A CLASSIFICAÇÃO - alumnifdl.pt · A Classificação e a Qualificação do Solo por Planos...

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A CLASSIFICAO E A QUALIFICAO DO SOLO

POR

PLANOS MUNICIPAIS DE ORDENAMENTO DO

TERRITRIO

GONALO REINO PIRES

A CLASSIFICAO E A QUALIFICAO DO SOLO

POR

PLANOS MUNICIPAIS DE ORDENAMENTO DO

TERRITRIO

(Contributo para a compreenso do seu regime substantivo e para a determinao do regime da sua impugnao

contenciosa)

Dissertao de Mestrado em Cincias Jurdico-Polticas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Ttulo A Classificao e a Qualificao do Solo por Planos Municipais de Ordenamento do Territrio (Contributo para a compreenso do seu regime substantivo e para a determinao do regime da sua impugnao contenciosa) Autor Gonalo Reino Pires Editor Associao de Antigos Alunos da Faculdade de Direito de Lisboa Morada: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Alameda da Universidade 1649-014 Lisboa www.alumnifdl.pt [email protected]

Execuo Grfica Associao de Antigos Alunos da Faculdade de Direito de Lisboa Lisboa, maro de 2015 Depsito Legal 389275/15 ISBN 978-989-99382-0-5

Verso disponibilizada gratuitamente online em www.alumnifdl.pt com correspondncia integral verso impressa

NOTA DO EDITOR

A publicao desta dissertao de Mestrado de Gonalo Reino Pires a a vrios nveis marcante. Desde logo, e em primeiro lugar, marcante pela sua importncia cientfica: publica-se agora uma obra essencial do direito pblico, das poucas em Portugal a analisar o exigente regime de impugnao associada ao planeamento urbanstico, e que constituiu um avano significativo na investigao respeitante s matrias que versa. Deve, por isso, ser motivo de regozijo que esta obra venha agora ao prelo. Em segundo lugar, para a Associao de Antigos Alunos da Faculdade de Direito uma honra e um privilgio que esta obra seja a sua primeira edio, e com a qual lana a sua linha editorial. E por ser a primeira tambm especialmente marcante e simblica. A obra de Gonalo Reino Pires o exemplo paradigntico das razes que motivam esta incurso da nossa Associao pelo campo editorial: depois de um trabalho de investigao aturado e de um resultado excepcional e reconhecido, redutor limitar a presena de uma obra com esta importncia a poucos espaos fsicos, o que por sua vez reduz o acesso a esta e a sua publicitao. Importa que, aproveitando os avanos tecnolgicos que hoje trazem a democratizao da edio, e com custos de acesso reduzidos ou inexistentes para os interessados, seja trazido luz das vrias bibliotecas e dos espaos virtuais trabalhos que do contributos essenciais para o avano da cincia jurdica, e que de outro modo ficariam por divulgar to amplamente. Com isto valorizamos os alunos da nossa Faculdade, capacitamos o trabalho que nela j desenvolvido, difundimos a cincia jurdica, e avanamos o nome da nossa Faculdade. E por isso esperamos que esta obra seja igualmente marcante: constitui um exemplo de que possvel potenciar e valorizar aquilo que de excepcional se faz na nossa Faculdade e que muitas vezes fica por divulgar. Esta edio no seria, contudo, possvel sem o importante trabalho conjunto de vrias entidades: ressaltamos o apoio da nossa Faculdade e da AAFDL que permite, nesta data, que celebremos de forma especial estes marcantes 5 anos de existncia da Associao de Antigos Alunos.

6 de maro de 2015 Bruno Adrego Maia, Presidente da Direo da AAAFDL

PREFCIO A publicao da dissertao de Mestrado de Gonalo Reino Pires sobre A Classificao e a Qualificao do Solo por Planos Municipais de Ordenamento do Territrio apenas peca por tardia, j que ela h muito constitui uma referencia doutrinria incontornvel nos temas que constituem o seu objeto. Na verdade, esta dissertao no tem um nico objeto, mas trs, a que correspondem as trs partes em que a mesma se divide: uma primeira dedicada ao regime urbanstico da propriedade privada imobiliria, uma segunda dedicada ao regime substantivo da classificao e da qualificao do solo pelos planos municipais, e finalmente uma terceira e ltima dedicada ao regime da sua impugnao contenciosa. certo que as trs partes da dissertao se estruturam numa relao de instrumentalidade sucessiva, em que o autor afirma ser necessrio conhecer o regime urbanstico da propriedade para melhor compreender a natureza e a funo dos planos municipais de ordenamento do territrio, o que por sua vez determinante do regime de impugnao jurisdicional que lhes aplicvel. Mas atendendo extenso e, sobretudo, densidade e ao rigor com que analisa cada um dos referidos temas, as trs partes da dissertao bem podiam constituir monografias autnomas, sem com isso perder a sua utilidade prtica e a sua importncia doutrinaria. A anlise do regime substantivo da classificao e da qualificao do solo , no entanto, o tema central desta dissertao, e aquele em que em minha opinio o autor d o seu maior contributo ao desenvolvimento do conhecimento cientfico jusurbanstico. Essencialmente por trs razes. Em primeiro lugar, pelo maior interesse dogmtico que o tema da classificao e da qualificao do solo representa para a construo doutrinria do Direito do Urbanismo. O plano o instrumento de atuao urbanstica da Administrao por excelncia, e o conhecimento do seu contedo jurdico indispensvel ao domnio da tcnica, tanto do planeamento como da gesto urbanstica. No quero com isso desvalorizar a anlise do regime urbanstico da propriedade, tema a que eu prprio tenho dedicado uma parte significativa da minha investigao, nem do regime da impugnao contenciosa dos planos, tema que realmente merecia uma maior ateno

num ordenamento jurdico em que, infelizmente, so escassos os casos de impugnao que chegam aos tribunais, e mais escassos ainda aqueles que so objeto de uma apreciao de mrito. Mas trata-se, em ambos os casos, de temas jurdicos clssicos, que no obstante a especificidade que possam ter no domnio urbanstico, beneficiam de um lastro doutrinrio comum que facilita muito a tarefa de investigao de quem deles se proponha tratar. Em segundo lugar, pelas dificuldades que a anlise do contedo material dos planos territoriais e urbansticos coloca doutrina jurdica, mais habituada a refugiar-se nas questes de forma e de procedimento que constituem a sua praia. O autor revela a este propsito aliar sua capacidade analtica um profundo conhecimento da realidade - que no , naturalmente, alheio sua prtica profissional - o que constitui uma ferramenta indispensvel ao domnio de um ramo do direito to permevel influncia da tcnica do planeamento territorial e urbanstico e das outras cincias urbanas. Finalmente, e em terceiro lugar, pelos mritos intrnsecos da anlise, e das concluses formuladas a esse propsito na dissertao, de que me permito destacar, por um lado, o rigor conceptual nas definies que prope de classificao e qualificao, e a forma como explica que eles expressam a correta articulao entre os interesses pblicos e privados e consubstanciam a deciso final do procedimento de planeamento; e por outro o contributo valioso que d distino da classificao e qualificao do solo de figuras jurdicas afins, nomeadamente as servides administrativas e as restries de utilidade pblica, e forma como deixa claro que estas e outras condicionantes jurdicas do territrio no devem exercer uma influncia sobre a estrutura da ponderao de interesses do planeamento, j que condicionam diretamente o resultado dessa ponderao. No podia deixar de fazer nesta breve nota introdutria uma aluso s qualidades do autor, com quem tenho trabalhado e privado nestes ltimos anos e de quem posso por isso testemunhar a sua lealdade, a sua dedicao e a sua amizade. Embora tendo optado por uma carreira profissional na advocacia, o Gonalo concilia o seu elevado sentido prtico na resoluo de problemas com uma vontade incessante de adquirir e aprofundar conhecimentos, o que faz dele, alm de muito bom advogado, um

investigador invejvel. Assim essa sua vontade se materialize em novos projetos cientficos, e em novas publicaes. O Direito do Urbanismo agradece. Uma palavra final de agradecimento Associao dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito de Lisboa (AAAFDL), a que tambm estou ligado por razes afetivas e orgnicas, no s pela iniciativa de promover esta publicao, como sobretudo pela criao de mais um espao editorial destinado divulgao cientfica. Claudio Monteiro Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e da Faculdade de Direito de Bissau

ABREVIATURAS

AAFDL Associao Acadmica da Faculdade de Direito de Lisboa

BFDUC Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

CCL Legislao - Cadernos de Cincia e Legislao

CEDOUA Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente

CJA Cadernos de Justia Administrativa

CPA Cdigo do Procedimento Administrativo

CPTA Cdigo de Processo nos Tribunais Administrativos

CRP Constituio da Repblica Portuguesa

DA Documentacin Administrativa

ED Enciclopedia del Diritto

LBPOTU Lei de Bases da Poltica de Ordenamento do Territrio e do Urbanismo

LPTA Lei de Processo nos Tribunais Administrativos

PDM(s) Plano(s) Director(es) Municipal(ais)

PDR Projecto de Decreto Regulamentar

PEOT(s) Plano(s) Especial(ais) de Ordenamento do Territrio

PMOT(s) Plano(s) Municipal(ais) de Ordenamento do Territrio

PNPOT Plano Nacional da Poltica de Ordenamento do Territrio

PP(s) Plano(s) de Pormenor

PROT(s) Plano(s) Regional(ais) de Ordenamento do Territrio

PS(s) Plano(s) Sectorial

PU(s) Plano(s) de Urbanizao

RCEDOUA Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente

RDU Revista de Derecho Urbanstico

REDA Revista Espaola de Derecho Administrativo

RGPR-UNL Revista do Departamento de Geografia e Planeamento Regional da Universidade Nova de Lisboa

RJ Revista Jurdica da Associao Acadmica da Faculdade de Direito de Lisboa

RJIGT Regime Jurdico dos Instrumentos de Gesto Territorial

RJUA Revista Jurdica de Urbanismo e Ambiente

RJUE Regime Jurdico da Urbanizao e da Edificao

RTDP Rivista Trimestrale de Diritto Pubblico

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INTRODUO

Gradualmente, a sociedade portuguesa foi-se habituando presena constante da Administrao Pblica enquanto entidade dotada de poderes de planeamento territorial, nomeadamente atravs da existncia de planos de ordenamento do territrio e da necessidade de estes serem respeitados na prossecuo da actividade urbanstica. Se bem que tenha havido alguma resistncia inicial a este respeito (1), a necessidade pblica de um correcto ordenamento do territrio e de proteco da qualidade de vida das populaes hoje comummente reconhecida como essencial, tolerando-se, em maior ou menor medida, as intervenes da Administrao Pblica neste domnio, mas sempre tendo por base um pressuposto ou de manifesta necessidade ou de indiscutvel utilidade,.

Em termos factuais, a situao do nosso pas, no que concerne a planeamento territorial, depara-se agora com novos desafios, que se prendem mais com o aperfeioamento do sistema do que com a sua implementao.

Aquando da implementao do sistema, o objectivo principal a prosseguir era, antes de todos os outros, evitar o crescimento desordenado e arbitrrio dos espaos urbanos, obrigando existncia de uma interveno integrada e preventiva que, vinculando tanto a Administrao Pblica como os particulares, pre-ordenasse a actividade de ocupao, uso e transformao de solos. Procurava-se, assim, conter o fenmeno expansivo em regime de quase auto-gesto dos aglomerados urbanos, garantindo que a actividade urbanstica, da em diante, seria prosseguida em moldes que, porquanto plasmados no plano territorial, asseguravam, partida, a sua racionalidade (2).

1 Um dos exemplos paradigmticos desta resistncia foi profusa a discusso em torno da insero, ou no, do ius aedificandi na garantia constitucional da propriedade privada, matria que abordaremos especificamente infra, no ponto 3.4.5. da presente dissertao. 2 Esta pressa de chegar motivou a adopo de vrias medidas legislativas no sentido de subordinar, o mais rapidamente possvel, a actividade urbanstica ao planeamento territorial. Podemos, dentre os muitos exemplos que poderiam aqui ser chamados colao, referir trs situaes que se nos apresentam como paradigmticas: - Em primeiro lugar, a definio, no Decreto-Lei n. 351/93, de 7 de Outubro, dos PROTs como instrumentos de planeamento territorial directamente vinculativos dos particulares, o que constituiu uma clara tentativa, por parte do Estado, de colmatar o insuficiente planeamento territorial a nvel municipal; - Em segundo lugar, a consagrao, no artigo 10. Decreto-Lei n. 794/76, de 5 de Novembro, e no artigo 8. do Decreto-Lei n. 69/90, de 2 de Maro, do instituto das normas provisrias, de acordo com o qual as medidas preventivas podiam ser substitudas por normas de carcter provisrio logo que o adiantamento do estudo dos planos permitisse defini-las; alis, as normas provisrias foram eliminadas aquando da entrada em vigor do RJIGT, opo que foi justificada da seguinte forma no prembulo do diploma: A opo pela eliminao da figura das normas provisrias fundamenta-se essencialmente na actual cobertura quase total do Pas por planos directores municipais eficazes, no se justificando assim a necessidade de ultrapassar as dificuldades resultantes da morosidade do processo de planeamento

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Actualmente, por se ter cumprido o objectivo de cobertura da totalidade do territrio nacional com planos territoriais (3), os objectivos a prosseguir com o sistema de planeamento territorial modificaram-se, identificando-se uma translao dos mesmos do mbito da quantidade de planeamento para o da qualidade do planeamento (4): neste mbito insere-se, sem dvida, o processo de reviso dos PMOTs, nomeadamente dos PDMs, ou, utilizando uma expresso que se vulgarizou, a emergncia do planeamento de segunda gerao. Realce-se que o processo de reviso dos PDMs agora informado, de uma forma mais veemente, pelas necessidades colectivas a nvel econmico, encarando-se o plano territorial como um elemento essencial de prossecuo de objectivos relacionados com a indstria, o turismo, a explorao florestal ou com outras actividades de importncia estratgica fundamental no desenvolvimento scio-econmico do pas (5).

Ainda localizado nesse fenmeno de translao podemos identificar a supervenincia do planeamento de reabilitao e

que subjaz admissibilidade da aplicao antecipada do plano que tais medidas consubstanciam e a manuteno de um mecanismo que consagra, ainda que provisoriamente, opes de planeamento sem submisso a discusso pblica; - Em terceiro lugar, o disposto no artigo 82., do RJIGT, que estabelece que a existncia de planos municipais de ordenamento do territrio pode constituir condio de acesso celebrao de contratos-programa, bem como obteno de fundos e linhas de crdito especiais. Em todos estes casos, a ratio legis evidente no sentido de subordinar, o mais rapidamente possvel, a actividade urbanstica a instrumentos de planeamento territorial, procurando garantir a sua coerncia e a racionalidade. 3 Objectivo que foi conseguido com a entrada em vigor do Plano Director Municipal de Gis, ratificado parcialmente atravs da Resoluo do Conselho de Ministros n. 41/2003, de 26 de Maro. 4 Esta ideia expressa por Alves Correia, que refere que se verifica, nos ltimos anos, que o direito do urbanismo quantitativo, voltado, exclusiva ou primordialmente, para a construo massiva de novas habitaes e de novos equipamentos pblicos, vem cedendo o lugar a um direito do urbanismo qualitativo, avanando ainda que a fase do urbanismo quantitativo prolongou-se, no nosso pas, at ao fim da dcada de 90 do sculo passado, podendo identificar-se agora, uma preocupao de conteno da expanso urbanstica, tanto nos objectivos traados pela Resoluo do Conselho de Ministros n. 76/2002, de 11 de Abril, que determinou a elaborao do Programa Nacional de Poltica de Ordenamento do Territrio, como em outros locais da legislao, de que exemplo o disposto no artigo 72., n. 3, do RJIGT, subjacente ao qual a reclassificao do solo rural em solo urbano obedece a um princpio de manifesta e justificada necessidade (cfr. Manual de Direito do Urbanismo, Volume I, 2. Edio, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 188 e 189, e ainda, para uma correcta interpretao do sentido do texto, pp. 178 e 179). 5 A este respeito, cfr. Manuel Porto, O Ordenamento do Territrio face aos Desafios da Competitividade, Almedina, Coimbra, 1996, que constitui um texto actualizado da comunicao apresentada no Seminrio Dinamismos Scio-Econmicos e (Re)Organizao Territorial: Processos de Urbanizao e de Reestruturao Produtiva, organizado pelo Instituto de Estudos Geogrficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra nos dias 30 e 31 de Maro de 1995, em que o Autor aborda a importncia do ordenamento [do territrio] para a competitividade das economias, face aos desafios crescentes a que tm de dar resposta: muito especialmente considerar a importncia de um melhor ordenamento para a competitividade da economia portuguesa (p. 5).

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requalificao urbanas, em que o objectivo essencial potenciar a interveno em espaos urbanos consolidados no sentido do aumento da qualidade de vida da populao (6): uma vez garantida a existncia de um verdadeiro ordenamento do territrio e de um verdadeiro urbanismo, pretende-se agora assegurar um melhor ordenamento do territrio e um melhor urbanismo.

Este amadurecimento da conscincia geral relativamente ao territrio, ao ambiente, ao patrimnio cultural e a muitos outros valores e interesses com expresso territorial teve correspondncia, em larga medida, no tratamento jurdico desta matria: a experincia adquirida pelo sistema jurdico ao longo das ltimas dcadas neste mbito foi, sem dvida, um elemento essencial para o seu constante aperfeioamento e consolidao, tendo-se densificado e aperfeioado o quadro normativo da actividade de planeamento territorial desenvolvida pela Administrao (7) e reforado o tratamento doutrinrio e jurisprudencial sobre esta matria.

Podendo considerar-se encerrada a primeira fase do desenvolvimento jurdico da actividade administrativa de planeamento do territrio, julgamos ser altura de reavaliar a correco do quadro normativo existente e de reequacionar as bases e os pressupostos de que o mesmo parte, de modo ou a reforar a idoneidade jurdica do sistema para a prossecuo dos seus fins ou a identificar os aspectos em que reclamada, de facto ou de direito, uma alterao do regime vigente ou, pelo menos, da forma como este regime tem vindo a ser interpretado pelos aplicadores do Direito, de modo a que se consiga obter um grau mximo de satisfao dos mais variados direitos fundamentais do cidado coenvolvidos na actividade de planeamento territorial.

6 Como exemplo de medidas neste mbito podemos enunciar o Programa POLIS e a recente legislao relativa a requalificao urbana das cidades, contante do Decreto-Lei n. 104/2004, de 7 de Maio de 2004, que, no uso da autorizao legislativa concedida pela Lei n. 106/2003, de 10 de Dezembro, aprovou um regime excepcional de reabilitao urbana para as zonas histricas e reas crticas de recuperao e reconverso urbanstica. 7 Exemplo cabal deste aperfeioamento do quadro jurdico aplicvel actividade de planeamento territorial a alterao do RJIGT que foi promovida pelo Decreto-Lei n. 310/2003, de 10 de Dezembro, o qual, para alm de proceder adaptao do regime em causa estrutura orgnica da Administrao Pblica, corrigiu o regime em alguns aspectos cuja deficincia foi identificada no mbito da aplicao do diploma, nomeadamente no que respeita celeridade dos procedimentos de elaborao, reviso e alterao dos PMOTs, regulamentao da figura do plano de pormenor em modalidade simplificada, possibilidade de o plano de urbanizao abranger solos classificados como rurais, clarificao da distino do mbito de aplicao dos regimes de alterao e de reviso dos instrumentos de gesto territorial e correco conceptual do critrio de aferidor do respeito pelo princpio da hierarquia dos instrumentos de gesto territorial, consagrando-se, como regra, o critrio da compatibilidade.

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1.

Objecto da investigao

1.1. Identificao

Os institutos jurdicos que elegemos para objecto da presente dissertao so a classificao e a qualificao do solo, consagrados nos artigos 71. a 73. do RJIGT, tendo por pressuposto que, de acordo com o disposto no n. 1 do citado artigo 71., o regime de uso do solo definido nos planos municipais de ordenamento do territrio atravs da classificao e da qualificao do solo.

Em termos necessariamente sucintos e funcionalizados apenas identificao do objecto deste estudo, podemos identificar a actividade de classificao e qualificao do solo como o fim ltimo da actividade de planeamento territorial, atravs da qual, finalmente, a Administrao emite uma declarao de vontade, fundada nas concluses e juzos adquiridos ao longo do exerccio da actividade de planeamento e considerando globalmente todo o sistema de planos existentes ou in itenere, no sentido da afectao de determinada parte do territrio prossecuo de determinados fins.

Em consequncia, verifica-se que o nvel de satisfao ou respeito pelos direitos fundamentais dos cidados com incidncia territorial, bem como o cumprimento, pela Administrao Pblica, dos deveres e funes de natureza pblica, tambm com incidncia territorial, a que esta est adstrita, resultar, em grande medida, da conformao global final do territrio objecto do plano, a qual expressa atravs da classificao e qualificao do solo.

Assim, e numa primeira anlise, podemos caracterizar a actividade de classificao e qualificao do solo como uma actividade subordinada a uma constante tenso entre, por um lado, a satisfao, em concreto, dos direitos fundamentais com expresso territorial dos cidados (como o so o direito habitao e ao urbanismo, ao ambiente e qualidade de vida, fruio do patrimnio cultural, entre outros) e, por outro lado, o direito de propriedade privada do proprietrio, na vertente da propriedade privada imobiliria, sendo certo que tanto aqueles como este so objecto de tutela constitucional.

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Desta forma, h que garantir, em primeiro lugar, que a classificao e qualificao do solo seja efectuada no respeito pelo disposto (recorrendo gradual diminuio da fora normativa destas fontes de direito) na CRP, na LBPOTU e no RJIGT, sendo certo que a correcta interpretao do disposto nestes dois ltimos diplomas depende, em larga medida, da absoro das directrizes que emanam das normas com fora hierrquica superior. Nestes termos, integra o objecto da presente dissertao a realizao deste excurso, relativo aos termos em que o bloco legal promove a harmonizao entre a garantia do direito de propriedade privada e os restantes direitos fundamentais com incidncia territorial e sempre informado pela tentativa de correcta determinao dos poderes e deveres que esto cometidos Administrao Pblica no que concerne a planeamento territorial.

Sendo certo que, as mais das vezes, a Administrao surge, no mbito do planeamento territorial, como titular de deveres cujo cumprimento acarreta, invariavelmente, consequncias ao nvel do direito de propriedade privada dos cidados, a perspectiva do proprietrio ser aquela que adoptaremos, regra geral, ao longo da presente dissertao, o que ser, todavia, realizado em termos que sero perfeitamente aplicveis a qualquer cidado na defesa de qualquer direito fundamental que se depare com o exerccio de poderes de planeamento territorial por parte da Administrao (8).

Por outro lado, e para alm da (ao que julgamos) correcta caracterizao do quadro normativo aplicvel, propomo-nos ainda a colocar os institutos de classificao e qualificao do solo no lugar que lhes compete, tanto no mbito do sistema de planeamento territorial como no mbito, mais restrito, dos PMOTs: cumpre caracterizar estes institutos e averiguar a funo que os mesmos desempenham no sistema de planeamento territorial. Esta necessidade decorre tambm do facto de a classificao e qualificao do solo ser um instituto de aplicao exclusiva no mbito dos PMOTs, o que denota, desde logo, a existncia de uma funo que lhe especfica, cometida por lei. Julgamos ainda essencial realizar a correcta caracterizao destes poderes de planeamento territorial, enquanto poderes pblicos afectos prossecuo de funes

8 Na nossa opinio, a qual teremos oportunidade de reforar e justificar ao longo da presente dissertao, a posio jurdica das Organizaes No Governamentais para o Ambiente (as correntemente designadas ONGAs), assumem perante o planeamento territorial, no que respeita defesa do ambiente, a mesma posio que o proprietrio relativamente sua propriedade.

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pblicas, bem como identificar os termos em que se deve inserir a actividade de classificao e qualificao do solo nessa actividade, mais vasta por natureza, de planeamento territorial. Ali ser efectuada uma anlise do sistema de uma perspectiva mais esttica, aqui de uma perspectiva mais dinmica.

Por fim, e aproveitando o mote que for dado pelas concluses a que chegarmos no tratamento substantivo da figura, propomo-nos ainda cuidar de estabelecer os termos em que deve ser tratada a matria da impugnao contenciosa do resultado da actividade administrativa de classificao e qualificao de solos no mbito de PMOTs, sempre na perspectiva de assegurar a efectividade do direito de acesso tutela jurisdicional dos cidados cujos direitos aparecem envolvidos na actividade de planeamento territorial.

Cumpre ainda referir mais alguns aspectos relacionados com a caracterizao do objecto desta dissertao.

Antes de mais, impe-se aludir ao ramo ou ramos jurdicos em que nos moveremos na presente dissertao.

No se nos oferecem dvidas, sem prejuzo de qualquer incurso por outro ramo do Direito, que nos moveremos principalmente no mbito do Direito Administrativo, entendido este como o ramo de direito pblico constitudo pelo sistema de normas jurdicas que regulam a organizao e funcionamento da Administrao Pblica, bem como as relaes por ela estabelecidas com outros sujeitos de direito no exerccio da actividade administrativa de gesto pblica (9).

Dvidas podero existir no que respeita identificao do ramo especial do Direito Administrativo em que nos moveremos no tratamento do tema que elegemos como objecto desta dissertao, nomeadamente se estamos perante uma dissertao no mbito do Direito do Urbanismo ou do Direito do Ordenamento do Territrio.

A doutrina profusa na apresentao de critrios de delimitao recproca destes dois ramos especiais do Direito Administrativo, sendo certo que da aplicao dos critrios propostos resultam sempre lanos de sobreposio que obrigam meno simultnea de ambos os ramos.

Alves Correia refere que a doutrina avana, em sntese, quatro critrios de distino do Direito de Ordenamento do Territrio do

9 Adoptmos, neste particular, a definio de Direito Administrativo proposta por Freitas do Amaral, a ttulo de exemplo (cfr. Curso de Direito Administrativo, Volume I, 2. Edio, Almedina, Coimbra, 1999, p. 130).

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Direito do Urbanismo (10), a saber: o critrio do mbito territorial de aplicao, de acordo com o qual o Direito do Urbanismo apenas abrange as regras jurdicas respeitantes racionalidade do ordenamento da cidade e da sua expanso e o Direito do Ordenamento do Territrio abrangeria as regras jurdicas relativas ocupao, uso e transformao do solo a nvel regional e nacional; o critrio da contraposio direito-poltica, de acordo com o qual o Ordenamento do Territrio objecto de uma poltica, de uma escolha pblica, e no matria objecto de um ramo especfico de Direito; o critrio dos instrumentos jurdicos utilizados na distribuio das actividades humanas pelo territrio, de acordo com o qual o Direito do Urbanismo recorre a medidas imperativas e o Direito do Ordenamento do Territrio a formas contratuais de cooperao com os agentes econmicos; o critrio da eficcia jurdica das normas, de acordo com o qual o Direito do Ordenamento do Territrio constitudo por directrizes de orientao e de coordenao da ocupao fsica do territrio e o Direito do Urbanismo constitudo por normas directa e imediatamente aplicveis tanto a sujeitos jurdicos pblicos como privados.

Embora conclua pela impossibilidade de encontrar um critrio seguro e rigoroso de distino entre o direito do urbanismo e o direito do ordenamento do territrio, sendo vivel somente indicar algumas caractersticas predominantes de cada um deles, nomeadamente a maior amplitude dos fins prosseguidos pelo primeiro (11), Alves Correia define o Direito do Urbanismo como o conjunto de normas e de institutos respeitantes ocupao, uso e transformao do solo, isto , ao complexo das intervenes e das formas de utilizao deste bem (para fins de urbanizao e de construo, agrcolas e florestais, de valorizao e proteco da natureza, de recuperao de centros histricos, etc.) (12).

J Freitas do Amaral, identificando como pontos essenciais na distino entre Direito do Ordenamento do Territrio e Direito do Urbanismo a reduo deste racionalidade do ordenamento da urbe o facto de que o segundo constitui um prolongamento do primeiro, define Direito do Urbanismo como o sistema de normas jurdicas que, no quadro de um conjunto de orientaes em matria de Ordenamento do Territrio,

10 Cfr. Manual..., pp. 68 e ss.. 11 Cfr. Manual..., p. 79. 12 Cfr. Manual..., p. 54; cfr. ainda Estudos de Direito do Urbanismo, Almedina, Coimbra, 1998, p. 97.

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disciplinam a actividade da Administrao Pblica e dos particulares com vista a obter uma ordenao racional das cidades e da sua expanso (13-14).

Por seu lado, Colao Antunes entende por Direito Urbanstico, no essencial, e aproximando-se da definio avanada por Freitas do Amaral, o conjunto de normas e institutos jurdicos que, no quadro das directivas e orientaes definidas pelo direito do ordenamento do territrio, surgem destinados a promover o desenvolvimento e a conservao cultural da urbe (assumindo particular relevncia a proteco dos centros histricos), acrescentando que estamos perante a exposio de normas jurdicas particulares, segundo as quais se pode transformar o territrio (municipal), construir e reabilitar a cidade e ainda exercitar direitos, na medida em que a juridicidade do solo e respectiva ordenao dada essencialmente pelas normas urbansticas (15).

Em face dos critrios de delimitao recproca do Direito do Ordenamento do Territrio e do Direito do Urbanismo propostos pela doutrina nacional, somos forados a admitir que a presente dissertao flutuar de um mar para outro consoante a mar (perdoe-se-nos a metfora), tendo em considerao, por um lado, que nos propomos realizar uma caracterizao do objecto da mesma em funo do sistema de planeamento territorial vigente (nomeadamente aferindo a forma como a classificao e a qualificao do solo influenciada pelas directrizes resultantes da interveno administrativa no mbito do ordenamento do territrio e constantes de planos hierarquicamente superiores), mas tambm, por outro lado, que a classificao e a qualificao do solo so realizadas, na maioria dos casos, atravs do PDM, instrumento de planeamento que, simultaneamente, estabelece directrizes de planeamento destinadas a

13 Cfr. Ordenamento do Territrio, Urbanismo e Ambiente: Objecto, Autonomia e Distines, in Estudos de Direito Pblico e Matrias Afins, Volume II, Almedina, Coimbra, 2004, p. 164, no reforar de uma posio j anteriormente defendida na sua obra Direito do Urbanismo (Sumrios), edio policopiada, Lisboa, 1993, p. 26, e, de uma forma mais explcita, na Apreciao da Dissertao de Doutoramento do Licenciado Fernando Alves Correia, O Plano Urbanstico e o Princpio da Igualdade, in Estudos..., Volume II, p. 359, em que o Autor defendeu que o critrio mais adequado para distinguir os dois sub-ramos em causa o critrio do objecto, que assenta sobre a distino material entre ordenamento do territrio e urbanismo: luz deste critrio, sero normas de Direito do Ordenamento do Territrio aquelas que visam assegurar, no quadro geogrfico nacional, a melhor estrutura das implantaes humanas com vista ao desenvolvimento harmnico das diferentes regies do Pas; diferentemente, sero normas de Direito do Urbanismo as que visam garantir, no quadro de uma dada orientao em matria de ordenamento do territrio, a melhor organizao e expanso de cada aglomerado populacional. 14 A distino avanada por Freitas do Amaral acolhida tambm por Maria da Glria Garcia, embora em forma de sumrio (cfr. Direito do Urbanismo Relatrio, Lex, Lisboa, 1999, pp. 31 e 32). 15 Cfr. Direito Urbanstico Um Outro Paradigma: A Planificao Modesto-Situacional, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 68 e 69.

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ser respeitadas pelos PUs e pelos PPs e procede definio das possibilidades de ocupao, uso e transformao do solo no s urbano (rectius, no mbito da urbe), mas tambm rural.

No deixamos, contudo, de reconhecer como essencial para a correcta apreenso do objecto da dissertao o facto de nos situarmos no mbito do Direito Administrativo, o qual, neste domnio, deve ser objecto de uma adaptao funcionalizada aos fins especficos prosseguidos por este tipo de actividade administrativa (16). Por esta razo, no raras vezes recorreremos ao Direito Administrativo como forma de integrao jurdica da matria que nos propomos analisar.

De forma a precisar o objecto desta dissertao, urge ainda proceder sua delimitao negativa, identificado as realidades que, pese embora estejam relacionadas com o mesmo, no vo ser objecto de anlise. Cumpre precisar, como ponto prvio, que, como foi referido supra, limitmos o objecto da presente dissertao vertente substantiva da actividade de classificao e qualificao do solo (e respectivo tratamento dogmtico), bem como impugnao jurisdicional dos resultados desta mesma actividade (ao abrigo da aco administrativa especial).

Por esta razo, exclumos o tratamento da matria respeitante responsabilidade civil da Administrao por actos ilcitos praticados no mbito da actividade de classificao e qualificao do solo, bem como outros tipos de contencioso do planeamento territorial: pretendemos que a anlise do regime de contencioso aplicvel seja feita apenas no que concerne ao contencioso reactivo incidente sobre os resultados da actividade de classificao e qualificao do solo.

Neste sentido, no inclumos na presente dissertao a matria da legitimidade processual no contencioso da actividade de classificao e qualificao do solo, sem prejuzo, porm, de qualquer referncia espordica que lhe faamos desde que tal se justifique por razes de escorrncia da exposio: de acordo com os objectivos que tramos, pretendemos realizar uma caracterizao da actividade administrativa em causa, do seu resultado enquanto manifestao de vontade administrativa e das consequncias, a nvel do objecto do processo, que as concluses a que chegarmos acarretam. Da mesma forma que, no mbito do procedimento de classificao e qualificao do solo, a nossa principal preocupao cuidar do tratamento do seu objecto, tambm no mbito do processo tenderemos a centrar a

16 Neste sentido, cfr. Alves Correia, Manual..., p. 59.

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nossa anlise no objecto do processo, abstraindo, na medida do possvel, de cuidar da demonstrao, relativamente aos sujeitos, dos termos em que se afere a sua legitimidade.

Exclumos tambm do objecto desta dissertao a matria relacionada com a execuo do planeamento urbanstico, bem como o tratamento da matria atinente perequao de benefcios e encargos decorrentes do plano: no obstante estas matrias estarem relacionadas com a matria de que nos ocuparemos, os problemas inerentes s mesmas apenas se colocam, em termos cronolgicos, posteriormente eficcia da classificao e da qualificao atribuda, por PMOT, a determinado terreno. nossa vontade que a anlise do regime aplicvel actividade de classificao e qualificao do solo seja feita apenas at perfeio deste tipo de actividade administrativa.

Por outro lado, no cuidaremos tambm da matria relativa impugnao graciosa da deciso administrativa de classificao e qualificao do solo: ao contrrio do que se passa no mbito do contencioso, esta matria, na nossa opinio, no aparenta apresentar especificidades suficientes que reclamem um tratamento autnomo (17).

Cotejando tudo o supra exposto, podemos ento definir o objecto da presente dissertao como a caracterizao jurdico-dogmtica dos institutos de classificao e qualificao do solo, incluindo a definio da sua funo no sistema de planeamento territorial, tendo por base os princpios e regras jurdicas aplicveis no mbito do Direito Administrativo, do Direito do Ordenamento do Territrio e do Direito do Urbanismo, bem como a definio dos termos em que o resultado da actividade administrativa de classificao e qualificao do solo pode ser impugnado em sede jurisdicional por razes de ilegalidade.

1.2. Justificao

A maturidade, a que supra aludimos, adquirida pelo Direito do Ordenamento do Territrio e pelo Direito do Urbanismo resulta tambm do aumento que se verificou nos ltimos anos do tratamento

17 A ausncia de necessidade de tratamento autnomo desta matria transparece da simplicidade da frmula utilizada pelo legislador na consagrao do regime de impugnao graciosa no mbito da actividade de planeamento territorial da Administrao, definido no artigo 7., n. 1, do RJIGT: No mbito dos instrumentos de gesto territorial, so reconhecidas aos interessados as garantias gerais previstas no Cdigo do Procedimento Administrativo e no regime de participao procedimental (...).

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doutrinrio das matrias inseridas nestes ramos de Direito Administrativo especial.

neste avano doutrinrio que encontramos a primeira grande justificao para a escolha do presente tema: na nossa opinio, chegada a altura de reequacionar a posio assumida por determinados institutos do Direito do Ordenamento do Territrio e do Direito do Urbanismo, considerando, nomeadamente, que os desafios com que nos deparamos agora so outros que no os relacionados com a assumpo do plano como elemento fundamental da actividade administrativa com expresso territorial.

De facto, durante a sedimentao da figura do plano urbanstico na ordem jurdica portuguesa, o esforo da doutrina foi desenvolvido no sentido de estabelecer este instrumento de planeamento territorial como elemento jurdico aglutinador dos interesses pblicos e privados com expresso territorial e como elemento jurdico parametrizador da actuao administrativa de licenciamento ou autorizao de realizao de operaes urbansticas.

Uma vez reconhecido ao plano urbanstico o lugar que o mesmo deve ocupar na actividade administrativa, julgamos ser chegada a altura de proceder depurao desta figura jurdica, nomeadamente no que concerne ao seu elemento essencial: a classificao e qualificao do solo.

Na verdade, o fim ltimo de toda a actividade de planeamento territorial , justamente, definir, de uma forma vinculativa para a totalidade dos sujeitos jurdicos, qual o regime de utilizao de determinada parcela do territrio em concreto: s assim a actividade de planeamento territorial ganha operatividade, reunindo todos os pressupostos necessrios sua implementao prtica.

Na nossa opinio, a classificao e a qualificao do solo a actividade essencial na poltica de promoo de um correcto ordenamento do territrio, sendo, simultaneamente, o ponto final na actividade de planeamento e o pargrafo da sua execuo, resultando daqui a sua importncia que justifica a escolha desta matria como objecto da presente dissertao.

Dito de outra forma, pretendemos afinar a centralidade desempenhada pelo plano urbanstico no mbito do Direito do Ordenamento do Territrio e do Direito do Urbanismo, analisando a figura que, intra plano, desempenha a funo essencial deste.

Por outro lado, a escolha desta temtica assenta tambm sobre a mais que reconhecida necessidade de identificar as ncoras da

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defesa do particular perante a actividade de planeamento territorial desenvolvida pela Administrao.

Conforme comummente aceite, actividade de planeamento territorial est inerente uma margem considervel de discricionariedade, em que os elementos vinculados so escassos, quer em nmero, quer em mbito de operatividade.

Em consequncia, identificamos facilmente o planeamento territorial como uma das actividades pblicas em que existe um maior dfice de tutela do particular em face da Administrao. Lanando mo das palavras de Alves Correia, com as quais concordamos na ntegra, os cidados ficam perplexos com a facilidade com que qualquer tcnico, com um simples trao de lpis, pode determinar decisivamente o valor de um terreno. No aceitam, por isso, que o plano, atribuindo a uma rea um determinado destino e a outra um destino completamente diferente, possa decuplicar ou quase reduzir a zero o valor de um terreno. Rejeitam que o plano seja algo de semelhante a um jogo de lotaria, qualquer coisa de fortuito ou o produto de uma boa ou m sorte (18).

Se bem que estas palavras tenham sido produzidas com um intuito introdutrio temtica da necessidade de correco das desigualdades inerentes ao plano, no deixam de ser ilustrativas da necessidade de implementao de formas de controlo da actividade de classificao e qualificao do solo, em que o que est em causa, antes de mais (nomeadamente antes de verificar de que forma sero corrigidas as desigualdades entre proprietrios decorrentes da conformao do territrio consagrada no plano), aferir a correco da deciso administrativa de afectar determinado terreno ao desempenho de determinadas funes urbansticas.

Consequentemente, cumpre tambm verificar a forma como, atravs do recurso ao poder jurisdicional, pode o particular que se sinta prejudicado por uma determinada opo da Administrao neste mbito exercer o seu direito de acesso aos tribunais, bem como deve a lei de processo ser aplicada de modo a conceder ao particular a plenitude da tutela a que este possa ter direito: cumpre verificar se, e, em caso afirmativo, em que moldes, o direito fundamental de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva serve de garantia dos direitos fundamentais com expresso territorial.

Do ora exposto decorre tambm a justificao da delimitao que realizmos do objecto de estudo, nomeadamente a excluso das

18 Cfr. Manual..., pp. 542 e 543.

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matrias relativas responsabilidade civil da Administrao, perequao de benefcios e encargos decorrentes do plano e das garantias de impugnao graciosa do plano. No olvidmos que estas matrias desempenham um papel fundamental no Direito do Ordenamento do Territrio e no Direito do Urbanismo. No entanto, e sendo certo que as garantias de impugnao graciosa das opes consagradas no plano se regero pelo regime geral (o que diminui a necessidade do seu tratamento dogmtico neste mbito especfico), no que respeita responsabilidade civil da Administrao e perequao de benefcios e encargos, estes mecanismos operaro independentemente de o particular se deparar com uma conduta administrativa lcita ou ilcita: queremos aferir como pode o particular, legitimamente, recusar a reconstituio da sua situao patrimonial (no que concerne ofensa do direito de propriedade privada) atravs de uma compensao pecuniria e impor Administrao a reconstituio da situao em que se encontraria caso no tivesse sido cometida a ilegalidade.

Concluindo, podemos identificar ento as duas razes essenciais que motivaram a escolha do presente objecto de dissertao: o tratamento dogmtico da classificao e qualificao do solo enquanto figuras angulares da actividade de planeamento territorial promovida pela Administrao e a determinao dos termos em que a legalidade da actividade de classificao e qualificao do solo pode (ou deve) ser sindicada em juzo, tendo por objectivo a satisfao do direito fundamental de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva.

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2.

Plano de investigao

Antes de iniciar a o tratamento da matria identificada como objecto da presente dissertao, cumpre aludir ao excurso que realizaremos na abordagem que se seguir, bem como justificar a sua formatao nos pontos em que tal se demonstrar mais premente.

Optmos por dividir a presente dissertao em trs partes distintas:

I O direito de propriedade privada imobiliria e o ordenamento do territrio e o urbanismo;

II A classificao e a qualificao do solo;

III A impugnao jurisdicional da classificao e da qualificao do solo.

Considerando que na Parte II procederemos caracterizao do objecto do presente estudo, identificamos na Parte I o enunciado dos pressupostos essenciais a essa tarefa, nomeadamente no que respeita determinao do quadro normativo aplicvel actividade de classificao e qualificao do solo; j a Parte III surge como complemento da Parte II, considerando os objectivos a que nos propusemos. Desta forma, a matria que nos ocupa ser tratada de uma forma que podemos, esquematicamente, traduzir da seguinte forma: pressupostos objecto consequncias.

Na indicao dos pressupostos de que partiremos para a anlise do objecto do presente estudo, comearemos por determinar os termos em que, na nossa opinio, os vrios interesses com expresso territorial se relacionam, a nvel constitucional, entre si, considerando que estamos perante uma tenso que advm de trs vrtices: o direito de propriedade privada, os restantes direitos fundamentais com expresso territorial e o dever de prover pela satisfao destes com respeito por aquele imputado pela CRP ao Estado.

Com este propsito, comearemos por proceder caracterizao dos bens constitucionais em confronto (de um lado, a garantia da propriedade privada, de outro, os direitos fundamentais dos cidados com expresso territorial), cuidando depois de averiguar os limites dentro dos quais a lei infraconstitucional deve proceder determinao dos termos concretos em que os mesmos se harmonizaro. O cumprimento deste desiderato no poder fugir ao tratamento de duas questes de que, na nossa opinio, depende de

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sobremaneira o sucesso da presente dissertao: o enquadramento constitucional da funo social da propriedade e do ius aedificandi.

Ainda no domnio de determinao dos pressupostos de que partimos, cumpre caracterizar, e tendo agora por referncia tambm os regimes normativos consagrados na LBPOTU e no RJIGT, a actividade de planeamento territorial prosseguida pela Administrao, recorrendo aos ensinamentos da doutrina e aos quadros gerais fornecidos pelo Direito Administrativo.

Na Parte II desta dissertao procederemos ao tratamento dogmtico e jurdico dos conceitos de classificao e qualificao do solo. Aps uma anlise histrica e comparativa do tratamento dado na nossa e em outras ordens jurdicas classificao e qualificao do solo no mbito do sistema de ordenamento do territrio a considerar e uma primeira aproximao aos conceitos legais observando o disposto na legislao vigente, cuidaremos de definir o objecto e o regime da classificao e da qualificao do solo. Em seguida procederemos averiguao das caractersticas essenciais destas figuras, tendo em considerao, entre outros aspectos, a necessidade, na nossa opinio, de autonomizao da classificao e da qualificao do solo dos restantes elementos constituintes da figura do plano urbanstico (sendo tambm esta a base de abordagem da identificao dos efeitos e da concretizao do regime de invalidade da classificao e qualificao do solo). Por fim, cotejando os elementos que formos reunindo, avanaremos, a final, para a determinao da natureza jurdica desta forma de manifestao de vontade da Administrao, a qual incluir a necessria reformulao dos conceitos anteriormente adiantados em funo da natureza jurdica determinada.

A Parte III, tendo em conta o ora exposto, funcionar, em larga medida, como a confirmao, a nvel de contencioso, da correco da natureza jurdica que atribuirmos actividade de classificao e qualificao de solos, e dividir-se- em trs abordagens distintas. Em primeiro lugar, e antes de aferir da idoneidade da dinmica processual prevista na lei de processo, cumpre delimitar, atravs do recurso a frmulas genricas, o eventual objecto do processo. Em seguida, averiguaremos da idoneidade do regime do contencioso de normas jurdicas para suportar a impugnao judicial da actividade de classificao e qualificao de solos. Por fim, e tendo como contraponto esta anlise, analisaremos a idoneidade do contencioso de actos administrativos para afastar os efeitos perniciosos que, na nossa opinio, decorrem da aplicao do contencioso administrativo de normas jurdicas. Certo , porm, que

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todo o percurso a realizar ao longo da Parte III da presente dissertao ter como fundamento e perspectiva essencial a necessidade de satisfao cabal do direito de acesso a uma tutela jurisdicional efectiva no mbito do contencioso da afectao de determinadas reas do territrio ao desempenho de determinadas funes urbansticas.

Por fim, apresentaremos, de forma sucinta e esquemtica, as concluses a que, gradualmente, formos chegando ao longo desta dissertao.

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PARTE I

O DIREITO DE PROPRIEDADE PRIVADA IMOBILIRIA

E O ORDENAMENTO DO TERRITRIO E O URBANISMO

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3.

A dimenso constitucional da articulao entre o direito de propriedade privada imobiliria e o ordenamento do territrio e

o urbanismo

3.1. Colocao do problema

1. Considerando o excurso que nos propomos realizar, surge-nos como imprescindvel a anlise da articulao, a nvel constitucional, entre a garantia do direito de propriedade, na sua vertente imobiliria, e o dever estadual de promoo de um correcto ordenamento do territrio e de um urbanismo com qualidade. De facto, a actividade de classificao e qualificao do solo atravs de instrumentos municipais de ordenamento do territrio surge como um exemplo, cada vez mais comum, da interveno dos poderes pblicos na esfera individual dos cidados em nome da defesa ou promoo de valores supra-individuais. Em funo de tal realidade, cumpre efectuar o tratamento dogmtico-jurdico desta realidade ao nvel da CRP, lanando as bases para o tratamento da matria a um nvel infraconstitucional.

O ordenamento do territrio e o urbanismo, enquanto objectos de tratamento constitucional, apresentam-se-nos como realidades multifacetadas que assumem naturezas diversas consoante a perspectiva de que as olhamos. Neste sentido, podemos identificar o correcto ordenamento do territrio e o urbanismo como bens constitucionais que assumem, grosso modo, as seguintes funes na economia do nosso texto constitucional:

Objecto de funo do Estado, nos termos do disposto no artigo 9., alnea e), da CRP, em que se estabelece, genericamente, que tarefa fundamental do Estado proteger e valorizar o patrimnio cultural do povo portugus, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correcto ordenamento do territrio;

Objecto de obrigaes impendentes sobre o Estado-Legislador e sobre o Estado-Administrao, tendo em ateno, nomeadamente, o disposto no artigo 65., n. 4, que estatui que o Estado, as regies autnomas e as autarquias locais definem as regras de ocupao, uso e transformao dos solos urbanos, designadamente atravs de instrumentos de

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planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do territrio e ao urbanismo (...);

Objecto de satisfao de direitos fundamentais dos cidados com repercusso territorial, podendo ser referido, a ttulo de exemplo, o disposto no artigo 66., n. 2, alnea b), que prescreve que para assegurar o direito ao ambiente [de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado], no quadro de um desenvolvimento sustentvel, incumbe ao Estado, por meio dos organismos prprios e com o envolvimento e a participao dos cidados (...) ordenar e promover o ordenamento do territrio, tendo em vista uma correcta localizao das actividades, um equilibrado desenvolvimento scio-econmico e a valorizao da paisagem.

Dos exemplos dados, e realce-se que no passam de meros exemplos, decorre que no imediatamente perceptvel nem o contedo do ordenamento do territrio e do urbanismo enquanto bens constitucionais nem, consequentemente, a dimenso da sua fora preceptiva, decorrente da sua consagrao na CRP, sobre o ordenamento jurdico.

Em primeiro lugar, so realidades complexas, uma vez que os conceitos de correcto ordenamento do territrio e de urbanismo chamam a si um rol imenso de outros bens dignos de tutela constitucional, tal como o ambiente, o patrimnio cultural, a qualidade de vida das populaes, o desenvolvimento sustentvel, entre outros, e, quer na sua vertente objectiva, quer na sua vertente subjectiva, sendo certo que da existncia de um correcto ordenamento do territrio e de um urbanismo com qualidade depende a satisfao de direitos fundamentais como o direito habitao, a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, ao lazer, iniciativa econmica, entre muitos outros.

Em segundo lugar, o correcto ordenamento do territrio e o urbanismo de qualidade so realidades, na economia da CRP, plurifuncionais, constituindo meio de satisfao tanto de direitos difusos como de direitos individualizveis e obrigao tanto do Estado-Legislador como do Estado-Administrao.

2. De uma anlise meramente superficial do texto constitucional decorre, no entanto, que a prossecuo de um ordenamento do territrio e de um urbanismo qualitativamente aptos a satisfazer os direitos fundamentais dos cidados com repercusso territorial implica, inexoravelmente, a emergncia de actividades estaduais legiferantes e administrativas agressivas da propriedade privada dos cidados: o territrio objecto da actividade estadual neste domnio, ou seja, enquanto objecto de direito pblico, no deixa de

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ser constitudo por bens imveis, objectos de direito privado, que integram o comrcio jurdico.

De facto, o legislador, no cumprimento do dever de fixar o quadro normativo relativo ao ordenamento do territrio, no deixa de actuar sobre o contedo do direito de propriedade privada imobiliria, nomeadamente definindo os termos em que o proprietrio est sujeito a que os bens sob o seu domnio sejam afectos a determinados fins benficos para a comunidade: o estatuto jurdico da propriedade privada imobiliria engloba, sem dvida, as leis respeitantes ao ordenamento do territrio e ao urbanismo.

Por seu lado, e nos quadros normativos definidos pelo legislador, a Administrao no deixa tambm de actuar de uma forma agressiva sobre a propriedade privada imobiliria, determinando em concreto, atravs, entre outros meios, dos instrumentos de planeamento, as regras de ocupao, uso e transformao dos solos.

Nos termos do disposto no artigo 62., n. 1, da CRP, a todos garantido o direito propriedade privada (...), nos termos da Constituio, constituindo esta ressalva o cerne da questo que nos ocupar nas prximas pginas: sendo extremamente complexo o quadro normativo constitucional relativo ao ordenamento do territrio e ao urbanismo, mas sendo certo que o mesmo engloba a agresso do direito de propriedade privada dos cidados, cumpre determinar quais so os termos da Constituio que condicionam o facto que a todos garantido o direito propriedade privada.

E bem se entende, agora, a relevncia da determinao do estatuto constitucional do ordenamento do territrio e do urbanismo, j que ser, atendendo aos resultados deste exerccio, que operar a remisso intra-constitucional feita pelo artigo 62., n. 1, in fine, da CRP, e que, consequentemente, se determinar a forma como se articula o direito de propriedade privada com os direitos fundamentais dos cidados com expresso territorial e os termos em que o Estado pode cumprir o dever de satisfazer estes ltimos promovendo um correcto ordenamento do territrio e um urbanismo de qualidade.

3. No olvidando que a presente dissertao se insere, como aludimos, no mbito do Direito Administrativo, e que a actividade material de promoo do ordenamento do territrio e do urbanismo vai ser, por imperativo constitucional, prosseguida pela Administrao ao abrigo das leis respeitantes a estas matrias, deve ter-se em

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considerao que a actividade de planeamento territorial se reconduz, na ntegra, ao conceito de actividade administrativa.

Desta forma, a remisso realizada pela parte final do artigo 62., n. 1, da CRP, opera tambm relativamente ao que comummente designado pela doutrina de Constituio administrativa.

Sem prejuzo da anlise que infra incidir sobre a necessidade de consagrao, nas leis respeitantes ao ordenamento do territrio e ao urbanismo, dos princpios e postulados constitucionais em matria administrativa, podemos desde j adiantar que, entre outros aspectos, aquelas leis sofrero o influxo da Constituio administrativa no que concerne ao respeito pela organizao administrativa desenhada pela CRP, obrigao de consagrao legal das garantias de informao e participao, bem como de fundamentao, subordinao aos princpios gerais da actividade administrativa e ainda consagrao das garantias impugnatrias dos resultados da actividade administrativa.

Desta forma, o tratamento da problemtica que nos ocupa deve ser enquadrado pelo facto de a emisso de leis que permitam Administrao actuar directa ou reflexamente sobre direitos subjectivos de natureza privada implicar sempre a necessidade de consagrar como dever da Administrao o cumprimento das obrigaes que a CRP estabelece em defesa dos particulares, sendo certo que estas tero sempre por termo de referncia, simultaneamente, os proprietrios e os cidados enquanto detentores de direitos difusos.

4. Delineado, em termos propositadamente gerais porquanto funcionalizados compreenso da problemtica que ora nos ocupa, tentemos traar um quadro geral do estatuto constitucional do ordenamento do territrio e do urbanismo, determinando os termos em que se integram a satisfao de direitos fundamentais com expresso territorial, o respeito pela garantia constitucional da propriedade privada, o cumprimento por parte do Estado de funes que lhe so constitucionalmente cometidas e ainda o respeito pelos postulados da Constituio administrativa.

Por razes metodolgicas, impe-se determinar, em primeiro lugar, o contedo de cada um dos bens constitucionais de uma perspectiva absoluta, partindo-se posteriormente para o tratamento da questo de uma perspectiva relativa, ou seja, colocando ambos em confronto nos termos da Constituio, partindo sempre de uma perspectiva funcionalizada ao objecto da presente dissertao, ou seja, tendente definio dos termos em que a CRP admite o tratamento

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do direito de propriedade por instrumentos municipais de ordenamento do territrio.

3.2. A garantia constitucional do direito de propriedade privada

5. De uma forma suficientemente esclarecedora para lanar a discusso na doutrina e na jurisprudncia a propsito da dimenso da garantia constitucional da propriedade privada, estatui o artigo 62., n. 1, da CRP, que a todos garantido o direito propriedade privada e sua transmisso em vida ou por morte, nos termos da Constituio, acrescentando o n. 2 do mesmo preceito que a requisio e a expropriao por utilidade pblica s podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnizao.

Ao remeter para si mesma, atravs de uma remisso intra-sistemtica, a CRP assume, sem margem para dvidas, que o direito de propriedade, tal como hoje garantido pela Lei Fundamental, est muito longe [d]a concepo constitucional liberal-burguesa, que fazia do direito de propriedade o primeiro dos direitos fundamentais, porque supostamente era a condio de todos os outros, a comear pela liberdade (19): o conceito de direito de propriedade a que alude a CRP j no se funda na subordinao dos interesses gerais aos interesses individuais do proprietrio, por se ter abandonado a ideia de que o interesse geral era constitudo por uma mera soma dos interesses individuais e que, para a prossecuo do interesse geral, se impunha a defesa absoluta dos direitos individuais.

Ao invs, e como supra referimos, o direito de propriedade, nomeadamente na vertente da propriedade fundiria ou imobiliria, cada vez mais chamado colao para contribuir, de uma forma positiva, para a realizao do interesse pblico e para a satisfao, pelo Estado, de direitos fundamentais dos cidados. No que concerne especificamente ao fenmeno da actividade urbanstica, a racionalizao dos meios dispendidos na mesma, a par da escassez de solos no interior das cidades e da necessidade de gesto racional do territrio, so motivos de ordem social que justificam a aco do Estado em moldes que as limitaes impostas ao proprietrio deixaram de ser excepo para passarem a constituir regra (20). Dito de outra forma, a atribuio do direito de propriedade privada dos solos fica,

19 Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, 2. Edio, 1. Volume, Coimbra Editora, 1984, p. 332. 20 Neste sentido, cfr. Gonalo Capito, Expropriao e Ambiente, Universidade Lusada Editora, Lisboa, 2004, pp. 20 e 21.

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pois, condicionada realizao das funes que esses bens desempenham no mbito da colectividade. Reduz-se a esfera de actuao subjectiva da posio jurdica do indivduo por a que tambm ele seja responsvel pelo bem estar econmico e social. (...) A propriedade privada dos solos urbanos deixa, assim, de estar apenas vinculada s exigncias de satisfao de especficos interesses pblicos, designadamente os de salubridade, segurana e esttica das edificaes; o seu prprio contedo o seu estatuto que passa a ser conformado pelos interesses gerais da colectividade, de acordo com a funo do respectivo objecto (21), nos termos que forem determinados em instrumento de planeamento fsico do territrio.

Em funo desta realidade inelutvel, a questo do tratamento constitucional da propriedade privada e da garantia dos direitos do proprietrio passou a constituir uma vaexata quaestio na doutrina, a qual avana os mais variados critrios para a definio dos termos em que o direito de propriedade surge consagrado na CRP; ou seja, em funo desta socializao do direito de propriedade, cumpre determinar que direitos, ao fim e ao cabo, esto assegurados ao proprietrio por fora da garantia constitucional da propriedade privada.

Antes de dar o nosso modesto contributo para esta discusso, comearemos, por questes de clareza na exposio, por referir os aspectos em que a doutrina , grosso modo, unnime, de modo a sedimentar-se um ponto de partida para aquela abordagem (22).

6. O primeiro ponto que deve dar-se por assente est relacionado com a insero sistemtica do artigo 62. no texto constitucional, tendo sido este preceito propositadamente inserido no mbito dos direitos e deveres econmicos, sociais e culturais (Ttulo III da Parte I), e no no dos direitos, liberdades e garantias (Ttulo II da Parte I).

Partindo de uma perspectiva sistemtica quase matemtica, o direito de propriedade surge, na Constituio, equiparado a outros direitos para os quais o legislador constituinte reclama um estatuto de relevncia semelhante, nomeadamente o direito ao trabalho, os direitos sociais dos trabalhadores, o direito segurana social, o direito proteco na sade, o direito habitao, o direito ao ambiente, bem como a iniciativa privada, cooperativa e

21 Cfr. Cludio Monteiro, O embargo e a demolio de obras no Direito do Urbanismo, policopiado, Lisboa, 1995, p. 26. 22 Desta forma, a definio da dimenso da garantia constitucional da propriedade privada em funo da limitao deste direito por motivos de ordem social ser realizada infra, no ponto 3.4..

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autogestionria: os pares do direito de propriedade privada no so as liberdades pessoais nem os direitos de participao poltica (23), enquadramento sistemtico que confirma a ideia que na CRP no existe uma ligao directa entre garantia da propriedade e tutela da autonomia privada e da liberdade e dignidade pessoais (24).

No tratamento dogmtico da distino entre direitos, liberdades e garantias e directos econmicos, sociais e culturais, Joo de Castro Mendes conclui que os direitos fundamentais especiais (econmicos, sociais e culturais) derivam dessa especialidade do bem tutelado (realidades econmicas: trabalho, participao na gesto das empresas, greve, propriedade privada; realidades culturais) e da forma especial de configurao do prprio direito, cuja tutela se faz depender de uma organizao especial da sociedade [acrescentando em nota de rodap que tal pode dar um sentido especial ao direito de propriedade privada, inserto no art. 62 da Constituio como direito (ou direito e dever?) fundamentalmente econmico]. Os direitos, liberdades e garantias (...) representam o domnio dos direitos fundamentais comuns so atribudos ao Homem enquanto tal, quando muito um cidado, visto em si e no como componente de uma sociedade, de certo modelo de sociedade (25).

No que concerne especificamente ao objecto da presente dissertao, verifica-se que muitos dos direitos econmicos, sociais e culturais que cercam a consagrao constitucional da garantia da propriedade privada reclamam, para efeitos da sua satisfao, a actuao estadual sobre bens imveis, quer de natureza rstica (como acontece relativamente ao direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, consagrado no artigo 66., n. 1) quer de natureza urbana (o que suceder, no raras vezes, no mbito da criao das condies adequadas fruio do patrimnio cultural, direito previsto no artigo 78., n. 1).

Desta forma, podemos concluir que o facto de este direito se encontrar arrumado entre o catlogo dos direitos econmicos, sociais e culturais revela que o direito de propriedade, em especial aquele cujo objecto incide sobre o solo, desempenha um protagonismo social (...) que no pode deixar de se repercutir no seu estatuto constitucional (26).

23 Realando este ponto, cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituio Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 626. 24 Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio..., 1 Volume, p. 332. 25 Cfr. Direitos, Liberdades e Garantias alguns aspectos gerais, in Estudos sobre a Constituio, 1. Volume, Livraria Petrony, Lisboa, 1977, p. 105. 26 Cfr. Maria Elizabeth Moreira Fernandez, Direito ao Ambiente e Propriedade Privada (Aproximao ao estudo da estrutura e das consequncias das leis-reserva portadoras de vnculos ambientais), Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 168.

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7. No se nos oferecem dvidas que a garantia constitucional da propriedade privada reveste, para efeitos de aplicao do disposto no artigo 17. da CRP, natureza anloga aos direitos, liberdades e garantias consagrados no Ttulo II da Parte I da CRP, tendo vindo a ser afirmado pela doutrina que deve ser reconhecido ao direito de propriedade um estatuto jurdico-constitucional anlogo ao daqueles.

De acordo com Rui Medeiros, a Constituio de 1976 protege, em termos amplos, o direito titularidade e aproveitamento dos bens e impede, sem excepes, a privao arbitrria de quaisquer direitos patrimoniais. A garantia da propriedade privada, essencial dignidade da pessoa humana, representa, assim, um espao de autonomia do particular frente ao Estado e reveste-se de uma natureza essencialmente negativa ou de defesa. Em resumo, o direito de propriedade e o direito indemnizao constituem direitos fundamentais de natureza anloga dos direitos, liberdades e garantias. Logo, so directamente aplicveis e vinculam as entidades pblicas (arts. 17 e 18 n1 CRP) (27).

Entende-se que seja esta a posio quase comummente adoptada pela doutrina: a forma como a garantia surge consagrada no artigo 62. da CRP denota a existncia de uma garantia concreta que tutela uma pretenso jurdica individual oponvel aos demais sujeitos jurdicos, j que se apresenta como directamente aplicvel nas relaes jurdicas estabelecidas entre o proprietrio e terceiros e suficientemente determinada para no fazer depender a sua aplicao de intermediao a nvel legal; por outro lado, inegvel que a garantia da propriedade privada possui uma natureza defensiva relativamente ao Estado e em prol do proprietrio. Em suma, esto reunidos os pressupostos essenciais qualificao da garantia do direito de propriedade como de natureza anloga dos direitos, liberdades e garantias (28).

27 Cfr. Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, Almedina, Coimbra, 1992, p. 273; pronunciando-se expressamente no sentido da atribuio de natureza anloga dos direitos, liberdades e garantias, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio..., pp. 332 e 334; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Volume IV, 3. Edio, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 152; Lus S. Cabral de Moncada, Direito Econmico, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 129 e 130; Alves Correia, Manual..., p. 595; Maria Lcia Amaral, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 530; tambm neste sentido se pronunciou a Comisso Constitucional no seu parecer n. 32/82, de 16 de Setembro; contra, cfr. Menezes Cordeiro, A Constituio Patrimonial Privada, in Estudos sobre a Constituio, 3. Volume, Livraria Petrony, Lisboa, 1979, p. 394, nota 39, sendo certo que este estudo remonta verso originria da CRP. 28 Relativamente aos critrios de atribuio de natureza anloga a direitos, liberdades e garantias a outras posies jurdicas de vantagem que no as contidas no Ttulo II da Parte I da CRP, cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituio, 6. Edio, Almedina, Coimbra, s/d, pp. 398 e ss.; Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituio Portuguesa de 1976, 2. Edio, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 178 e ss.; Jorge Miranda, Manual..., pp. 149 e ss..

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Desta qualificao decorre que ao direito de propriedade aplicvel o regime jurdico-constitucional dos direitos, liberdades e garantias, que est previsto, no essencial, no artigo 18., mas resulta tambm dos artigos 19., 20., n. 5, e 21. e ainda dos artigos 165., n. 1, al. b), 272., n. 3, e 288., al. d), da Constituio (29).

Especialmente relevante para a anlise que ir ser realizada o regime contido no artigo 18., o qual, visando proteger com especial intensidade os direitos, liberdades e garantias a que se aplique, estabelece, no essencial, que os mesmos s podem ser restringidos nos casos expressamente previstos na Constituio, devendo as restries limitar-se ao necessrio para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, a que acresce que as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias tm de revestir carcter geral e abstracto, no podendo ter efeitos retroactivos nem diminuir a extenso e o alcance do contedo essencial dos preceitos constitucionais que acolhem esta natureza.

Contudo, a aplicao do regime contido no artigo 18. da CRP ao direito de propriedade privada implica que tenha que definir-se, na economia do texto constitucional, o contedo essencial do direito de propriedade (de modo a compelir o legislador a no interferir com esse contedo) e a verdadeira dimenso da garantia (desta feita de modo a saber o que consubstancia uma restrio que apenas pode ser realizada se limitada ao necessrio para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos).

8. De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito de propriedade abrange, em termos tericos, pelo menos quatro componentes: o direito a adquirir, o direito de usar e fruir dos bens de que se proprietrio, o direito de a transmitir e o direito de no ser privado dela, sendo certo que, destes aspectos, somente o segundo (a liberdade de uso e de fruio) no est contemplado de forma explcita no artigo 62. da CRP (30).

Relativamente a este ponto especfico, esclarecem os citados Autores que a Constituio no menciona expressamente, entre os componentes do direito de propriedade, a liberdade de uso e fruio. Todavia, mesmo que se entenda que ele integra naturalmente o direito de propriedade, fcil verificar que so grandes os limites constitucionais (...) podendo a lei estabelecer restries

29 Cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos..., p. 191. 30 Cfr. Constituio..., p. 334.

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maiores ou menores, credenciada nos princpios gerais da Constituio, particularmente nos da constituio econmica (31).

Tambm Jorge Miranda e Rui Medeiros consideram que a garantia constante do artigo 62. da CRP abrange o direito de apropriao, o direito de aquisio de bens ou, mais amplamente, de direitos patrimoniais, o direito de ter bens em propriedade e, em geral, o direito de se tornar, por actos inter vivos ou mortis causa, titulares de quaisquer direitos de valor pecunirio e ainda a segurana contra privaes arbitrrias (32). No que respeita eventual insero no mbito da garantia constitucional dos direitos de uso e fruio dos bens de que se proprietrio, Jorge Miranda e Rui Medeiros no se pronunciam expressamente sobre esta questo.

De uma forma mais ou menos pacfica, o entendimento de que a garantia constitucional da propriedade privada engloba os chamados direitos de adquirir, de transmitir e de no ser privado dos bens de que se proprietrio tem recolhido a unanimidade da doutrina, podendo dar-se por assente, sem necessidade de mais delongas, que se encontram abrangidos pela garantia constitucional da propriedade privada.

Por outro lado, a doutrina tem proposto as mais variadas orientaes a respeito da insero no mbito da garantia constitucional da propriedade privada dos direitos de uso e fruio dos bens de que se proprietrio, havendo quem defenda que estes direitos esto abrangidos pela garantia e, consequentemente, apenas podem ser restringidos nos termos do disposto no artigo 18. da CRP, havendo tambm quem defenda que aqueles direitos no se encontram abrangidos pela garantia constitucional (33).

No que concerne presente dissertao, a resposta questo enunciada , ao mximo, relevante: como se ver, a actividade de classificao e qualificao do solo tem por resultado uma manifestao de vontade administrativa no sentido de conferir determinado estatuto de ocupao, uso e transformao do solo a determinada poro de territrio, actuando, invariavelmente, sobre as faculdades de uso e fruio inerentes ao direito de propriedade.

31 Cfr. Constituio..., p. 335. 32 Cfr. Constituio..., pp. 626, 627 e 629; cfr. ainda, com texto semelhante e, consequentemente, no mesmo sentido, Jorge Miranda, Manual..., Volume IV, pp. 522 e ss.. 33 A este respeito, cfr. infra, ponto 3.4., no qual, ao abordarmos a matria da articulao do direito de propriedade privada, mais concretamente da garantia constante do artigo 62. da CRP, com os restantes bens dignos de tutela constitucional e que bolem com esta garantia, ser necessrio tomar posio a respeito da dimenso da garantia constitucional da propriedade privada, pelo que remetemos para esse ponto.

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Ademais, o facto de os bens constitucionais que entram em confronto com o direito de propriedade privada terem por alvo primordial o direito de propriedade privada fundiria ou imobiliria tem conduzido a doutrina a distinguir a propriedade incidente sobre bens imveis das demais formas de propriedade para efeitos de delimitao do mbito da garantia constitucional, pelo que se justifica inteiramente o tratamento, na presente dissertao, e qui de modo meramente repetitivo, da questo da insero do chamado ius aedificandi no mbito da garantia constitucional da propriedade privada.

9. O direito de propriedade privada assume uma dupla funo na nossa Constituio, no sendo apenas um comando para o legislador ou uma garantia para o titular do direito.

De acordo com Alves Correia, o artigo 62., n. 1, da Lei Fundamental deve ser interpretado, semelhana do que acontece nos ordenamentos jurdico-constitucionais alemo e francs, como consagrando uma garantia institucional (ou objectiva) e uma garantia individual (ou subjectiva) do direito de propriedade privada, acrescentando que a primeira garante a propriedade como instituto jurdico, e que a segunda protege como direito fundamental a posio jurdica de valor patrimonial que se encontra nas mos do particular (34).

Tambm Rui Medeiros afirma como verdadeiro que a garantia constitucional da propriedade tem, como geralmente reconhecido, uma dupla funo: protege a propriedade privada como instituto jurdico e garante, como direito fundamental, os direitos subjectivos patrimoniais de cada particular (35).

A existncia desta dupla face do preceito constitucional em apreo no se nos apresenta como discutvel. De facto, embora nos parea inegvel que a garantia constitucional possui esta ambivalncia, cumpre explicitar os termos em que esta ambivalncia constitucional, na nossa opinio, se impe na ordem jurdica.

3.2.1. A dimenso institucional da garantia

10. As garantias institucionais tm surgido na doutrina como contrapostas aos direitos fundamentais, se bem que, as mais das vezes, se encontrem intimamente ligadas a estes: enquanto figura da dogmtica constitucional, as garantias institucionais no seriam verdadeiros direitos atribudos directamente a uma pessoa; as instituies, como

34 Cfr. Manual..., pp. 595 e 596. 35 Cfr. Ensaio..., p. 270.

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tais, tm um sujeito e um objecto diferente dos direitos dos cidados, sendo instituies protegidas directamente como realidades sociais objectivas e s, indirectamente, se expandem para a proteco dos direitos individuais (36).

A emergncia desta vertente objectiva do escopo da norma que consagra a garantia serve, assim, de meio de distino das figuras da garantia institucional e do direito fundamental: para saber se determinada norma se reporta a um direito ou a uma garantia institucional, haver que indagar se ela estabelece uma faculdade de agir ou de exigir em favor de pessoas ou de grupos, se coloca na respectiva esfera jurdica uma situao activa que uma pessoa ou um grupo possa exercer por si e invocar directamente perante outras entidades hiptese em que haver um direito fundamental; ou se, pelo contrrio, se confina a um sentido organizatrio objectivo, independentemente de uma atribuio ou de uma actividade pessoal caso em que haver apenas uma garantia institucional (37).

A garantia institucional apresenta-se-nos, assim, como uma realidade objectiva que, por si, no atribui, nem pretende atribuir, posies jurdicas de vantagem a determinados sujeitos jurdicos; ao invs, a garantia institucional visa, apenas e s, fazendo uso da funo de conformao da sociedade que desempenhada pela Lei Fundamental, garantir (passe o pleonasmo) que nessa sociedade existem determinadas realidades objectivas que no podem, por fora da sua centralidade no modelo organizatrio pretendido, ser preteridas pelo legislador.

Muitas vezes, e atendendo garantia constitucional da propriedade privada como um exemplo paradigmtico desta realidade, determinadas garantias institucionais esto de tal modo imbrincadas com garantias de direitos fundamentais que se torna difcil a distino. Quando assim acontece, o regime jurdico-constitucional aplicvel no pode ser, partida, diverso, especialmente no que concerne preservao do contedo essencial da garantia institucional (38).

36 Cfr. Gomes Canotilho, Direito..., p. 397. 37 Cfr. Jorge Miranda, Manual..., Volume IV, p. 74. 38 Cfr. Gomes Canotilho, Direito..., p. 397; Jorge Miranda, Manual..., Volume IV, p. 75. Acompanhando uma ideia que parece transparecer da lio de ambos os Autores, sempre se dir que, nas situaes em que se nos apresente uma garantia institucional desacompanhada da vertente individual ou de direito fundamental da realidade garantida constitucionalmente, no ser de aplicar o disposto no artigo 18. em toda a sua dimenso, mas apenas na parte em que se pretende a manuteno do contedo essencial da garantia (o qual, nestas situaes, e por fora do carcter objectivo da garantia institucional, ser coincidente com o contedo da garantia, o qual se revela, na totalidade, essencial para o modelo societrio pretendido pela Constituio). Contudo, e em funo da dupla face da garantia do direito de propriedade privada, verificamos no ser este o caso.

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Reforando esta ideia, Maria Elizabeth Fernandez refere que estas duas vertentes do direito de propriedade no se opem uma outra, antes pelo contrrio, a determinao do aspecto objectivo no visa seno reforar o aspecto subjectivo do mesmo, j que, pese embora a possibilidade de individualizao de ambas as figuras, existe uma igualdade de rango entre as duas vertentes, que se completam, que se manifestam de modo simultneo e que se correlacionam entre si constituindo uma garantia mtua (39), no podendo (nem devendo) ser levadas demasiado longe as decorrncias dos conceitos transformando-os em preceitos (40).

11. Feita esta ressalva, cumpre explicitar que, por consubstanciar uma garantia objectiva, a vertente institucional da garantia da propriedade privada um comando que tem por destinatrio nico o legislador, conformando positivamente a sua actividade de produo legislativa.

Ao consagrar a propriedade como um instituto jurdico essencial para a concretizao do modelo societrio que impe, a CRP faz impender sobre o legislador o dever de preservar a existncia do instituto da propriedade privada enquanto forma de estabelecimento de elos jurdicos entre pessoas e bens.

Considerando o contexto histrico da Constituinte, verifica-se que a consagrao expressa da garantia da propriedade privada teve e tem por escopo assegurar a manuteno, na ordem jurdica nacional, de um corpo de normas jurdicas de natureza legal que permitem a afectao jurdica de bens (no um determinado bem em concreto, mas sim de bens enquanto categoria abstracta relativa a determinada realidade) por sujeitos jurdicos (no em benefcio de determinado sujeito jurdico, mas sim de qualquer sujeito jurdico). Dito de outra forma, a vertente ou dimenso objectivo-institucional dirigindo-se exclusivamente ao legislador probe-o de afectar a propriedade privada enquanto instituto jurdico, ou seja, impede-o de eliminar ou de abolir o direito de propriedade privada, e impe-lhe o dever de produzir normas que permitam caracterizar um direito individual como propriedade privada, possibilitando a sua acessibilidade para todos, bem como a existncia e capacidade funcional, quer do ponto de vista material, quer do ponto de vista processual (41).

39 Cfr. Direito..., p. 178. 40 Cfr. Jorge Miranda, Manual..., Volume IV, p. 75. 41 Cfr. Maria Elizabeth Fernandez, Direito..., pp. 178 e 179; no mesmo sentido, Alves Correia, Manual..., p. 596. Este ltimo Autor refere expressamente que o vocbulo legislador deve ser aqui compreendido em sentido amplo, como rgo criador de direito material, englobando, por isso, tanto os rgos com competncia legislativa, como os que tm competncia regulamentar, entendimento com o qual discordamos com fundamentos que sero, a seu tempo, expressos na presente dissertao.

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12. assim dever do legislador assegurar a existncia de um corpo de normas de natureza legal que consagre o direito de propriedade.

Como j foi referido supra (42), indesmentvel que a CRP assegura, no artigo 62. e como elementos estruturantes do conceito de propriedade proposto, as liberdades de aquisio do direito e da sua transmisso por vida ou por morte, bem como o direito de no ser privado do bem a no ser por utilidade pblica e mediante o pagamento de justa indemnizao.

Adoptando uma perspectiva objectivista (como se requer no tratamento do direito de propriedade enquanto garantia institucional), verifica-se que estas realidades esto, sem dvida, contidas no normativo em apreo: deste facto decorre, assim, que o legislador se encontra adstrito a consagrar um regime jurdico do direito de propriedade privada que acolha, pelo menos mas na ntegra, as liberdades e o direito referidos, bem como a no proceder a uma revogao simples do mesmo (43).

De modo a ilustrar o entendimento que perfilhamos relativamente dimenso da garantia institucional da propriedade privada, refira-se que acompanhamos Jorge Miranda relativamente questo de saber se a garantia abrange outro tipo de direitos patrimoniais, quer reais quer de crdito:

Afora a propriedade, direito real mximo, e os direito materiais do autor (art. 42., n. 2) a Constituio no garante mais nenhum dos tipos de direitos de carcter patrimonial existentes na ordem jurdica portuguesa.

H uma garantia institucional da propriedade no sentido de que seria inconstitucional a lei ordinria reduzir os direitos das pessoas sobre as coisas ao usufruto ou a outros direitos reais menores; a lei civil tem de conter um direito de propriedade com o feixe de poderes de uso, fruio e disposio que lhe so inerentes na tradio jurdica e cultural do nosso pas (...). Mas, para alm disso, a Constituio no impe ao legislador a conservao deste ou daqueloutro direito em abstracto; no confirma os outros tipos de direitos reais e as categorias de outros direitos patrimoniais subsistentes data da sua entrada em vigor, no tolhe o desaparecimento de quaisquer desses tipos ou figuras ou o aparecimento de novos tipos ou categorias.

42 Cfr. ponto 3.1.. 43 Como tambm j foi referido, apenas no ponto 3.4. ser tratada a matria relativa ao apuramento da dimenso da garantia no sentido de determinar se este abrange tambm os direitos de uso e fruio, nomeadamente, e mais especificamente, se a garantia abrange a liberdade de ocupao, uso e transformao dos solos objecto de direito de propriedade.

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O direito de propriedade, direito real mximo, uma garantia institucional e um direito fundamental. J no quaisquer direitos reais, de crdito e sociais que constem da lei civil ou da lei comercial. Uma coisa o princpio da capacidade patrimonial privada ou da susceptibilidade de, salvo algumas excepes, os particulares serem titulares de direitos patrimoniais; outra coisa seria erigir em direitos fundamentais todos os tipos de direitos patrimoniais que, com maior ou menor relevncia e mais ou menos duradouramente a lei ordinria tenha institudo ou venha a instituir (44).

Em funo do exposto, podemos concluir que a garantia institucional da propriedade privada compele o legislador a manter vigente um corpo normativo que permita, efectivamente, que a sociedade se reja por normas que, pelo menos, no eliminem a possibilidade abstracta de aquisio e transmisso do direito de propriedade, bem como que no possibilitem a eliminao subjectiva do direito de propriedade sem que exista fundamento de utilidade pblica que a justifique ou em termos que no obriguem ao pagamento de uma justa indemnizao.

13. Por fora do modelo social e econmico proposto pela CRP, anlogo ao proposto em outras ordens jurdicas de matriz ocidental, emergiu a discusso a propsito da manuteno da integridade ou unicidade do conceito constitucional de propriedade privada.

Os subscritores da tese referem que sobreveio, pela evoluo da realidade social, uma superao da concepo monista do instituto da propriedade privada e a necessidade de se aderir a uma concepo pluralista da propriedade, nos termos da qual o legislador pode modelar o contedo da propriedade das vrias categorias de bens, de acordo com a funo que os mesmos desempenham na sociedade (45).

Embora propugnando opinio diversa, afirma Gonalo Capito que, para quem perfilha esta tese, trata-se (...) de abandonar a perspectiva do direito subjectivo de propriedade, tendencialmente abstracto porque indiferente ao bem que tem por objecto e de abraar a perspectiva dos bens que so objecto da propriedade, o que apresenta a vantagem de ser uma abordagem virada para o uso e fruio racional de cada bem, acrescentando ainda que estes autores consideram mesmo como uma exigncia partir dos bens para definir os poderes de que o proprietrio pode usufruir (46).

44 Cfr. Manual..., Volume IV, pp. 527 e 528; perfilhando posies, grosso modo, semelhantes, cfr. Rui Medeiros, Ensaio..., pp. 270 e 271; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituio..., pp. 232 e 233. 45 Cfr. Alves Correia, Manual..., p. 600. 46 Cfr. Expropriao..., p. 51.

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A propsito desta questo, Gomes Canotilho e Vital Moreira pronunciam-se no seguinte sentido: A ampliao e a diversificao do espao do direito de propriedade conduziu a uma espcie de fraccionamento do seu prprio conceito, tornando difcil o agenciamento de um conceito unitrio que abranja todas as suas dimenses. Esse fraccionamento notrio na prpria autonomizao constitucional de um regime prprio da propriedade dos meios de produo. A clara distino constitu