A dialética de Karl Marx e a crítica marxista do direito · segunda edição de sua obra magna,...
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Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.9,N.4,2018,p.2267-2292.ViníciusCasalinoDOI:10.1590/2179-8966/2018/29868|ISSN:2179-8966
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AdialéticadeKarlMarxeacríticamarxistadodireitoKarlMarx'sdialecticsandthemarxistcriticismoflaw
ViníciusCasalino11Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail:[email protected]:https://orcid.org/0000-0003-0003-3315.Artigorecebidoem3/08/2017eaceitoem16/01/2018.
ThisworkislicensedunderaCreativeCommonsAttribution4.0InternationalLicense.
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Resumo
O artigo busca compreender de modo aprofundado as peculiaridades da dialética
materialista, de Karl Marx, em oposição à dialética idealista, hegeliana. Com
fundamento em O capital, ressalta a ausência de preocupações metodológicas mais
acuradas no interior da crítica marxista do direito, o que redunda na adoção de
premissas,métodoseconclusõesdiscrepantesecontraditórias.Asconclusõesindicama
urgência do debate sobre o método dialético-marxiano e a importância de sua
incorporaçãorigorosaàcríticamarxistadodireito.
Palavras-chave:Marxismoedireito;DialéticadeKarlMarx;EvgeniPachukanis.
Abstract
The article seeks to understand in depth the peculiarities of KarlMarx’s materialistic
dialectic, as opposed to the idealistic, Hegelian dialectic. Grounded in Capital, it
highlights the absence of more accurate methodological concerns within theMarxist
critiqueof law,which leads to theadoptionofdiscrepantandcontradictorypremises,
methods and conclusions. The conclusions indicate the urgency of the debate on the
Marxian-dialectical method and the importance of its rigorous incorporation into the
Marxistcritiqueoflaw.
Keywords:Marxismandlaw;DialecticsofKarlMarx;EvgenyPashukanis.
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“Ora,emboraestanãosejamaisdoqueamerarepetiçãodoprocessodeproduçãonamesmaescala,essamerarepetiçãoou
continuidadeimprimeaoprocessocertascaracterísticasnovasou,antes,dissolveascaracterísticasaparentesqueeleostentavaquando
transcorriademaneiraisolada”.KarlMarx.
Introdução
UmdosgrandesméritosdePachukanis,reconhecidoporquasetodosquantostenham
sedebruçadosobreTeoriageraldodireitoemarxismo, éo rigormetodológicocomo
qualprocedeuàanálise críticadasprincipais categoriasque formama teoria geraldo
direito.1Essacaracterísticapodeserdetectada,demodomuitoevidente, jánonúcleo
essencial de seu pensamento, que consiste na original aproximação entre a forma do
direito e a forma da mercadoria.2 Assim, no lugar de situar sua análise no âmbito
relativamente abstrato das relações entre infraestrutura e superestrutura,
compreendendo o direito como mera expressão ideológica3, ou introduzir a forma
jurídica, abruptamente, no contexto da luta de classes4, Pachukanis segue os passos
metodológicosdeMarxeassociaodireitoàmercadoria, istoé,à formaelementarda
riquezanomododeproduçãocapitalista.Comisso,desvendaafiguramíticadosujeito
de direito, elemento central para a teoria geral do direito, descobrindo sua origem
1 Cerroni compara aobradePachukanis à de Stutchkanos seguintes termos: “Masdois elementos, pelomenos, diferenciam profundamente a sua perspectiva da de Stutchka. O primeiro refere-se a umamaisnítida acentuação do caráter objetivo (extraconsciencial) de toda a problemática jurídica (...) O segundoelemento diz respeito a umamaior agudeza metodológica, que se insere numa cultura filosófica maisprofunda e numa meditação muito penetrante sobre o método de O capital. Não é por acaso quePachukanisétalvezoprimeiroestudiosomarxistaquetrabalhanabasedaIntroduçãode1857,umtextodeMarxquepormuito tempo ficoude ladona tradiçãodaexegesemarxista” (CERRONI,1976,p.65, grifosmeus).2Noprefácioà2ªedição,Pachukanisanota:“OcamaradaP.I.Stutchkadefiniucombastantepropriedademinhaabordagemda teoriageraldodireitocomo ‘umatentativadeaproximaçãoda formadodireitodaformadamercadoria’.Nemedidaemquepossojulgarpeloscomentários,essaideia,nãoobstanteressalvaspontuais, foi reconhecida em seus fundamentos como acertada e frutífera” (PACHUKANIS, 2017, p. 60;2003,p.36).3Como faz,porexemplo,Reisner.Cerroniexplica: “Em1912,Reisnerdáestadefiniçãododireito:éumaideologia que ‘se apoia, dentro da nossa consciência, principalmente no conceito de verdade, justiça eigualdadenadistribuiçãoenaigualizaçãodoshomensedascoisas”(CERRONI,1976,p.51).4TalqualStutchka:“Quandonosvimosforçados,em1919,a formular,noComissariadodaJustiça,nossaconcepçãodeDireito, lapidamosaseguintesentença,queadquiriu,alémdisso,caráteroficial, tendosidoacolhida,emrusso,nospreceitosfundamentaisdoDireitoCriminal (videCompilaçãodasLeisde1919,nº66,art.590):‘ODireitoéumsistema(ouumaordem)derelaçõessociais,quecorrespondeaosinteressesdaclassedominanteeque,porisso,éasseguradopeloseupoderorganizado(oEstado)’”(STUTCHKA,2001,p.76).
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concretanos“guardiõesdasmercadorias”,valedizer,naspessoasinstadasalevarseus
valoresdeusoaomercadoparaefetuaratroca.
Alémdeumapreocupaçãosubstancialcomosproblemasmetodológicos,oque
oconduziuàanálisecríticadascategoriasqueconformamateoriageraldodireitoàluz
da apresentação marxiana presente em O capital, Pachukanis demonstra uma
preocupaçãoformaltambém,namedidaemquereservaumcapítulodesuaobraparaa
apresentação dos métodos de construção do concreto nas ciências abstratas.5 Com
fundamento na Introdução à crítica da economia política, um texto de Marx pouco
utilizadoàépoca,oautorrussoassinalatrêsquestõesfundamentais:emprimeirolugar,
aimportânciadesepartirdosimplesparaocomplexo,daformapuraàsmaisconcretas,
demodoque, no casoda ciência jurídica, o Estadoé umpontode chegada e nãode
partida;emsegundo lugar,anecessidadedeconsiderarqueosconceitosdosquais se
valeaciênciasocialtêmumahistória,querdizer,nãosãoformasdepensamentocriadas
pela mente humana, mas correspondem a relações sociais precisas e historicamente
delimitadas – como, por exemplo, o conceito de valor, de direito etc.; por fim, a
observaçãomarxianadequeacompreensãodosentidodasformaçõessociaispassadas
dá-se por meio da análise das configurações mais tardias e, por conseguinte, mais
desenvolvidas,comoasociedadecapitalista.6
EmboraaobradePachukanistenhasignificadoummonumentalavançonoque
concerneàspreocupaçõesmetodológicasnointeriordacríticamarxistadesuaépoca,7
verifica-se,atualmente,umcerto“paradoxo”.Curiosamente,mesmoatradiçãomarxista
que se formou na esteira de Teoria geral do direito e marxismo, não logrou avançar
significativamente no que toca às questões demétodo. Os apontamentos elaborados
peloautorrussoforamtomadoscomocorretos,adequadose,sobretudo,suficientes,e
parou-se neles. Desse modo, categorias centrais do aparato pachukaniano, como a
figura do sujeito de direito, a preeminência do direito privado em face do público, a
extinção da forma jurídica etc., são tomados de modo relativamente acrítico8, sem
maiorespreocupaçõesnoqueconcerneaumanecessáriaeinafastávelavaliaçãocrítico-
5Capítulo01deTeoriageraldodireitoemarxismo(PACHUKANIS,2017,pp.81-86;2003,pp.63-70).6Pachukanisassinala:“Apenasnessecasoconceberemosodireitonãocomoacessóriodeumasociedadehumanaabstrata,mascomocategoriahistóricaquecorrespondeaumambientesocialdefinido,construídopelacontradiçãodeinteressesprivados”(PACHUKANIS,2017,p.86;2003,p.70).7AprimeiraediçãodeTeoriageraldodireitoemarxismofoipublicadaem1924.8 No contexto do debatemarxista, evidentemente. Quando comparada à teoria tradicional do direito, acríticamarxistadespontanavanguardadetodasasanálisesemvoga.
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metodológica da própria teoria de Pachukanis. O resultado não poderia ser mais
desanimador:asabordagensmarxistassobreodireitoingressaramnumcírculovicioso,
nointeriordoqualpermanecem“girando”sobreaspectosconstantementereiteradose
ruminadosàexaustão.
O propósito deste artigo é chamar a atenção para este problema que tem
passadodespercebidopelacríticamarxistadodireito:asquestõesrelativasàelucidação
do“método”utilizadoporMarx,eque impõemumaanálisenecessáriadoscontornos
particulares de sua dialética, ainda não foram devidamente solucionados em outros
“campos”domarxismo,comoafilosofia,aeconomia,apolíticaetc.,paraseremdados
comodefinitivamente“resolvidos”epostosdelado.Pelocontrário,essetrabalhoainda
estáemcursoeasabordagensmarxistasnoâmbitododireitonãopodemsedaraoluxo
desimplesmentedesconhecê-lo.Porisso,oobjetodestaanálisecompreendeumaparte
doconjuntodepesquisasquetêmsedesenvolvidoemtornodadialéticamarxiana,com
vistasàidentificaçãodecertoselementosquelhesãopeculiares.Sustenta-seahipótese
de que a crítica marxista do direito precisa incorporar a seu campo de interesses a
problemática do método marxiano, sob pena de estacionar em categorias
constantementereiteradas,ou,oqueéaindapior,perder-senumecletismoradicalde
premissas, métodos e conclusões tão díspares que a aproximam perigosamente do
approachpós-moderno, tão em voga na teoria tradicional. Para tanto, estabeleceu-se
umrecorteanalíticodoLivroIdeOcapital,queconsisteprecisamentenaapresentação
daconversãodasleisdepropriedademercantilemleisdeapropriaçãocapitalista.Àluz
desta passagem, analisou-se o sentido conceitual da forma da propriedade privada
capitalistaemPachukanis,paraconstataremquemedidaseupontodevistaaproxima-
semaisoumenosdaperspectivamarxiana.Aconclusãoapontaparacertainsuficiência
metodológica da análise pachukaniana. Finalmente, o método utilizado não pode ser
outro que não o dialético-materialista de Karl Marx, cujos traços fundamentais
encontram-seincorporadosemOcapital.
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1.Problemas(antigos)dadialéticadeMarx
Os problemas relacionados à dialética de Karl Marx são antigos. Já no posfácio à
segundaediçãodesuaobramagna,em1873,oautorafirmava:“Ométodoaplicadoem
O capital foi pouco compreendido, como já o demonstram as interpretações
contraditórias que se apresentaram sobre o livro” (MARX, 2013, p.88; 1962, p.25).
IgualmenteantigassãoastentativasdeaproximarseumétodoaodeHegel.Namesma
ocasião, em tom de queixa, assinala: “Os resenhistas alemães bradam, naturalmente,
contraasofísticahegeliana”(MARX,2013,p.88;1962,p.25).Desdesempre,noentanto,
o autor se esforça para reivindicar a autonomia do seu método dialético. Após
mencionar extratos de uma crítica aO capital, observa: “Ao descrever de modo tão
acertadomeuverdadeirométodo,bemcomoaaplicaçãopessoalquefaçodesteúltimo,
queoutra coisa fez o autor senãodescrever ométododialético?” (MARX, 2013, p.90;
1962,p.27;grifosmeus).
Após um período de relativo “desinteresse”, em que predominaram debates
estritamente “econômicos” sobre a obra de Marx, os temas “filosóficos” voltaram à
cena,sobretudopormeiodossubstanciaisestudoselaboradosporKarlKorsch(2008)e
GeorgLuckács (2003),publicadosnadécadade19209.Nãoobstante, se,porum lado,
empenhavam-se no resgate da dialética, especialmente no que concerne a uma
necessária reincorporação de Hegel ao debate marxista, por outro, não lograram
enfrentar,demododetidoerigoroso,ascomplexasquestõesapresentadaspelodesafio
dedesvendaroscontornosconceituaisdeumadialéticaespecificamentemarxiana.Esta,
por sua vez, longe de antagonizar ou repelir a análise das formas econômicas,
pressupõe-nas como elementos constitutivos de seu próprio modo de ser. Nesse
sentido, não parece exagero afirmar o importante papel desempenhado Isaak Illich
Rubin(1987),aoapresentar,tambémnadécadade1920,ateoriamarxianadovalorde
modonão-autonomizado.
No entanto, alguns anos teriam de passar, ainda, para que viesse à tona um
resgatemaisprecisodasrelaçõesentreeconomiaedialéticanopensamentodeMarx.
Emmeadosdadécadade1950,RomanRosdolsky(2001)sedebruçasobreosGrundrisse
(MARX, 2011) para extrair dali importantes indicações sobre como se estrutura o
9Confira-se:(ANDERSON,2004),sobretudoocapítulo03.
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métodomarxiano, sobretudonoqueconcerneàs íntimasrelaçõesquemantémcoma
LógicadeHegel.10Aofazê-lo,Rosdolskylidacomtemasespecificamente“econômicos”
(dinheiro,capitaletc.),queconstituem,afinaldecontas,oobjetopropriamenteditodo
“rascunho”deMarx.Entretanto,somenteapartirdadécadade1960,talvezporconta
de um bem-vindo afastamento dos estudos acadêmicos com relação às vicissitudes
políticas da época, surge no cenário intelectualmarxista uma “nova leitura” deMarx,
cujo objetivo consiste em encarar certos desafios ligados à interpretação da obra
marxianademodorelativamenteautônomo,semrender“satisfações”àsinterpretações
“oficiais”atéentãoestabelecidas.
Esse “novo horizonte” deu ensejo a um enfrentamento mais direto dos
problemas relativos aométodo dialético queMarx “aplicou” às questões econômicas.
HelmutReichelt, umdosexpoentesdesta “nova leitura”, captoudemodoperspicaz a
problemática:
Entrementes o interesse foi se voltando cada vezmais para a obratardiadeMarx,masparecequenãosechegounemumpassomaisperto da esperada aclaração dos problemas metodológicos. Ocomentário redigido por Rosdolsky tampouco mudou muita coisanesse tocante. Embora ele diga que exatamente o Rascunho nosmostraoquantoa“estruturaçãodeOcapitaldeMarxédialéticadocomeço ao fim”, no final das contas, isso não passa de umaasseveração. Uma das debilidades do seu livro consisteespecialmenteno fatode apenas chamar a atençãoparaousodascategorias hegelianas e, no mesmo fôlego, reproduzir quase semcomentários passagens inteiras que se distinguem por suasformulações de cunho altamente especulativo e, por isso mesmo,extremamente carentes de interpretação. Isso suscita ao natural apergunta se Rosdolsky não teria incorrido igualmente nasuperficialidadeporelecensurada;se–apesardeafirmar isso–elechegoumesmoaabandonaraposiçãoquevênadialéticapresenteem O capital apenas um ingrediente estilístico que permaneceexterioraoassuntotratado(REICHELT,2013,p.24).
Segundo esta “nova leitura”, a compreensão mais precisa dos elementos
dialéticosdaexposiçãomarxianapassanecessariamentepeloescrutínio internodesua
obra,istoé,pelarevelaçãodasdeterminaçõesdialéticasdascategoriasporintermédio
dasquaisacríticadaeconomiapolíticaéestruturadaeapresentada.Emoutraspalavras,
nãobastadelimitaroscontornosdesteoudaqueleconceito,ouapontarneleaorigem
10“NãohátematratadocommaisdescuidopeloscomentadoresdateoriaeconômicadeMarxdoqueodeseumétodoe,particularmente,desuarelaçãocomHegel”(ROSDOLSKY,2001,p.15).Umaabordagematualdaquestãoencontra-seem:(ARTHUR,2016),noconjuntodaobraesobretudonocapítulo05(OcapitaldeMarxeaLógicadeHegel).
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precisa na dialética hegeliana;11 trata-se, muito mais, de apanhar a lógica interna da
exposiçãoe,apartirdestacaptação,compreenderseusnexoscategoriaisconstitutivos
demaneiratalqueestalógicasignifique,elamesma,oobjetodaapresentação,ouseja,
omodo de produção capitalista e suas correspondentes leis de produção e circulação
que,apartirdaí,podeserapreendidocomoconcretopensado.
Há, entretanto, um elemento paradoxal no esforço empreendido pela “nova
leitura”. O impulso para superar as limitações que se verificam, por exemplo, em
Rosdolsky, ou seja, a apreensão meramente externa dos elementos dialéticos da
exposição marxiana, no lugar de conduzir ao “mergulho” na lógica interna da
apresentaçãoqueéOcapital,conduziuaoutroobjeto,qualseja,osGrundrisse,istoé,o
rascunhodacríticadaeconomiapolítica,enãoaestacríticaemsimesmaconsiderada.
Reicheltéclaroaesterespeito:
Essa concepçãoé sugeridaexatamentepeloRascunho deOcapital.AopassoquedeOcapital, casonecessário,aindasepodemextrairteoremasisoladosediscuti-losnohorizontedaciênciaespecializadasemlogoserpegoemflagranteviolaçãodatotalidadedaconcepção,nos Grundrisse da crítica da economia política, no Rascunho de Ocapital, isso não é mais possível. Neles aparece muito maisclaramente do que em O capital que o “modo hegeliano deexpressar,difícildecompreender”,écomponente integraldacríticamarxiana. Neles, o entrelaçamento de temas que tradicionalmentesão atribuídos à ciência econômica com uma forma de exposiçãodesses temas orientada na lógica hegeliana é tão estreito que setornainviávelabordaracoisaseparadamente(REICHELT,2013,p.25).
Mas o paradoxo que se apresenta é justamente este: não seria um aspecto
essencial da dialética marxiana a ocultação dos traços relativos às regras
metodológicas? O escondimento do “modo hegeliano de expressar, difícil de
compreender”, que se verifica em O capital, não seria um elemento específico da
dialéticadeMarx,umaparticularidadesuajustamenteparadiferenciá-ladadialéticade
Hegel?Noprefáciode2001,Reicheltobserva:
Duranteapreparaçãodestainvestigaçãosobreaestruturalógicadoconceito de capital emMarx, apresentada na forma de dissertaçãocomo primeira tentativa de reconstrução do método dialético deMarxemOcapital,nãomedeicontadeumaindicaçãocentral:logodepoisdapublicaçãodoescritoParaa críticadaeconomiapolítica,
11“Atéinvestigadoresdemodogeralcuidadosos,comoVorländer,acreditavampoderdemonstrarqueMarx‘narealidadesóhaviaflertadocomconceitoshegelianosemdoistrechos’(emboralogoacrescentassemumterceiro).Deixavamdeadvertirquecategoriasdecisivasdeseumétodo,reiteradamenteutilizadas,provêmdiretamentedaLógicadeHegel.Basta lembraraorigemhegelianaea importânciametodológicadeumadiferenciaçãofundamentalparaMarx,entremediaçãoeimediação”(ROSDOLSKY,2001,p.16).
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noanode1859,MarxescreveuaEngels,dizendoqueacontinuaçãoserá“muitomaispopulareométodomaisbemescondidodoquenaParte I” (III.3/49). Ou seja,Marx não facilitou a coisa para os seusleitores:porumlado,eleapresentaumaobracomumnívelelevadode exigência científica; por outro lado, ele “esconde” justamente ométodo pelo qual se define sua cientificidade. Gerd Göhler jáconstatouqueadialéticasofreu“redução”emOcapital,edefatoépossível provar que, já na segunda edição de O capital, Marxsimplesmente riscou passagens metodológicas essenciais para acompreensãodoseuprocedimento.Razões,amplitudeesignificadodessa“redução”aindanãoforamesclarecidos.Porém,sequisermosinvestigá-laereconstruirométodo,evidentementeéprecisoater-seaos escritos em que ele se apresenta, por assim dizer, “nãoescondido”,asaber,nostrabalhosdiretamentepreparatóriosparaOcapital,ouseja,sobretudonoassimchamadoRascunhodeOcapitale no Texto original do escrito Para a crítica da economia política(REICHELT,2013,p.11).
Pois então, a construção do sentido da dialética marxiana não passa,
justamente, por pressupor como elemento essencial de seu método justamente a
exigência de que ele permaneça “escondido”? Ou será que, como assinala Reichelt,
Marx “riscaria” trechos inteiros com referências metodológicas importantes
simplesmente por “descuido”? Difícil acreditar. Não seria urgente, então, iniciar o
enfrentamento das questões relativas às “razões, amplitude e significado dessa
‘redução’”,que“aindanãoforamesclarecidos”?12
Dessemodo,oquesepropõenesteartigoéumaespéciede“inversão”noque
concerneaospressupostosda“nova leitura”, istoé,aextraçãodométodomarxianoa
partirdaleiturarigorosadeOcapital.Enãoapenasisso,mastambémaconsideraçãode
queelementofundamentaldesuadialéticaconsistejustamenteem“ocultar”ométodo,
fazendo com que as determinaçõesmetodológicas “brotem” da própria exposição do
conteúdo, sem se ocupar com uma apresentação explícita desta ou daquela regra
metodológica.13
12Apropósitodesta“ocultação”,confira-setambém:(REICHELT,2011).13 Vale lembrar que parte essencial da dialética de Marx consiste numa apresentação circunstancial deelementosmetodológicos,emmomentosestratégicos,como,porexemplo,oclássicoparágrafoqueencerraocapítulo17doLivroIdeOcapital:“Deresto,comaformademanifestação‘valorepreçodotrabalho’ou‘salário’,emcontrastecomarelaçãoessencialquesemanifesta,istoé,comovaloreopreçodeforçadetrabalho,ocorreomesmoquecomtodasas formasdemanifestaçãoe seu fundooculto.Asprimeiras sereproduzem de modo imediatamente espontâneo, como formas comuns e correntes de pensamento; osegundo tem de ser primeiramente descoberto pela ciência. A economia política clássica chega muitopróximoàverdadeirarelaçãodascoisas,porémsemformulá-lasconscientemente.Elanãopoderafazê-loenquantoestivercobertacomsuapeleburguesa”(MARX,2013,p.612;1962,p.564,grifomeu).
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Isso não significa, evidentemente, sugerir um desprezo, subestimação ou
afastamento com relação aos monumentais avanços teóricos produzidos pela “nova
leitura”.Antes,ocontrário.Trata-sedeincorporá-losàanálisedasquestõesrelativasàs
peculiaridadesdadialéticamarxianapresentesemOcapital,mas“realizandoocaminho
devolta”,istoé,introjetandoasargutasobservaçõesmetodológicasextraídasàanálise
dosGrundrisseedaContribuiçãoàcríticadaeconomiapolíticaàapreensãodométodo
peloqualMarxapresentousuaobramagna.Trata-se,pois,deinterpretaroRascunhoà
luzdeOCapital,enãoesteàluzdaquele.
O que se almeja, em suma, é uma compreensão mais aprofundada das
características particulares da dialética de Marx, ou seja, o alcance das formas e
conteúdoscategoriaisespecíficosdeseu“método”, sobretudoemoposiçãoàdialética
idealista,hegeliana.Nãosetrata,contudo,deafirmar,comousualmentesefaz,queo
autordeOcapitalsimplesmente“inverteu”adialéticadeHegel,afastando,comisso,os
traços“idealistas”alipresentes.Trata-se,comosugereJorgeGrespan,deconstatarque
são duas dialéticas distintas, opostas, com pressupostos próprios e características
particulares:
Deacordocomestetextoconhecidoe,semdúvida,crucial,nãoéocasodeapenasdepuraradimensão“racional”dadialéticahegelianapara obter aquilo que dela semantém emMarx. Trata-se de duasdialéticasdistintas.Maisainda,“nãosódiversas”,comodiretamente“opostas”. Com isso, o procedimento de obtenção do “caroçoracional” passa a se definir como uma “inversão”, pela qual o que“está de cabeça para baixo” assume sua posição verdadeira(GRESPAN,2002,p.30,grifomeu).
2.Aconversãodasleisdepropriedademercantilemleisdeapropriaçãocapitalista
Obviamente, a abordagem dos problemas metodológicos presentes em O capital é
trabalho hercúleo, a ser realizado coletivamente e num longo período de tempo. Os
limitesdesteartigonãopermitemumaanálisemaisamplaesistemáticasobreotema.
Justamente por isso, é preciso estabelecer um “recorte” dentro do qual o problema
pode ser situado de maneira mais precisa e as questões enfrentadas de modo mais
adequado.
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Nesse sentido, há uma passagem do Livro I de O capital que pode ser
considerada um daquelesmomentos fundamentais em queMarx apresenta demodo
explícito um cânone de seu método. Trata-se do início da Seção VII (O processo de
acumulação do capital), especificamente os capítulos 21 (Reprodução simples) e 22
(Transformaçãodomais-valoremcapital),emqueseencontraaexposiçãodaconversão
das leisdepropriedadeque regemaproduçãodemercadoriasem leisdeapropriação
capitalista.Noitem01desteúltimocapítulo,Marxobserva:
Namedidaemqueomais-valordequesecompõeocapitaladicionaln. 1 resultou da compra da força de trabalho por uma parte docapitaloriginal,compraqueobedeceuàsleisdatrocademercadoriase que, do ponto de vista jurídico, pressupõe apenas, da parte dotrabalhador,alivredisposiçãosobresuasprópriascapacidades,edapartedopossuidordedinheirooudemercadorias,alivredisposiçãosobre os valores que lhes pertencem; namedida em que o capitaladicionaln.2etc.nãoémaisdoqueoresultadodocapitaladicionaln.1e,portanto,aconsequênciadaquelaprimeirarelação;namedidaemquecadatransaçãoisoladaobedececontinuamenteàleidatrocademercadorias,segundoaqualocapitalistasemprecompraaforçadetrabalhoeotrabalhadorsempreavende–e,supomosaqui,porseu valor real –, é evidente que a lei de apropriação ou lei dapropriedade privada, fundada na produção e circulação demercadorias, transforma-se, obedecendo à sua dialética própria,interna e inevitável, em seu direto oposto.A troca de equivalentes,queapareciacomoaoperaçãooriginal,torceu-se(gedreht)aopontode que agora a troca se efetiva apenas na aparência, pois, emprimeiro lugar, a própria parte do capital trocada por força detrabalhonãoémaisdoqueumapartedoprodutodotrabalhoalheio,apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, otrabalhador, não só tem de repô-la, como tem de fazê-lo com umnovoexcedente.Arelaçãodetrocaentretrabalhadorecapitalistaseconverte, assim, em mera aparência pertencente ao processo decirculação, numamera forma, estranha ao próprio conteúdo e queapenasomistifica.Acontínuacompraevendadaforçadetrabalhoéa forma. O conteúdo está no fato de que o capitalista trocacontinuamenteumapartedo trabalhoalheio jáobjetivado,doqualelenãocessadeseapropriarsemequivalente,porumaquantidademaior de trabalho vivo alheio. Originalmente, o direito depropriedadeapareceudiantedenósfundadonoprópriotrabalho.Nomínimo esse suposto tinha que ser admitido, porquanto apenaspossuidoresdemercadoriascomiguaisdireitosseconfrontavamunscomosoutros,masomeiodeapropriaçãodamercadoriaalheiaeraapenas a alienação de sua mercadoria própria, e esta só se podiaproduzir mediante trabalho. Agora, ao contrário, a propriedadeaparece do lado do capitalista, como direito a apropriar-se detrabalhoalheionãopagooudeseuproduto;doladodotrabalhador,comoimpossibilidadedeapropriar-sedeseupróprioproduto.Acisãoentre propriedade e trabalho torna-se consequência necessária deuma leique,aparentemente, tinhaorigemna identidadedeambos.Portanto, por mais que o modo capitalista de apropriação pareça
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violar as leis gerais daproduçãodemercadorias, elenão seoriginaem absoluto da violação,mas, ao contrário, da observância dessasleis(MARX,2013,p.658-659;1962,p.609-610,grifomeu)14.
A reprodução do capital não significa senão a repetição do processo de
produção,istoé,areiteraçãodomovimentorealizadopelaquantiadevalorinicialmente
lançadanacirculaçãoeconvertidaemmeiosdeprodução,matérias-primase forçade
trabalho.Umavezqueasmercadoriasresultantesdoprimeiroatodeproduçãoderam
seu“saltomortal”,ouseja,foramreconvertidasemdinheiro,ocapitalistatememmãos
aquelaquantiaoriginalmenteinvestida,maisumacréscimo,queconsistenomais-valor.
A continuaçãodestemovimento significauma “nova”produção,mas, perceba-se,nos
mesmo termos, quer dizer, reiterando os pressupostos iniciais – o que configura,
portanto,reproduçãodocapital.
Se a quantia relativa aomais-valor produzido é inteiramente consumida pelo
capitalista, não retornando ao circuito produtivo, tem-se o que Marx chama de
reproduçãosimples;se,poroutrolado,essemais-valoroupartedeleéreintroduzidono
processo de produção, tem-se a chamada reprodução ampliada ou acumulação de
capital. Emambosos casos verifica-se a reiteraçãodos pressupostos de existência do
capital: propriedade privada dos meios de produção nas mãos dos capitalistas;
“liberdade”dotrabalhadoremduplosentido, istoé,separaçãocomrelaçãoaosmeios
deproduçãoelivredisponibilidadedesuaforçadetrabalho;integraçãodotrabalhador
aosmeiosdeproduçãoporintermédiodecontratojurídico“livremente”pactuadocom
ocapitalistanaesferadacirculação.
Do ponto de vista da apresentação categorial das leis que regem a produção
capitalista,aexposiçãodareproduçãodocapitalintroduzumelementoimportante.Seo
primeiromomentodaproduçãoaindapermitequesemantenhaopressupostosegundo
o qual capitalista e trabalhador se encontram livremente no mercado e trocam
equivalentes; portanto, que o ajuste original envolve partes cujas propriedades têm
origemnoprópriotrabalho(umatransaçãojurídica“perfeita”,fundadanaigualdadede
14 Em nota de rodapé a esta passagem,Marx anota: “A propriedade do capitalista sobre o produto dotrabalho alheio ‘é a consequência rigorosa da lei de apropriação, cujo princípio fundamental era, pelocontrário,otítulodepropriedadeexclusivodecadatrabalhadorsobreoprodutodeseuprópriotrabalho’,Cherbuliez, Richesse ou pauvreté, cit, p. 58, em que, no entanto, essa conversão dialética (dialektischeUmschlag)nãoécorretamentedesenvolvida”(MARX,2013,p.659,notanº23;1962,p.610,notanº23,grifomeu).Naedição francesaocomentáriodeMarxapareceassim:“L’autersent lecontre-coupedialectique,maisl’expliquefaussement”(MARX,1971,p.27,notanº01,grifomeu).
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posições);arepetiçãodaprodução,ouseja,areproduçãodocapital,namedidaemque
implicaaextraçãocontínuademais-valor,desembocanoresultadoinexoráveldeque,a
partirdecertomomento,atotalidadedovalorinseridonocircuitoproveiodetrabalho
alheioapropriadosemequivalente.Restacaracterizadaumarelaçãodeexploração,de
modoqueaquelepressupostoinicialdeequivalêncianãoconseguemaissesustentarde
modoautônomo.15
3.Atorçãodialéticacomointerversão:crítica
Opontofulcralresidenomodocomoesta“conversão”deveserapreendida,istoé,seu
sentido categorial específico e, a partir desta apreensão, em averiguar que
consequências acarreta, do ponto de vista metodológico, à compreensão geral da
exposição dialética marxiana. Em outras palavras, deve-se afirmar uma modificação
objetiva nas leis que regem o processo de produção capitalista; ou, pelo contrário, a
dissolução do caráter pretensamente essencial daquele fenômeno, de maneira que
passea ser apreendido comomeraaparência ensejadapelomovimentoda circulação
quandocaptadodemodoisolado?Certasleiturasveemnesta“conversão”umagenuína
interversão, apoiando-se, portanto, no primeiro dos pontos de vistas acima
mencionados.RuyFausto,apropósito,assinala:
Essa mudança de perspectiva, que representa na realidade umamudança de sentido, objetiva, do processo, constitui o que Marxchama de interversão da lei da apropriação ou da propriedade,interversão cujos dois momentos poderiam ser resumidos daseguinte maneira: uma volta do capital ou cada volta do capitalobedece à lei de apropriação ou de propriedade das economiasmercantis,leisegundoaqualaapropriaçãodosprodutossefazpelatroca de equivalentes e depende, em última instância, do trabalhopróprio. Mas a repetição das voltas do capital – e portanto ocumprimento reiterado da lei de apropriação pelo trabalho e pelatroca de equivalentes – interverte esta lei na lei de apropriação
15EisopontodepartidaparaarespostaàquestãoformuladaporEdelman:“Vendoascoisasdeperto,nãosabemosmuitobemcomoe sobque formas jurídicas precisas seopera a extraçãodemais-valor. E essasemi-ignorâncianoscegaparaaprópriaforçadessasformas,dessastécnicas,paraasuaeficáciaconcretaeideológica. Por exemplo, sabemos verdadeiramente que o contrato de trabalho está ligado ao capital ecomoodireitodepropriedadeestá ligadoaocontratodetrabalho?Nãosabemosnadaverdadeiramente,aforaasbanalidadescomquenoscumulam:ocontratodetrabalhointroduzuma‘falsa’igualdadeentreaspartes,avontadedooperárioéuma‘ficção’...trivialidadescomquenoscontentamospreguiçosamenteporfaltadeirvernapráticacomoascoisassepassamdefato”(EDELMAN,2016,p.27).
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capitalista,apropriaçãosemequivalentedotrabalhoalheio(FAUSTO,2015,p.76).16
Poisbem,doisproblemasseapresentamdesdelogo.Emprimeirolugar,atéque
pontoécorretoafirmarque“umavoltadocapitaloucadavoltadocapitalobedeceàlei
de apropriação ou de propriedade das economias mercantis”, “segundo a qual a
apropriaçãodosprodutossefazpelatrocadeequivalentes”?
Ora,nocapítulo05,doLivroI,deOcapital,Marxapresentaaproduçãodomais-
valorabsoluto,emqueexplicitaadiferençaentreoprocessodetrabalhoqueredunda
naformaçãodevaloreaquelequeresultanavalorizaçãodovalor.Naquele,oprocesso
prolonga-seatéomomentoemqueovalordaforçadetrabalhoésubstituídoporum
equivalentedaquiloquefoipagopelocapitalistaaotrabalhador;nosegundo,oprocesso
alonga-se a tal ponto que o valor produzido excede o valor da força de trabalho,
superandoaquelarelaçãoinicialdeequivalênciaedandoorigemaomais-valorabsoluto,
“núcleoduro”domododeproduçãocapitalista.17Alémdomais,nocapítulo14,doLivro
I,Marxobserva:
A extensão da jornada de trabalho além do ponto em que otrabalhador teriaproduzidoapenasumequivalentedovalorde suaforçadetrabalho,acompanhadadaapropriaçãodessemais-trabalhopelocapital–nissoconsisteaproduçãodomaisvalorabsoluto.Elaforma a base geral do sistema capitalista e o ponto de partida daproduçãodomais-valorrelativo.Nestaúltima,ajornadadetrabalhoestá desde o início dividida em duas partes: trabalho necessário emais-trabalho.Paraprolongaromais-trabalho,otrabalhonecessárioéreduzidopormeiodemétodosquepermitemproduziremmenostempooequivalentedo salário.Aproduçãodomais-valor absolutogiraapenasemtornodaduraçãodajornadadetrabalho;aproduçãodomais-valorrelativorevolucionainteiramenteosprocessostécnicosdotrabalhoeosagrupamentossociais(MARX,2013,p.578;1960,p.532/533,grifomeu).
E,noiníciodaSeçãoVII,oautorexplica:
16“Consuma-seentãoanegaçãodaleideapropriaçãodacirculaçãosimples,edeseufundamento,atrocadeequivalentes.Aleidaapropriaçãopelotrabalhopróprioeointercâmbiodeequivalentessetransformana lei de apropriação sem trocado trabalhodeoutrem.ÉoqueMarxdenomina ‘interversãodas leis dapropriedadedaproduçãodemercadoriasem leisdaapropriaçãocapitalista’ (W.23,K. I,p.605.Oeuvres.Économie I. Op. cit., p. 1081). E o que há de importante nessa interversão – e é por isso que hárigorosamente interversão–équea inversãose fazpelaprópriaaplicaçãodas leisdecirculaçãosimples”(FAUSTO,2015,p.276,grifomeu).17“Ora,secompararmosoprocessodeformaçãodevalorcomoprocessodevalorização,veremosqueesteúltimonãoémaisdoqueumprocessodeformaçãodevalorqueseestendeparaalémdecertoponto.Setalprocessonãoultrapassaopontoemqueovalordaforçadetrabalhopagopelocapitalésubstituídoporumnovoequivalente,eleésimplesmenteumprocessodeformaçãodevalor.Seultrapassaesseponto,elesetornaprocessodevalorização”(MARX,2013,p.271;1960,p.209).
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Atransformaçãodeumaquantiadedinheiroemmeiosdeproduçãoeforçadetrabalhoéoprimeiromovimentorealizadopelaquantiadevalorquedevefuncionarcomocapital.Elaagenomercado,naesferada circulação. A segunda fase do movimento, o processo deprodução, é concluída assim que os meios de produção estãoconvertidosemmercadoriascujovalorsuperaovalordesuaspartesconstitutivas e, portanto, contémo capital originalmente adiantadoacrescidodeummais-valor.Emseguida,essasmercadoriastêm,porsua vez, de ser lançadas novamente na esfera da circulação. Oobjetivo é vendê-las, realizar seu valor emdinheiro, converter essedinheiro novamente em capital, e assim consecutivamente. Esseciclo, percorrendo sempre as mesmas fases sucessivas, constitui acirculaçãodocapital(MARX,2013,p.639;1960,p.589,grifomeu).
Ficaclaroqueoprimeiro“ato”daprodução,istoé,aprimeira“volta”docapital,
ou cada “volta” do capital, produz, de maneira autônoma, quer dizer,
independentementedeoutrastantasvoltas,otrabalhoexcedente,logo,asubstânciado
mais-valor.Dessemodo,asuperaçãodarelaçãodeequivalência,ouseja,aviolaçãoda
leideapropriaçãomercantil,ocorredesde logo,naproduçãodocapital,enãoemsua
reprodução.
Em segundo lugar, não parece adequado afirmar, como faz Fausto, que a
reprodução do capital faz com que a lei da apropriação pelo trabalho próprio e
intercâmbiodeequivalentessetransformanaleideapropriaçãosemtrocadotrabalho
de outrem. Pois esta lei, vale dizer, a lei de apropriação capitalista, já está operando
desdeomomentoemqueaprimeiraquantiadevalor,naformadedinheiro,étrocada
pormeiosdeprodução,matérias-primaseforçadetrabalhoparadarinícioaoprocesso
produtivo de valorização.18 Não é a reprodução que “viola” a lei de equivalência; a
produção do capital o faz. Por isso, parece mais adequado afirmar que aquela, a
reprodução,nolugardeimprimiraoprocesso“certascaracterísticasnovas”,naverdade
“dissolveascaracterísticasaparentesqueeleostentavaquandotranscorriademaneira
deisolada”(MARX,2013,p.642;1960,p.592).
Dessemodo,édeseconsiderarqueosentidocategorialdatorçãodialéticapela
quala leidepropriedademercantilse“transforma”emseudiretooposto,istoé,na lei
deapropriaçãocapitalista,nãodevesercompreendidacomointerversãonosentidode
uma modificação essencial do processo, porém, antes, como conversão em sentido
materialista, vale dizer, modificação pela qual o fenômeno projetado pela esfera da
circulação, ou seja, a relação de equivalência entre capitalista e trabalhador, é18Aindaqueestaquantiadedinheiroapareçasimplesmentecomodinheiroenãocomocapital.
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apreendidacomoaparênciainvertidadomomentoprodutivoexploratório,este,sim,de
naturezaessencial.19-20
4.Torçãodialéticaeformajurídica:apropriedadeprivadacapitalista
Ocapítulo22doLivroIdeOcapital,emqueéapresentadaatransformaçãodomais-
valor em capital, introduz algumas questões importantes para a crítica marxista do
direito,que,noentanto,têmpassadorelativamentedespercebidas.Aconversãodasleis
de propriedade que regem a produção mercantil em leis de apropriação capitalista
imprimeaodireitodasociedadedocapitalcertascaracterísticasfundamentais.Omodo
comoseapreendeestaconversão,porsuavez,produzimpactonaanálisedasrelações
jurídicas,enviesando-a(aanálise)nosentidoidealistaoumaterialista,conformeocaso.
Aconcepçãomarxistafundamentalsobreodireitoencontra-se,evidentemente,
emOcapital21.Noiníciodocapítulo02(Oprocessodetroca),doLivroI,Marxobserva:
Asmercadoriasnãopodemirporsimesmasaomercadoetrocar-seumas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seusguardiões,ospossuidoresdemercadorias.Elassãocoisase,porisso,não podem impor resistência ao homem. Se não se mostramsolícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, podetomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outrascomomercadorias,seusguardiõestêmqueestabelecerrelaçõesunscomosoutroscomopessoascujavontaderesidenessascoisaseagirde modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia ealienarasuaprópriamercadoriaemconcordânciacomavontadedooutro, portanto, pormeio de um ato de vontade comuma ambos.Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente comoproprietáriosprivados.Essarelaçãojurídica,cujaformaéocontrato,sejaela legalmentedesenvolvidaounão,éuma relaçãovolitiva,naqual se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação
19AanálisesegueadeGrespan:“AproposiçãodosprincípiosformaisdacirculaçãosimplesnãoimplicaparaMarx, portanto, que de fato exista, tenha existido ou venha a existir uma sociedade estabelecidaunicamente sobreeles.Ao contrário, odesenvolvimentode suasdeterminações levanecessariamenteàscondições em que, no intercâmbio entre capital e força de trabalho, estes princípios são ‘torcidos’ einvertidos.Assim,aconservaçãodelesnaesferadacirculaçãoesuanegaçãopelavalorizaçãosãomomentosdistintose igualmenteválidosnareconstituiçãomarxianadaproduçãocapitalista.Estaprodução, tomadaemseuconjunto,envolvetantoasdeterminaçõesdacirculaçãodemercadoriascomoasquea invertem”(GRESPAN,1999,p.117).20Percebe-se,pois,quearespostaàpertinenteindagaçãodeEdelmanestáparaalémdesimplesmente“irvernapráticacomoascoisassepassamdefato”.Ela inclui, inexoravelmente,um“mergulho”rigorosonaanálise crítico-teórica e uma incorporação absolutamente necessária das “questões de método” queconformamaobramarxiana.21Apropósito,confira-se:(CASALINO,2016).
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jurídica ou volitiva é dado pela própria relação econômica (MARX,2013,pp.159-160;1962,pp.99-100,grifomeu).
O direito, paraMarx, é uma relação social caracterizada pela equivalência de
posições,querdizer,pelaconsideraçãorecíprocadeigualdade,liberdadeepropriedade
que qualifica os possuidores de mercadorias no momento em que se encontram no
mercado.Arelativaautonomiaquesuasvontadeshauremporocasiãodointercâmbio–
nosentidodepoderemdebater, sobestreitasmargens,preços, formasdepagamento
etc.–ensejaaaparênciadequemovimentamocircuitomercantil,quando,naverdade,
sãomovimentadasporele.Ospossuidoresaparecemcomopessoas,entesdotadosde
“direitosnaturais”: liberdade, igualdade,autonomiadavontadeepropriedadeprivada
fundadanatrocadevaloresequivalentes,oriundosdotrabalhopróprio.
O primeiro autor do campo marxista a captar a peculiaridade do sentido da
forma jurídicaemMarx foi, comodissemos,Pachukanis.Emsuaobra,Teoriageraldo
direito e marxismo, o russo associa, pela primeira vez, a figura do possuidor da
mercadoria à do sujeito de direito, categoria central para as teorias tradicionais do
direito. Nestas, entretanto, a gênese da pessoa é encontrada em pressupostos
idealistas,taiscomoo“direitonatural”oua“norma”positivadapeloEstado.Pachukanis
é o pioneiro na demonstração da condicionante material-econômica daquela figura
jurídica:
Dessa maneira, o vínculo social entre as pessoas no processo deprodução,reificadonosprodutosdotrabalhoequeassumeaformade princípio elementar, requer para sua realização uma relaçãoparticular entre as pessoas enquanto indivíduos que dispõem deprodutos,comosujeitos“cujavontaderesidenessascoisas”(...)Porisso, ao mesmo tempo que um produto do trabalho adquirepropriedade de mercadoria e se torna portador de um valor, ohomemadquireumvalordesujeitodedireitoesetornaportadordedireitos(PACHUKANIS,2017,p.120;2003,p.112).22
Não obstante, ainda que existam divergências no campo das pesquisas
marxistas23, pode-se afirmar, com alguma segurança, que a concepção de direito em
Marxavançaparamuitoalémdocapítulo02,doLivroI,deOcapital.Defato,osentido
22Oautorobserva:“DepoisdeMarxatesefundamental,asaber,dequeosujeito jurídicodasteoriasdodireitoseencontranumarelaçãomuitoíntimacomoproprietáriodasmercadorias,nãoprecisavaumavezmaisserdemonstrada”(PACHUKANIS,1988,p.08;2003,p.36).23 ParaMárcio Naves, por exemplo, haveria uma homologia entre a análise de Pachukanis e a deMarx:“Podemos dizer que a concepção de Pachukanis corresponde inteiramente às reflexões que Marxdesenvolve,sobretudonosGrundrisseeemOcapital,apropósitodolugarcentralqueocupaaanálisedaformaparacompreenderasrelaçõessociaiscapitalistas”(NAVES,2000,p.48).
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específicodaformajurídica,paraoalemão,apenaspodeseralcançadoplenamenteao
cabo do Livro III, quando as relações de produção e circulação do capital estão
plenamentedesenvolvidas.As análises dePachukanis, poroutro lado, acompanhama
concepçãomarxianapresente, sobretudo, no iníciodo Livro I, isto é, na apresentação
dos fenômenos da troca e circulação. Assim, o ponto de vista pachukaniano sobre a
propriedade privada capitalista, embora parta da circulação de mercadorias, não
desenvolveplenamenteaspotencialidadesdialéticasdoconceito,istoé,nãoapresenta
de modo adequado a maneira como a apropriação de mais-valor, que consiste
essencialmentenumarelaçãodeexploração,nãoapenasconvive,comovemàtona,ou
seja,éconstituídapor intermédiodeumarelaçãosocialmarcadapelaequivalênciade
valores.Emoutraspalavras,aausênciadeumdesenvolvimentoadequadofundadona
apresentaçãomarxianadaconversãodialética imprimeàanálisepachukanianaalguma
fragilidadenoqueconcerneàexplicaçãodaformadapropriedadeprivadasoboregime
deacumulaçãocapitalista.Veja-se,porexemplo,aseguintepassagem:
A propriedade capitalista é, em sua essência, a liberdade detransformar o capital de uma forma em outra e de transferi-lo deumaesferaparaoutracomoobjetivodeobteromáximolucrofácil.Estaliberdadededispordapropriedadecapitalistaéimpensávelsema presença de indivíduos desprovidos de propriedade, ou seja, deproletários. A forma jurídica da propriedade não está de modonenhumemcontradição comaexpropriaçãodeumgrandenúmerodecidadãos.Issoporqueacapacidadedesersujeitodedireitoéumacapacidade puramente formal. Ela qualifica todas as pessoas comoigualmente“dignas”deserproprietárias,maspornenhummeiofazdelas proprietárias. A dialética da propriedade capitalista estárepresentadademodomagníficoemOcapital,deMarx,sejanaquiloemqueelaassumeaforma“imutável”dodireito,sejaquandoabrecaminho através da violência (período da acumulação primitiva)(PACHUKANIS,2017,pp.132-133;2003,p.127,grifomeu).
Perceba-sequeaexposiçãopachukanianaestádeacordocomaapresentação
de Marx e, no entanto, permanece insuficiente. A forma jurídica da propriedade
capitalista realmente não contradiz o fato da expropriação, como afirma Pachukanis.
Entretanto, é preciso ir além e demonstrar por que razão isso não ocorre, isto é,
apresentardemodopreciso justamentea torçãodialética que traduzapassagemdas
leisdepropriedademercantilàsleisdeapropriaçãocapitalista.24Essedesenvolvimento
24Aessênciadapropriedadecapitalistanãoconsiste,simplesmente,na“liberdadedetransformarocapitalde uma forma em outra e de transferi-lo de uma esfera para outra”. Esta “liberdade” é caraterísticaessencialdaformadapropriedademercantil.Apropriedadecapitalistaconservaestaliberdadeesomaaela
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estáausente,demodogeral,daexposiçãopachukaniana,oqueconduzàaberturade
certos“flancos”teóricosquepermitem,sejaoataquefrontalàsuaposiçãoteórica,seja
ainterpretaçãoinsuficientee“desviante”deseupontodevistarigorosamentemarxista.
Assim, o problema fulcral gira em torno da forma específica da relação de
propriedade captalista, cuja adequada apresentação dos elementos conceituais
depende da maneira como se apreende a conexão dialética entre as esferas da
circulação e produção. Se esta conexão for apreendida demodo abstrato, fazendo-se
vistasgrossasdapeculiaridadedialéticadeseusnexosconstitutivos,então,comoafirma
Marx, a percepção de que as partes que se encontram no mercado são legítimas
proprietárias de sua respectivas formas-valor (força de trabalho e dinheiro) assume
caráteressencial, demodoque a lei da troca demercadorias permanece intacta e os
vínculos de igualdade, liberdade e propriedade fundada no próprio trabalho são
respeitados.Se,noentanto,observa-searelaçãoentrecapitaletrabalhodopontode
vistadaproduçãodomais-valor(retere-se,antesdareproduçãodocapital)apanha-sea
negação da relação de equivalência, sua natureza meramente aparente e, por
conseguinte, o caráter essencialmente exploratório da produção capitalista. A forma
jurídicadarelaçãodepropriedadecapitalistaéconstituídaprecisamenteporintermédio
daquelaconversãodialética,demaneiraqueseumododeserconsiste justamenteem
projetar a aparência de uma relação de direito fundada na equivalência de posições,
mantendoobscura,noentanto,a relaçãoessencial,exploratória,deextraçãodemais-
valor.
5.Acríticadacríticamarxistadodireito
AaproximaçãoefetuadaporPachukanis,entreformajurídicaemercantil,abriuoflanco
para a alegaçãodeque sua teoria poderia ser qualificada como “circulacionista”, pois
teriafeitoodireitoderivardeformasproduzidaspelacirculação,enãopelaprodução,
como indicam as observações deMarx. À acusação de “circulacionismo”, entretanto,
a extração demais-valor, isto é, a relação de exploração (Aufhebung,mas no sentidomaterialista). Ora,ondeháliberdadenãoháexploraçãoeondeháexploraçãonãoháliberdade,anãoserqueaexpropriaçãonão apenas conviva, como também seja constituída por aquela liberdade.Daí a riqueza da apresentaçãomarxianadaconversãodialética,quepermitecaptar,aumsótempo,tantoaaparência,comoaessênciadapropriedadecapitalista.
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respondeu-se, aomenos no Brasil, com uma formulação que deita raízes na obra de
Althusser.De fato,predominahojenocenárionacionaluma interpretaçãodaobrade
Pachukanis que se funda no paradigma althusseriano de crítica ferrenha à “herança
hegeliana” supostamente presente na dialética de Marx. A propósito, Márcio Naves
sustenta:
“É verdade que há, para Pachukanis, uma relação de determinaçãoimediata entre forma jurídica e forma damercadoria, como vimos,mas a determinação em Pachukanis é, a rigor, umasobredeterminação. A esfera da circulação, que determinadiretamente as formas do direito, é por sua vez determinada pelaesfera da produção, no sentido preciso de que só o específicoprocessodeorganizaçãocapitalistadotrabalhopermiteaproduçãodemercadoriascomotais,istoé,comoresultadodeumtrabalhoquese limitaaserpurodispêndiodeenergia laborativa indeferenciada”(NAVES,2000,p.72).25
Embora a resposta pareça convincente, está marcada, no entanto, por um
problemade“nascença”:seufundamentoremontaaoconceitodesobredeterminação,
apresentadoporAlthusseremAfavordeMarx:
Essasobredeterminaçãotorna-seinevitávelepensável,desdequesereconheçaaexistênciareal,emgrandeparteespecíficaeautônoma,irredutívelpoisaumpurofenômeno,dasformasdasuperestruturaedaconjunturanacionaleinternacional.Éprecisoentãoiratéofim,edizer que essa sobredeterminação não se atém às situaçõesaparentementesingularesouaberrantesdahistória(porexemplo,aAlemanha),masqueelaéuniversal,quejamaisadialéticaeconômicaageemestadopuro,quejamaisnahistóriasevêessasinstânciasquesão as superestruturas etc., afastarem-se respeitosamente quandoelas realizaram a sua obra ou dissiparem-se como seu purofenômeno para deixar avançar no caminho real da dialética SuaMajestadea Economiaporqueos Tempos teriamchegado.Nemnoprimeiro, nem no último instante, a hora solitária da “últimainstância”jamaissoa(ALTHUSSER,1979,p.99).26
Estanoçãodesobredeterminação,pelaqualsereconheceaexistênciareal,em
grandeparte específica e autônomadas formas da superestrutura, quando aplicada à
análisedateoriadePachukanis,nãodeixadesugerirumasecção, istoé,umaruptura,
25Emnotaoautorexplicaaorigemdoconceitodesobredeterminação,alheioaomarxismo:“Esseconceito,deorigemfreudiana,foiutilizadoporLouisAlthusseremPourMarx,Paris,Maspero,1977”(Id.,ibid.,nota39).Note-sequeaabeturaparaum“estruturalismoenvergonhado”énítida.26À frente, observa: “(...) é preciso antesdizer que a teoria da eficácia específica das supesrestruturas eoutras‘circunstâncias’permanece,emgrandeparte,porelaborar;eantesdateoriadesuaeficácia,ouaomesmotempo(porqueépelaconstataçãodasuaeficáciaquesepodeatingirasuaessência)ateoriadaessênciaprópriadoselementosespecíficosdasuperestrutura”(ALTHUSSER,1979,pp.99/100).
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entreasrelaçõeseconômicasdeproduçãoeasrelações jurídicas.27Assim,no lugarde
colocar em evidência a torção dialética apresentada por Marx (ou seja, o liame
específico por cujo intermédioapropriedade fundadano trabalhopróprioconverte-se
emapropriaçãodotrabalhodeoutrem),procedejustamenteaseuocultamento.
Ora, namedida emque a forma jurídica é determinada em “última instância”
pela esfera produtiva; que as relações de direito, portanto, possuem umaautonomia
“relativa”;intensifica-seapercepçãodequeasleisdepropriedademercantil,fundadas
emposiçõesdeequivalência,são,naverdade,leisessenciais,istoé,únicasexistentesna
realidade efetiva do capitalismo. Assim, todo o esforço de Pachukanis, que tenta
conciliar a equivalência da circulação com a exploração da produção (ainda que de
modopoucodialético,diga-sedepassagem),acabasimplesmenteignorado,poissefaz
um “desvio”, isto é, “esquiva-se” do enfrentamento do problema ao sugerir-se uma
derivaçãojurídicadesegundograu.
Nesse contexto, a crítica que Fausto dirige à interpretação althusseriana de
Balibar(1980)28noqueconcerneàanálisedareproduçãodocapitalpoderianosajudara
enfrentar a leitura que vê na obra de Pachukanis a presença da dita
“sobredeterminação”:
Comefeito,Balibarnãoapresentaarelaçãoentreosdoismomentos(o momento de uma volta isolada e o da reprodução) como umarelação de contradição, ou, se se quiser, ele não apresenta apassagememtermosdeumainterversão.Buscar-se-áinutilmenteemseutexto–oqueseexplica–aapresentaçãodainterversãodasleisde apropriação em termos de contradição. O conceito quepressupõemasanálisesdeBalibarnãoéodecontradição,masoderupturaou corte (...) Quemdiz contradição (dialética) diz “tensão”,separação,mastambémuniãoentredoistermos.Quemdizruptura,corte,diz“separação”:cadatermos“fora”dooutro.Comefeito,searelação entre os dois momentos é uma ruptura, não pode haverposiçãodapassagem–umcorteumarupturaéumvazio–equenãohaja posição da passagem significa que o primeiro momento estáfora do segundo, o segundo só pode aparecer como resultado (emsentidoabstrato),que substitui oprimeiro (...)Ora,é somente seo
27AsituaçãoétalqueFrançoisDossenãoexitaemsituarAlthussernocontextodoestruturalismofrancês:“Althusser substitui a vulgatamecanicista da teoria do reflexo por uma totalidade estruturada na qual osentidoéfunçãodaposiçãodecadaumadasinstânciasdomododeprodução.Assim,Althusserreconheceuma eficácia própria da superestrutura, a qual pode encontrar-se, em certos casos, em posição dedominância e, em todos os casos, figurar numa relação de autonomia relativa em comparação com ainfraestrutura”(DOSSE,2007,p.394-395,grifomeu).28 O trecho visado por Fausto é este: “Essas análises são, pois, aquelas nas quais Marx nos mostra omovimento de transição (mas essa transição é uma ruptura, uma inovação radical) de um conceito daprodução como ato, objetivação de um ou vários sujeitos, a um conceito de produção sem sujeito, quedeterminaemrecíprocacertasclassescomosuasfunçõespróprias”(BALIBAR,1989,p.230).
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segundomomento,aindaquecontradizendooprimeiro,oconservacomomomentonegado(ou,sesequiser,ésomenteseacontradiçãofor pensada em termos deAufhebung) que se poderia dizer que aclasse operária perde seu produto. Se for rompida toda acontinuidade entre os dois momentos, mesmo a continuidade nadescontinuidade que caracteriza a Aufhebung, só se apreenderá aapropriação intervertida e não a interversão da apropriação. ÉfinalmenteoúnicoresultadoaquechegaBalibar.Erroinversoàqueleque incorre a leitura antropologista da interversão, que faz doprimeiromomentoofundamentodosegundo–oqueabsolutamentenãosesupõeaqui–edainterversãonãoumanegação(tambémnosentido lógico), mas uma simples inversão real (em sentido fraco,semimplicarumanegaçãológica)domovimentofundador(FAUSTO,2013,p.77/78,passim).
AcríticadeFausto,entretanto,emboraprocureoferecerumarespostadialética
ao problema, não consegue solucioná-lo adequadamente, pois abstrai, em alguma
medida, dos elementosmaterialistas que caracterizam a apresentação marxiana. Ao
supor,comovimos,quea“interversão”ocorreapenasnomomentodareprodução;que,
portanto,a“torçãodialética”àqualserefereMarxtemlugarapenasna“segundavolta”
do capital, Fausto menoscaba a apresentação marxiana da produção do mais-valor
absoluto,ouseja, justamenteomomentoemqueocapitalextraidotrabalhadormais
trabalhodoqueaquelequesimplesmenterepõeovalordesuaforçadetrabalho.Ora,a
torçãodialéticaocorreporocasiãodaproduçãodocapital,enãodesuareprodução.
Sob a perspectiva de Fausto, contudo, a esfera da circulação, que sustenta a
existência autônoma da lei de propriedade mercantil, acaba por reter alguma
essencialidade, istoé,algumnívelderealidadedesconexadomomentoprodutivo(este
sim,elementofundamentalporcujoenfoqueseapanhaocaráteraparentedaquelalei).
Assim,seopontodevistadeFausto,porumlado,propiciaumganho,valedizer,evitaa
apreensão isolada da apropriação invertida, acaba, por outro lado, reificando a
interversão da apropriação, pois diminui a importância da produção do capital na
apresentaçãomarxiana,transferindoessestatusesclarecedor (nosentidodedesbastar
asaparências),aomomentodareprodução.
Assim, é preciso reiterar alguns pontos decisivos: em primeiro lugar, lembrar
que a conversão dialética por intermédio da qual a lei de propriedade mercantil se
transmudaem leideapropriaçãocapitalistaopera-seaindanomomentodaprodução
docapital (desua“primeiravolta”),demodoqueexposiçãoda reproduçãodocapital
apenasconsumaaapresentaçãodialéticadesta torção;emsegundo lugar,opontode
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vista de Fausto, na medida em que localiza essa “interversão” no momento da
reprodução,atribuiàleidepropriedademercantilalgumaessencialidade,portanto,uma
existência em certa medida desconexa do momento da produção; finalmente, a
resposta à crítica circulacionista à teoria de Pachukanis, porque fundada na noção de
sobredeterminação, além de inviabilizar um argumento dialeticamente adequado,
produzefeitoinverso, istoé,ocultaonóduloracionaldadialética,porcujointermédio
uma resposta fundada na concepção materialista poderia ser adequadamente
formulada.
Conclusão
À indagação “que método Marx ocultou?”,29 deve-se responder: o seu próprio. O
significado desta “ocultação” ainda precisa ser desvendado,mas a sugestão de que o
objetodoescondimentoteriasidoadialéticahegeliananãofazmuitosentido,anãoser
quesepretendaser“mais realistadoqueoRei”.De fato,numacartaaKugelmann,a
propósitodeumafigura“bemconhecida”domarxismo,Marxesclarece:
PossoagoracompreenderotomcuriosamenteembaraçadodacríticadeHerrDüring.Eleédeordinárioumindivíduomuitopresunçosoeimpudente, que se apresenta como revolucionário na economiapolítica.Elefezduascoisas.Publicouinicialmente(partindodeCarey)umFundamentoCríticodaEconomiaPolítica(cercade500páginas)edepois uma nova Dialética da Natureza (contra a hegeliana). Meulivroqueimou-oporambosos lados.EledeunotíciadissoporcausadesuaaversãoporRoscheretc.Deresto,emparteintencionalmentee em parte por falta de perspicácia, ele comete equívocos. Sabemuito bem que meu método de desenvolvimento não é hegeliano,umavezquesoumaterialistaeHegeléidealista.AdialéticadeHegeléaformabásicadetodaadialética,massomentedepoisqueelafoiextirpadadesuaformamística,eistoéprecisamenteoquedistinguemeumétodo(MARX,2002,p.228-229,grifomeu).
Pachukanis elevou a crítica marxista do direito a outro patamar quando
incorporouàanálisedasrelaçõesjurídicasumaprocupaçãometodológicamaisapurada.
Ele sem dúvida trabalhou à luz do “método” deMarx, portanto, a partir da dialética
marxiana.Entretanto,naépocaemqueTeoriageraldodireitoemarxismofoipublicada,
emmeadosdadécadade1920,omarxismoapenasiniciavaatentativadedesvencilhar-
29(REICHELT,2011).
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sedeuma certa tradição “economicista”, demodoqueodebate sobreo estatutodo
“método dialético” no interior do pensamentomarxiano começava a dar passosmais
substanciais. Paradoxalmente, a crítica marxista que seguiu os passos do autor russo
renunciou ao debate das questões metodológicas, dando-as por encerradas e
contentando-se em trabalhar com as categorias já solidificadas por Pachukanis,
sobretudoajárepisadafiguradosujeitododireito.
Doque se trata,portanto,édeumtrabalhoduplo:nãoapenas reincorporar à
críticamarxistadodireitoapreocupaçãoeosdebatesrelacionadosàdialéticamarxiana,
comotambémpromoverumaaberturaaoutroscamposdomarxismoparaauxiliarno
difíciltrabalhodedelimitaçãoeelaboraçãodeparâmetrosmaisprecisosquepermitam
identificar os contornos particulares dométodo dialético marxiano, em oposição ao
método idealistadeHegel. ConsiderandoqueOcapital é, por excelência, oobjetode
todaanálisequesepretendaséria,equeseencontraaliaapresentaçãodasformasdo
direito e da propriedade privada como elementos constituídos e constitutivos do
movimento de produção, circulação e acumulação do capital, não se deve estranhar,
absolutamente, a relevante contribuição que a crítica marxista do direito tem a
oferecer. Deve-se reconhecer que a tarefa é árdua; é também, no entanto,
absolutamentenecessária.
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