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A CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL NO DISCURSO IRÔNICO EM “A OMISSÃO QUE MATA” DE RUTH E
AQUINO1
Bruno Franceschini2
Introdução
Uma vez que discorreremos acerca da ironia enquanto fenômeno linguístico, acreditamos,
portanto, ser necessário balizarmos o campo científico no qual nos embasamos, porque, ao
comungarmos dos estudos do Círculo de Bakhtin (1992) quanto à conceituação da linguagem
enquanto prática de interação verbal e social, observamos a dimensão dialógica e heterogênea do
discurso, e os traços ideológicos e sociais presentes neste. De modo a desvendar o caráter
heterogêneo do discurso, Authier-Revuz (1982, 1990) caracteriza a heterogeneidade de dois
modos: a constitutiva – na qual o enunciador tem a ilusão de ser a origem do discurso, e a
mostrada – aquela em que o outro é explicitado. Neste trabalho, dentre as distintas formas de
ocorrência de heterogeneidade mostrada, enfatizamos a ironia.
Portanto, nos propomos a descrever o funcionamento do discurso irônico e a analisar o
efeito de sentido causado pelo uso da ironia presente no artigo “A omissão que mata” escrito por
Ruth de Aquino, na edição 621 da revista Época, em virtude dos deslizamentos ocorridos no
estado do Rio de Janeiro no mês de abril. Assim, nos valemos de Authier-Revuz (1982, 1990) para
a compreensão da heterogeneidade discursiva e, quanto ao estudo da ironia, nos amparamos em
Ducrot (1987), Passetti, (1995), Brait (1996), Castro (2005) e Oliveira (2006).
Do Dialogismo e da Heterogeneidade do Discurso
Dado o tom dialógico da linguagem, conforme assinala Bakhtin, podemos então constatar
que todo o discurso traz consigo os dizeres de outrem – e os traços sócio-históricos e ideológicos
1 Artigo apresentado como forma de avaliação parcial da disciplina “A construção heterogênea do
texto”, ministrada pelo Prof. Dr. Edson Carlos Romualdo, do Programa de Pós-Graduação em
Letras (PLE) da Universidade Estadual de Maringá.
2 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá.
destes, posto que a interação entre sujeitos é um dos princípios fundadores da linguagem. Em
Marxismo e Filosofia da Linguagem, o filósofo introduz aos estudos do dialogismo a noção de
enunciação, na qual há a consideração do contexto de produção, dos sujeitos envolvidos e do
local social onde a interação ocorre, e desse processo de enunciação resultará um enunciado.
Para Bakhtin (1997), cada enunciado emerge num evento único, dadas as condições de
produção, como também atesta o filósofo francês Michel Foucault (2009, p. 112): “não há
enunciado que não suponha outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo de
coexistências”, ou seja, o enunciado é o produto de uma relação dialógica entre sujeitos e está
relacionado a outros enunciados anteriores e, de modo a analisá-lo numa perspectiva discursiva, é
preciso considerarmos, portanto, os aspectos históricos e sociais, uma vez que “o todo do
enunciado se constitui como tal graças a elementos extralingüísticos (dialógicos), e este todo está
vinculado a outros enunciados.” (BAKHTIN, 1997, p. 335)
Ao aprofundar os estudos de Bakhtin acerca do dialogismo, Authier-Revuz (1990, p. 32)
avança ao analisar o campo enunciativo e teoriza, desse modo, os conceitos de heterogeneidade
discursiva: a constitutiva, ou seja, “os processos reais de constituição de um discurso” - e a
mostrada – condizente aos “processos, não menos reais, de representação, num discurso”. As
formulações desses conceitos dizem respeito à inscrição do outro na enunciação, e como
sabemos, todo texto é heterogêneo dada a gama de enunciados envolvidos no processo
enunciativo, como observa Bakhtin (1988, p. 140):
a todo instante se encontra nas conversas „uma citação‟ ou „uma
referência‟ àquilo que disse uma determinada pessoa, ao que „se diz‟ ou
àquilo que „todos dizem‟, às palavras de um interlocutor, às nossas
próprias palavras anteriormente ditas, a um jornal, a um decreto, a um
documento, a um livro.
Para Authier-Revuz (1982, p. 92), a heterogeneidade mostrada ocorre quando o locutor
insere o outro no fio do discurso e, ao entrar no discurso, o locutor acredita, por meio da
denegação, ser a origem do discurso que profere, no entanto, não é possível nos esquivarmos
caráter heterogêneo da linguagem, uma vez que se aquilo que não estivesse explícito, o locutor
acreditaria ser dele:
(...) Le locuteur fait usage de mots inscrits dans Le fils de son discours (...)
et, em meme temps, il les montre. Par là, as figure normale d‟utilisateur
des mots est doublée, momentanément, d‟une autre figure, d‟observateur
des mots utilisés: et Le fragment ainsi désigné – marque par des
guillemets, de l‟italique, une intonation et/ou par quelque forme de
commentaire – reçoit, relativement au reste du discours, un statut autre.
Desse modo, nos focaremos aos modos de ocorrência da heterogeneidade mostrada
marcada que podem ser encontradas num discurso, as quais são: as glosas, o discurso relatado -
discurso direto e indireto -, as aspas e o itálico, dentre outras formas em que é possível
recuperarmos a presença do outro no discurso, e como exemplo de heterogeneidade mostrada,
mas não marcada, temos a ironia, o discurso indireto livre, a paráfrase e a paródia que contam
com o outro, no entanto, sem explicitá-lo, para a produção de sentidos, e tomamos como foco do
trabalho a ironia e os efeitos de sentido advindos do uso desse recurso linguístico no discurso.
Da Perspectiva Polifônica da Ironia
O discurso irônico, para Brait (1996, p. 90), “joga com a lógica dos contrários e que pode
funcionar como um princípio de organização dos textos”. Logo, a ironia pode ser compreendida
sob a perspectiva de uma contradição e, ao lidar com a contradição, podemos observá-la
enquanto fenômeno polifônico, uma vez que este fenômeno prova a existência do enunciador, faz
ouvir uma voz e distingue locutor e enunciador, nesse sentido, portanto, a ironia opõe o que está
dito com o que de fato se quis dizer, como postula Ducrot (1987, p. 197): “Um enunciador irônico
consiste sempre em fazer dizer, por alguém diferente do locutor, coisas evidentemente absurdas,
a fazer, pois ouvir uma voz que não é a do locutor e que sustenta o insustentável.”
Assim, o locutor não assume como seu o que foi dito e, dadas as impressões deixadas no
momento da enunciação, será possível perceber a distinção entre o enunciador sério e o
enunciador absurdo, porque a ironia é uma “construção em que existe a presença de um
significante recobrindo dois significados” (BRAIT, 1996, p. 49), sendo constituído, portanto, o
caráter bivocal do discurso irônico.
Para o entendimento desse aspecto da ironia, é preciso, portanto, que avancemos ao conceito
de polifonia. Como postula Ducrot (1987, p. 193), o fenômeno polifônico é caracterizado quando
um locutor L apresenta em seu enunciado dois enunciadores distintos, no entanto, o locutor L
assume a responsabilidade pelo enunciado e os enunciadores pela posição adotada:
O locutor, responsável pelo enunciado, dá existência, através deste, a
enunciação de quem ele organiza os pontos de vista e as atitudes. E sua
posição própria pode se manifestar seja porque ele se assimila a este ou
aquele dos enunciadores, tomando-o por representante (o enunciador é
então atualizado), seja simplesmente porque escolheu fazê-los aparecer, e
que sua aparição mantém-se significativa, mesmo que ele não se assimile
a eles.
Desse modo, a perspectiva polifônica da ironia ocorre devido à oposição entre os dois
enunciadores apresentados pelo locutor L num mesmo enunciado, porém, no discurso irônico, os
dois enunciadores – E1 e E2 – não se encontram da mesma forma na enunciação, posto que um
está implícito e o outro explicito. A esse respeito, Ducrot (1987, p. 198) discorre acerca do
discurso irônico em perspectiva polifônica:
falar de modo irônico é, para um locutor L, apresentar a enunciação como
expressando a posição de um enunciador. Posição que se sabe por outro
lado que o locutor L não assume a responsabilidade, e, mais que isso, que
ele a considera absurda. Mesmo sendo dado como o responsável pela
enunciação, L não é assimilado a E, origem do ponto de vista expresso na
enunciação.
Observamos, portanto, que o locutor deixa marcas em seu discurso as quais sinalizam para
uma perspectiva diferente daquela que está materializada no enunciado, conforme Passetti
apresenta (1995, p. 48) “o locutor irônico é aquele que, ao mesmo tempo, expressa ou veicula um
ponto de vista e sinaliza ou orienta para outro”. Ou seja, o locutor L expõe o enunciador E1
(enunciador sério) no plano do discurso, mas sinaliza para o enunciador E2 (enunciador absurdo),
no entanto, a efetivação da ironia ocorrerá somente se o interlocutor possuir o conhecimento
necessário para a identificação e recuperação dos enunciadores E1 e E2, como explanaremos mais
adiante.
A compreensão do implícito no discurso irônico ocorre então na recuperação das marcas
deixadas pelo locutor L, como o contexto sócio-histórico, o interlocutor a quem se deseja
alcançar, uma vez que, como nos traz Passetti (1995, p. 54) “concebemos a ironia como um tipo
de discurso que exige uma interação entre os sujeitos envolvidos no processo de constituição do
sentido, tanto na instância de produção quanto na recepção”.
Nesse sentido, descrevemos então o discurso irônico da seguinte forma:
AUTOR LOCUTOR
ENUNCIADOR SÉRIO ENUNCIADOR ABSURDO
RECEPTOR SÉRIO RECEPTOR ABSURDO
É na “instância de produção” do discurso irônico que há a presença do autor, aquele que é
responsável por “dar conta da colocação no discurso desta ou daquela estratégia enunciativa”
(PASSETTI, 1995, p. 63). Cabe, dessa forma, ao autor construir, dadas as condições de produção, o
ponto de vista a ser enunciado pelo locutor L, como já exposto, o locutor L enunciará o absurdo,
mas sinalizará para o sério. Isso ocorre devido à ideologia presente nas formações discursivas
presentes nos enunciadores sério e absurdo e que será apreendida na ambiguidade do discurso
irônico.
É nesse sentido que o autor orientará o locutor L a aderir ao enunciador sério e organizará o
texto de forma coerente de modo a inserir “na voz desse locutor, a princípio ingênuo, sinais
avaliativos que indiquem a sua „falta de sinceridade‟ proposital, a sua não adesão a esse
enunciador” (PASSETTI, 1995, p. 64), e como resultado desse processo, o locutor, mesmo não
aderindo ao que é enunciado, é responsável por ele, porque no momento da enunciação, veicula,
“pois, a contradição de valores” (idem).
A contradição de valores na organização do discurso irônico ocorre na presença de dois
enunciadores diferentes numa mesma enunciação, sendo possível, dessa forma, “chegar a
formações discursivas diferentes, que por sua vez, revelam formações ideológicas diferentes”
(PASSETTI, 1995, p. 66). Cabe ressaltarmos que essas diferentes formações discursivas postas em
cena no jogo enunciativo estão em consonância com a ideologia que perpassa o autor, o qual
“organiza seu discurso para se comunicar com um outro sujeito, em sua correlata função de leitor”
(op. cit.).
Assim, para que a ironia seja de fato efetivada é preciso que o receptor ative, nas palavras de
Passetti (1995, p. 65), “os dois enunciatários, o sério e o absurdo, para concretizar o processo de
dupla leitura exigido pelo discurso irônico”, sendo que esse processo atesta o caráter polifônico
da ironia tanto na produção quanto na recepção, como pôde ser observado no esquema exposto
acima.
Porém, caso o receptor não tenha conhecimento das formações discursivas postas na
enunciação, este não compreenderá qual ideologia é ridicularizada e qual é elevada, ou seja, o
leitor irônico precisa ir além do que está implícito, é preciso que este leitor recupere o contexto de
enunciação e a relação entre o implícito e o explícito:
De maneira bastante genérica, pode-se dizer que a transposição se dá na
medida em que o enunciado, independentemente de sua extensão, será
observado através das marcas que aí estão assinaladas, produtos de um
processo que envolve as relações dialógicas necessariamente existentes
entre a instância de produção e a instância de recepção, o que significa
considerar no mínimo dois agentes responsáveis pela significação:
enunciador e enunciatário. Se o enunciatário não se der conta das
articulações entre os segmentos aí envolvidos, a significação irônica não
terá lugar. (BRAIT, 1996, p. 66)
É nesse sentido que o autor irônico organiza a estratégia discursiva do texto as quais
permitirão ao leitor a ativação da relação com os outros textos, com os interlocutores, do contexto
de enunciação, e com a formação ideológica a que pertence, com a finalidade de nortear o
discurso a argumentação pretendida, nos dizeres de Passetti (1995, p. 67): “Isso significa que,
mais que o dizer, é o próprio modo de dizer que se sobreleva e permite a manifestação da ironia.”
Quanto à estruturação do aspecto argumentativo do discurso irônico, o autor, segundo Oliveira
(2006), pode se utilizar dos seguintes recursos linguísticos de modo a caracterizar a estratégia a
ser utilizada para a construção da ironia: a) pontuação; b) palavras de alerta; c) repetições; d)
justaposições; e) simplificações; f) desvios. Assim, esses elementos são subsídios a serem
utilizados para criar, num primeiro momento, um efeito de sentido ambíguo, porém, após a tomar
conhecimento do jogo irônico, o leitor fará a leitura da ironia presente no enunciado, como
discorre Brait (1996, p. 90): “é possível observar alguns mecanismos de construção textual cujo
conjunto pode produzir efeitos irônicos e humorísticos. (...) E é precisamente através desse
mecanismo fundamental da linguagem que a ironia se concretiza”.
Apoiada em Frye (1973), Brait (1996, p. 74) reflete acerca do sentido literal e figurado, porque
o sentido literal ou figurado de um termo diz respeito à “complexa rede retórico-argumentativa
que se instaura sob o discurso irônico”, uma vez que, como já expresso, os signos não recobrem
apenas um significado, mas produzem sentido em decorrência do contexto em que são utilizados:
“todos os possíveis valores de signo de uma palavra são absorvidos num complexo de relações
verbais” (FRYE, 1973: 82 apud BRAIT, 1996, p. 76)
Desse modo, a ironia é produzida no nível do discurso e, uma vez que
“o ironista deseja fazer conhecer sua opinião, ele deve assinalar a „armadilha‟ que prepara em seu
discurso” (OLIVEIRA, 2006, p. 36). Portanto, o discurso irônico requer do leitor a interpretação nos
planos lingüístico e discursivo, ou seja, o leitor precisa recuperar as marcas deixadas no texto
pelo enunciador, como, por exemplo, a citação e o uso de aspas, as quais permitirão “a indicação
da operação argumentativa que está por trás da incorporação da voz do outro no discurso em
pauta” (BENITES, 2002, p. 90), sendo que a operação argumentativa escolhida pelo autor poderá
resultar em um efeito de humor, ou para a instauração da crítica, posto que “a ironia não é
necessariamente cômica” (BRAIT, 1996, p. 58).
É na perspectiva da análise linguística e discursiva que é possível ao leitor compreender, por
meio da estratégia enunciativa construída pelo autor e efetivada pelo locutor, as pistas deixadas
por estes no momento da enunciação, como o enunciado expresso pelo enunciador absurdo, de
modo a indicar o caminho para a identificação do enunciador sério, sendo constituída, nesse
processo, a perspectiva polifônica do discurso irônico.
O discurso irônico na crônica político-social
Dada a orientação argumentativa construída pelo autor e a recuperação do contexto de
enunciação, é possível, portanto, tomarmos conhecimento do discurso desvalorizado e do
discurso elevado no enunciado emitido pelo locutor L, o qual emitiu a voz do enunciador absurdo,
mas sinalizou para o enunciador sério. Brait (1996, p. 51), a esse respeito, explica que o discurso
irônico “descreve em termos valorizantes uma realidade que ela trata de desvalorizar”.
Pensando então nas escolhas argumentativas realizadas pelo autor irônico para mostrar o
seu descrédito em relação à outra ideologia, constatamos, com base em Silva (2001, p. 193-194),
que a escolha do gênero crônica também é um fator importante na estruturação do discurso
irônico, uma vez que “a Crônica Político-Social utiliza a ironia como estratégia para a apresentação
de um contra-argumento construído discursivamente”.
De modo a circunscrever o campo teórico no qual nos amparamos, apontamos que o
conceito de gênero a ser explorado está pautado na concepção bakhtiniana (1997, p. 290) de que
“todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas
com a utilização da língua”, ou seja, o autor irônico ao utilizar-se da linguagem faz sua inscrição
em um determinado gênero discursivo, no entanto, procuramos observar os efeitos de sentido
advindos da ironia presente na crônica “A Omissão que mata”, escrita por Ruth de Aquino na
edição de número 621 da revista Época em 12 de abril de 2010.
A ironia se faz presente ao desvalorizar o enunciador absurdo e indicar a adesão ao enunciador
sério no momento da enunciação pelo locutor L e, no gênero crônica político-social, esse processo
ocorre em harmonia à orientação argumentativa estruturada pelo autor irônico, o qual sinalizará
ao leitor, ao fazer uso do locutor L, o caminho para a recuperação do enunciador sério – aquele
que está no plano da enunciação – e, nos dizeres de Silva (2001, p. 194), “ao desmascaramento
daquilo que no discurso do outro estava mascarado e que o procedimento irônico, por uma
artimanha linguístico-discursiva, dá a conhecer”.
Uma vez que a crítica político-social é terreno fértil para o uso da ironia, é possível, portanto,
observamos o objetivo do autor irônico de criticar uma ideologia em oposição à outra ao trazer o
discurso do outro na construção desse recurso linguístico, o qual ocorre no jogo enunciativo
quando há o conflito entre o enunciador sério e o enunciador absurdo, ou seja, quando ocorre o
embate entre duas formações discursivas diferentes, sendo que a formação discursiva ironizada é
a enunciada e a aquela que representa a ideologia assumida pelo autor irônico é recuperada na
enunciação.
Antes de adentrarmos à análise do funcionamento do discurso irônico no texto em questão,
consideramos necessário situar, ainda que de forma breve, a autoria da revista Época e as
implicações ideológicas deste autor.
Com uma tiragem semanal de aproximadamente 420 mil exemplares, a revista Época compõe o
quadro das publicações impressas da Editora Globo, a qual pertence à Organizações Globo e se
configura como a maior empresa do ramo jornalístico no Brasil.
Ao longo dos anos, a Rede Globo aprimorou um estilo retórico capaz de formar
estereótipos os quais eram veiculados como verdade por meio das novelas e jornais, como
discorre Roaly (2009)
A Globo durante toda sua história desenvolveu uma retórica televisiva
muito eficaz, se tornando uma formadora de estereótipos, criando modelos
de comportamento, de moda e de linguagem, por meio do sedutor poder
das informações. O padrão de verdade se tornou o do jornalismo da TV
Globo. As notícias só são notícias se estão na Globo.
Quanto à política, por ser aliada ao governo militar, a emissora viu seu poder ser posto em
risco com as “Diretas Já”, uma vez que a população saía às ruas para protestar e os jornais
noticiavam as manifestações como fatos isolados organizados por grupos de esquerda. No
entanto, a população reagiu ao que era noticiado e deu início ao grito de protesto: “O povo não é
bobo. Fora Rede Globo”. Além disso, o então governador do estado do Rio de Janeiro, Leonel
Brizola também adere ao movimento, configurando, dessa forma, mais uma desavença com à
Globo.
Assim, o grupo Rede Globo procurou em seus noticiários televisivos, impressos e em
novelas transmitir suas ideias a qualquer custo, sendo um dos fatos mais marcantes a
manipulação das eleições para o governo do estado do Rio de Janeiro em 1982, a qual tinha como
candidato da oposição Leonel Brizola, porém o esquema para fraudar o pleito foi descoberto e a
discórdia entre a Globo e o governo de oposição tornou-se mais nítido.
Outro fato político importante foi o debate promovido entre os candidatos à presidência
Fernando Collor e Luis Inácio Lula da Silva, em 1989, quando a maior rede televisiva do país
deixou clara a sua opção ao mostrar os melhores momentos do primeiro candidato em detrimento
aos piores do segundo, uma vez que Collor correspondia aos interesses da Rede Globo de
Televisão.
É nesse sentido, portanto, que se faz necessário contextualizar a ideologia presente na
revista Época, uma vez que observamos o poderio da Globo se estender não somente à televisão,
mas aos jornais e revistas sob o seu comando, como a revista Época, os quais veiculam notícias
que procuram, com notícias escritas num estilo retórico eficaz produtor de efeito de sentido de
verdade, desmoralizar os adversários políticos da emissora de modo que esta continue a se
manter no topo, como postula Foucault (2009), o discurso é objeto de desejo e de poder.
O discurso irônico na crônica político-social “A omissão que mata”
Analisaremos, neste item, a construção do discurso irônico e o funcionamento da ironia
enquanto efeito de sentido para a instauração da crítica político-social na crônica “A Omissão que
mata”, escrita pela jornalista Ruth de Aquino na coluna “Nossa Antena” na revista Época, número
621, de 12 de abril de 2010.
Acreditamos ser necessário situarmos os textos que estão em correlação com a crônica que
analisamos, de modo que seja possível, assim, a descrição da ironia da crônica em tela. Uma vez
que o texto é um objeto heterogêneo, é preciso, portanto, procurar estabelecer as condições do
momento da enunciação e descrever como o autor-irônico orientou o locutor L a apresentar a
perspectiva do enunciador absurdo e a sinalizar o leitor para a recuperação do enunciador sério,
como propõe Ducrot (1987), a respeito da constituição do discurso irônico.
Começamos a análise com descrição da capa da edição de número 621, a qual traz, em fundo
preto, os dizeres “Rio de Janeiro, abril de 2010” e a foto, com a legenda “O bombeiro Flávio
Fernandes, ao retirar um bebê morto pelos deslizamentos no Morro do Borel”, de um bombeiro
carregando o corpo de uma criança morta nos deslizamentos causados pela chuva que atingiu,
principalmente, as cidades de Niterói e do Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro. Já no índice
das reportagens, a primeira foto está localizada no topo da página, à esquerda, local onde o leitor,
em geral, inicia a leitura. A imagem apresentada no índice é a de uma casa localizada no alto de
um morro e que foi destruída no deslizamento, e, como legenda, tem os seguintes dizeres: “Morte
e má gestão – O que o desastre causado pelas chuvas no Rio de Janeiro revela sobre o poder
público”.
A seção “Carta do diretor de redação” também traz informações sobre o teor da matéria de
capa, o título do artigo escrito por Helio Gurovitz “Chega de demagogia. Chega de omissão.
Chega!”, demonstra a orientação argumentativa que perpassará a edição, o que pode ser
comprovado com o seguinte excerto:
Construir sobre esse relevo, porém, exige mais cuidados, fato esquecido
por quem ergueu milhares de moradias. É preciso, num momento de dor
como este, assumir uma posição clara a respeito: as construções ilegais em
áreas de risco precisam ser derrubadas. As autoridades sabem onde elas
ficam. Nada fazem, pois acreditam que remover as famílias que moram
nessas condições pode significar perder seus votos. Eis uma armadilha que
precisa ser desarmada. É uma irresponsabilidade absurda deixar gente
morando em locais que, como os fatos mostraram, deslizam com as chuvas
fortes. É, mais do que isso, um crime.
Constatamos, nesta carta, a introdução aos temas a serem abordados, como a ocupação
irregular das encostas, a falta de atitude do governo em remover as famílias desses locais devido
ao receio quanto a perda de votos, e o posicionamento da revista sobre isso, caracterizando o
governo que nada fez diante do alerta eminente da tragédia como irresponsável e criminoso.
Mais adiante, na página 74, a reportagem tem início com a foto do deslizamento ocorrido no
Morro do Bumba, em Niterói – RJ, e está acompanhada da legenda localizada no canto inferior
esquerdo da página: “Vidas no lixo – Após dias de chuva forte, a lama preta e malcheirosa deslizou
ao longo de 600 metros no Morro do Bumba, em Niterói, soterrando cerca de 50 casas que haviam
sido construídas sobre um lixão clandestino” e o título da matéria é “Avalanche criminosa – A
maior tragédia na história do Rio de Janeiro em décadas serve de alerta para a omissão das
autoridades diante a ocupação ilegal dos morros”, sendo Ruth de Aquino uma das jornalistas que
assinam a reportagem.
Com base nesses primeiros excertos, é possível depreendermos a organização dos argumentos
a serem apresentados ao longo da reportagem e que servirão de base para a construção da
crônica “A Omissão que mata”, como veremos. Ainda nesta primeira reportagem, há o
questionamento e logo abaixo a resposta sobre o papel dos governantes diante das tragédias
ocasionadas pela chuva há vários anos:
A cidade de geografia complicada, espremida entre rochas e mar, paga o
preço pela beleza ou pela competência histórica das autoridades? [...]
Governos sucessivos no Brasil fecham os olhos a ocupações ilegais de
encostas. Em parte para disfarçar sua incompetência, por não investir
seriamente e com continuidade numa política de habitação e transporte
para famílias de baixa renda, em parte porque favelados com água e luz
sempre foram sinônimos de voto
É nesse sentido que esta reportagem serve de base para a crônica político-social “A
omissão que mata”, porque é dela que são retirados argumentos que instaurarão a ironia no texto,
uma vez que, como postula Bakhtin (1997), todo enunciado está relacionado à outros enunciados,
e é dessa forma que o autor-irônico recupera os enunciados veiculados na reportagem de modo a
orientar a construção argumentativa do texto com o objetivo de criticar, no caso do texto em
questão, o descaso dos governantes responsáveis pelas cidades atingidas, posto que eles haviam
sido alertados sobre os riscos de permitirem a ocupação irregular dos morros, mas, em troca de
votos e de parco investimento em saneamento, os morros foram ocupados.
Desse modo, observamos a retomada dos argumentos veiculados na reportagem na
construção da crônica que ora critica explicitamente, ora implicitamente, ao fazer uso do discurso
irônico, o governo do prefeito de Niterói, Jorge Roberto Silveira.
Ao iniciar o texto com o enunciado “Quem mora lá no morro já vive pertinho do céu” um
trecho da canção “Ave Maria no morro”, composta por Herivelto Martins, o autor-irônico sinaliza
para a ocupação dos morros cariocas, uma vez que a música retrata o cotidiano dos moradores do
morro bem como a prece, e logo ao final do primeiro parágrafo, observamos a presença de um
enunciador sério e explícito que retoma o discurso da reportagem, mas sem citá-la.
Já no segundo parágrafo, é possível observarmos a presença do enunciador absurdo e o
modo pelo qual este é inserido no fio do discurso. O autor-irônico o insere, na voz do locutor L,
por meio das aspas, as quais, neste exemplo, marcam o distanciamento do locutor em relação ao
enunciador absurdo e, dessa forma, sinalizam para o enunciador sério: “O crime mais revoltante
foi cometido pelo prefeito Jorge Roberto Silveira, de Niterói. „Eu sabia do lixão ali, mas nunca tinha
havido nenhum incidente‟. Foi a declaração inocente do prefeito do PDT.”
Desse modo, o locutor L é, a primeira vista, responsável pelo enunciado, mas ao olharmos
mais atentamente às aspas, neste exemplo, observamos que o locutor L procura distanciar-se do
que ele mesmo enunciou, e, para tanto, utilizou-se das aspas, assim, acerca da isenção do locutor
L em relação ao discurso citado, Benites (2002, p. 102) afirma que “a citação com função de
isenção de responsabilidade é encontrada com maior frequência em textos que poderiam vir a ser
alvo de uma possível polêmica da qual o locutor citante deseja preservar-se”, ou seja, na crônica
em análise, o autor-irônico, procurando resguardar-se e de forma a construir a sua estratégia
argumentativa, aspeia o discurso do prefeito e o traz para seu enunciado, demonstrando,
portanto, a sua discordância em relação ao que é dito.
Podemos afirmar, portanto, que há, neste excerto, a utilização do discurso irônico, devido
ao fato de que o locutor L faz uso do vocábulo “inocente” em relação ao que foi dito pelo prefeito,
ou seja, o autor-irônico orientou o locutor L a enunciar o ponto de vista do enunciador absurdo ao
passo que, na recuperação do efeito de sentido causado pelo uso das aspas, é possível captarmos
a presença do enunciador sério.
Outro ponto a ser analisado, é a menção aos partidos políticos PDT (Partido Democrático
Trabalhista) e PT (Partido dos Trabalhadores), os quais são inimigos das organizações Globo,
conforme já expresso. Dessa forma, a referência aos partidos, mas sem citar os nomes dos
prefeitos, como neste enunciado: “com alguns intervalos para um prefeito do PT”, serve como
recurso na construção da crítica político-social, seja esta explícita ou implícita – como ocorre na
ironia. Ainda neste enunciado, a utilização do artigo indefinido “um” indica a falta de importância
em citar o nome do prefeito, sendo que a sigla do partido implica na rotulação quanto a atuação
dos governantes que, em Niterói, significou o descaso dos prefeitos do PDT e do PT em relação à
ocupação irregular do Morro do Bumba em troca de votos.
Assim, o texto se desenvolve e introduz dados do Morro do Bumba, como a existência de
“uma comunidade inteira, com casas, igreja, pizzaria, bares e creche”, sendo essas informações
relevantes para a escolha dos vocábulos “floresceu” e “complacente” realizada pelo autor irônico
no enunciado “A comunidade floresceu sob a vista complacente e amiga de Jorge Roberto”. Posto
que os signos refratam e refletem o mundo, ou seja, os signos produzem sentido de acordo com o
local em que são proferidos e estão, também, relacionados ao domínio do campo ideológico,
como postula Bakhtin (1992, p. 95) “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial". Nesse sentido, o que é passível de florescer em um morro são
flores, árvores, entre outros elementos da natureza correspondentes a este ambiente, mas não
casas, escolas, estabelecimentos comerciais, o que vem corroborar a orientação argumentativa
presente em toda a revista e retomada na crônica: o governo é irresponsável, omisso e criminoso.
Quanto aos adjetivos “complacente” e “amiga” que acompanham “sob a vista”, é possível
depreendermos a possível estratégia do autor irônico ao utilizar-se desses vocábulos
demonstrando a posição do enunciador absurdo na voz do locutor L para a indicação do
enunciador sério, uma vez que o prefeito Jorge Roberto tinha, para a revista Época, consciência da
expansão da ocupação do morro, mas nada fez, ou seja, este enunciado irônico está em
consonância com o enunciado “Foi a declaração inocente do prefeito do PDT”.
Uma vez que é possível, portanto, observamos a progressão dos argumentos irônicos na
construção deste crônica de cunho político-social, os quais realizam severa crítica endereçada aos
governantes atuais e anteriores de Niterói a respeito da postura destes perante a não proibição e
ao estímulo dado aos moradores para que continuassem a morar nos morros, em detrimento à
falta de investimento em programas de habitação.
No entanto, ressaltamos que a compreensão dos enunciados irônicos realizados até este
ponto, será possível somente se o leitor houver efetuado a leitura da reportagem e, dessa forma,
este ativará o leitor-irônico para então realizar a distinção entre o enunciador sério e o enunciador
absurdo.
O autor irônico dá continuidade ao texto ao relatar os investimentos realizados pelo
governador Leonel Brizola como o programa “Uma luz na escuridão”, bem como as benfeitorias já
citadas, além da implantação de uma “bica d‟água”, realizada pela CEDAE (Companhia Estadual de
Águas e Esgotos). Por fim, o autor irônico finaliza este segundo parágrafo com o enunciado: “Não
dá pra acreditar que alguém instruído resolva urbanizar uma área condenada”, o que caracteriza,
dessa forma, a argumentação direcionada à crítica, a ser corroborada no terceiro parágrafo, pela
suposição de que o prefeito não havia pensado sobre o número de pessoas que ele colocava em
risco.
O Morro do Bumba era um antigo lixão que, devido ao acúmulo de compostos orgânicos,
liberara o gás metano, “um gás explosivo” e fazia do Morro “uma bomba-relógio”, ou seja, o autor
irônico veicula pela voz do locutor L, enunciados direcionados a construir estrategicamente o
texto de modo a indicar o erro dos governantes, posto que a metáfora “uma bomba-relógio”
remete ao artefato que pode vir a explodir a qualquer momento, no caso do Morro do Bumba,
além de explodir devido à presença de metano, o morro poderia vir a baixo por causa da
irregularidade do terreno.
Ocorre, então, mais uma vez, a inserção de um enunciado do prefeito e depois um
enunciado advindo do enunciador irônico: “„Você sabe, num país como o nosso, é muito difícil
impedir assentamentos irregulares ou remover moradores de áreas de risco”, disse Jorge Roberto.
„Tentei o possível, tentei o máximo‟. O máximo.” É a partir dessa inserção – o máximo – é que
podemos descrever mais uma ocorrência do discurso irônico, uma vez que o autor-irônico traz a
fala do prefeito, a qual foi realizada num outro momento, numa outra cadeia enunciativa, na voz
do locutor L e faz o uso das aspas para marcar a isenção desse locutor L quanto ao que é
enunciado, como a enunciação de “o máximo.”
Sobre o fenômeno polifônico, podemos, neste excerto, demonstrarmos este mecanismo,
uma vez que, segundo Ducrot (1987, p. 182), podemos realizar a distinção das duas vozes
presentes no enunciado porque “de uma maneira quase evidente, o autor real tem pouca relação
com o locutor, ou seja, com o ser apresentado, no enunciado, como aquele a quem se deve
atribuir a responsabilidade da ocorrência do enunciado”, sendo essa distinção realizada na
compreensão da utilização do discurso aspeado.
Dessa forma, é possível acionarmos o enunciador sério e observamos a atribuição de “o
máximo” ao enunciador absurdo, uma vez que o prefeito não realizou o máximo por não ter feito
a desocupação do morro, ações preventivas quanto à conscientização dos moradores acerca do
risco que corriam por habitarem num lixão desativado também não foi efetuada. Portanto,
recuperamos o enunciador sério na recuperação da estratégia argumentativa construída pelo autor
irônico que percebemos a presença do conflito entre o enunciador sério e o enunciador absurdo e,
reiteramos, que essa recuperação dos enunciadores, neste trabalho, é possível devido à leitura
prévia da reportagem veiculada na edição de número 621.
No quinto parágrafo, observamos a retomada de informações as quais são um já-dito e
operam como um jamais-dito e permitem a instauração de mais um argumento para a crítica
política acerca da falta de preparo e de vontade dos governantes em realizar um programa de
“política habitacional para famílias de baixa renda.” O que é apoiado pelo enunciado “É a
improvisação do salve-se quem puder”. A respeito da expressão “salve-se quem puder”, esta é
comumente utilizada para designar uma situação de emergência não-programada, mas a
utilização do vocábulo “improvisação” indica que não há plano da prefeitura ou do Estado para o
socorro dessas pessoas caso haja situação de emergência, exemplificado pelo enunciado “Quem
matou as famílias de favelados não foi a chuva. Foram governos negligentes, demagogos e
irresponsáveis.”
No parágrafo seguinte, o locutor L enuncia que a culpa do descaso se estende também à
“esquerda-caviar carioca. Ou os gringos de institutos internacionais que vêm fazer tour exótico e
social nas favelas para depois tomar champanhe na piscina do Hotel Fasano, de frente para o mar
de Ipanema”, ou seja, este enunciado reflete às ações demagógicas em relação às favelas, uma vez
que tanto os políticos, como os membros de ONGs vem ao Brasil com a intenção de realizar algo
difícil de ser posto em prática.
De modo a confirmar a crítica à demagogia dos políticos, o autor-irônico organiza o texto
de modo a dar voz ao locutor L quanto à inserção de uma citação de autoridade no caso, um
enunciado proferido pela antropóloga Alba Zaluar, estudiosa das favelas cariocas:
“O que está acontecendo é resultado de anos de demagogia em relação à
favela” [...] “É incrível que essas tragédias ocorram em lugares com nomes
como Morro dos Prazeres ou Chácara do Céu. As favelas historicamente
eram cenários de sambas lindos, espaços de poesia e criatividade. Com o
tráfico de drogas, essa visão romântica foi abalada.”
Assim, a citação de autoridade presente neste trecho, visa dar credibilidade ao
posicionamento adotado pelo autor-irônico tendo em vista que, segundo Benites (2002, p. 96),
esse tipo de citação serve “nitidamente como argumento para o locutor citante, em lugar de
precedê-lo e indicar a direção em que deve ser feita a leitura”, e serve também para que o leitor
constate a postura do locutor em relação ao que é dito, sendo, neste exemplo, contrário ao
descaso em relação às favelas hoje.
E, dando prosseguimento à construção da crítica político-social, o locutor L retoma a um
fato expresso na matéria principal e insere, mais uma vez, o discurso da antropóloga, para que o
leitor tenha consciência das ironias já realizadas e daquelas a serem realizadas: “É a própria
política que ajuda a construir a noção de que a casa é própria, mesmo que esteja no meio de um
barranco que pode cair a qualquer momento”, diz Alba. “E toda a sociedade é conivente com essa
ideia.”
A inserção desse trecho sinaliza para o encaminhamento final da crônica, uma vez que no
início do texto, o autor-irônico fez uso dos discursos do prefeito e da reportagem de capa da
edição e, no final, traz enunciados para legitimar a crítica realizada sob a forma de citações de
autoridade de modo a pôr em cheque a suposta benevolência dos políticos na construção das
casas próprias.
A esse respeito, o locutor L, orientado pelo autor-irônico, discorre sobre a “política
habitacional” patrocinada pelos governantes, a qual é realizada em assentamentos irregulares e
sem a preocupação com os aspectos estruturais da construção.
Por fim, o autor-irônico faz um brilhante jogo enunciativo ao trazer a perspectiva do
enunciador absurdo na voz do locutor L mais um trecho do discurso do prefeito Jorge Roberto:
„É nesses momentos que a gente se orgulha de ser brasileiro‟, disse o
prefeito Jorge Roberto diante da língua negra de lama e lixo apodrecido
que soterrou seus eleitores. Não pude acreditar. Ele dizia, na televisão, que
tudo estava “sob controle” e se confessava emocionado com a
solidariedade do presidente Lula e dos bancos.
Como afirma Ducrot (1987), o locutor L, ao aspear o discurso que enuncia, sinaliza o leitor para
uma voz que não é sua, ou seja, neste enunciado, o locutor L faz-nos ouvir a voz do enunciador
absurdo de modo a sinalizar para a identificação do enunciador sério.
Portanto, é possível descrever a ironia instaurada na crônica “A omissão que mata” ao analisar o
jogo enunciativo construído na interação enunciador-objeto ironizado-receptor, uma vez que o
discurso irônico pode ser apreendido a partir do confronto entre a ideologia da revista Época
(Organizações Globo) e os governantes do estado do Rio de Janeiro com relação à política
habitacional realizada por estes.
Assim, a coluna “Nossa antena” é uma crônica relacionada à matéria sobre a chuva no estado
do Rio de Janeiro apresentada na revista que, no texto em análise, assume o caráter político-
social, ao inserir no fio do discurso, trechos de declarações do prefeito de Niterói, Jorge Roberto
Silveira, com o objetivo de criticar a atuação deste diante do caos gerado pelos deslizamentos de
terra na cidade utilizando-se, então, do discurso irônico.
Conclusão
Finalizamos este trabalho tecendo as considerações finais acerca da análise do discurso irônico
presente na crônica “A omissão que mata” e constatamos que a ironia pode assumir um efeito de
sentido que não o do humor, do cômico, mas da crítica, e o mais importante, é o reconhecimento
do uso da ironia enquanto estratégia argumentativa, seja o efeito de sentido o humor ou não.
Portanto, como resultado da análise do texto, constatamos que o gênero crônica político-social
é bastante rico para a efetivação do discurso irônico, uma vez que, segundo Silva (2001, p. 203):
o lugar de antagonista ocupado pelo enunciador na crônica político-social
lhe permite inserir a „argumentação inversa‟ exigida por esse gênero, e nos
revela que nele a ironia aparece como uma estratégia linguístico-discursiva
que desmascara-desvela uma enunciação anterior
A respeito do desvelamento de uma “enunciação anterior”, observamos que, como na teoria do
discurso irônico enquanto fenômeno polifônico proposta por Ducrot (1987), a orientação
argumentativa do texto ocorre de diferentes formas e cabe ao autor-irônico organizá-las de modo
que este fique coerente e coeso. Até mesmo estratégias monofônicas “tendem a aparecer na
conclusão como forma de não deixar dúvidas sobre o real ponto de vista do jornal” (PASSETTI,
1999, p. 44), como ocorre no texto em tela em trechos como:
O Morro do Bumba, com sua lama negra de detritos que desceu de uma
altura de 600 metros, é o maior retrato da demagogia que pune os pobres.
É o resultado da ausência de uma política habitacional para famílias de
baixa renda. É a improvisação do salve-se quem puder. É o retrato de
gerações de políticos que jamais pensaram a longo prazo, no bem-estar da
população e das cidades.
Nesse sentido, portanto, a crônica “A omissão que mata” apresenta o embate entre a
ideologia das Organizações Globo em oposição à ideologia dos partidos políticos contrários à
emissora, uma vez que a primeira caracteriza a segunda como demagoga, assistencialista, e
constrói, na estrutura argumentativa do texto, um discurso com efeito de verdade complementado
pelas críticas tecidas contra o prefeito Jorge Roberto Silveira ao trazer trechos de uma entrevista
concedida na semana da tragédia ocorrida em Niterói, o que acaba por prender a atenção do
leitor.
Outro ponto observado foi a localização da crônica na revista e a rede textual presente em
toda revista de modo a reforçar a ideologia da revista contra a política assistencialista dos
governantes, a qual começa na capa, passa pelo índice, é explicitada na carta do diretor de
redação, tem seu ápice na reportagem – que é a principal da edição 621 – e, como um último
lembrete ao leitor, todos esses recursos serviram de base para a construção da crônica, com o
objetivo de desmoralizar o objeto da ironia de modo que “ele nem perceba a nova ideologia que o
jornal propõe para sustentar a argumentação irônica” (PASSETTI, 1999, p. 49-50).
É importante ressaltarmos que a leitura irônica é efetivada quando o sujeito-leitor possui
conhecimento do que é ironizado, quando compreende “o processo de comunicação que nos
permite entender a linguagem em uso e os significados culturais produzidos nos discursos, como
nos traz Silva (2001, p. 203). Como a utilização das aspas de forma a marcar o distanciamento do
locutor L ao que ele enuncia, bem como discorre Benites (2002, p. 129): “o autor da ironia muitas
vezes aponta explicitamente a direção em que suas palavras devem ser interpretadas”, ou seja, no
texto em questão, o autor-irônico constrói a argumentação irônica sob a forma de um discurso
polifônico de modo a explicitar, ao utilizar-se das aspas, ao discurso que deve ser aderido pelo
sujeito-leitor – a não-aceitação dos governos assistencialistas, os quais, para a revista, são o PDT
e o PT.
Ainda sobre os recursos linguísticos, segundo Passetti (1995, p. 108), estes podem ser de
grande serventia à argumentação irônica, “porque o discurso irônico é, por si, dialógico e, desta
forma, um recurso pode, simultaneamente, exercer duas funções no texto”, ou seja, o autor-
irônico pode orientar o locutor L a fazer uso de determinados recursos sintáticos e lexicais com o
objetivo de promover o embate entre duas formações discursivas distintas, ocasionando o jogo
enunciativo entre implícito versus explícito presente na ironia, como a inserção do discurso
aspeado do prefeito Jorge Roberto na voz do locutor L, o que demarca a isenção deste e aponta
para a elevação do enunciador sério (Organizações Globo) em oposição ao enunciador absurdo
(prefeito de Niterói e governos assistencialistas).
Outro ponto a ser considerado também nessa conclusão é a presença dos discursos de
autoridades cientificas, como a antropóloga Alba Zaluar e de Fernando Kerzman, presidente da
Associação Brasileira de Geografia e Engenharia Ambiental (ABGE), os quais são adentram ao fio do
discurso de modo a caracterizar e a legitimar a estratégia argumentativa proposta pelo autor-
irônico, como caracteriza Benites (2002, p. 96), “Tendo em vista imprimir maior credibilidade a
seu argumento, o locutor muitas vezes ancora-o na respeitabilidade e na autoridade de um
especialista”.
A inserção de um discurso-chavão também é de suma importância para a conclusão desta
análise, como a aparição do enunciado “É nesses momentos que a gente se orgulha de ser
brasileiro”, o que remete ao enunciado “orgulho de ser brasileiro” presente na campanha
promovida pelo Governo Federal “O melhor do Brasil é o brasileiro” durante o governo Lula. A
utilização desse discurso é um recurso utilizado pelo autor-irônico com o objetivo de persuadir o
leitor, como comenta Passetti (1995).
Nessa perspectiva, esquadrinhamos uma leitura sobre os procedimentos envolvidos na
construção e constituição de uma crônica político-social de cunho irônico, como o momento da
enunciação, os mecanismos lingüísticos utilizados pelo autor-irônico e a descrição da
ambiguidade presente nesse tipo de discurso, dado o jogo enunciativo entre o implícito e o
explicíto.
Referências
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AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) Enunciativa(s). Tradução de Celene M. Cruz e João
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BAKHTIN, M. / VOLOCHINOV, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 6. ed. São Paulo: Hucitec,
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______________ Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Pereira. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1997. http://www.scribd.com/doc/20786562/LIVRO-BAKHTIN-Estetica-Criacao-
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BENITES, S. A. L., Contando e fazendo a história: a citação no discurso jornalístico. São Paulo: Arte
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BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução de Eduardo Guimarães. Campinas:
Pontes, 1987.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 18. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo:
Perspectiva, 1974. (Coleção Debates)
OLIVEIRA, D. de. A construção discursiva da ironia em crônicas políticas de Luís Fernando
Veríssimo, 2006. Dissertação (Mestrado em Letras), Pontifícia Universidade Católica de Minas
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PASSETI, M. C. O discurso irônico: análise da argumentação irônica em textos opinativos da Folha
de S. Paulo, 1995. Dissertação (Mestrado em Letras), Universidade Estadual Paulista.
________, M. C. A ironia no discurso jornalístico. In: Os discursos jornalísticos: manchete,
reportagem, classificado & artigo. Silvia Inês C. C. de Vasconcelos (org.). – Itajaí: Ed. da Univali;
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ROALY, D. Império ideológico. Disponível em:
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SILVA, F. P. da. Vacas loucas e voadoras/ o príncipe às avessas: manifestações da ironia na
imprensa brasileira. In: Análise do Discurso: entornos do sentido. Maria do Rosário Gregolin (et al.)
(org.) – Araraquara: UNESP, FCL, Laboratório Editorial; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2001.
Anexos
A omissão que mata
RUTH DE AQUINO
Quem mora lá no morro já vive pertinho do céu. A canção composta por Herivelto Martins em
1942, “Ave Maria no morro”, é um exemplo da relação romântica entre o Rio de Janeiro e a favela.
Um amor com final trágico e previsível. Como todos vimos na semana passada, eram pobres e
favelados as vítimas da tempestade no Estado. E quem matou essas famílias não foi a fúria das
chuvas. Mas governos negligentes, paternalistas, demagogos e irresponsáveis.
O crime mais revoltante foi cometido pelo prefeito Jorge Roberto Silveira, de Niterói.“Eu sabia do
lixão ali, mas nunca tinha havido nenhum incidente.” Foi a declaração inocente do prefeito do PDT.
Ele comanda Niterói desde 1989, com alguns intervalos para um prefeito do PT. O Morro do
Bumba abrigava uma comunidade inteira, com casas, igreja, pizzaria, bares e creche. Tudo sobre
um lixão tóxico, desativado em 1986. A comunidade floresceu sob a vista complacente e amiga de
Jorge Roberto. A Cedae colocou ali bica d‟água. O então governador Brizola levou ao Bumba o
programa “Uma luz na escuridão”. Anos depois, a comunidade ganhou quadra de esportes, creche.
Brizola virou nome de rua no Bumba. Não dá para acreditar que alguém instruído resolva
urbanizar uma área condenada.
O prefeito Jorge Roberto nunca parou para pensar que estava cavando a sepultura de 150 pessoas
ou mais, segundo cálculos de moradores.
Por que o lixão desativado não foi cercado por ele? Não era um morro qualquer. Era um
amontoado de matéria orgânica que apodrecia e soltava gás metano, um gás explosivo. Aquilo
não era um solo. Era uma bomba-relógio. “Você sabe, num país como o nosso, é muito difícil
impedir assentamentos irregulares ou remover moradores de áreas de risco”, disse Jorge Roberto.
“Tentei o possível, tentei o máximo.” O máximo.
O Morro do Bumba, com sua lama negra de detritos que desceu de uma altura de 600 metros, é o
maior retrato da demagogia que pune os pobres. É o resultado da ausência de uma política
habitacional para famílias de baixa renda. É a improvisação do salve-se quem puder. É o retrato de
gerações de políticos que jamais pensaram a longo prazo, no bem-estar da população e das
cidades. Quem matou as famílias de favelados não foi a chuva. Foram governos negligentes,
demagogos e irresponsáveis.
Mas não são apenas políticos. Muitas vezes, é a esquerda-caviar carioca. Ou os gringos de
institutos internacionais que vêm fazer tour exótico e social nas favelas para depois tomar
champanhe na piscina do Hotel Fasano, de frente para o mar de Ipanema.
Até os nomes das favelas são poéticos. “O que está acontecendo é resultado de anos de
demagogia em relação à favela”, diz a antropóloga carioca Alba Zaluar. “É incrível que essas
tragédias ocorram em lugares com nomes como Morro dos Prazeres ou Chácara do Céu. As
favelas historicamente eram cenários de sambas lindos, espaços de poesia e criatividade. Com o
tráfico de drogas, essa visão romântica foi abalada.”
Um barraco pode ser o único patrimônio de uma família. Mas é preciso que o poder público rompa
a ideia de que essa afetividade é sinônimo de segurança, em vez de transformar a favela em seu
curral eleitoral. “É a própria política que ajuda a construir a noção de que a casa é própria, mesmo
que esteja no meio de um barranco que pode cair a qualquer momento”, diz Alba. “E toda a
sociedade é conivente com essa ideia.”
Sonho de qualquer cidadão, a casa própria nasce muitas vezes do tijolo e do ferro doados por
políticos – não importa sobre que terreno ou com que engenharia a obra será erguida. “São esses
mesmos políticos que, tempos depois, buscarão apoio da Justiça ou organizarão manifestações
populares para evitar a desapropriação e a remoção – auxiliados por ONGs e movimentos sociais”,
diz Fernando Kerzman, presidente da Associação Brasileira de Geografia e Engenharia Ambiental
(ABGE).
“É nesses momentos que a gente se orgulha de ser brasileiro”, disse o prefeito Jorge Roberto,
diante da língua negra de lama e lixo apodrecido que soterrou seus eleitores. Não pude acreditar.
Ele dizia, na televisão, que tudo estava “sob controle” e se confessava emocionado com a
solidariedade do presidente Lula e dos bancos.