultado das interações entre três dimensões: dimensões biológicas, sociais e
metafísicas que, para efeito didático serão separadas aqui, mas que são inseparáveis no
humano.
Dimensão biológica: um corpo físico que possui herança genética que
determina dimensões, proporções, formas, cores, nervos, músculos, órgãos vitais, etc.
desde as macro até as micro características visíveis e observáveis.
Dimensão Metafísica: tudo que está relacionado ao intelectual: saberes,
valores, memória; intuição, instinto; percepção, sentidos, duração, esforço intelectual,
esforço/impulso de criação, capacidade de fazer escolhas, etc. desde as micro até as
macro características imateriais, mas perceptíveis quando manifestas pelos gestos,
palavras, ações ou qualquer outra forma de manifestação humana.
Dimensão Social: as marcas que se relacionam ao lugar que uma pessoa
ocupa na sociedade: família, cidade, país, momento histórico, as instituições por onde
passou, as pessoas com as quais conviveu e pelas quais passou, etc.
Se em sua atividade docente o professor assume uma postura autoritária e
opressora é importante considerar que isso não está no nível da sua escolha. Essa
postura é expressa por um corpo-si que é o resultado de uma construção baseada nas
três dimensões: biológica, metafísica e social. Assim o professor considera que uma
postura opressora seja necessária para conduzir o aluno a aprender aquilo que ele
precisa ensinar-lhe. A sala de aula é um meio que lhe exige fazer escolha e tomar
decisões continuamente. Essas escolhas são determinadas levando em consideração a
infidelidade do meio que nem sempre corresponde as suas expectativas e, por isso
mesmo, o impede de executar o seu planejamento e prescrição conforme previsto.
Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, a professora foi modificando a
sua prática ao se descobrir como opressora por meio das reflexões feitas enquanto
pesquisadora. Ao analisar sua prática docente ela percebeu que a sua relação com os
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alunos era marcada pela opressão e constatou que os alunos não acreditam no potencial
que eles têm para construir saberes. A partir dessa constatação percebeu a necessidade
de trabalhar a autoestima dos alunos. Além disso, sentiu também que era imperativo
promover mudanças na sua prática de ensino na disciplina de ciências. Tais mudanças
deveriam possibilitar aos alunos mudar sua relação com o saber e, consequentemente,
encontrar sentido em construir saberes com base nos conhecimentos disponibilizados e
acessados na escola por meio do cumprimento da sua função social.
No entanto, apesar dos esforços para mudar sua prática docente a professora
pesquisadora se deparou com inúmeros desafios. Dentre deles o de não saber como
fazer com que suas reflexões teóricas transformassem a sua prática pedagógica. Como
sua experiência escolar, desde a educação básica até a superior foi marcada pelas
relações tradicionais de ensino, ao tentar inovar não se lembrava de exemplos que a
fizessem consolidar uma prática libertadora. Arriscava-se e ensaiava os primeiros
passos sem garantia de estar seguindo na direção apropriada, que promoveria o alcance
dos seus objetivos.
Outra dificuldade foi superar as barreiras e regras tradicionais impostas pela
escola e preparar os estudantes para assumir uma postura com a qual não estavam
acostumados até então. Como explica Charlot (2005) a lógica do aluno, na maioria das
vezes é a lógica da transmissão direta, como se bastasse o professor expor um conteúdo
para que ele aprendesse automaticamente. A professora pesquisadora verificou que os
alunos com os quais trabalhava, filhos de famílias pobre, traziam as marcas da
passividade, pois para eles quem deve ser ativo na sala de aula é o professor. Assim,
para a professora pesquisadora estimular os alunos a se tornarem pessoas ativas no
processo de construção do conhecimento demandaria um trabalho conjunto com a
equipe de professores e uma mudança na compreensão do papel social da escola. A
função do professor está diretamente associada a esse papel tradicional da escola como
espaço de transmissão de conhecimentos. O professor, como representante dessa escola,
é o principal agente de transmissão de conhecimentos, tendo que se esforçar para fazer o
aluno assimilar o conhecimento que foi produzido e sistematizado por outros.
[...] No processo educacional, o que deve fazer o aluno? Ele deve ir à
escola cada dia, o que já é um esforço. Ele não deve fazer bobagens
demais e deve escutar o professor; sendo assim está feita sua parte,
cumpriu sua responsabilidade. O que vai acontecer depois depende do
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professor. Se o professor não explica bem, o aluno não saberá. A
responsabilidade é do professor.[...] (CHARLOT, 2005, p. 29-30).
Para essa escola, basta aos estudantes assistirem aulas passivamente, pois a
prática pedagógica que prescinde de sujeitos ativos e participativos não encontra
respaldo. Segundo Charlot:
[...] É por isso que os alunos dos meios populares não gostam dos métodos ativos. Eles não são construtivistas; eles gostam da pedagogia que dá a certeza de que eles vão passar para a série seguinte. [...] Estou dizendo que essa pedagogia ativa vai ser construída contra esses alunos. Eles estão esperando outra coisa (CHARLOT, 2005, p. 29-30).
Assim, a noção de relação com o saber propõe mudanças na concepção de
estudante, nas práticas tradicionais de ensino, na compreensão do papel do professor,
entre outras, na medida em que deixa de considerar o estudante como uma tabula rasa
que irá aprender tudo aquilo que o professor deseja ensinar. Independente da postura do
aluno, seja ela passiva ou ativa, cabe ao professor, por meio das práticas que ele propõe,
promover no estudante o conhecimento do seu potencial, dos seus limites e das suas
dificuldades para que ele possa desenvolver aquilo que ainda não desenvolveu. Isso o
conduzirá ao conhecimento de si mesmo, podendo levá-lo a sair de uma postura passiva
para uma postura ativa porque se descobrirá constituído enquanto humano criador e
capaz de construir saberes. Ao se conhecer o estudante saberá onde está, de onde veio e
onde quer chegar.
Pode-se afirmar que a professora pesquisadora vivenciou esse processo de
ação-reflexão-ação sobre a sua prática, conforme propõe Pura Lúcia: “A teoria só
adquire significado quando vinculada a uma problemática originada da prática e esta só
pode ser transformada quando compreendida nas suas múltiplas determinações, nas suas
raízes profundas, com o auxílio dos saberes sistematizados”. (MARTINS, 2008, p.09)
Ela criou a sua forma de construir saberes e construiu novos saberes que a
conduziram a questionar sobre a pouca eficiência na sua prática docente, o que
contribuía para a postura passiva dos estudantes. Ela esperava que esses novos saberes
promovessem mudanças imediatas na sua prática docente de modo a determinar
transformações na dinâmica tradicional das aulas. Entretanto ela verificou que os novos
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
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saberes construídos sobre a prática docente, requeria um tempo para amadurecimento
que admitisse uma ação transformadora.
A professora pesquisadora vivenciou as “dramáticas do uso de si por si e
pelos outros” ao se perceber impotente como profissional que permanecia com uma
prática análoga à sua forma tradicional de ministrar aulas. Essas dramáticas tinham
origem na ciência de que sua prática não contribui para promover no aluno a construção
de sentido pessoal para o ato de estudar e apesar dessa ciência não conseguia se
desvincular da sua postura como professora tradicional. Essa tentativa de mudança
frustrada associa-se a outros desconfortos presentes na atividade de trabalho docente.
Neste sentido a noção de atividade, conforme desenvolvida pela ergologia pareceu
pertinente para contribuir para a compreensão de uma postura docente que está
relacionada à complexidade inerente ao humano e à prática docente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa pesquisa possibilitou compreender que o aluno só se engaja na
construção dos saberes quando encontra sentido pessoal nos saberes que o professor
propõe que ele construa, quando está em uma relação com o saber que o permite fazer
“uso de si por si” ao investir todas as suas potencialidades para construir novos saberes.
Por isso chegou-se à conclusão de que, sempre que o professor exerce a função de
compartilhar saberes que estejam relacionados ao universo do aluno de forma a
promover sentido pessoal ele se engaja na construção de novos saberes. Assim o
professor contribui para que o estudante construa uma relação positiva com o saber
visto que, por meio das práticas que ele propõe, promove no estudante o conhecimento
do seu potencial, dos seus limites e das suas dificuldades para que ele possa desenvolver
aquilo que ainda não desenvolveu.
Essa mudança na compreensão do papel do professor pode promover a
superação da “dramática do uso de si” vivenciada pelos professores que são cobrados
pelos resultados da ação do ensino/aprendizagem. No entanto toda a complexidade
inerente à atividade docente abordada nesse artigo mostra que essa nova compreensão
não é suficiente para transpor as dificuldades vivenciadas pelos professores no cotidiano
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
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da sala de aula. Faz-se necessário investir em uma densa formação de um professor
pesquisador e capaz de construir saberes que, por sua vez, formará um aluno também
pesquisador com essa mesma capacidade, a de construir saberes.
REFERÊNCIAS
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Artmed, 2000. 93p.
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questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005. 159 p.
MIZUKAMI, M.G.N. Ensino: as abordagens do processo. 20.ed. São Paulo:E.P.U.
Editora Pedagógica Universitária Ltda., 2009. V.1. 119p
PADILLA-PETRY P.; HERNÁNDEZ-HERNÁNDEZ F., Ideais e alteridade em uma
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http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v18n1/a02v18n1.pdf > Acesso em 27 fev. 2014
MARTINS, Pura Lúcia Oliver. Didática teórica, didática prática: para além do
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SCHWARTZ, YVES. UN BREF APERÇU DE L’HISTOIRE CULTURELLE DU CONCEPT
D’ACTIVITE. @CTIVITES, 2007, VOL 4, Nº 2, PP. 122-133. DISPONIBLE SUR:
http://www.activites.org/v4n2/v4n2.pdf.
SCHWARTZ, YVES ET DURRIVE, LOUIS (DIR). TRAVAIL & ERGOLOGIE. ENTRETIENS
SUR L'ACTIVITE HUMAINE. TOULOUSE : OCTARÈS, 2003, 308 P.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Formação de Professores
EdUECE- Livro 200215