“A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos” : um ... · Força para continuar firme...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-graduação em Literaturas de Língua Portuguesa
“A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”:
um percurso pelas crônicas de Carlos Drummond de
Andrade 1930-1934
Alfredo de Oliveira Lima
Belo Horizonte
2011
Alfredo de Oliveira Lima
“A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”:
um percurso pelas crônicas de Carlos Drummond de
Andrade 1930-1934
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Ivete Lara Camargos Walty
Belo Horizonte
2011
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Lima, Alfredo de Oliveira L732c “A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”: um percurso pelas
crônicas de Carlos Drummond de Andrade 1930-1934/ Alfredo de Oliveira Lima. Belo Horizonte, 2011.
105f. Orientadora: Ivete Lara Camargos Walty Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. 1. Crônicas brasileiras – Crítica e interpretação. 2. Belo Horizonte – 1930-
1934. 3. Modernidade. 4. Andrade, Carlos Drummond, 1902-1987. I. Walty, Ivete Lara Camargos. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 869.0(81)-94
Alfredo de Oliveira Lima
“A cidade ficou lá adiante com seus ruídos e fogos” : um percurso pelas crônicas de Carlos Drummond de An drade
1930-1934
Dissertação defendida publicamente no Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e aprovada pela seguinte Comissão Examinadora:
______________________________________________________ Profª. Drª. Ivete Lara Camargos Walty (Orientadora) - PUC Minas
______________________________________________________ Profª. Drª. Letícia Malard - UFMG
______________________________________________________ Profª. Drª. Luciana Teixeira de Andrade - PUC Minas
Belo Horizonte, 18 de agosto de 2011.
Aos meus heróis, Papai e Mamãe Às mulheres da minha vida, Cecília e Leandra
Aos belo-horizontinos, com carinho.
AGRADECIMENTOS De forma sincera e reverente, agradeço, primeiramente, à minha orientadora, Profª. Drª.
Ivete Lara Camargos Walty que, com respeito e paciência, ensinou-me a arte de analisar o
texto literário. Professora, muito obrigado por iluminar o meu percurso no universo
acadêmico. Com você, aprendi a desbravar as florestas das letras e a “vender” melhor os
meus textos.
Ao Prof. Dr. Milton do Nascimento, que lá na Graduação me disse: “estou lhe aguardando
no Mestrado”. Muito obrigado por ter apoiado esta trajetória. Da rua aos textos, do silêncio à
Força para continuar firme no caminho.
À Profª. Drª. Melânia Silva Aguiar pelas contribuições no parecer do projeto de pesquisa.
À Leandra, esposa e companheira, pela paciência que teve comigo durante a escrita deste
trabalho.
Agradeço aos diretores e coordenadores do Colégio Santa Maria - Juliana Moreira, Sandra
Cristina, Maria Helena, João Bernardes e Joselene Pimentel - por terem permitido e
compreendido a troca de horários.
Agradeço à amiga Lucy Bastos que incentivou outros olhares para a obra de Carlos
Drummond de Andrade.
Agradeço à Valéria Machado, grande amiga, com quem pude trocar muitas ideias no
decorrer desta empreitada. Todos os apontamentos foram importantes para o
enriquecimento do trabalho.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa “Da rua: olhares sobre histórias da literatura brasileira”
que promoveram profícuas discussões, reiterando o meu interesse pela temática da rua.
Muito obrigado pela rica interlocução.
Agradeço aos professores do Programa de Pós-graduação que me despertaram para muitos
caminhos.
Às secretárias Berenice e Vera que sempre nos atenderam com carinho e atenção.
Aos Meninos da Cruz Vermelha que demonstraram agilidade e rapidez na locomoção e
instalação dos recursos audiovisuais.
“ Reconhecer que a cidade que temos e que, para nós, é real, na sua concretude e no seu cotidiano, comporta em si outras cidades que ficaram
no caminho, realizadas ou não, no longo percurso do tempo a que chamamos História.” (PESAVENTO; LEENHARDT)
“No interior da grande cidade de todos está a cidade pequena em que
realmente vivemos.” (SARAMAGO, José)
RESUMO
Planejada para ser uma grande obra da República brasileira, a cidade de Belo
Horizonte nasceu de um audacioso projeto de urbanização e racionalização do
espaço, seguindo modelos urbanos inaugurados pela modernidade. A literatura
registrou configurações da cidade em seu momento de criação no fim do século XIX
e evolução nas décadas iniciais do século seguinte. Exemplo de tais registros são as
narrativas do livro Crônicas 1930-1934, de Carlos Drummond de Andrade, objeto
deste estudo. Pensando nos movimentos sócio-culturais ocorridos na capital mineira
em razão dos processos de modernização, a pesquisa pretende examinar como a
cidade foi representada pelas imagens presentes nas crônicas. Levando-se em
conta a diversidade temática que constitui o corpus, propõe-se um percurso pelos
textos (in)diretamente relacionados ao cotidiano da capital mineira entre os anos de
1930 e 1932. Para tanto, o espaço será tomado como importante operador de
leitura, já que as mudanças trazidas pela modernidade impactaram não só os
espaços físico-geográficos, mas também os político-sociais. Neste estudo, será
considerado, ainda, o papel dos sujeitos textuais e seus lugares de enunciação,
assim como outros recursos textuais utilizados pelo autor, aí incluída a presença de
pseudônimos na assinatura das crônicas.
Palavras-chave : Crônica. Cidade. Literatura. Modernidade. Pseudônimo.
ABSTRACT Planned to be one of the great works of the beginning of the Brazilian republican
period, the city of Belo Horizonte has its origin in an audacious project of urbanization
and rationalization of space according to the urban models introduced by modernity.
Literature registered the configurations of the city at the moment of its birth by the
end of the 19th century as well as its development in the first decades of the 20th
century.This text analyses the chronicles written by Carlos Drummond de Andrade,
published by Minas Gerais newspaper from 1930 to 1934, which are examples of
these literary recordings. It specifically examines how the city was represented by the
images created in the chronicles backed by the social and cultural movements that
took place in Belo Horizonte because of such a process of modernization.
Considering the diversity of themes of the corpus, the proposal is to examine the
chronicles (in) directly related to the day-to-day life of the city between 1930 and
1932. For this analysis, the space will be taken as an important operator of reading.
That’s because of the impacts brought by the modernity changes not only on
geographical spaces, but also on the political and social ones. This work also
examines the role of textual subjects and their places of expression as well as other
textual means used by the author such as pennames to sign the texts.
Key-words: Chronicle. City. Literature. Modernity. Penname
LISTA DE FIGURAS FIGURA 1 Praça Sete de Setembro (1930) ..............................................................56 FIGURA 2 Av. Afonso Pena vista da Praça da Rodoviária (1930) ............................57 FIGURA 3 MINAS GERAIS.......................................................................................72
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................11 2 A CIDADE E SEUS EMARANHADOS CONCEITUAIS.......... ...............................14 2.1 A cidade como sede da modernidade .............. ...............................................18 2.2. Belo Horizonte: de régua e esquadros.......... .................................................21 2.3 Modernismo em/de Belo Horizonte ................ .................................................26 2.4 Crônica: gênero com outros gêneros............. .................................................31 3 SOBRE AUTORES E PSEUDÔNIMOS...................... ...........................................37 3.1 No território de Antônio Crispim............... .......................................................41 3.2 Crônica e romance: diálogos na cidade.......... ................................................44 3.3 Kodack: um cronista na cidade em instantâneos .. ........................................47 3.4 Representações do verde na Avenida Afonso Pena em 1930.......................54 3.5 Antônio Crispim: na íntima relação com o jornal ...........................................68 4 NO CENÁRIO DE BARBA AZUL ......................... .................................................73 4.1 Barba Azul: outro enunciador da vida urbana.... ............................................77 4.2 Isso aqui não é o Rio de Janeiro............... .......................................................80 4.3 Da conversa com as leitoras aos fios da barba.. ............................................84 5 CONCLUSÃO ........................................ ................................................................95 REFERÊNCIAS.......................................................................................................101
11 1 INTRODUÇÃO
Estudar a cidade e refletir sobre ela é, antes de mais nada, um grande
desafio. Trata-se de um espaço que abarca uma multiplicidade de trajetórias, um
complexo demográfico que permite leituras e interpretações diversas. Mais do que
um campo de pesquisa multifacetado, a cidade é tema, objeto e problema. Um
documento vivo com suas memórias, histórias e paradoxos. É, por excelência, o
lugar do homem e, portanto, lugar de contradições. Não só o homem muda a cidade,
mas, inevitavelmente, a cidade muda o homem. Nesse sentido, mais do que um
instigante tema, a cidade é uma espécie de personagem no cenário dos avanços da
humanidade. O advento da modernidade fortalece o espaço urbano, aí
implementando novas relações político-econômicas e sócio-culturais.
A literatura, em especial o gênero crônica, encena tais relações,
configurando-se como rica fonte de observação das implementações e
transformações impostas pela modernidade.
Estudar as configurações de uma cidade-personagem, no caso, Belo
Horizonte, planejada como cidade moderna em fins do século XIX, nas narrativas do
livro Crônicas 1930-1934, de Carlos Drummond de Andrade (1987), é o objetivo
geral desta pesquisa. Assim, três termos se impõem para o desenvolvimento desse
objetivo: modernidade, cidade e crônica, já que, como bem observou Antonio
Candido, a crônica “é filha do jornal e da era da máquina” (CANDIDO, 1993, p.24).
Os elementos presentes na construção da crônica muito dizem do trabalho
daquele que a escreve, uma vez que ele, na condição de observador, pega o miúdo
e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Mais
do que um observador arguto, o cronista se configura como um comentarista dos
diversos acontecimentos ocorridos em uma determinada época, fazendo com que a
sua produção venha a se constituir uma espécie de documento, um registro.
Pensando nas imbricações entre a espécie literária em questão e a cidade moderna,
esta pesquisa tem como proposta uma leitura crítica do percurso do cronista Carlos
Drummond de Andrade pelas ruas de Belo Horizonte, nos anos de 1930 a 1932.
As crônicas de Carlos Drummond de Andrade, escritas no início da década de
1930 - quando o escritor era redator do jornal Minas Gerais - foram publicadas em
1984 pelo Arquivo Público Mineiro, na sua tradicional revista. Esses textos, do
12 caderno “Notas oficiais” e título “Um minuto, apenas”, foram assinados com os
pseudônimos de Antônio Crispim e Barba Azul. Três anos mais tarde, as narrativas
foram reunidas e organizadas no livro Crônicas 1930-1934 em homenagem ao
poeta, que completava 85 anos.
Todas as narrativas analisadas apresentam, de forma direta e/ou indireta,
flashes do cotidiano da capital mineira. São imagens, impressões que compõem o
espaço de transição entre o tradicional e o moderno nos primeiros anos da década
de 1930. Assim, são as seguintes narrativas selecionadas pela pesquisa: “Bom
viver”, “Kodack”, “Avenida ao sol”, “Amigos do verde” e “Os que partem”, de Antônio
Crispim. E, “Programa”, “Uma xícara de chá”, “Resumo”, “Luzes da cidade”, “Receita
de doce”, “O doce incomível” e “Bilhete à oitava mulher”, de Barba Azul.
(ANDRADE, 1987)
No intuito de melhor delimitar o objeto de pesquisa, optou-se por fazer o
levantamento e a análise dos elementos presentes nas crônicas que permitem
classificar esse gênero como eminentemente moderno. Para realizar tal percurso
escolheu-se a figura do flâneur, tipo estudado por Benjamin (1989), tentando-se
estabelecer uma relação entre essa figura e o cronista. É esse personagem que,
por meio das narrativas, convida o leitor a também percorrer as ruas da cidade
planejada. Nesse viés, será analisado o modo como Carlos Drummond de Andrade ,
sob os pseudônimos Antônio Crispim e Barba Azul, lança um olhar sobre as
transformações físicas e sociais da Belo Horizonte daquele contexto.
O estudo dessa figura e seu cenário é objeto do capítulo “A cidade com seus
emaranhados conceituais” em que são apresentadas as considerações sobre a
temática da cidade por meio de estudos de Barros (2005) e Park (1976) sobre o
traço da multiplicidade que perpassa a esfera urbana. É feita, também, uma
abordagem da cidade no cenário da modernidade, subsidiada pelos estudos de
Walter Benjamin (1989), Pesavento (1999), Bolle (2000) e Massey (2008).
Permeando tal reflexão, encontra-se o conceito relacional de espaço, do geógrafo de
Milton Santos (1997).
No mesmo capítulo são apresentados, ainda, os aspectos históricos e
geográficos que caracterizam Belo Horizonte como cidade moderna, ancorados nos
estudos desenvolvidos por Andrade (2004), Ávila (2008) e Cury (2004). Sobre a
formação do Modernismo na capital mineira, bem como as primeiras publicações
que contribuíram para solidificação da tendência em nosso Estado, o trabalho
13 privilegiou os estudos de Bueno (1982) e Cury (1998). No que se refere à crônica na
sua intrínseca relação com a modernidade, foram utilizados os conceitos de
Arrigucci (1987), Candido (1993), Pereira (1994) e Resende (1993).
No Capítulo 3, “Sobre autores e pseudônimos”, discute-se um pouco a
conceituação de autor/pseudônimo e suas configurações nas crônicas de Carlos
Drummond de Andrade. Em seguida, são apresentadas as análises de cada crônica
assinada por Antônio Crispim, em que se procura investigar as contradições da
cidade de Belo Horizonte, levando-se em conta as transformações ocorridas no
referido espaço urbano. Nesse capítulo, busca-se verificar o modo como o cronista
se relaciona com as mudanças da cidade, considerando as cenas enunciativas de
que faz parte. É então que se introduz um diálogo com Avelino Fóscolo, autor do
primeiro romance que teve a nova cidade como cenário/personagem, A capital
(1903/1979). O trabalho procura evidenciar, pois, as contradições e ambiguidades
que perpassaram o cotidiano da cidade moderna, assim como os aspectos
relacionados aos sentimentos de melancolia e tédio, tão peculiares ao homem
moderno.
No capítulo 4, intitulado “No cenário de Barba Azul”, a pesquisa busca
investigar o perfil desse enunciador da vida urbana da Belo Horizonte dos anos
1930, sob o pseudônimo Barba Azul. Atentou-se, aí, para as discussões do
provincianismo de Belo Horizonte em relação a outras cidades modernas,
especialmente o Rio de Janeiro. Uma outra reflexão empreendida diz respeito às
relações entre o cronista e seus respectivos leitores, considerando-se as estratégias
por ele utilizadas no espaço do texto. Procura-se analisar, ainda, a construção do
pseudônimo diante do público feminino, privilegiando-se o aspecto da
intertextualidade com o conto de Charles Perrault (1997).
O Capítulo 5 apresenta as considerações finais da pesquisa, retomando
algumas reflexões anteriormente apresentadas, no intuito de se pensar o percurso
pelas crônicas de Carlos Drummond de Andrade como uma forma de leitura da
cidade de Belo Horizonte dos anos 1930.
14 2 A CIDADE E SEUS EMARANHADOS CONCEITUAIS
Como se viu, estudar as configurações da cidade moderna, no caso, Belo
Horizonte, planejada como tal em fins do século XIX, nas narrativas do livro Crônicas
1930-1934, de Carlos Drummond de Andrade (1987), é o objetivo geral desta
pesquisa. Levando-se em conta a dimensão dessa temática e seus
desdobramentos, torna-se indispensável demarcar o percurso a ser delineado
pelas/nas crônicas, em sua relação com o jornal, a cidade e a modernidade. Faz-se
necessário, pois, em um primeiro momento, tecer algumas considerações sobre o
conceito de cidade. Assim define o termo cidade, Cunha (1986, p.182): “complexo
demográfico formado, social e economicamente, por uma concentração populacional
não agrícola. Do latim: civitas, civitas-ati: cidadania.”
A etimologia da palavra já contém a relação entre geografia e política, própria
da pólis grega e da civitas latina, em que o direito à cidade traduzia o direito de ser
admitido no número de cidadãos, com o conjunto de suas prerrogativas.
Antônio Houaiss (2002) apresenta 10 acepções para a palavra cidade , o que
demonstra uma estimável diversidade de significados. Dentre essas definições,
talvez a que mais se aproxima do escopo desta pesquisa é a que descreve a cidade
como:
aglomeração humana de certa importância, localizada numa área geográfica circunscrita e que tem numerosas casas, próximas entre si, destinadas à moradia e/ou a atividades culturais, mercantis, industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração direta do solo.(HOUAISS, 2002, p.714).
O substantivo é utilizado aí para designar uma dada entidade político-
administrativa urbanizada. Nessa acepção, observa-se a oposição entre cidade e o
meio agrícola, evidenciando o par campo/cidade. A cidade vai diferenciar-se de vilas
e zonas rurais através de vários critérios, os quais incluem população e densidade
populacional. Na cidade, desse ponto de vista, o homem teria desenvolvido um
modo de vida que permitiu o domínio da natureza e, portanto, sua diferenciação dela
e de outros homens, como observa Barros (2005, p.31-32).
Na modernidade concentram-se, nesse espaço citadino, os bens de
reprodução do capital e a força de trabalho; daí a imagem de centro atrativo por
conter em sua configuração os mais diversos setores ligados às necessidades do
15 homem. A cidade é configurada como o lugar de convergência das grandes
tendências e interesses econômicos, políticos e ideológicos. Por esse viés, a cidade
se desenha como um complexo demográfico, não oposta à natureza, mas em
interação com ela, como se lê num artigo de Robert Park (1976):
[...] a cidade é algo mais do que um amontoado de homens individuais e de conveniências sociais, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde, telefones etc.; algo mais também que uma mera constelação de instituições e dispositivos administrativos – tribunais, hospitais, escolas, polícia e funcionários civis de vários tipos. Antes, a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras, a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem; é um produto da natureza, e particularmente da natureza humana. (PARK, 1976, p. 26)
Muda-se, pois, a ideia da relação construída/permitida entre a cidade e a
aglomeração humana que nela habita, ampliando a possibilidade de se definir esse
lugar, sobretudo, como espaço de trocas. Por essas possibilidades é que o vocábulo
traz em seu bojo outras extensões, como cidade-jardim, cidade-estado, cidade-
universitária e cidade-satélite. Dessa forma, não só a imagem da cidade é complexa,
mas sua própria natureza conceitual, o que explicaria a carência de um padrão
mundial que a oriente. A definição varia de país para país, sendo que no Brasil, por
exemplo, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística citado por Amorim,
Andrade e Umbelino (2009):
qualquer comunidade urbana caracterizada como sede de município é considerada uma cidade, independentemente de seu número de habitantes, sendo a parte urbanizada de seus distritos considerados prolongamentos destas cidades.(INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA apud AMORIM; ANDRADE; UMBELINO, 2009).
Encontrada nos dicionários como sinônimo de urbe, do latim urbs, polidez, da
pólis grega, “a cidade representa a educação, a cultura, os bons costumes e a
elegância” (GOFF apud BARROS, 2005, p.32). Por isso mesmo, o adjetivo urbano
liga-se a alguém dotado de urbanidade ; afável, civilizado, cortês. Some-se a isso o
fato de que é nas cidades que circulam novas informações, notícias inéditas e as
novas tendências estéticas e filosóficas. Isso porque a cidade é o ambiente em que
se encontram diversos grupos oriundos de diferentes lugares, portadores de
ideologias e visões de mundo distintas. Na cidade ocorre um “cruzamento de
16 trajetórias” (MASSEY, 2008).
Ressalte-se que é no campo semântico da palavra urbe e no contexto da
modernidade que surgirá o Urbanismo e as concepções que hoje temos de cidade.
Segundo Santos (2006):
o Urbanismo nasceu no final do século XIX, para o estudo, da organização e intervenção no espaço urbano, como prática das transformações necessárias à realidade caótica das condições de habitação e salubridade em que viviam os habitantes de grandes cidades europeias, na época da Revolução Industrial. (SANTOS, 2006, p.17)
Já na origem dessa área do conhecimento, nota-se a necessidade de o
homem interferir nos espaços físico e geográfico, tentando apreender a cidade com
o intuito de estudá-la e buscar soluções para os seus problemas, uma vez que ela
se configura como um lugar em transformação. As intensas e inevitáveis mudanças
ocorridas na imagem urbana corroboram a ideia de “organismo em mutação, uma
composição nova em um cenário novo que espera para ser analisado”, como
descreve Lima (2000, p.9).
Se em determinado momento, a cidade apresentou-se como objeto de análise
do Urbanismo, que só veio consolidar-se como ciência no século XX, ela foi e tem
sido alvo de interesse de outras áreas como a Geografia, a Arquitetura, a Sociologia,
não tendo ficado fora do campo das artes, especialmente da Literatura. Como afirma
Pesavento (1999), “a cidade é objeto de múltiplos discursos e olhares, que não se
hierarquizam, mas que se justapõem, compõem ou se contradizem, sem, por isso,
serem uns mais verdadeiros ou importantes que os outros.” (PESAVENTO, 1999,
p.9). Em outras palavras, a autora, com intermediação de Morin, propõe que a
cidade é transdisciplinar e por isso mesmo construída como um desafio.
O desafio contido nos emaranhados urbanos encontra-se já na construção
deste espaço. Park (1976) pontua que:
A planta do terreno da maioria das cidades americanas é um tabuleiro de xadrez. A unidade de distância é o quarteirão. Essa forma geométrica sugere que a cidade seja uma construção puramente artificial que possivelmente poderia ser reagrupada como uma casa de blocos. A verdade, entretanto, é que a cidade está enraizada nos hábitos e costumes das pessoas que a habitam. A conseqüência é que a cidade possui uma organização moral bem como uma organização física, e estas duas interagem mutuamente de modos característicos para se moldarem e modificarem uma a outra. É a estrutura da cidade que primeiro nos impressiona por sua vastidão e complexidade visíveis. Mas, não obstante, essa estrutura tem suas bases na natureza humana, de que é uma expressão. (PARK, 1976, p.29)
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Mais do que isso, parte da complexidade intrínseca à configuração da cidade,
sobretudo física, se esclarece à medida que tomamos o espaço como operador de
leitura. Milton Santos (1997), ao conceituar esse objeto da Geografia, evidencia o
caráter de multiplicidade que o atravessa, retrato vário da cidade em si:
[...] O espaço deve ser considerado como um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que os preenche e que os anima, ou seja, a sociedade em movimento. (SANTOS, 1997, p. 26)
Por esse prisma, inicialmente, dois caminhos se cruzam na concepção do
fenômeno urbano : a cidade física e as relações que a compõem. E é a partir do
encontro desses pólos que se tem o cenário da cidade como um espaço das
possibilidades, das intensas relações de troca, de movimento e de poder.
Configurando-se assim, esse espaço citadino é também multifacetado, pois se
desenha como impossibilidade de ser concebido na sua totalidade. Nesse sentido, a
definição proposta pelo geógrafo contribui para que a cidade seja compreendida em
constante movimento, com seus arranjos e desarranjos. Uma cidade é, na verdade,
muitas cidades em um intenso movimento relacional.
Pensar a cidade, pois, levando-se em conta a abordagem do espaço
relacional, reforça uma palavra-chave presente no estudo dessa temática:
multiplicidade. Talvez seja esse o melhor vocábulo para descortinar os vários
percursos na e da cidade em seus diferentes contextos.
Nesse sentido, há que se recorrer a uma outra geógrafa, Doreen Massey
(2008), quando define o espaço como:
a esfera da possibilidade da existência, da multiplicidade, no sentido da pluralidade contemporânea, como a esfera na qual distintas trajetórias coexistem; como a esfera, portanto, da coexistência da heterogeneidade. Sem espaço, não há multiplicidade; sem multiplicidade, não há espaço. Multiplicidade e espaço são co-constitutivos. Se espaço é, sem dúvida, o produto de inter-relações, então deve estar baseado na existência da pluralidade (MASSEY, 2008, p.29)
Por isso mesmo é que a cidade, espaço múltiplo por excelência, vem se
transformando em tema instigante para as diversas áreas do conhecimento. A esse
respeito, saliente-se, nos estudos de Barros (2005), a afirmação de que “as cidades
são sempre interrogáveis, portadoras de distintas temporalidades e formas
18 expressivas que, sobrepostas ou simultâneas, remetem a um campo múltiplo de
referencialidades”. (BARROS, 2005, p.36). Estudar a cidade é, então, concebê-la
como portadora de vários sentidos e desafios.
2.1 A cidade como sede da modernidade
Estudando a cidade latino-americana em sua relação com a modernidade,
Gorelik assim define esta última:
A modernidade é tomada aqui, então, como o ethos cultural mais geral da época, como os modos de vida e organização social que vem se generalizando e se institucionalizando sem pausa desde sua origem racional-européia nos séculos XV e XVI [...] (GORELIK, apud WALTY, 2010, p. 59).
Trata-se, pois, de transformações ocorridas desde o Renascimento, passando
pela criação dos estados-nação, diretamente relacionados com o desenvolvimento e
fortalecimento do Capitalismo. Desses aspectos, o último foi o que mais marcou o
advento da modernidade, uma vez que se encontra normalmente relacionado à
Revolução Industrial. A partir das transformações resultantes do desenvolvimento do
Capitalismo, pode-se dizer que a modernidade se caracteriza como um estilo, um
modelo de vida ou organização social surgidos na Europa e que devido a sua forte
influência veio a se tornar um modelo mundial.
Nesse novo cenário europeu, o ciclo natural da vida deixa de ser a referência
para se medir o tempo, que passa, cada vez mais, a ser calculado com exatidão
matemática. A esse respeito, Martha D`Angelo (2006) comenta que com a
modernidade,
o tempo como duração perde sua importância diante do tempo mercadoria, representado de modo exemplar no slogan "tempo é dinheiro". O "perder tempo", sobretudo para os moralistas e protestantes, passa a ser visto como pecado. Com a difusão dos relógios a partir de l850, disseminou-se a idéia de pontualidade como "virtude". A dependência do tempo matemático, no início imposta apenas aos pobres, se estendeu a todas as classes sociais; quem não se ajustava a esse ritmo enfrentava a hostilidade social e a ruína econômica. (D`ANGELO, 2006, p. 244).
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Mudanças como esta puderam ser vistas no cotidiano de cidades como
Londres, Paris e Moscou, que foram diretamente transformadas pela Revolução
Industrial. Esse tipo de cidade se apresenta como um fenômeno novo, dimensionado
na metrópole. A respeito da organização industrial, Park (1976) discorre que:
A cidade antiga era principalmente uma fortaleza, um lugar de refúgio em tempo de guerra. A cidade moderna, pelo contrário, é principalmente uma conveniência de comércio, e deve sua existência à praça do mercado em volta da qual foi erigida. A competição industrial e a divisão do trabalho, que provavelmente mais fizeram pelo desenvolvimento dos poderes latentes da humanidade, somente são possíveis sob a condição da existência de mercados, dinheiro e outros expedientes para facilitar os negócios e o comércio. (PARK, 1976, p.36)
Sob o signo do progresso, altera-se o perfil urbano, em função do conjunto de
experiências de seus habitantes, já que a modernidade tem na cidade a sua sede.
Em outras palavras, é no espaço urbano que as ideias propostas pela modernidade
se horizontalizaram. Segundo Teixeira (2007),
a cultura da modernidade é, eminentemente, urbana e comporta duas dimensões indissociáveis: por um lado, a cidade é o sítio da ação social renovadora, da transformação capitalista do mundo, e por outro lado, a cidade torna-se, ela própria, o tema e o sujeito das manifestações culturais e artísticas. Dessa forma, é na correlação modernidade-cidade que encontramos a passagem da idéia da urbe como local onde as coisas acontecem. A metrópole é a forma mais específica da realização da vida moderna. (TEIXEIRA, 2007, p.46)
Desse modo, “a cidade desenha-se numa complexa tessitura humana, uma
construção se impacta sobre a outra em um processo de acumulação, de
condensação e de concentração econômica, política e cultural”, como propõe
Teixeira (2007, p.47).
Num importante estudo sobre Paris, cidade moderna por excelência, ao
apresentar razões que reforçam o traço da modernidade, Sandra Pesavento (1999)
descreve que:
[...] Ao longo do século XIX, Paris experimentaria toda uma gama de transformações ligadas ao desigual desenvolvimento do capitalismo francês: a cidade decuplicou a sua população [...] diversificou-se o parque reprodutivo, redesenhou-se o espaço urbano , e o regime político alternou-se mais de uma vez entre formas monárquicas e republicanas. Nesse contexto francês em transformação, em que formas arcaicas e novas entrechocavam, e valores do progressismo se entrecruzavam com os da tradição, Paris era, por excelência, o teatro desse processo da modernidade. (PESAVENTO, 1999, p.31, grifo nosso).
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A imagem desse complexo quadro foi objeto de pesquisa do filósofo alemão
Walter Benjamin (1989). Em suas reflexões sobre a modernidade, Benjamin
privilegia a arte, especificamente a literatura. É então que confere uma grande
importância à obra de Baudelaire, por considerá-lo, além de um poeta com grande
sensibilidade para interpretar a vida urbana, uma testemunha dos processos de
modernização que a cidade experimenta, ou, mais do que isso, um personagem de
tais processos.
Na obra Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (1989),
Benjamin elege Paris como sede da modernidade e procura entender sua
complexidade, bem como suas contradições. Em seus estudos, o filósofo revela, por
meio dos pequenos acontecimentos cotidianos, o processo de modernização da vida
parisiense, processo que se disseminou em outras cidades que tiveram Paris como
modelo.
Das muitas mudanças trazidas pela Revolução Industrial, a que mais chamou
a atenção foi o crescimento da população, a enorme aglomeração de pessoas nos
centros urbanos, surgindo, daí, o conceito de “multidão.” Sobre essa imagem
significativa no corpo da cidade, Pesavento (1999), comenta:
Só uma metrópole era capaz de proporcionar o bulício da multidão, o anonimato em meio da massa e a magia de um encontro fortuito, tão condizentes com o que poderia ser chamado o turbilhão de mudanças trazido pelo progresso do século. (PESAVENTO, 1999, p.102)
É com a abordagem desse novo fenômeno que Benjamin vai se deter no
comportamento dos ‘tipos’ que transitam em meio à multidão, a exemplo do
fisiognomista e do flâneur, mostrando como, no referido contexto histórico vai se
configurar uma época de panoramas, em que a vida dos moradores da cidade se
alarga concomitantemente às dimensões de uma paisagem que se desdobra diante
do olhar do transeunte. Essa nova cidade, que fazia um convite à circulação,
atividade privilegiada do flâneur, funcionava como um refúgio para essa figura que
se misturava à grande massa. De acordo com Benjamin, “a multidão é o véu,
através do qual a vida familiar acena para o flâneur como fantasmagoria”. Na
multidão a cidade é hora paisagem, ora ninho acolhedor. (BENJAMIN, 1985, p.39).
Para o filósofo, por se encontrar protegido no meio da multidão, o flanêur
observa e decifra o que vê. Nessa esteira, Ferrara (1993) propõe que “a Paris do
21 século XIX, que encanta Benjamin através de Baudelaire, é a cidade da experiência
urbana assumida e, por isso, torna-se a cidade luz que faz do poeta um fisionomista
da imagem urbana”. (FERRARA, 1993, p. 216).
Na visão benjaminiana, o flâneur é como um “emissário do capitalismo”: seu
refúgio são as galerias e magazines, lugares por excelência onde a mercadoria
circula. Por isso mesmo, palavras como transitar , percorrer e deambular legitimam
o lugar ocupado por essa figura na literatura panorâmica. O flâneur possui, por
definição, uma extraordinária mobilidade, percorrendo a metrópole em busca de
sensações sempre novas (BOLLE, 2000, p.367). À sua frente, a cidade se
decompõe em imagens e somente no percurso é que ele (re) vela o arranjo de
fragmentos que a compõem.
Não se pode deixar de mencionar, no entanto, a faceta sombria da
modernidade referente aos segmentos excluídos das “passagens” envidraçadas e
iluminadas: o trapeiro, a prostituta, os boêmios, encarnados na imagem do próprio
poeta. Por isso mesmo, o conceito de progresso que anima o desenvolvimento da
sociedade moderna traz em si um dos paradoxos da modernidade apontados por
Compagnon (1996).
Desse modo, interessa à presente pesquisa levar em consideração os
aspectos aqui apontados em relação ao flâneur, salientando-se que é justamente
esse seu caminhar, seu constante movimento pelas ruas que interessa ao recorte
deste trabalho. Como personagem da modernidade, o flâneur permite uma rica
leitura do espaço urbano. Como ‘tipo’ criado pela/na cidade, suas atitudes e
características vão coincidir com a multiplicidade de imagens que habitam a cidade.
Assim, é levando-se em conta esse atento caminhar que as crônicas de Carlos
Drummond de Andrade serão percorridas, flagrando-se, aí, as configurações da
cidade de Belo Horizonte e as representações que dela faz o cronista.
2.2. Belo Horizonte: de régua e esquadros
Com o advento da república, o Brasil busca entrar compulsoriamente na
modernidade, como bem observa Sevcenko (2003, p.35). O Rio de Janeiro, como
afirma o autor, torna-se “o maior centro comercial do país. Sede do Banco do Brasil,
22 da maior Bolsa de Valores e da maior parte das grandes casas bancárias nacionais
e estrangeiras”, polarizando “também as finanças nacionais”. E continua:
Acrescente-se ainda a esse quadro o fato de essa cidade constituir o maior centro populacional do país, oferecendo às indústrias que ali se instalaram em maior número nesse momento o mais amplo mercado nacional de consumo e de mão-de-obra. (SEVCENKO, 2003, p.39)
Observa-se, pois, que o chamado progresso, que se iniciara com a vinda da
família real para o Rio de Janeiro, ganha nova dimensão, na busca de se fazer da
cidade um centro cosmopolita, tomando como modelo o comportamento europeu,
visto, na época, como o mais moderno e evoluído. Nesse quadro, dá-se o
movimento chamado “Regeneração” em cujo bojo se instala a campanha higienista
e saneadora, que privilegia a burguesia nascente em detrimento dos nativos, dos
pobres e daqueles ligados ao que se considerava sujo e impuro.
Assim se refere Beatriz Resende (1993) ao início desse período:
Rodrigues Alves assumiu o governo em 1902 com um programa intensivo de obras públicas: saneamento e reforma urbana. Para desenvolvê-las o prefeito Pereira Passos e o diretor do Serviço de Saúde Pública, receberiam poderes de ditadores. (RESENDE, 1993, p.39)
Desse modo, o movimento intitulado “Bota-abaixo”, comentado por vários
cronistas da época, pode ser visto como uma metonímia do processo de
modernização da cidade. Os olhares sobre a transformação são ora de louvação
como os de Bilac, ora críticos como o de Lima Barreto, e mesmo as reações
populares como a da revolta da vacina, não impediram a continuidade das reformas.
As drásticas transformações realizadas no Rio de Janeiro, na tentativa de
acompanhar as tendências modernas, mudaram profundamente os padrões culturais
e sociais. A intenção dos engenheiros e arquitetos da época era transformar a
capital carioca em uma “Paris à beira-mar”, em que a população mais abastada
passou a valorizar o requinte e a sofisticação copiados de fora em detrimento da
realidade local.
Na direção dos ideais modernos, como ocorreu com o Rio de Janeiro, Belo
Horizonte nasceu na prancheta, em um molde que procurou enquadrar todos os
aspectos contemplados nos projetos de urbanização e higienização que
transformaram as cidades em produtos da modernidade. Como grande obra da
23 República brasileira, Belo Horizonte foi construída segundo um modo racionalista de
lidar com o espaço, como se observa na minuciosa declaração do engenheiro Aarão
Reis:
As ruas fiz dar a largura de 20 m, necessária para a conveniente arborização, a livre circulação de veículos, o tráfego dos carris e os trabalhos de colocação e reparação das canalizações subterrâneas. Às avenidas fixei largura de 35 m, suficiente para dar-lhes a beleza e o conforto que deverão, de futuro, proporcionar à população. (BARRETO, apud ANDRADE, 2004, p.76)
Como se viu, a construção de Belo Horizonte, com o objetivo de se tornar a
capital política e administrativa, vai ao encontro do espírito moderno que
predominava na época, cuja tendência era o rompimento com a tradição e a
inauguração de um tempo novo. Como aponta Ávila (2008), Belo Horizonte
representou a:
encomenda feita de um plano de construção da nova capital de Minas Gerais, que correspondesse a um anseio geral do país pelo ingresso na modernidade que, embora sentido e propulsionado já pelo Imperador D. Pedro II, grande entusiasta da viação ferroviária e da telefonia, ligava-se inevitavelmente à mudança de regime trazida pela Proclamação da República em 1898. (ÁVILA, 2008, p. 15)
Do projeto arquitetônico inicial à cidade que conhecemos hoje, Belo Horizonte
passou por várias transformações até alcançar a imagem de cidade moderna. Por
isso mesmo, é interessante pensar como se formou a população da cidade.
Seguindo o traço de assepsia empreendido pela modernidade, os primeiros
moradores do antigo Curral D’el Rei foram varridos para localidades vizinhas. Para
que fosse possível levar adiante o projeto de construção, com o aplainamento das
ruas e o alargamento das avenidas, o destino desses antigos moradores também foi
modificado ao serem empurrados para fora desse espaço que se erigia. Dessa
forma, muitas histórias foram apagadas/deixadas de fora para a construção da
cidade moderna.
A nova cidade passou a receber, então, muitas famílias, antes moradoras de
áreas rurais, que, atraídas pela novidade ou em busca de melhores oportunidades
de trabalho, passaram a formar o novo contingente de habitantes da cidade. Uma
das imagens na história de Belo Horizonte que irá permanecer será justamente a da
cidade como espaço dos estudantes e dos funcionários públicos. Não por acaso, um
24 de seus mais conhecidos bairros tem o nome de Funcionários.
O surgimento das primeiras indústrias e a oferta de atividades ligadas não só
a elas como também ao comércio e ao serviço público propiciou a
adaptação/acomodação dos novos habitantes na cidade. Esse contingente de
pessoas vindas do interior para a capital, atraídas principalmente pelos novos meios
de trabalho, fez com que Belo Horizonte se despontasse como espaço de
negociação e trocas.
Na verdade, tudo isso atendia aos anseios da elite burguesa, como se
percebe no tracejado da cidade, delimitado em seu moderno projeto de construção.
Assim o define Ávila (2008):
O projeto de Belo Horizonte é traçado a partir de um xadrez de grandes avenidas que cortam a cidade transversalmente, ao qual se sobrepõe outro tabuleiro, agora em recorte perpendicular, de ruas. O encontro de avenidas resulta em praças, o todo se encontra inserido em um círculo que configura a chamada Avenida do Contorno. (ÁVILA, 2008, p. 17).
Sobre a Avenida do Contorno, antes denominada Avenida 17 de Dezembro, é
importante sublinhar que se trata, talvez, da maior metonímia de organização do
espaço, uma vez que sugeria que o conflito e a desordem ficassem de fora. Essa
avenida marcou o objetivo de racionalidade do espaço imposto pelo esquadro da
modernidade, pois, abraçando toda a área central, o anel estabelecia os limites entre
as zonas urbana e suburbana, privilegiando a área interna. Assim, sob um modelo
excludente, erigia-se uma cidade moderna, com enormes avenidas e passeios
laterais arborizados de quatro metros de largura, ficando o centro livre para o
trânsito de carros. É o que atesta Cury (2004):
As avenidas longas e largas, inspiradas nos bulevares haussmanianos, contrapunham-se às tortuosas e estreitas ruas ouro-pretanas e irradiavam uma perspectiva sem obstáculos para a visão, ligando os pontos extremos da cidade e controlando a circulação das pessoas. A rua organizava a passagem e a paisagem , o espaço da ordem, contraposta à desordem que caracterizava a rua colonial. Becos e ruelas, ornamentos rococós eram coisas do passado colonial. (CURY, 2004, p.20, grifo nosso)
Luciana Andrade (2004) discorre, ainda, sobre as posturas municipais que
contribuíram para dificultar o acesso da população mais pobre à zona urbana. A
autora menciona a situação das prostitutas que tiveram circulação restrita a áreas
mais distantes do centro, além da regulação da atividade de mendicância, do
25 comércio ambulante e do comportamento nos bondes. Em 1925, foi assinado um
decreto regulando o uso dos jardins públicos, das praças e do Parque Municipal,
atitude que discriminava as pessoas, proibindo-as de frequentar tais lugares. Não
podiam ali frequentar:
Pessoas ébrias, alienadas, descalças, indigentes e as que não estiverem decentemente trajadas, e bem assim as que levarem cães e outros animais em liberdade, e volumes excedentes de 30 centímetros de largura por 40 de comprimento. (COLETÂNEA DE POSTURAS MUNICIPAIS DE BELO HORIZONTE, apud ANDRADE, 2004, p.77)
Na edificação da cidade, cada coisa foi colocada em seu devido lugar. Hoje,
pode-se dizer que “esse sonho” de construção foi fortemente influenciado pela
percepção do espaço-dividido, visto como um produto do próprio projeto da
modernidade. Doreen Massey (2008, p.104) ressalta que “dentro da história da
modernidade se desenvolveu uma compreensão hegemônica particular da natureza
do próprio espaço e da relação entre este e a sociedade”. Sobre isso, a estudiosa
diz que:
o que se desenvolveu dentro do projeto da modernidade, em outras palavras, foi o estabelecimento e a (tentativa de) universalização de uma maneira de imaginar o espaço (e a relação sociedade/espaço) que afirmou o constrangimento material de certas formas de organizar o espaço e a relação entre sociedade e espaço. (MASSEY, 2008, p.103)
Dessa forma, ao confrontar as reflexões de Doreen Massey com as
configurações de Belo Horizonte, visualiza-se o signo que orientou o projeto
disciplinador da esfera urbana, uma vez que a modernidade impôs “uma
representação do espaço, uma forma particular de ordenar e organizar o espaço que
se recusava (se recusa) a reconhecer suas multiplicidades, suas fraturas e seu
dinamismo.” (MASSEY, 2008, p.103, grifo nosso). Frise-se que a abordagem da
pesquisadora legitima a ideia de que a cidade é sinônimo de multiplicidade, a
mistura de todas as histórias e não o apagamento de umas para a prevalência de
outras, como se percebe no projeto de Belo Horizonte.
26 2.3 Modernismo em/de Belo Horizonte
Embora inaugurada em 1897, a construção de Belo Horizonte prolongou-se
até o ano de 1905 e somente por volta de 1915 a cidade pôde proporcionar a seus
habitantes condições para o florescimento de uma vida social e intelectual típicas do
meio urbano. Porém, os sérios problemas de energia e a Primeira Guerra Mundial
acabaram por causar crise e recessão. É o que se lê em nota de revista cultural e
literária da época:
Belo Horizonte, oprimida também pela terrível crise financeira que presentemente aflige toda a Nação, debate-se do mesmo modo com outra crise: a crise social. O nosso mundo elegante acha-se desligado e não tem um ponto de reunião. As famílias não se visitam e vivem recolhidas entre as quatro paredes do lar. (ANDRADE, 2004, p.85)
A partir de 1920, no entanto, Belo Horizonte experimentou grande
crescimento e progresso, segundo os parâmetros da época. De acordo com censo
realizado naquele ano, como mostra Luciana Andrade (2004), a indústria adquiriu
certa expressão, o que fez com que a economia sofresse uma visível alteração.
Entre 1920 e 1930, cresce também a população e ampliam-se os meios de
comunicação, prenunciando o surgimento de uma grande metrópole.
Diante da formação populacional e de um considerável atraso em relação às
cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, Belo Horizonte demorou certo tempo para
dar visibilidade à sua produção literária. Isso só foi possível, dentre outros fatores,
com o investimento na imprensa da capital. Por isso mesmo, grande parte dos
escritores desse contexto, em que a literatura modernista demonstrava os seus
primeiros indícios, esteve ligada aos jornais da época.
Considerando o âmbito cultural da cidade, que havia recebido, já em sua
fundação, intelectuais da antiga capital, faz-se necessário atribuir uma atenção
maior à década de vinte. Nesse período, Belo Horizonte assiste a uma considerável
efervescência artística: a formação do grupo de escritores modernistas, a presença
da Caravana Paulista (1924) e as publicações de A Revista (1925) e Leite Criôlo
(1929). Importa, aqui, destacar A Revista, já que nela figura Carlos Drummond de
Andrade como um dos diretores e autor de diversos artigos ao longo de seus
números. Ressalte-se que Carlos Drummond de Andrade apresenta, nessa
27 publicação, algumas marcas que retoma na década seguinte, dentre elas a
utilização do pseudônimo Antônio Crispim. Não se pode deixar de mencionar o fato
de esse autor ter se tornado um dos maiores expoentes do Modernismo no Estado
de Minas Gerais.
Por razões óbvias daquele momento histórico, como a ausência de notícias a
respeito da Semana de Arte Moderna - maior evento do Modernismo - as ideias
difundidas em São Paulo chegaram com certo atraso à capital mineira, permitindo
afirmar que a influência desse polêmico acontecimento não foi imediata, como se
pode comprovar pelos depoimentos do próprio Carlos Drummond de Andrade citado
por Cury (1998) e de Abgar Renault citado por Andrade (2004):
Tanto quanto posso lembrar-me, o pequeno grupo de rapazes mineiros “dados às letras” não tomou conhecimento. Explica-se: só por acaso líamos jornais paulistas, e os do Rio não deram maior importância ao fato, se é que deram alguma. (ANDRADE apud CURY, 1998, p.76)
Da Semana de Arte Moderna propriamente dita nada me resta na memória. Nem creio que esse acontecimento tivesse tido, desde logo, repercussão importante em Belo Horizonte, parecendo-me que o fato, sem embargo da sua significação, não ultrapassou os limites da leitura dos jornais de São Paulo, os quais não tinham, na época, muitos leitores aqui. (RENAULT, apud ANDRADE, 2004, p.90)
Nas palavras de Pedro Nava, “uma das coisas mais importantes para a vida
do nosso grupo foi a visita, logo depois da Semana Santa de 1924, da caravana
paulista” (NAVA, apud ANDRADE, 2004, p.90). Segundo Carlos Drummond de
Andrade, “desse encontro com os modernistas de São Paulo, o nosso modernismo,
até então quase solitário, tirou seiva para se encorpar.” (ANDRADE, apud
ANDRADE, 2004, p.90). Por isso mesmo, também Cury acentua que “a Semana dos
mineiros de Belo Horizonte ocorreria com a vinda dos modernistas de São Paulo a
Minas” (CURY, 1998, p.79).
A caravana, composta por Blaise Cendrars, Godofredo Silva Telles, Tarsila do
Amaral, Mário de Andrade, Olívia Guedes Penteado, Oswald de Andrade e seu filho
Nonê, consistiu numa viagem em que os responsáveis pelo grupo paulista,
“brincando de viajantes”, resolveram apresentar o país, ou parte dele, ao poeta
suíço-francês Cendrars. Assim, visitaram o Rio, as cidades históricas mineiras e
Belo Horizonte. É interessante salientar que esse percurso empreendido pelo grupo
teve importância não só para os escritores que residiam na capital mineira, mas para
28 os participantes da Semana, pois representou o encontro desse último grupo com a
tradição, em especial a arte nas cidades históricas. A esse respeito, diz Silviano
Santiago citado por Cury (1998):
Aqueles poetas estavam todos imbuídos pelos princípios futuristas, tinham confiança na civilização da máquina e do progresso, e de repente viajam em busca do Brasil colonial. Deparam com o passado histórico nacional e com - o que, mais importante para nós - com o primitivo enquanto manifestação do barroco setecentista mineiro. (SANTIAGO, apud CURY, 1998, p.79)
Das ricas contribuições resultantes desse encontro, é imprescindível
mencionar o início da troca de correspondências entre paulistas e mineiros,
sobretudo Mário de Andrade e Drummond, o que foi de enorme importância para a
solidificação e desenvolvimento do Modernismo em Minas Gerais. Essa troca de
ideias entre o maior líder do Modernismo paulista e um dos mais importantes de
Minas, é confirmada pelo próprio Carlos Drummond de Andrade citado por Cury
(1998) em depoimento a Folha de S. Paulo, sessenta anos mais tarde:
Eu, que já tinha tendência para essas coisas, já lia e tinha noção do que fosse o movimento modernista, fiquei completamente conquistado e comecei a me corresponder com Mário. Essa correspondência durou de 1924 até 45. Foi uma coisa deslumbrante na minha vida. Mário não era apenas um orientador literário, um crítico: era um amigo, um companheiro, uma pessoa que se interessava pela minha vida. (ANDRADE, apud CURY, 1998, p. 80-1)
A influência dos paulistas integrantes da caravana, como a de Oswald de
Andrade sobre os escritores mineiros, fortaleceu e inspirou a criação de A Revista,
lançada um ano após a visita deles ao Estado, em 1925.
Segundo Luciana Andrade (2004), “o modernismo belo-horizontino está
intimamente ligado a três instituições: o Diário de Minas, a livraria Francisco Alves e
a Confeitaria Estrela” (ANDRADE, 2004, p.91). A primeira se torna a principal delas
por dois motivos: por ter se configurado como um “ambiente de ensaio” que permitiu
aos aprendizes de jornalistas exercitarem as artes modernas na diversificada
“Coluna Social”, e pelo fato de A Revista ter sido editada na tipografia desse
periódico. Já a livraria Francisco Alves colocava o grupo em contato com os
lançamentos da literatura estrangeira, em parte propícia do dia, como diz o próprio
Carlos Drummond de Andrade: “À tarde passavam pela livraria Francisco Alves, na
Rua da Bahia, assistindo à abertura dos caixotes de novidades francesas [...], que
29 iam de Anatole France e Romain Rolland, passando por Gourmont.” (ANDRADE,
apud ANDRADE, 2004, p.92) A terceira e última instituição, também conhecida
como Café Estrela, era o local onde os integrantes se reuniam para discutir, entre
vários assuntos, a literatura: “Ficávamos ali mostrando desenhos, poemas,
rabiscos”, descreve Carlos Drummond de Andrade. (ANDRADE apud ANDRADE,
2004, p.93). A esses espaços, é pertinente somar e relembrar a importância da Rua
da Bahia, ponto de difusão das ideias modernistas, resumindo metonimicamente a
cidade como o lugar privilegiado de intelectuais, escritores, poetas. Nesse espaço
concentravam-se os cafés, as livrarias, o teatro municipal, tendo sido, por isso
mesmo, palco de atividades políticas, culturais e intelectuais.
A esse respeito Letícia Malard (2005) lembra as palavras de Paulo Mendes
Campos sobre a Rua da Bahia:
É por essa ladeira da nova capital que sobe e desce uma geração de futuros homens das letras, do Direito e da política. A Rua da Bahia era tudo: a livraria, o teatro, o cinema, o café, a confeitaria, o jornal, a mulher que passa. (CAMPOS, apud MALARD, 2005, p.64)
Além desse aspecto, fisicamente a rua da Bahia teve construção estratégica:
era chamada ‘porta de entrada’, porque ligava, em linha reta, a antiga estação
rodoviária e o Palácio da Liberdade, sede do governo mineiro.
O grupo de escritores modernistas mineiros era composto por Pedro Nava,
Martins de Almeida, Mário Casassanta, João Alphonsus, Emílio Moura, Cyro dos
Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Austen Amaro e Alberto Campos. Com
exceção do penúltimo, todos vieram do interior do Estado. Desse elenco, sobre a
mais importante publicação modernista, A Revista, pontifica Pedro Nava: “Sua
aparição, sem dúvida, deve-se à influência da visita da caravana e das sugestões de
Mário de Andrade nas correspondências com Drummond.” (NAVA, apud
ANDRADE,2004, p.93).
A Revista teve apenas três números lançados, sendo o primeiro em julho de
1925, o segundo em agosto do mesmo ano e o terceiro, em janeiro de 1926. Curto
espaço de tempo, mas que deu destaque ao modernismo produzido em nossas
terras, potencializando-o diante do cenário nacional. Ela contou com a colaboração
de grandes nomes da literatura brasileira como Manuel Bandeira, Ronald de
Carvalho, Guilherme de Almeida e Carlos Góes.
30
A publicação era composta essencialmente de três seções. A primeira
compunha-se de poemas, crônicas, trechos de romances e artigos de cunho crítico.
A segunda, “Os livros e as ideias”, dedicava-se às resenhas de obras nacionais e
estrangeiras, geralmente sob o viés modernista. E a última, intitulada “Marginalia”,
trazia pequenas crônicas, informações sobre a cidade e acontecimentos gerais.
Quanto ao conteúdo das publicações, os escritores/intelectuais dedicaram grande
espaço à discussão do nacionalismo literário, com artigos que oscilaram entre a
aceitação e a repulsa do estrangeiro, tendências por vezes presentes num mesmo
texto.
Bueno (1982), em sua profícua pesquisa sobre o modernismo da década de
vinte, ressalta essa oscilação, pontuando que “A Revista representa um momento
privilegiado na história literária de Minas Gerais porque contém em seu espaço
textual dois tipos de retórica: a passadista e a modernista” (BUENO, 1982, p.11)
Referindo-se ao contexto histórico, prossegue:
Através dessa publicação, podemos apreender precisamente o silencioso combate entre dois modos de linguagem correspondentes a duas circunstâncias históricas da década: a dominação das oligarquias rurais e ascensão política das classes médias urbanas. (BUENO, 1982, p.11)
A fim de exemplificar as retóricas, estudadas por Bueno, que se cruzavam
nessa mesma revista, vale a pena reproduzir dois trechos. O primeiro foi retirado do
texto “Momento brasileiro”, de Magalhães Drummond:
Sim, que se há uma incapacidade demonstrada, não é a do brasileiro para constituir uma nacionalidade e, assim, durar na sua terra: é, sim, a incapacidade desses pseudo-sociólogos para sentirem o profundo e profuso, intenso e extenso, formidável e esplendido estuar de vitalidade que, precisamente agora, aí está, por toda a vastidão da terra brasileira, pompeiando em toda a sua seiva e em todo o seu viço, em poderosas e irreprimíveis manifestações criadoras. Ao velho e estafado pregão do irremediável da nossa falência como povo, ao estafado e rangido refrão que proclamava ser o brasileiro indigno da sua terra, vai-se substituindo nos espíritos a certeza de que, se aqui a terra é boa, melhor, muito melhor ainda do que a terra é o homem. (DRUMMOND apud BUENO, 1982, p. 54)
Para Bueno, esse excerto “exemplifica fartamente uma retórica passadista
ortodoxa, cuja função é levar o leitor a aderir a uma postura ufanista diante da
realidade nacional. O texto parece ter sido escrito para a tribuna ou o púlpito [...]”
(BUENO, 1982, p.54).
31
No outro exemplo, depara-se com a introdução de “Poezia e Relijião1”,
assinado por Carlos Drummond de Andrade. Diga-se de passagem, que foi dessa
forma que ele assinou os textos de A Revista:
O espirito relíjiozo vai readquirindo os seus direitos no campo da poezia. Esta afirmação talvez provoque protestos, mas estou certo que também encontrará apoiados (Muito bem! Muito bem!). Não é difícil prová-la. Provo. Não tenho sobre o assunto nenhum ponto de vista sectário. Isto é o essencial. Constato apenas. Confesso que a relijião não faz parte de minhas preocupaçõis abituais. Ainda não cheguei à idade de crer pela segunda e última vez, isto é, definitivamente. Os moços não têm tempo de ser relijíozos; poderão sentir no máximo presentimentos relijiozos. Sua missão natural é destruir os mitos da infância, para reconstruilos mais tarde, na idade madura. Na idade madura o homem regressa à relijião. [...] (ANDRADE, 1925, p.27)
Observa-se, já no título, o aspecto ortográfico que, associado ao conteúdo do
texto, poderia ser chamado de uma escrita escandalosa, dada a época em que foi
publicado. A esse “novo modo de dizer humorístico”, Bueno atribuiu o emprego da
‘retórica modernista de renovação’. Além dessas retóricas, o autor investigou a
‘passadista de transição’ e a ‘modernista de contestação’, exemplificando a última
com a análise da comédia em três atos “Faze de tua dor um poema”, assinada por
Antônio Crispim, pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade, já aqui referido.
Delineava-se assim, em linhas gerais, o contrastante espaço textual de A Revista.
Depois de escrever para os três números deste suplemento modernista,
Carlos Drummond de Andrade assumiu em 1926 o cargo de redator e depois de
redator chefe do Diário de Minas. Em 1929 trocou esse periódico pelo Minas Gerais,
órgão oficial do Estado. Ressalte-se que as crônicas que compõem o corpus deste
trabalho situam-se nesse período da carreira do escritor, momento esse de
solidificação do Modernismo na cidade de Belo Horizonte.
2.4 Crônica: gênero com outros gêneros
Em função do corpus e da linha de trabalho aqui delineados, importa
empreender uma abordagem do gênero crônica, levando em consideração os
1 Diferente do primeiro trecho de A Revista, a reprodução foi fiel, assim como aparece na referida edição, justificando a proposta de seu autor.
32 aspectos conceituais relacionados a tópicos fundamentais desta pesquisa, o que
significa integrar a equação modernidade/cidade/jornal/crônica. Por isso mesmo, faz-
se necessário, neste primeiro momento, uma reflexão mais detalhada sobre a
crônica.
Segundo Cunha (1986, p. 230, grifo nosso), “crônica é uma narração
histórica, feita por ordem cronológica; seção ou coluna de jornal ou de revista, que
trata de assuntos da atualidade.”. Nota-se, nessas duas acepções, que se trata de
um gênero vinculado ao traço histórico, elucidado na etimologia da palavra chronos,
tempo em grego. Nesse sentido, pode-se dizer que a origem da crônica está ligada
ao aspecto temporal de cada organização social.
Embora não seja objetivo específico deste trabalho apresentar um painel
histórico da crônica, é interessante ressaltar que esse gênero passou por algumas
transformações até chegar ao que conhecemos dele hoje. É relevante observar,
também, que essas sucessivas mudanças - no formato, na recepção e na
transposição para o livro - dificultaram uma conceituação mais precisa do gênero.
Desse modo, a definição de crônica vai depender de uma série de fatores, sobretudo
se se pensar em suas primeiras acepções desde a Idade Média, contexto em que
“os cronistas tinham como tarefa registrar pela escrita o que a memória dos tempos
guardava e organizar em narrativa o que os registros esparsos documentavam”
(RESENDE, 1993, p.57). Dessa época até o período denominado modernidade, o
gênero assumiu configurações várias.
Considerando a linha de estudo proposta, a pesquisa irá privilegiar a
investigação do referido gênero no cenário da modernidade, sobretudo com o
advento do Romantismo, cujo contexto nos revela uma imagem da crônica
indissociavelmente ligada à imprensa. Nesse quadro histórico, o jornal é visto como
um espaço de confluência de gêneros textuais. Dos diversos textos que se cruzam
nesse suporte, estão a crônica e o romance.
A íntima relação crônica/romance no espaço do jornal do século XIX deu-se
em razão do tratamento conferido aos textos publicados no rodapé dos periódicos: o
folhetim. Aí eram publicados faits-divers, pequenos contos, anedotas, críticas de arte
em geral e crônicas. O folhetim alcançou todo o seu sucesso quando se descobriu
que nele podia ser inserida uma narrativa ficcional como “romances em fatias”, daí a
denominação romance-folhetim (RESENDE, 1993), coroando, assim, o objetivo
principal desse gênero, criado para tornar os jornais mais acessíveis ao público,
33 como afirma Pereira (1994):
A prática do folhetim nasce de um planejamento jornalístico, cujo objetivo é aumentar o número de leitores dos periódicos. Nessa fase, o folhetim nasce como mercadoria; dá aos jornais o primeiro caráter de “literatura de massa” e a possibilidade de dessacralização da leitura. (PEREIRA, 1994, p.32)
Embora a crônica e o romance-folhetim tenham habitado o mesmo espaço no
jornal, sabe-se que a primeira marcou uma evolução estético-semântica, através de
diversos recursos que o cronista passou a incorporar em seu texto. A crônica, no
jornal impresso, vale-se de diferentes discursos: o estético, o poético, o
cinematográfico, o jornalístico. Tudo isso amplia as relações do gênero com o
público leitor e nos permite afirmar que o cronista vai se “realizar esteticamente no
espaço do jornal”, diferentemente do que ocorre no romance-folhetim, visto como
texto fragmentado, inacabado, cuja realização estética só se daria quando publicado
em livro, na feitura mesma do romance, segundo os moldes editorais. Mesmo
assim, a verdade é que crônica e folhetim trilharam o mesmo caminho dentro do
espaço jornalesco. A esse respeito, Resende (1993) destaca que:
O folhetim se torna entre nós parte fundamental do jornal conforme lição do moderno jornalismo francês. A verdade é que o folhetim, aberto a tudo, se tornara espaço de criação e experimentação, revelando textos de crônicas em suas múltiplas possibilidades como gênero cultivado pelos mais curiosos escritores do Império, como França Júnior e Martins Penna. (RESENDE, 1993, p.67)
De qualquer modo, é preciso ressaltar que a crônica acabou por ganhar força
e autonomia, tendo sido um dos gêneros mais exercitados em nossa literatura no
contexto da modernidade. Voltando, pois, à equação aqui proposta -
modernidade/cidade/jornal/crônica - é preciso retomar a análise empreendida por
Beatriz Resende quando observa que o ressurgimento da crônica, no final do século
XVIII, coincidiu com o momento em que os bens culturais tornaram-se mercadoria, o
que nos leva a estabelecer uma íntima relação da crônica com o jornal e a cidade.
Não é à toa que a estudiosa identifica a crônica como sendo uma: "representação
literária do fragmentário, do ambíguo, do efêmero; como espécie que ao utilizar-se
de sua própria maneira de seralegórica apresenta o presente - que ao ser narrado já
é passado - como ruína". (RESENDE, 1993, p.60)
Esse tratamento conferido à crônica é de fundamental importância para a
34 compreensão da ambiguidade que perpassa os textos que serão analisados nesta
pesquisa. Por meio dessas narrativas, nota-se o aspecto fragmentário da realidade
citadina: de um lado, a intensa busca pelos avanços da industrialização, o sonho de
transitar, por exemplo, num espaço feérico planejado pela racionalidade moderna;
de outro, o registro da perda de alguns costumes que foram consolidados nas
trajetórias empreendidas nesse espaço, numa espécie de resgate da memória. Em
outras palavras, a crônica capta a fusão do antigo com o novo, as imagens do
avanço e do atraso, explicitando o espírito da efemeridade que atravessa esse
momento histórico. Tais aspectos convergem para as sucessivas lacunas vistas e
sentidas pelo homem da cidade ressaltando, assim, as contradições da
modernidade.
Nesse cenário rico e diverso do espaço urbano, “a crônica, justamente pela
sua condição alegórica, fragmentária, que a insere numa tradição de modernidade,
escapa aos esforços classificatórios.” (RESENDE, 1993, p.63). Assim como a
complexa cidade que serve de base para a criação artística, é também a crônica
atravessada por inúmeros elementos do cotidiano, o que dificulta sua precisão
conceitual.
Por isso mesmo, há que se considerar que as alterações ocorridas no
interior/exterior do jornal significaram um redimensionamento nos vários planos dos
gêneros em foco: configuração do folhetim, importância da atividade dos cronistas
em relação aos objetivos do jornal-empresa e as funções desse último diante de um
público cada vez mais heterogêneo. Tais considerações servem para não se perder
de vista o lugar que a crônica ocupou no jornal impresso e sua importante natureza
híbrida de lá para cá.
Tendo em vista a temática desta pesquisa e as configurações do gênero
crônica em suas constantes mudanças, torna-se, pois, relevante averiguar seu papel
na intrínseca relação com o par cidade/modernidade. Nessa perspectiva, o cotidiano
da cidade moderna vai oferecer uma grande variedade/possibilidade de temas ao
cronista, permitindo que o exercício desse gênero venha a se consolidar como um
operador de leitura da modernidade, como já indicado por Resende (1993). Pensada
nesses moldes, a crônica nada mais é que uma narrativa urbana , em diálogo com o
contexto social em que se insere. Para David Arrigucci (1987), os centros urbanos e
sua dinâmica social se tornam o ambiente propício para o desenvolvimento da
atividade dos cronistas que fazem o relato cotidiano. Segundo o autor:
35
A crônica é ela própria um fato moderno , submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato, às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à vida moderna , tal como esta se reproduz nas grandes metrópoles do capitalismo industrial e em seus espaços periféricos. (ARRIGUCCI, 1987, p.53, grifo nosso).
A imagem de operador de leitura da cidade moderna atribuída à crônica pode
ser corroborada com as várias estratégias textuais empregadas pelo cronista. A
crônica, assim como a figura do flâneur, é sem dúvida produto da modernidade,
como pontua Arrigucci (1987):
A crônica é um gênero que se situa bem perto do chão, no cotidiano da cidade moderna, e escolhe a linguagem simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo entre amigos, para tratar as pequenas coisas que formam a vida diária, onde às vezes encontra a mais alta poesia. (ARRIGUCCI, 1987, p.55)
Trata-se, pois, de um dos gêneros que melhor acompanhou a trajetória das
cidades, como lócus por excelência da modernidade, como observa Barros (2005),
ao dizer que:
A cidade da modernidade e o universo urbano passam por radicais transformações que inauguram um novo modo de vida, uma nova subjetividade, novas experiências e sonhos, necessidades e temores. Tudo ambiguamente novo. Tudo em permanente mudança, a alterar não apenas o cenário, mas a própria construção do imaginário. [...] A cidade é a base sociocultural em que se dá o processo tecno-subjetivo-espacial da modernidade. (BARROS, 2005, p. 46)
O tratamento dado à cidade por Barros (2005) permite visualizar a crônica
como parte desse processo, ajustando-se aos vários ritmos da vida urbana e
ganhando, provavelmente, mais autonomia estética.
No que concerne à evolução da crônica nesse espaço da modernidade, vale
recorrer a Antonio Candido (1993) em estudo do gênero, com atenção especial para
a produção de 30, quando pontua que:
a crônica foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, na qual entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma. (CANDIDO, 1993, p. 25)
36
Outro aspecto apontado por Candido, e retomado por muitos estudiosos do
gênero, é o traço de efemeridade da crônica. Trata-se, pois, de um texto que não
tem pretensões de durar, uma vez que é filho do jornal e da era da máquina, onde
tudo acaba tão depressa (CANDIDO, 1993, p. 24). De certa maneira, a relevância
desse traço se assemelha à fugacidade da vida urbana moderna. Assim, tendo sido
originariamente escrita para o jornal, a publicação da crônica no suporte livro
garantiu a ela uma durabilidade maior do que se pensava, como lembra Antonio
Candido.
Com vista no cenário moderno, cabe perguntar, ainda, em que medida o perfil
do cronista se aproxima daquele que substitui o historiador, como estudado por
Walter Benjamin (1987). Isso porque, para o crítico: "O cronista que narra os
acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a
verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a
história". (BENJAMIN, 1987, p.223)
Guardadas as devidas proporções, o cronista urbano pode também ser um
tipo que registra em seu texto “um tempo saturados de agoras’” (BENJAMIN, 1987,
p.229), rompendo com a linearidade da história tradicional e seu conceito totalizante
e uno de progresso.
Pensando nas diversas configurações da crônica em sua relação com a
História e com as histórias, ocorridas no tempo e no espaço, é que se buscará
investigar as imagens da cidade de Belo Horizonte no início dos anos 1930 nas
crônicas de Carlos Drummond de Andrade.
Para isso, será levado em consideração o jogo enunciativo das crônicas
selecionadas, no intuito de observar o papel dos narradores em sua condição de
enunciadores da vida moderna, aí incluindo a construção dos pseudônimos.
37 3 SOBRE AUTORES E PSEUDÔNIMOS
Em razão da forte presença de pseudônimos na obra de Carlos Drummond de
Andrade, é relevante se ater um pouco mais sobre sua natureza conceitual, bem
como sobre as artimanhas do autor.
Há elementos que apontam para a ideia de que os pseudônimos Antônio
Crispim e Barba Azul são um tipo de personagem, o que pode ser ancorado nos
estudos de Foucault (1992), acerca do autor. Segundo este teórico:
[...] um nome de autor não é simplesmente um elemento de um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome, etc.); ele exerce relativamente aos discursos um certo papel: assegura uma função classificativa; um tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, selecioná-los, opô-los a outros textos. [...] o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser, o fato de se poder dizer “isto foi escrito por fulano” ou “tal indivíduo é o autor”, indica que esse discurso não é discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata de um discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. (FOUCAULT, 1992, p.44-45)
Foucault (1992) discute que o nome de autor está atrelado não propriamente
a um indivíduo real e exterior que proferiu um discurso, mas a certos tipos de
discursos com códigos específicos, ou seja, aqueles cujo modo de ser, numa
determinada cultura, torna-os providos de uma atribuição de autoria. Dessa forma,
menos que um nome próprio, o autor é uma função característica do modo de
existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma
sociedade.
Ao tratar assim o nome de um autor, o filósofo propõe a ideia de que essa
categoria é uma função, ou o encontro das duas palavras: função-autor . Nesse
sentido, o autor é também sinalizado e definido pelos próprios textos que, por sua
vez, podem remeter não a um indivíduo singular, mas a uma pluralidade de “eus”
ou a várias posições-sujeitos. Uma é a postura do autor que fala em um prefácio,
outra a do que argumenta no corpo de um livro, outra, ainda, a que analisa a
recepção da obra publicada, exemplifica o teórico.
Diante dessa abordagem, podem-se ver no trabalho de Carlos Drummond de
Andrade essas várias posições-sujeito do autor. Daí o cruzamento das múltiplas
vozes em um único personagem; “as contradições” num mesmo plano discursivo. É
38 o autor, aí, um “foco de expressão”, uma espécie de denominador comum a uma
determinada discursividade. (FOUCAULT, 1992, p.47). Pergunta-se, então, se a
noção proposta por Foucault explica o emprego de tantos disfarces na trajetória
jornalístico-literária de Carlos Drummond de Andrade. No âmbito desta pesquisa, tal
abordagem permite visualizar a forma como o jovem escritor, por meio dos
pseudônimos Antônio Crispim e Barba Azul, exerceu a função-autor na feitura das
crônicas em estudo.
Babo (1993), citando Genette, propõe que o pseudônimo, ao lado de ornimato
e anonimato, é um dos três protocolos que determinam a relação nome-de-autor. O
ornimato se dá quando o texto é assinado com o nome próprio do autor; o mais
óbvio refere-se ao anonimato, quando o texto/livro não é assinado e, finalmente, o
pseudônimo, em que o autor assina com um falso nome, emprestado ou inventado .
O tratamento dado a esse último protocolo condiz com a trajetória de Carlos
Drummond de Andrade, por explicar as razões de esse autor haver empregado um
número considerável de pseudônimos2.
Semelhante ao que ocorreu com vários escritores, o uso de pseudônimos
coincidiu com o início da carreira jornalístico-literária de Carlos Drummond de
Andrade. Exemplo disso foi uma pequena crônica sobre Alexandre de Oliveira,
poeta conterrâneo do autor, publicada em abril de 1920 no Diário de Minas. Carlos
Drummond de Andrade assinou esse texto apenas com a inicial C, como nos
informa Augusto Py. (PY apud CURY, 1998, p. 167).
Assim, com vista nos pseudônimos utilizados ao longo da vida artística de
Carlos Drummond de Andrade, não seria demais propor uma espécie de
pseudonímia, parte da onomástica dedicada ao estudo, à teoria e à etimologia dos
falsos nomes. Mas como tal estudo exigiria um fôlego maior, por hora, a pesquisa
opta por Antônio Crispim e Barba Azul, que surgiram no ambiente do jornalismo3.
2 O poeta utilizou Policarpo Quaresma Neto, Paulo de Freitas, Hugo de Figueiredo, Aluízio Fontes, Leandro Sabóia, Belmiro Borba, José Luís, Manoel Fernandes da Rocha, Ney Miranda; e assinou a inicial Y entre tantos outros recursos de camuflagem. 3 Em entrevista concedida à professora Maria Zilda Cury, em 11 de outubro de 1985, Carlos Drummond de Andrade ao falar do cotidiano no interior do Diário de Minas, expõe que ao lado de João Alphonsus e Cyro dos Anjos brincava muito, inventando pseudônimos. (CURY, 1998).
39
Antônio Crispim é o cronista da tenra cidade, que amanhece ainda. Antes de
assinar seus textos no Minas Gerais, deixou sua marca no Diário de Minas e no
suplemento modernista A Revista. A leitura das narrativas por ele assinadas aponta
para a dimensão histórica e literária da capital mineira. Como um arquiteto ou pintor,
ele ficará responsável pela cidade de Belo Horizonte, desenhando-a com palavras,
dando expressão à sua cara e à daqueles que nela habitam. A cidade escrita,
descrita, delineada por ele ajuda a documentar e construir a história de Belo
Horizonte, como aponta Gomes (1998), mas, ao mesmo tempo insere, nessa
história, elementos que provocam sua releitura. Tem-se, pois, um enunciador da
vida urbana.
Nesse sentido, é melhor deixar que o próprio Carlos Drummond de Andrade
fale de sua assinatura como Crispim:
Antônio Crispim foi, voluntariamente, um pseudônimo banal. Gosto de disfarces assim, que criam uma forma de familiaridade com o leitor. Antônio Crispim é um sujeito igual aos outros, sem pretensões de destacar-se. Acho isso simpático. Eu precisava de um nome qualquer para assinar minhas crônicas no MINAS GERAIS, o diário oficial do Estado, para onde me transferi, deixando o Diário. Levei comigo o pseudônimo que já usava nesse. O jornal oficial, mais grave, permitia menos brincadeiras literárias e o tipo de crônica nele praticado por mim já era uma concessão benévola de um diretor generoso, Abílio Machado, seguido depois por Mário Casassanta, outro intelectual de espírito tolerante. (BARBOSA. apud CURY, 1998, p.194-5.)
Como mencionado acima, o poeta utilizou o pseudônimo ainda no jornal do
Partido Republicano Mineiro antes de entrar para o Minas Gerais, o que ocorreu em
1929. Segundo Cury (1998), o disfarce permitia uma maior abrangência da ação
intelectual num meio que cumpria modernizar, atualizar. Antônio Crispim, nas
palavras da pesquisadora, é uma das faces do escritor modernista, personagem de
si mesmo, burlando com humor a identificação possível feita pelo leitor (CURY,
1998, p.195).
A presente afirmação faz com que seja repensada a fala do escritor no trecho
acima. Seria, de fato, um pseudônimo banal? Até que ponto os disfarces de sua
atuação foram captados pelo leitor de sua época? Em que medida o jogo
enunciativo das crônicas permite a noção de familiaridade com o leitor? Antônio
Crispim seria mesmo um nome qualquer? Valeria a pena vagar um pouco sobre
esse jogo.
Diga-se de passagem que há uma boa dose de modéstia na fala do escritor,
40 pois a performance desse pseudônimo coloca o leitor num terreno movediço;
portanto, não se pode concebê-lo com tanta simplicidade, hoje, a começar pelo
nome. A esse respeito, Cury (1998) escreve:
A instância do nome - como, de resto, qualquer parte do discurso - não se apresenta nunca como aleatória, como neutra. Ela se estrutura como parte do discurso, quer por afirmação, quer por negação, indicando traçados, revelando avessos. Assim, os nomes travam diálogo no interior do discurso em que se inserem, tanto em termos do texto tomado no seu sentido específico, como nos contextos da obra, ou da participação intelectual mais ampla de determinado autor ou grupo. (CURY, 1998, p.195-6)
Para a autora, por se tratar de um nome bastante comum, Antônio guarda em
si os sentidos de oposição, de vanguardeiro, de chefe principal. Já Crispim tem
conotação afetivo-familiar que aproxima o leitor, que o “seduz” como a um igual; por
outro lado aponta para a ideia de crispação, de causar espasmo, aspereza no
ambiente em que atuava, assinalou Cury (1998). Nesse sentido, a fusão desses
nomes delineia as artimanhas do personagem.
Na obra Beira-Mar (1978), Pedro Nava escreve que Carlos Drummond de
Andrade, líder do grupo modernista mineiro, lia furiosamente. E desordenadamente.
Tudo servia, como conta Emílio Moura: Anatole, Pascal, Bergson, Quental,
Rimbaud, Ibsen, Materlink. Nava acrescenta a essa fase de efervescência do
Modernismo, a leitura de Wilde por Carlos Drummond de Andrade. Recorrendo a
esse perfil leitor do poeta pode-se, de certa maneira, ampliar o quadro de
abordagens dos pseudônimos. Nesse sentido, Antônio Crispim é concebido como
fruto das leituras literárias do seu jovem criador e se configura então como um
personagem ou a combinação de outros papéis.
Na esteira de personagens teatrais, tem-se, também um lugar ocupado pelo
segundo nome do pseudônimo. De acordo com Barbosa citado por Moura (2007)
(1985), Crispim é um personagem da commedia dell’arte e da antiga comédia
francesa, que representava o criado irrequieto, pretensioso, velhaco e bajulador.
Vestia-se geralmente de negro, e usava espadim e botas (Barbosa, apud MOURA,
2007, p. 93). Dessas características, as que melhor vestem Antônio Crispim são as
de irrequieto e velhaco, aspectos que vão caracterizar, de um modo geral, o escritor
no cenário cultural da capital mineira das décadas de 20 e 30.
Mesmo correndo o risco de cometer um equívoco sobre a pseudonímia
drummondiana, é possível que Antônio Crispim seja o personagem que mais se
41 aproximou do seu criador, em virtude de sua elaboração. Carlos Drummond de
Andrade realizou, através desse pseudônimo, um “jogo imbricado entre disfarce e
personagem” compondo assim suas crônicas, pois há nessas narrativas
referências/dados que permeiam os textos e apontam para o próprio Carlos
Drummond de Andrade, como afirma Moura (2007, p. 94). Exemplo disso são os
traços de erudição livresca, o conhecimento da língua/literatura francesa, referência
ao crítico e pintor André Lhote, entre outros. Moura (2007) assinala ainda que:
Antônio Crispim, enquanto personagem confere ao cronista possibilidades de visão dos acontecimentos circunstanciais, retratando o cotidiano mineiro através do flerte, do footing, do chá dançante, do discurso, do concurso de misses, do clube de sociedade e do bonde operário, expressando-se em forma de tripé ao emitir opiniões do eu escritor (ele próprio), do cronista grave ou ainda mundano. (MOURA, 2007, p.94).
Carlos Drummond de Andrade valeu-se, então, da máscara e suas
possibilidades. E essa foi talvez a mais importante delas no cenário do jornalismo
mineiro. Numa espécie de brincadeira das brincadeiras, o poeta assinou A.C na
crônica de 23/03/1930, intitulada “Do frio que chegou”, sua primeira publicação no
Minas Gerais. Ao assinar A.C, as iniciais do pseudônimo Antônio Crispim, o poeta
coloca o leitor diante de uma dupla camuflagem, como comentou Cury (1998). Tal
atitude é semelhante à do escritor que também assinou as iniciais do seu nome ou
parte dele, C.D e C.D.A, em artigos, crônicas, poemas e tantos gêneros do espaço
jornal.
3.1 No território de Antônio Crispim
As crônicas escolhidas para análise nesta pesquisa foram escritas por Carlos
Drummond de Andrade na época em que o escritor atuava como redator do Minas
Gerais, jornal do órgão oficial de imprensa do Estado. No entanto, a apresentação
das análises respeitará a ordem em que as narrativas aparecem no livro Crônicas
1930-1934, coletânea de narrativas realizada por Hélio Gravatá. Ressalte-se que o
pesquisador organizou essas crônicas para a tradicional Revista do Arquivo Público
Mineiro, em 1984. Três anos mais tarde, tais textos saíram da revista para o livro em
42 estudo, que tinha como objetivo homenagear o poeta que completaria 85 anos. Na
apresentação da obra, consta que Carlos Drummond de Andrade, ao tomar
conhecimento do trabalho realizado por Gravatá, escreveu ao pesquisador:
O Crispim ficou cheio de si, diante de trabalho tão esmerado... E até se emocionou um pouco, diante dos títulos dessas velhas crônicas, trazidas de uma longa viagem no tempo... Tudo ficou inédito em livro, para a maior tranquilidade dos leitores - e para a surpresa do reencontro que você proporciona ao cronista. (GUTIERREZ; SILVA, 1987, p.9).
Em 1930, Carlos Drummond de Andrade, assinando Antônio Crispim, escreve
“Bom viver”, crônica que apresenta algumas cenas da vida cotidiana da cidade.
Cenas essas tão dignas de nota, segundo o cronista, que poderiam ser lidas como
memórias da cidade: “Se o meu amigo Abílio Barreto consentisse, eu acrescentaria
algumas páginas à sua Memória Histórica de Belo Horizonte.” (ANDRADE, 1987,
p.94). E continua:
[...] A esse lugar chamam de Belo Horizonte pela formosura e largueza de seus horizontes, que, entre lobo e cão, se cobrem de vária tinta matizada; o que, porém, não é apreciado pelos nativos, os quais, a essas horas, se vão em busca dos divertimentos frívolos vulgarmente cognominados de cinematógrafos e “footings”. Constituem tais práticas a maior distração dessa gente, de seu natural mui recatada e pacífica; por forma que não há pelo arraial e nem se permitem outros modos ardis de matar o tempo. (ANDRADE, 1987, p.94)
É interessante ressaltar aí a presença do cinematógrafo , visto como
metonímia da modernidade, no que diz respeito às formas de lazer da nova capital.
Mas, por ser o único atrativo da vida noturna se torna fútil, insuficiente. Ao lado dos
footings, esse tipo de entretenimento corrobora a “monotonia tediosa da vida”, já
descrita no romance A Capital, de Avelino Fóscolo (1979), como se verá adiante.
Pelo viés memorialístico do narrador drummondiano, sobretudo quando se
propõe inserir tais cenas nas páginas de um livro histórico sobre a cidade, a crônica
vai se configurar como um retrato dos hábitos e costumes da Belo Horizonte dos
anos 1930: “dormem os moradores de dez horas da noite às sete da manhã”; “em
raiando a aurora, todos se aprestam para a lida cotidiana, tendo a maioria o cuidado
prévio de se purificar com banho geral ou particular”. (ANDRADE, 1987, p.94).
Nessa perspectiva, mencionando também os meios de transporte, no final da tarde,
comenta que “toda a grei se encaminha de novo para os seus penates, valendo-se
43 para isso, da carruagem chamada “táxi”, ou doutra, mais plebéia, que acode pelo
nome de bonde”. (ANDRADE, 1987, p.94). Aliás, a pasmaceira da vida urbana, é
ampliada com as palavras de Antônio Crispim, ao comentar a ausência de
novidades no cenário urbano: “De trezentos em trezentos sóis, mais ou menos, sofre
semelhante norma de vida grave alteração, que põe de catrâmbias os preconceitos
e usanças estabelecidas dês que homem é homem.” (ANDRADE, 1987, p.94)
Ainda sobre o signo da memória proposto pelo narrador, ao sugerir a inserção
da crônica como página de um livro de registros históricos, é interessante pensar a
aproximação desse cronista com aquele conceituado por Benjamin (1987).
A partir dessa concepção, temos a figura do cronista como sendo aquele que
pode construir as bases para novos olhares da História. Ora, sabendo que Abílio
Barreto foi um historiador, percebe-se uma espécie de espelhamento entre os textos
literário e histórico e, consequentemente, um novo olhar sobre a vida urbana de Belo
Horizonte. Na crônica “Bom Viver”, cujo título, no decorrer da narrativa, vai se
contradizendo, desenha-se uma ironia ao cotidiano da capital. Nessa ótica
benjaminiana, o cronista metaforicamente fissura as memórias do historiador, e, a
partir das fendas por ele abertas, revela outras imagens desse espaço, justamente
aquelas que não entrariam na cronologia linear da cidade. Nas palavras de
Benjamim, ele “explode o continuum da história”.
A História da cidade, na concepção crítica de Antônio Crispim, possibilitaria
entrever outras versões da vida idealizada no espírito da modernidade, já que se
trata de “histórias” de Belo Horizonte. Com base nos estudos de Massey (2008), vale
ressaltar que o cronista participa da construção da cidade como espaço de histórias
várias, todas válidas e não só a oficial, o que confirma que são exatamente essas
histórias juntas que constroem a cidade como espaço da multiplicidade.
Por meio do olhar, das miudezas, dos pequenos e raros acontecimentos do
cotidiano, o cronista apresenta a dissonância da cidade presente nas memórias
históricas. Há que se ressaltar, também, que a desarmonia desse espaço, aos olhos
do enunciador, está no espaço textual da narrativa. É o que se observa, por
exemplo, no emprego do vocabulário para a feitura da crônica: penates, ensancha,
azo, motivo, esculápios, catrâmbias e ludopédio . O uso de tal sofisticação
linguística não é recorrente em outras crônicas do autor, podendo-se inferir que
houve uma espécie de desarranjo vocabular na composição desse texto, bem como
no estilo do pseudônimo para, talvez, atender ao objetivo de entrar ironicamente nas
44 páginas históricas do livro-cidade. Dito de outra forma, o cronista, de modo irônico,
“explodiu” a formalidade, o rebuscamento proposto pelo historiador nas memórias da
cidade e, com os estilhaços linguísticos, demonstrou a possibilidade de vislumbrar o
avesso do cotidiano na capital mineira.
Por isso mesmo, vale perguntar a respeito das cores e luzes da modernidade
no corpo da urbe, presente em outros escritos sobre a capital mineira, antes mesmo
das crônicas em pauta. É este o caso do romance de Avelino Fóscolo, A Capital
(1979), publicado em 1903.
A vida urbana da nova capital, descrita na crônica, é então antecipada na
descrição da construção da cidade:
[...] as avenidas solitárias com raros transeuntes morosos e tristonhos; a Piedade sempre com seu panorama monótono de serro imutável; o canal da grande avenida inacabada, obstruído, já em ruínas no alvorecer da existência e por toda a parte, como um sudário imenso, a luz empalidecida do sol coando-se por entre nuvens, afogando em ondas de melancolia a capital - envelhecida ao nascer, com a pacatez das velhas cidades coloniais. (FÓSCOLO, 1979, p.220)
Ao se confrontar imagens de diferentes épocas, percebe-se que a morbidez
descrita no romance tingiu a cidade de modo expressivo na ausência de alterações
culturais, sintonizando-a com o ritmo pacato, lento: a cidade tédio, como a
caracteriza Carlos Drummond de Andrade, anos mais tarde, na crônica:
Nesta pauta, bailando uma vez cada ano e indo aos cinematógrafos toda santa noite - labutando e digerindo nos intervalos - caminha essa gente do berço para a sepultura como o chamado astro-rei descreve a sua trajetória de leste para oeste. (ANDRADE, 1987, p.94)
3.2 Crônica e romance: diálogos na cidade
Considerando as transformações da cidade diante das exigências impostas
pela modernidade é que se delineia o objetivo deste tópico: investigar as imagens da
cidade de Belo Horizonte, no romance A Capital, de Avelino Fóscolo (1979), em
diálogo com a crônica “Bom viver”, de Carlos Drummond de Andrade, que acabou-
se de analisar.
Nesse cenário histórico de modernização do Brasil em fins do século XIX e
45 início do século XX estão, de um lado, autores em sintonia com as novidades
trazidas da Europa para a cidade moderna, a partir de uma nova abordagem do
espaço urbano, e, de outro, escritores que apresentaram esse lugar planejado como
fruto de profundas contradições. A esse segundo grupo pertencem Carlos
Drummond de Andrade e Avelino Fóscolo, autor de A Capital, o primeiro romance
que, segundo Letícia Malard (1987), teve a cidade de Belo Horizonte como cenário.
A autora acrescenta que esse seja “talvez o único romance brasileiro de época em
que uma cidade é personagem de proa” (MALARD, 1987, p.43).
A narrativa desse romance conta a história dos habitantes do antigo Arraial de
Curral Del Rei, que tiveram suas vidas modificadas pela construção da nova capital.
O enredo gira em torno do casal Cunha e Lená que metaforizam o confronto
antigo/moderno. O marido “era um homem ordeiro, levando tudo a esquadro,
conservador, rotineiro, aborrecendo inovações de toda a espécie como prejudiciais,
vendo no bojo do progresso a destruição do passado e em toda a destruição a
ruína.” (FÓSCOLO, 1979, p.83). A esposa “amava o progresso, o movimento, a vida,
almejando uma Capital ideal para o cérebro de Minas: muito grande, impulsionada à
força potente da arte, da indústria, do comércio, erguendo-se soberana da modesta
aldeia” (FÓSCOLO, 1979, p.85). Esses personagens antitéticos, convivendo num
mesmo lar, contribuem para a construção de um olhar mais crítico diante da Belo
Horizonte que se erigia, já que o enredo da narrativa compreende o ano de
inauguração da nova cidade.
Cunha representa, nesse sentido, o atraso aos olhos do projeto de
modernização da cidade tornando-se, assim, representante do conservadorismo dos
antigos moradores. Esses traços do personagem se tornam mais nítidos à medida
que sua vida vai se esgarçando na própria trama do tecido urbano. Paradoxalmente,
Cunha tinha a ambição de obter grandes lucros com a construção da nova capital,
valendo-se do comércio, que acabou não prosperando tão rápido como imaginado.
A trama narrativa corrobora aquela da vida de Cunha e a da capital, como se
pode ver pelas imagens que a povoam: névoas, nuvens, sombras, temores e
desilusões conduzem-no à cegueira e, consequentemente, à morte. Em
contrapartida, Lená transpunha para a construção da capital visões embasadas nos
romances que tanto lia. “Ai! Se o sonho se realizasse, se a ventura lhe sorrisse
ainda, como bendiria a amada cidade de sua mente romântica!” (FÓSCOLO, 1979,
p.85).
46
A imagem que ela deixa transparecer da cidade é o eco do discurso político
empreendido no projeto de modernização:
O olhar da moça divagava no panorama imenso, como um leque, rendilhado de serras, aberto a seus pés e no horizonte do sol poente, rubro de luz, onde um matiz intraduzível se esbatia em coloração áurea, rósea sanguínea, expirando afinal no acidentado dos montes e no azul virginal do céu. Fitava tudo isso com os olhos muito abertos, mas quase sem ver, tendo no imo, no recesso íntimo do cérebro, fotografada vivamente, como que desenrolando-se no espaço, a cidade de seus sonhos, a Capital feérica que a fantasia castelara. (FÓSCOLO, 1979, p.88)
A esse respeito, Letícia Malard (1987) considera que:
As fantasias adúlteras de Lená, nunca realizadas, correm paralelas às fantasias de enriquecimento rápido e ilícito dos construtores, à sombra e sob as bênçãos do poder político instituído. O romance se arma como um libelo contra a corrupção e a especulação comercial e imobiliária que envolviam um fato histórico, a construção da nova capital. Direta ou indiretamente, os primeiros leitores do romance lá estão retratados, fotografias sem nenhum retoque, dedo da ferida do ego, desreconhecimento em espelho de vidro barato que reflete imagens de narciso cego. Reversão de expectativas. (MALARD, 1987, p.43)
A convivência das mentalidades de Lená e Cunha é, metaforicamente, o
desejo de um novo centro urbano, sob a carga luxuosa e ofuscante da modernidade,
e, também, o apagamento da memória do antigo arraial. O confronto moderno/antigo
vai provocar uma sensação de estranhamento, de vazio e de tédio vivido pelos
personagens e:
revelada pela artificialidade da cidade construída dentro de um traçado que impõe percursos, ordenando, não as ruas e a sociedade, mas também o convívio. Esse sentimento é caracterizado por um desenraizamento, o que nos revela que a cidade não é feita somente de um projeto ou de um traçado de ruas, mas de um emaranhado de existências. (NASCIMENTO, 1999, p.68).
Assim, o narrador, numa espécie de indagação da terra prometida, cria a
cidade da ausência. “[...] Nem um teatro, um circo, uma diversão qualquer...”
(FÓSCOLO, 1979, p.133); “[...] cidade destronada da ressonante fama, sem gosto
literário, sem lampejo da arte para iluminar-lhe os dias tétricos” (FÓSCOLO, 1979,
p.204).
No confronto entre esses dois gêneros, crônica e romance, é possível
vislumbrar a cidade que nasceu sob a égide da modernidade, dos sonhos
47 enterrados no processo de terraplanagem. Um espaço planejado no esquadro e na
régua da “ordem e progresso”; esse mesmo espaço que ordenou a “passagem e a
paisagem”. Belo Horizonte, “do berço de suas esperanças ao túmulo de suas
ilusões” (FÓSCOLO, 1979, p. 284).
3.3 Kodack: um cronista na cidade em instantâneos
Considerando com Certeau (1999, p.204) que o percurso imprime movimento
ao mapa, recriando-o, e considerando que a leitura também constrói percursos, a
pesquisa elegeu para análise o texto “Kodack”, publicado em 23/04/1930. Com isso,
pretende-se refletir em que medida essa crônica é marcada pelo viés do flâneur e
por outros elementos ligados à cidade moderna. Tal texto se apresenta como um
quase-passeio do cronista por alguns pontos da capital mineira, recuperando
imagens de ruas e bairros, num processo revelador das singularidades de cada
ambiente retratado. Dessa forma, a leitura do texto, fazendo cruzar os percursos
autorais e os meus, levará em conta o traçado de algumas ruas, de uma avenida e
de bairros, a fim de compreender como a cidade foi apreendida pelo olhar atento do
cronista.
É relevante pontuar que a palavra rua aparece oito vezes no corpo da
crônica; número que, comparado ao tamanho da narrativa, torna-se digno de
atenção. A ênfase a esse espaço apresenta, de certa forma, a dimensão do
percurso empreendido pelo cronista-flâneur. Ao tecer considerações acerca de
algumas ruas da cidade, o cronista deixa transparecer em todo texto o espaço
urbano com suas singularidades. Cada rua, avenida, possui traços próprios,
flagrados pela experiência urbana do narrador. Daí, talvez, a organização da
narrativa em sete blocos com imagens pertinentes a cada lugar:
Eu conheci a rua da Bahia quando ela era feliz. Era feliz e tinha um ar de importância que irritava as outras ruas da cidade. Um dia, parece que a rua da Bahia teve desgosto qualquer e começou a decair. Hoje, a gente olha para ela com um respeito meio irônico e meio triste. Como quem olha para Ouro Preto. (ANDRADE, 1987 p.54)
48
Há, nesse primeiro bloco, uma íntima relação entre o cronista e o espaço
urbano. Nele ocorre uma espécie de atualização da rua da Bahia, pois aquele que a
percorre lhe atribui um passado/ presente, um antes/agora. Entre as marcas desse
tempo, demonstram-se as características da rua: a felicidade, que ficou para trás, e
o brilho de sua visibilidade que desapareceu diante das outras ruas da cidade. Ora,
esse tratamento evidencia o espaço na condição de um personagem que passou por
algumas mudanças aos olhos do cronista. Este, à medida que a descreve, trata-a de
forma humana, contrastando alegria/tristeza, versões contidas nas palavras
desgosto e decair em contraposição à alegria e à importância da rua.
Some-se a esta abordagem o fato de que a rua da Bahia foi um marco
importantíssimo da capital mineira aos olhos dos escritores da época, principalmente
de Carlos Drummond de Andrade , pois era ali que se formava a intelectualidade
mineira; espaço de encontro dos artistas, literatos e de importantes políticos. Ali
ocorriam até mesmo manifestações políticas, ou seja, todo o tipo de acontecimento
que interessava a um intelectual da estirpe dele. Ao dizer que tal rua era feliz e tinha
um ar de importância, o cronista podia também estar se referindo a isso. A
atualidade da rua, nesse sentido, não era sinônimo de satisfação e alegria dos seus
transeuntes.
É interessante ressaltar, também, a comparação com a cidade de Ouro Preto,
antiga capital de Minas. O “respeito meio irônico e meio triste” aponta para a imagem
de uma rua que, no cenário de transformações da modernidade, estaria virando
peça de museu. Sobre esse momento, Maria Zilda Cury (2004) observa que:
"enquanto Belo Horizonte rapidamente mudava de feição, Ouro Preto, a cidade que
historicamente se lhe contrapunha, deveria manter intacta a memória da nação.
Ouro Preto era o passado; Belo Horizonte, o futuro". (CURY, 2004, p. 35).
Em outra direção, por meio do jogo temporal da rua da Bahia em diálogo com
o contraste entre as duas cidades, o cronista belisca a concepção histórica entre
antigo e moderno, misturando-os. E revela imagens que apontam para os aspectos
ambíguos da modernidade.
Já ao falar da Rua Caetés, percebe-se um tratamento mais acolhedor. “Gosto
da rua Caetés, a rua mais interessante da cidade”. (ANDRADE, 1987, p.54). Eis aí a
rua do comércio e das novidades:
49
[...] Rua de bigodes e gritos joviais, de pequeninos arranha-céus e de laranjas amadurecendo em caixotes. Rua de sedas e vitrolas. Elegante. Popular. Nossa. E depois, é também a rua mais camarada de todas: sempre disposta a fazer uma diferença, para você ficar freguês [...] (ANDRADE, 1987, p.54)
Nota-se aí uma espécie de culto ao espaço das cores que se desenhava aos
olhos do cronista. Tendo em vista que nesse período instalaram-se na rua dos
Caetés os comerciantes de origem árabe, síria e libanesa que vendiam produtos de
armarinho, tecidos e enxovais, pode-se afirmar que o cronista construiu um quadro
vivo do referido ambiente. Diferentemente do historiador, o cronista partilha sua
experiência, incorporando na rua seus personagens em sua maneira de ser. A
inserção do discurso indireto livre traz as vozes dos comerciantes em diálogo com os
possíveis fregueses e com os leitores da época: “sempre disposta a fazer uma
diferença, para você ficar freguês [...]". (ANDRADE, 1987, p.54)
Numa leitura mais atenta dessa descrição, percebe-se que as atitudes do
cronista aí se aproximam da figura do flâneur pelo trânsito por um espaço em que a
mercadoria circula por excelência. Depois, pelos signos da modernidade captados
nesse cenário, como a arquitetura dos prédios, as sedas e as vitrolas; expostas nas
montras, que metaforicamente o colocam em contato com o cosmopolitismo. Por
outro lado, o cronista se apropria da rua, misturando elementos do antigo e do novo:
os arranha-céus são pequenos, a elegância vem ao lado daquilo que é popular, as
sedas se contrapõem às laranjas amadurecendo. O cronista traça, então, o perfil de
um espaço acolhedor, convidando o leitor a também perambular pela rua dos
Caetés.
Se por um lado as duas ruas, a da Bahia e a dos Caetés, dialogam no que
concerne ao aspecto de rua-personagem, por outro, a segunda se opõe à primeira
no movimento, no brilho, na relação com os consumidores. Percebe-se, também,
certa ironia do cronista ao comentar que a rua dos Caetés era “camarada” só para a
gente ficar freguês, pois essa prática não significava nenhuma ‘bondade’ dos
comerciantes, mas compreendia parte do jogo capitalista induzindo as pessoas ao
consumo.
O traço dos comentários do cotidiano, que também se relaciona a um convite
à rua dos Caetés, é ampliado num outro bloco do texto que soma mais uma
característica ao viés do flâneur. Trata-se do momento em que o cronista escreve
que “o melhor alfaiate de Minas está instalado na rua Baritina, a três quilômetros da
50 praça 7, lado esquerdo de quem sobe, casinha de porta e janela e uma tabuleta no
alto:" O BELO BRUMIL” (ANDRADE, 1987, p. 54). Tal título é uma referência ao
inglês George Bryan Brummel (1778-1840), mais conhecido como Le Beau
Brummel. Ele foi uma espécie de juiz dos homens da moda na Inglaterra e um amigo
do Príncipe Regente, o futuro Rei George IV. Foi quem pontuou que os homens se
vestissem de modo elegante, incluindo ternos, adornados com uma elaborada
gravata.
Esse trecho, se tomado em confronto com os estudos de Benjamin sobre a
figura do flâneur, reafirma um dos lugares por ele ocupado na cidade moderna, o de
“emissário do capitalismo”. Ao fazer alusão a Brummel, o cronista configura-se mais
uma vez como um enunciador do cenário urbano de Belo Horizonte. Assim,
percorrendo as ruas, o cronista parece fazer propaganda de uma alfaiataria,
indicando a mercadoria ao leitor/consumidor.
Dessa forma, percebe-se um paradoxo, a ambiguidade que ronda o flâneur,
no sentido benjaminiano: ele é emissário do capitalismo, mas reflete sobre as outras
coisas que vê nas miudezas que sai catando ao observar a rua/cidade. Em seus
estudos sobre Baudelaire, Benjamin (1989) aponta as contradições da modernidade;
seu lado feérico, de luzes e ferro, e seu lado obscuro de trapeiros e prostitutas. O
poeta/escritor/literato cultua a mercadoria e isso se dá pelo jogo perverso do
capitalismo; sente-se vislumbrado pelo novo, mas mantém um sentimento de
repulsa a tudo isso, quando empreende suas reflexões acerca da vida e do homem.
Percebe-se que nessa narrativa, o cronista deixa entrever esse paradoxo: ele
percorre as ruas, sente-se atraído pelo mundo da moda quando cita a alfaiataria;
sente-se atraído pela mercadoria quando fala da rua dos Caetés, mas não se afasta
do lado de intelectual moderno que faz críticas ao sistema e à própria modernidade.
Tal traço pode ser conferido no tratamento dado à rua da Bahia, lugar onde os
intelectuais, escritores, poetas se encontravam não só para discutir literatura, mas
para fazer aflorar suas posturas políticas e ideológicas.
Ainda na perspectiva da rua, é importante sinalizar o jogo do olhar proposto
pelo cronista entre um elemento do espaço urbano e os seus frequentadores,
quando comenta, criticamente, “não ter pena dos basbaques que anoitecem no Bar
do Ponto, vendo a vida e as mulheres passarem. Tenho pena é do Bar do Ponto,
que suporta esses basbaques há 33 anos.” (ANDRADE, 1987, p. 54). A relevância
do excerto consiste no eco presente no conceito de flanar estudado por Benjamin
51 (1989), isso porque traz um cronista crítico e reflexivo acerca daquilo que observa,
inclusive de si mesmo. Repare-se que ele sente pena dos basbaques, entre os
quais se encontra, que só observam, ou seja, ele não é complacente com esse tipo
de observador que vê a vida passar como se não houvesse nada para aí vivenciar.
A impressão é de que naquele espaço que os suporta haveria muito mais coisas
para se fazer do que ficar vendo mulheres e a vida passarem.
A única avenida referenciada pelo autor na crônica “Kodack” é a Avenida
João Pinheiro: “Por que será que quando a gente sobe a Avenida João Pinheiro
corrige insensivelmente a dobra do paletó e passa a mão no pescoço, para ver se
não esqueceu a gravata?” (ANDRADE, 1987, p.54). Na dimensão de uma avenida, é
curioso observar o sentido do nome e seu desdobramento. Nessa indagação do
cronista, uma possibilidade surge no percurso pela cidade. Tal questão diz respeito
à pessoa, João Pinheiro - importante político, ligado ao partido republicano, figura de
grande prestígio. A forma de se trajar estaria no respeito àquele que nomeia a
avenida e na direção tomada. A esse ponto deve-se atentar para o emprego do
verbo sobe , uma vez que o final do percurso da avenida é a Praça da Liberdade,
espaço de centralização do poder do Estado. A partir dessa questão, pode-se dizer
que a relevância na perspectiva do flâneur encontra-se aí no olhar para o espaço
na/da avenida. Por meio de uma única pergunta, o cronista conseguiu desenhar sua
imagem e a dos que nela passam, apontando para a Cidade/Estado e seu corpo
administrativo.
Observe-se, ainda, que o cronista tece comentários sobre o lugar ocupado
pelos bairros citados na crônica, evidenciando o par dentro/fora da Avenida do
Contorno. Nesse bloco, ele dá conta das diferenças sociais muito acentuadas na
cidade belo-horizontina: “A vitória de “miss” Carlos Prates é de algum modo a vitória
de Carlos Prates, do bairro desmerecido que até bem pouco a Serra e os
Funcionários não ligavam.” (ANDRADE, 1987, p.54). Percebe-se aí que ele,
indiretamente, mostra que mesmo num bairro simples e ‘feio’, há que se considerar
o fator humano. É do bairro mais pobre e menos favorecido pelas ações políticas
que é eleita a miss, o que acaba por conferir ao bairro um status que não teria do
ponto de vista dos mais elegantes e ricos. Nesse sentido, pode-se afirmar que
Carlos Drummond de Andrade procura evidenciar o componente humano, já que
percebe o jogo capitalista instaurado com a modernidade, que privilegia o objeto em
lugar do sujeito. A zona sul é configurada como o lugar da classe média, registrando
52 sua posição de superioridade diante dos bairros periféricos de Belo Horizonte:
Carlos Prates, Barro Preto, Lagoinha olhando de igual para igual para Santo Antônio, Cidade, Serra. Um dia chegará a vez “miss” Palmital, e desde já fiquem avisados de que o Palmital, é a paisagem mais larga, arejada e bonita de Belo Horizonte. (ANDRADE, 1987, p.54)
Dessa forma, ao citar Carlos Prates, Barreiro, bairros mais pobres e
provincianos, o cronista está exercendo o lado reflexivo, intelectual, diretamente
relacionado ao flâneur benjaminiano, uma vez que critica, nas entrelinhas, as
políticas públicas da cidade.
Além das ruas, avenida e bairros que compunham a cidade, nota-se, em
“Kodack”, uma referência à estrada “que levava ao Barreiro”. Tal metonímia reforça,
mais uma vez, o distanciamento entre o centro e a periferia, reafirmando a
racionalização imposta pela modernidade à construção de Belo Horizonte. Em
outras palavras, aponta-se criticamente para o prestígio dos bairros que estavam
dentro dos moldes de planejamento e a ausência de brilho dos que estavam às
margens.
Pela leitura dos blocos que compõem a narrativa percebe-se que o cronista
passeia como um flâneur, mostrando flashes da cidade que ele capta com seu olhar
atento. Comentando rapidamente sobre vários bairros da cidade, ele a monta como
um mosaico. Com isso, pode-se inferir que o cronista demonstra que a cidade, essa
massa complexa, não pode ser tomada apenas por partes privilegiadas, mas por
todas. Afinal, são todos os bairros, pobres ou ricos, que formam seu corpo. A cidade
é justamente isso: um mosaico, formado de partes disformes, não coincidentes entre
si. É a diversidade, a multiplicidade que a traduz.
Diante disso, importa frisar que o olhar do cronista-flâneur é perspicaz e
atento. Por meio dos seus percursos pelas ruas da cidade, o cronista percebe
detalhes, fissuras, contrastes que um olhar comum não conseguiria captar no
borborinho do dia-a-dia. Ora, nas suas caminhadas, o cronista delineia a natureza
relacional atribuída ao espaço, como propôs Milton Santos (1997), na medida em
que exibe a cidade como um organismo em constantes transformações, flagradas aí
pelo flâneur. Nesse sentido, vale recorrer a Sandra Pesavento, quando cita Ricardo
Boffil:
53
Objeto visual primeiramente, ela (cidade) dá lugar a uma percepção perpetuamente renovada. Para além das forças técnicas e funcionais que a trabalham constantemente em “sous-oeuvre”, é pelo contato sensível direto e constante que nós a vivemos cotidianamente, pelos seus odores, seus barulhos, antes de tudo pela diversidade de seus espaços. [...] A troca de sensações entre o espaço da cidade e os seres que a habitam é a matéria-prima da vida urbana; às vezes dolorosa, jamais neutra, ela molda dia após dia a existência dos citadinos. (BOFILL apud PESAVENTO, 1999, p.33)
Em função disso, faz-se necessário refletir mais detidamente sobre o espaço
da/na narrativa e os elementos que permeiam sua construção, em especial, a
questão do olhar que constrói tanto a cidade, como apontada por Bofill, quanto a
própria narrativa.
Importante se faz retificar o uso da palavra bloco para se referir às partes da
narrativa, já que para a composição de um texto literário que lida com as cenas de
uma cidade moderna nos anos 1930, o vocábulo é insuficiente. O título “Kodack”,
marca de uma máquina fotográfica, permite substituir a palavra bloco por flashes .
Na história da fotografia consta que a Kodack, uma invenção da modernidade,
foi a primeira máquina que podia ser transportada para qualquer lugar com
facilidade. Era pré-carregada com filme suficiente para cem poses. Tal informação
reforça o aspecto do olhar fotográfico muito recorrente no espaço da cidade. Infere-
se que Carlos Drummond de Andrade, com a escrita dessa narrativa, procurou
apreender a cidade, como sinalizado na crônica “Efêmeros no bonde”, publicada no
Diário de Minas, três anos antes. Pode-se dizer que tal ideia foi retomada no trecho
em que o cronista, referindo-se ao passeio de bonde, diz: “A gente se tem uma boa
Kodack no cérebro, ao cabo de certo tempo pega instantâneos maravilhosos”.
(ANDRADE, 2004, p.168)
Ora, nessa perspectiva, o signo do retrato somado ao percurso do cronista
permite captar, no espaço do texto, uma espécie de “ação narrativa” (CERTEAU,
1999). Daí a possibilidade de se imaginar a cena do cronista com a câmera
percorrendo o espaço urbano, dada a fortíssima relação da câmera fotográfica com
os flashes que ele faz da cidade. Logo, é o próprio olhar do cronista que faz as
vezes da câmera, permitindo-lhe, mais do que captar a cidade, construí-la do seu
ponto de vista. É só o olhar nos dois sentidos, órgão humano e percepção mental,
que é capaz de ver além daquilo que está no mapa, traçando um percurso. Nas
palavras do próprio Carlos Drummond de Andrade , depois de certo tempo, ou seja,
para o olhar atento, o cérebro passa a funcionar como uma Kodack. Assim, a
54 relação que o cronista estabelece com a máquina fotográfica aponta para o percurso
mimetizado nos passos do flâneur e os flashes na lente narrativa. Disso, a
configuração de um texto que se estruturou a partir de instantâneos faz-se,
metonimicamente, fotografias de um álbum, a cidade, flagrada na fugacidade da
crônica moderna.
3.4 Representações do verde na Avenida Afonso Pena em 1930
Depois de percorrer algumas ruas de Belo Horizonte através das crônicas de
Carlos Drummond de Andrade, vale deter-se em sua principal avenida, a Afonso
Pena, vista nas duas décadas iniciais do século XX como cartão postal de Belo
Horizonte. Aqui serão analisadas as crônicas “A avenida ao sol” e “Amigos do
verde”, que trazem como foco a Avenida Afonso Pena, a fim de se refletir acerca da
presença do verde na cidade, naquela época, o que lhe confere o epíteto de Cidade
Jardim4.
Ao se retomar a proposta de construção da cidade projetada no seio das
ideias republicanas, cuja circulação de pessoas, bens e mercadorias deveria se
realizar de forma racional, ter-se-á até mesmo as áreas verdes em plena
consonância com o espírito de ‘ordem e progresso’, tão forte na modernidade. Isso
porque a planta de Belo Horizonte, com seu efeito segregacionista, dividindo a
cidade em uma zona urbana e núcleo central, uma zona suburbana e uma área
rural, converge para o conceito de cidade-jardim, sistematizado pelo urbanista inglês
Ebenezer Howard (1850-1928), como afirma Duarte (2007). Para esse arquiteto, a
Cidade Jardim contaria com um número limitado de habitantes, numa área rodeada
por um cinturão agrícola. Assim,
Desejava-se possibilitar uma organicidade maior das funções necessárias às aglomerações humanas, ajuntando valores urbanos e rurais, destacando especialmente a presença do meio natural na própria cidade. Para tanto, idealizava-se uma estrutura política em que as autoridades públicas deveriam ter poderes suficientemente fortes para reunir e manter a terra, planificar a cidade, as construções e oferecer os serviços básicos (MUMFORD, apud DUARTE, 2007, p.27)
4 A temática do verde já havia sido tema dos escritos de Drummond, como no texto A cidade verde, assinado por outro pseudônimo, a inicial Y, publicado no primeiro número do suplemento A Revista, 1925.
55
Dentre os fatores que confirmam a “importação” de ideias, destacam-se a
projeção de uma população com 200 mil habitantes, a centralização do poder
político-administrativo e o planejamento de jardins e praças, ressaltando-se que a
construção das praças foi uma iniciativa que recebeu elogios tanto daqueles dados
como seus célebres moradores quanto de visitantes ilustres. Em 1920, o cronista
João do Rio, em visita à capital, descreveu-a como um “miradouro dos céus”,
arborizada como só o paraíso deveria ser. Quatro anos mais tarde, Mário de
Andrade reverenciou os “coágulos de sombra”, “a luta entre floresta e casas”,
(ANDRADE, apud DUARTE, 2007, p.27).
A grande questão é que o verde, presente nas principais ruas de Belo
Horizonte, funcionou como elemento inaugurador de um sentido comum importante
para os habitantes da capital. Para Duarte (2007, p. 27), “as árvores urbanas foram
investidas do significado de um patrimônio coletivo.”. Provavelmente, foi daí que
nasceu a atribuição de cidade-vergel que, nas palavras de Chachan (1996), era uma
das “mais revividas de que se tem notícia”. (CHACHAM, 1996, p.213).
Nesse sentido, as áreas verdes ajudariam a compor o panorama de cidade
moderna. Só não se pode esquecer, como já mencionado no início deste trabalho, a
vigilância desses espaços de lazer por parte das autoridades locais, uma vez que
um decreto proibia a permanência ou trânsito, nos jardins, praças e parques
públicos, de pessoas alienadas, descalças, indigentes, carregando grandes volumes
ou sem trajes decentes. A beleza do verde estava, pois, reservada para as elites
burguesas.
A Avenida Afonso Pena, planejada como artéria principal, única ligação norte-
sul, recebeu um cuidado especial no que diz respeito ao processo de arborização.
No início do século XX, foram plantados ao longo de sua extensão centenas de
mudas de Fícus benjamina. Trata-se de uma espécie asiática muito empregada na
arborização de cidades brasileiras no alvorecer do século passado (FREYRE apud
DUARTE, 2007, p.28). Segundo o teórico, essa espécie “caracteriza-se por suas
raízes fortes, potentes e expansivas, seus troncos espessos, suas copas generosas
e pela altura de até 20 metros.” Aos olhos dos arquitetos da época, era a árvore
ideal para ornamentar a capital, como aponta Duarte (2007):
Aquelas árvores transformaram a Afonso Pena em um “túnel espesso de
verdura”. Dos cinquenta metros de largura, uma área muito grande era ocupada
56 pelas duas fileiras paralelas de frondosos fícus, com suas raízes espalhadas na
superfície do solo, tornando-o irregular, e suas copas entrelaçando-se e fornecendo
um compacto abrigo de largas sombras aos caminhantes que ali se deixassem ficar
preguiçosos, distraídos de seu destino, transgressores da rapidez que os trajetos
supostamente deveriam ter. (DUARTE, 2007, p.29)
Esse momento da Avenida foi também eternizado em várias fotografias que
privilegiaram determinadas perspectivas, principalmente a de espinha dorsal da
cidade, contribuindo assim para ideia de cartão postal. Dessa maneira, torna-se
indiscutível que o fícus deu notoriedade e fama à capital mineira.
Figura 1: Praça Sete de Setembro (1930) Fonte: FERREIRA, 2010.
57
Figura 2: Av. Afonso Pena vista da Praça da Rodoviária (1930) Fonte: FERREIRA, 2010.
Duarte (2007) frisa, no entanto, que o plantio dessa árvore, privilegiada pelos
urbanistas da época por seu crescimento rápido e por uma estética do exotismo, não
deixava de ser uma contradição dos projetistas. Isso porque o crescimento do fícus,
ao longo das décadas, com o aumento de suas copas e sombras, contribuiu para o
escurecimento da Avenida. Tal efeito contrariava o projeto dos fundadores, uma vez
que, influenciados pela luz da modernidade, eram ávidos por ruas claras e com
grande visibilidade. Não só por isso, pois iluminar as ruas centrais, tornando-as mais
claras e visíveis, era uma forma de vigiar a população marginal. As copas espessas
poderiam deixar a rua mal iluminada, impedindo uma maior fiscalização da polícia,
ou então servindo de abrigo para moradores de rua.
Formava-se, então, a dicotomia inerente ao plantio do fícus, pois, se de um
lado fazia parte do requinte vegetal das ruas de Belo Horizonte, por outro, trouxe os
primeiros problemas para a administração pública ainda nas décadas iniciais do
século XX, demonstrando os efeitos de aclimatação. Em 1930, a prefeitura realizou
a primeira poda de fícus, objetivando “manter as árvores nos limites de uma
58 arborização educada e uniforme”, como consta nos relatórios anuais apresentados
pelos prefeitos 1899-1869, (IMPRENSA OFICIAL apud DUARTE, 2007, p.32). Os
jornais da época comentaram que a reação dos moradores foi intensa.
Lançando seu olhar crítico sobre o mesmo tema, é que Carlos Drummond de
Andrade escreveu as crônicas “A avenida ao sol” e “Amigos do verde”, em que o
fícus é concebido como metonímia do verde da cidade. Antes, porém, de se passar
à leitura dessas narrativas, é necessário mencionar dois aspectos ligados à
produção/recepção desses textos, publicados no Minas Gerais nos dias 6 e 7 de
maio de 1930, respectivamente, e que também foram publicados próximos um do
outro, em páginas subsequentes, no livro-base utilizado como corpus desta
pesquisa. (ANDRADE, 1987).
As duas narrativas configuram-se como leituras cruzadas da primeira poda de
fícus da Avenida Afonso Pena. Essa intercepção resulta de uma espécie de jogo de
vozes emitidas na tessitura das crônicas. O efeito é sugerido pelo tom de bate-papo
a respeito da mudança no corpo da cidade, pois, ao contrário dos outros textos
analisados até aqui, o cronista narra pelo viés do discurso de amigos com quem se
encontra. Nesse sentido, ele poderia ser visto, a princípio, como um emissário das
ruas, alguém que colhe os burburinhos, imagem que pode ser evidenciada na
maneira como inicia o texto “A avenida ao sol”:
Um amigo puxa-me pelo braço e diz: - “Só agora, neste ano da graça de 1930, é que eu fiquei conhecendo realmente a Avenida Afonso Pena, e que doloroso conhecimento! A mesma coisa que sucede quando afinal nos aproximamos de uma mulher esquisita, mil vezes entrevista no borborinho cotidiano e mil vezes desaparecida no mesmo borborinho. (ANDRADE, 1987, p.76)
E finaliza da seguinte forma “[...] Assim falou o meu amigo desapontado .
Amanhã falará outro amigo contente .” (ANDRADE, 1987, p.76, grifo nosso).
O cronista “transpõe” para a página do jornal as considerações de um amigo
e anuncia a posição de outro, a quem ele cedeu a voz na crônica do dia seguinte,
“Amigos do verde”. Confirmando a ideia de textos escritos sob o mesmo fôlego, a
última narrativa se vale da mesma estratégia utilizada no dia anterior:
O meu segundo companheiro falou assim: - Positivamente, não há nada como um lugar comum para ornamentar a vida e encher um tempo que todos dizem ser precioso, mas que em geral se consome procurando o que fazer e como fazê-lo sem muito esforço. (ANDRADE, 1987, p.78)
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Por meio do discurso desses amigos/companheiros, o cronista contribui para
a (des) construção de imagens da Avenida Afonso Pena do início dos anos 1930 e
de seus ritmos e cores nas primeiras décadas, como se pode ler no trecho acima.
Na crônica “A avenida ao sol”, merece destaque a atribuição de
características femininas à cidade, ou sua fusão em cidade-mulher proposta por
Denise Gomes (1998)5. Trata-se de uma cidade com várias nuances que se
espelham nas fases da vida de uma mulher, da juventude à velhice, do mistério à
falta de elegância. A comparação entre mulher e cidade será a tônica dessa
narrativa, percebida no começo da fala do personagem-amigo do cronista:
Só agora, neste ano da graça de 1930, é que eu fiquei conhecendo realmente a Avenida Afonso Pena, e que doloroso conhecimento! A mesma coisa que sucede quando afinal nos aproximamos de uma mulher esquisita, mil vezes entrevista no borborinho cotidiano e mil vezes desaparecida no mesmo borborinho. Os instantâneos que nos haviam ficado de encontros entre uma porta de auto e uma porta de sorveteria, ou na claridade bruscamente extinta de uma noite de cinema, guardavam, por exemplo, a graça de um incomparável sorriso. (ANDRADE, 1987, p.76)
É interessante a nova visão que o personagem possui da avenida descrita. A
palavra realmente aponta para a possibilidade de ser uma pessoa vinda de outra
cidade, o que coincide com a história de Carlos Drummond de Andrade que,
semelhante ao que ocorria com grande parte da população, mudou-se com a família
para a capital no ano de 1920. Nesse período, como já apontado, a cidade já
contava com um aspecto verde considerável, pois as mudas de fícus foram
plantadas no início do século. De certa forma, a cidade-vergel imperou até a data de
publicação da crônica e consolidou-se numa espécie de símbolo. Para aquele que
veio de fora, tornava-se difícil recuperar a arquitetura da Afonso Pena depois da
poda dessas árvores. E dessa incapacidade nasce talvez o diálogo desse espaço
com a mulher esquisita . Figura essa que surge e desaparece inúmeras vezes nas
fofocas do dia.
5 Das leituras selecionadas para embasar a presente análise, destacamos a dissertação de Denise Gomes - “Belzonte, Belorizonte, bolorizonte, Belorizontem ou literatura: esse objeto de desejo.” – que no terceiro capítulo de sua pesquisa, intitulado La Donna è Mobile, discute o tratamento feminino conferido à capital mineira. Nessa parte do trabalho, Gomes debruça sobre as facetas da cidade amada/amante/mulher/mãe/madrasta/filha a partir de algumas narrativas do livro Crônicas 1930-1934. Considerando-se a profícua análise desenvolvida pela pesquisadora, algumas de suas ideias foram aqui compartilhadas.
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No jogo comparativo entre mulher e cidade, o emprego do verbo no pretérito
reforça uma importante metonímia para leitura do centro urbano no cenário da
modernidade: instantâneos , que, por sua vez, traz outras metonímias no bojo dos
avanços tecnológicos, como cinema e automóvel. Ora, referindo-se ao passado
recente da urbe, o personagem-amigo do cronista lista os flashes captados de
determinados pontos da cidade, tomada como uma mulher com sorriso singular.
Trata-se da mulher vista de vários ângulos pelos transeuntes. De um lado, a bela
mulher, metáfora da cidade jardim: “Como sorria bem aquela senhora. Que sorriso
tão fino, tão inteligente. Assim, nem a Gioconda.” (ANDRADE, 1987, p.76); de outro,
a visita à cidade dada como um “doloroso conhecimento”.
A referência à Gioconda, mais conhecida como Mona Lisa, é
indiscutivelmente o maior argumento para o perfil cidade-mulher apontado por
Gomes (1998). Para legitimar tal defesa, faz-se necessário uma breve reflexão
acerca dessa figura. Como se sabe, A Mona Lisa (1503), de Leonardo da Vinci, é
um dos quadros mais famosos do mundo. A repercussão dessa obra está ligada a
uma série de fatores que vão desde as estratégias utilizadas por seu criador, até as
inúmeras leituras da mulher nela representada.
Essa tela de Da Vinci incorpora uma conquista da pintura de sua época, a
técnica da perspectiva. É que, no período anterior ao Renascimento, as telas, de um
modo geral, não apresentavam profundidade, isto é, as figuras eram retratadas
sobre planos fixos e vazios. Já nesse quadro, há, ao fundo, um cenário natural que
se desdobra em vários planos, passando ao espectador a noção de profundidade.
Tal recurso técnico converge para uma melhor visualização daquele que se tornou
um quadro intrigante em todos os sentidos. Parte do mistério contido nessa pintura
se relaciona ao olhar, ao meio-sorriso, à postura, à posição das mãos de Mona Lisa.
Todos esses aspectos e outros associados ao quadro mais famoso de Da Vinci
contribuíram para a construção de um dos símbolos universais da feminilidade.
A comparação dessa personagem com a cidade de Belo Horizonte reforça,
então, toda a carga de mistério e beleza ofertados pela nova capital.
Coincidentemente, quando se pensa em perspectiva na construção dessa obra, de
uma forma ou de outra, pode-se pensar, também, na arquitetura da capital mineira,
uma vez que essa técnica foi obtida com os avanços dos estudos de geometria.
Elementos da área das ciências exatas foram bastante empregados nos projetos
61 urbanísticos da modernidade. O Viaduto Santa Teresa, dentre outros panoramas
que permitem captar a noção de profundidade, é um bom exemplo do emprego da
perspectiva no corpo da urbe. Dessa forma, pode-se dizer que a referência ao texto
pictórico não se dá apenas no plano temático, mas também no estético.
Do outro lado do encantamento, a drástica transformação aos olhos do
personagem-amigo: "Eis que um dia o acaso ríspido ou um moço prestante nos
põem frente a frente com o animal maravilhoso e verificamos (com que dor
verificamos) que o sorriso desencantado daquela senhora era uma ruga".
(ANDRADE, 1987, p.76).
Curiosamente, o personagem não revela o responsável pelas ações de poda
das árvores, mas deixa, na sutileza das palavras, o humor contido, sobretudo, na
imagem do vinco na pele urbana. À frente, ele, desconfiado, indaga: “O sorriso
desencantado da Avenida Afonso Pena era, não sei bem se as suas árvores ou se a
miserável arquitetura que essas árvores escondiam. De qualquer maneira era um
“bluff”.” (ANDRADE, 1987, p.76). É interessante observar como a repetição de
vocábulos com certo teor melancólico vai desenhando esse personagem como um
ser completamente deslocado, insatisfeito. O verde funcionou até ali como uma
espécie de maquiagem? Um pó para encobrir a pele irregular? Diante dessas
possíveis perguntas sugeridas pelo personagem, a pesquisa toma emprestado o
título da outra crônica, um “amigo do verde” com o intuito de esboçar melhor esse
sujeito que está com a fala em todo o texto.
O personagem-amigo, ao divagar sobre o verde reinante no passado da
Avenida, oferece imagens diversas daquele cartão postal. Observe-se, por exemplo,
a seguinte passagem: “quantas vezes, das alturas do bonde do Cruzeiro, nesse
Olimpo em disponibilidade que é a Serra, eu cravei olhos famintos nessa massa de
folhas e luzes que formava a perspectiva da larga rua central.” (ANDRADE, 1987,
p.76). A respeito dessa imagem, veja-se que Gomes (1998) lança uma luz sobre o
erotismo com que é entalhada toda crônica: a pesquisadora analisa que as copas
das árvores levam à visão do púbis da mulher amada, verde como o desejo recatado
e encoberto da namorada. A transformação estética da avenida evoca a indecisão
em que se encontra o personagem, pois ele padece ao perceber que, às vezes, quer
a essa cidade. De outra feita, não mais a deseja. Ele tenta explicar que a mulher que
tanto idealizava vestida não era aquela, que, hoje, desnuda-se ímpia aos olhos de
todos, como observa Gomes (1998, p. 52).
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A desilusão do “amigo do verde” é ampliada quando confessa seu sentimento
em relação à avenida, afirmando: "[...] que havia nesse sonho confuso um pouco ou
muito de literatura. Em todo caso, literatura provocada pela massa verde que se
inseria na grande artéria e fazia dela uma rua e um caminho ao mesmo tempo".
(ANDRADE, 1987, p.76)
No delírio do personagem-amigo causado pelo verde, nota-se uma espécie de
confirmação do poder de atração contido na avenida, mesmo na sua nova
roupagem: “O túnel espesso de verdura de antigamente cedera lugar a um desenho
menos compacto e vegetalmente mais policiado, mas ainda assim, intensamente
sugestivo.” (ANDRADE, 1987, p.76). Esse único trecho, no meio de tantas
lembranças, atualiza a nova configuração da Afonso Pena. É como se o
personagem pedisse licença ao leitor para abrir um parênteses, a fim de sugerir uma
pequena esperança de que aquele espaço, assim como outras ruas da cidade,
voltaria ao seu estado vergel. Afinal, tratava-se apenas da primeira poda de fícus
realizada pela prefeitura.
Para “muita gente, à proporção que marchava o desbaste, crescia a desilusão
e a capital parecia perder seu encanto”, noticiava o Estado de Minas, do final do mês
de abril do mesmo ano (DUARTE, 2007). Longe de imaginar os desdobramentos
daquela atitude racional da política local, eternizava-se na memória dos seus
habitantes a atmosfera de suntuosidade conferida às suas ruas, em plena sintonia
com outras cidades modernas. A impressão que o personagem-amigo possuía de
Belo Horizonte convida o leitor a um passeio. E é assim que ele descreve a Av.
Afonso Pena: “a avenida me aparecia misteriosa como a Índia, com a reta dos
troncos misturando bazares, “flirts”, vitrinas, bares, casas bancárias, tudo isso
animado e povoado pelo múltiplo animal humano.” (ANDRADE, 1987, p.76). Dessa
forma, o que se lê aí é a combinação idealizada por Howard, o arquiteto inglês que
criou o projeto de cidade-jardim. O espelhamento entre a proposta do cientista e a
imagem fantástica criada pelo personagem se afinam, resultando em uma harmonia
fiel aos desígnios da modernidade.
No entanto, a conformidade insistia em permanecer apenas na imaginação
dessas pessoas, pois, ao término da fala do “amigo do verde”, acompanha-se a
dissonância causada pela “destruição” do verde, anunciada na primeira parte da
crônica:
63
Podaram as árvores e verificou-se que a Avenida não tinha mistério nenhum. Era uma rua como as outras, com os mesmos sobradinhos e as mesmas casinhas térreas das outras, apenas com um espaço maior entre uma e outra fileira de casinhas e sobradinhos. E mesmo essa particularidade não é sua, é de todas as avenidas de Belo Horizonte. (ANDRADE, 1987, p.76)
A carência de mistério da Avenida se reforça com o emprego de vocábulos
repetidos e no diminutivo, sugerindo uma imagem de inferioridade e círculo comum:
mesmos sobradinhos , mesmas casinhas . No próprio espaço do texto, o desenho
de imagens monótonas amplia a desilusão do personagem. A sensação é de que,
após seu depoimento acerca da mudança da Afonso Pena, a capital como um todo
sofreria com a ausência de um ritmo, afinal, aí “temos uma Gioconda sem mistério,
ou sem sorriso, o que é a mesma coisa”. (ANDRADE, 1987, p.76).
Ressalte-se que, ao desconstruir a ideia de mistério, de charme da Avenida
Afonso Pena, o cronista, de certa forma, destila, no próprio texto, um quê de
melancolia, sentimento tão comum aos escritores que experimentaram a
modernidade, como foi demonstrado por Walter Benjamin (1989), ao estudar a obra
de Baudelaire. Percebe-se, nessas narrativas, certo pessimismo e desgosto. Um
traço melancólico diante das coisas antigas que vão se perdendo em detrimento dos
novos projetos da modernidade. Essa ideia de tradição e ruptura, parte dos
paradoxos da modernidade (COMPAGNON, 1996), foi acentuada por Octavio Paz,
que diz:
A tradição moderna apaga as oposições entre o antigo e o contemporâneo e entre o distante e o próximo. O ácido que dissolve todas essas oposições é a crítica. Só que a palavra crítica tem demasiasdas ressonâncias intelectuais e daí preferir-se acoplá-la com outra palavra: paixão. A união entre paixão e crítica ressalta o caráter paradoxal de nosso culto ao moderno. (PAZ, 1984, p.21)
Esse jogo entre tradição e ruptura, paixão e crítica, reforça-se na continuação
da leitura. Na crônica do dia seguinte, o segundo companheiro do cronista enceta
uma crítica ao cotidiano da cidade, bulindo com o mesmo tema. Primeiramente, ele
discorre sobre as configurações do lugar comum , expressão recorrente no corpo da
pequena crônica, e suas implicações. Aos poucos, a ironia incorpora os resquícios
filosóficos:
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Positivamente, não há nada como um lugar comum para ornamentar a vida e encher um tempo que todos dizem ser precioso, mas que em geral se consome procurando o que fazer e como fazê-lo sem muito esforço. O lugar comum não acrescenta nada ao nosso patrimônio intelectual, o que é já uma garantia de estabilidade. Também não lhe tira nada. Com duas ou três verdades estabelecidas , um homem é muito mais feliz do que, por exemplo, procurando identificar um novo metalóide ou as causas primarias da revolução russa. Uma verdade estabelecida regulariza as funções digestivas e dá certa obesidade amável ao espírito. Os espíritos, como os homens, querem-se gordos; do contrário, não merecem respeito. (ANDRADE, 1987, p.78, grifo nosso)
É nesse tom, sob o sopro da retórica irônica, que o companheiro do dia 07/05
inicia a defesa do seu ponto de vista. Nas duas primeiras linhas, ele toca num ponto
crítico do cotidiano da capital mineira: a carência de atividades de lazer. Em seguida,
como num jogo, posiciona-se para depois enunciar um olhar diferente do “amigo do
verde” sobre o tema em foco. Com sutileza e disfarce, o personagem diz:
[...] eu respeito profundamente o cavalheiro gordo que achou intolerável a Avenida Afonso Pena depois que mão piedosa lhe podou as demasias vegetais. Respeito e compreendo, mas não resisto à tentação de dizer que ele se nutre de lugares-comuns . A beleza das ruas atulhadas de verdura é um repousante lugar comum . (ANDRADE, 1987, p.78, grifo nosso)
A cena enunciativa em que esse personagem se refere ao “gordo amigo do
verde” permite uma reflexão acerca do lugar que os interlocutores ocupam no
espaço da crônica, sobretudo por quem ela é assinada. A maneira de expor as
considerações do verde leva a se perguntar de que lugar fala o personagem da
crônica “Amigos do verde”, e, também a quem fala. Essas simples perguntas ajudam
na compreensão das artimanhas do cronista. É o que se percebe no trecho a seguir:
"[...] Ficou resolvido (por unanimidade) que é bonito plantar uma árvore em frente de
uma casa; e como parágrafo único desse artigo, deliberou-se que essa árvore seria
a mais ramalhada e inconveniente possível". (ANDRADE, 1987, p.78)
As questões permitem um outro ângulo do discurso. O que está posto numa
frase afirmativa é digno de uma indagação se pensada no quadro argumentativo em
que esse enunciador se encontra. Na verdade, ele, criticamente, chama a atenção
do “amigo do verde” e assim infere-se uma significativa alteração do período com a
presença de um Não no início do excerto e um ponto de interrogação ao final: "Não
ficou resolvido (por unanimidade) que é bonito plantar uma árvore em frente de uma
casa; e como parágrafo único desse artigo, deliberou-se que essa árvore seria a
mais ramalhada e inconveniente possível?"
65
A análise dessa cena enunciativa contribui para a compreensão do não dito.
Aí tem-se um reflexo do discurso político-ecológico6 da cidade, quando foi
determinada a ação de plantar árvores diante das casas, e sua atualização na fala
do personagem. Trata-se de uma situação em que um relembra ao outro o que
“ficou resolvido”. Mais adiante, ele exemplifica: “[...] uma “poinciana régia” ou uma
“fícus benjamina”, capaz de abalar bem os alicerces das casas e, provavelmente,
até o obelisco da Praça 7.” (ANDRADE, 1987, p.78). Ao empregar essas espécies de
plantas, o personagem deixa entrever a faceta irônica que vai perpassar todo texto,
pois na atualização do discurso de embelezamento da cidade, ele implicitamente
questiona o desconhecimento, por parte dos arquitetos, da beleza destruidora dos
fícus plantados no começo do século XX. Pode-se perguntar, pois, se a crônica não
acabaria por se colocar como as raízes dos fícus que abalam a superfície da cidade.
O efeito irônico vai ganhando força à medida que o personagem emprega as
interrogações e o deslocamento de vozes. Será que ele se dispõe a ocupar um lugar
no discurso oficial da prefeitura? Ou simula fazer parte da turma do “deixa
acontecer”?
Amigos do verde, porque lamentais a perda de folhagem verificada em uma artéria da cidade, quando há tanto verde aí, nesses campos afora, e tão mal aproveitado?... Deixem a Prefeitura realizar, com sossego, a poda indispensável. Nem é uma destruição: simples desbaste de cabeleireiro discreto. (ANDRADE, 1987, p.78)
A esse respeito, é interessante de se pensar no verbo “podar”, que significa
retirar os excessos, limpar. Como bem demonstrou Machado (2009):
Com a poda dos fícus, a avenida ficaria mais visível, facilitando o controle da população que teria acesso ao centro da cidade. Sutilmente o cronista ainda aponta que a poda não foi realizada em locais mais periféricos ao centro, para os quais não havia a preocupação com a limpeza ou com o controle. (MACHADO, 2009, p.82)
Ao retomar considerações do personagem da crônica “A avenida ao sol” e a
insatisfação dos moradores da cidade com a poda dos fícus, percebe-se que não se
trata de uma ação tão simples assim. Importa salientar que, aí, o cronista transpõe
para o seu texto os frequentes burburinhos acerca da mudança que enfrentava o
6 Ressalte-se que o presente termo não era empregado na época.
66 espaço urbano.
No viés da primeira narrativa, a mulher mais uma vez recebe atenção no
tratamento conferido à cidade e adiciona um teor humorístico à critica que atravessa
toda crônica. É o que se nota quando o personagem ordena: "Reparem, agora,
como ficou a Avenida sem pardais e sem lagartas, batida de sol, alegre como uma
garota de 15 anos. Uma garota feia? A feiúra das garotas de 15 anos não é
irremediável". (ANDRADE, 1987, p.78).
Assim, ele desenha a avenida da supressão, espaço do sem e retoma o título
da narrativa do dia anterior, elucidando-o: “A avenida ao sol”.
Na configuração da cidade-mulher, o espaço urbano vai se redimensionar,
quando o personagem comenta a necessidade da maquiagem no rosto da garota de
15 anos: “[...] E foi bom que se lhe aparassem os cabelos: o rosto que apareceu
mostrou necessitar de massagens. Ponhamos em prática os mandamentos da
estética facial, ou da arquitetura de Le Corbusier". (ANDRADE, 1987, p.78).
Em se tratando do quadro histórico de uma cidade, Belo Horizonte, assim
como a mulher feia, era ainda jovem e só por isso já tinha sua graça, o que
corrobora o estudo de Gomes (1998). O personagem demonstra ter esperança em
relação à cidade-mulher, pois essa “já ganhou em saúde, e vai ganhar a beleza” e
profetiza: “A menina vai ficar perturbadora”, portanto, tratava-se de uma questão de
tempo.
É interessante pensar, também, que as duas crônicas representam o par
antigo/moderno, contido no interessante jogo que Carlos Drummond de Andrade faz
nessas narrativas: em uma, ele quer o tradicional, lamenta a perda daquilo que é já
tradição, que traz segurança, tranquilidade. Na outra, critica essa postura que aceita
a tradição e não o novo, lançando, implicitamente, uma pergunta: quem disse que o
novo também não é bonito? Nesse sentido, há um paradoxo na concepção do
próprio cronista: a posição ambígua que ele apresenta entre ficar ligado ao
tradicional e aceitar o novo.
No percurso empreendido por essas narrativas, cresce a importância da figura
de Crispim para a compreensão de algumas imagens da cidade de Belo Horizonte,
em especial, nos dois últimos textos. Procurar entender um pouco mais o lugar
ocupado por esse pseudônimo e as estratégias que Carlos Drummond de Andrade
utilizou por meio dele, amplia a lente de leitura das transformações ocorridas na
esfera urbana.
67
Ao introduzir a leitura das crônicas “A avenida ao sol” e “Amigos do verde”,
mencionou-se que esses textos foram narrados pelo discurso dos companheiros
daquele que assinou as narrativas, daí a utilização de personagem-amigo. Porém, o
percurso pelo espaço das crônicas em confronto com as artimanhas do pseudônimo
revela outras facetas. Ora, o emprego dos vocábulos amigo e companheiro é uma
estratégia de aproximação do leitor. Bem perto dele, o cronista pode falar o que
quer, como quiser, no tom que lhe parecer mais conveniente por meio de outra voz.
Iniciar as narrativas com o uso das palavras amigo e companheiro funcionou como
um chamativo, uma espécie de isca para o leitor. Atitude que confirma o traço
familiar apontado por Cury (1998), muito afinado com o diminutivo sonoro contido
em Crispim . É como se o pseudônimo do autor, que é também personagem,
atiçasse o leitor para uma espécie de “sessão comentários” a respeito da poda de
fícus. Só que, ao fazer cruzar essas considerações, em contato com a crispação do
discurso, percebem-se as ironias, os deslocamentos do ponto de vista sobre as
transformações na imagem da Avenida Afonso Pena.
A partir disso, compreende-se que não é a fala de um amigo do cronista que
vai resultar em todos esses efeitos de sentido, mas um conjunto de vozes sociais
que a atravessam. Nesse sentido, não interessa perguntar aqui de que lado está o
cronista, pois ele está em todos os lugares, ora criticando a ação da prefeitura, ora
endossando-a. Com o “espírito lúdico de brincadeira7”, o pseudônimo condensa e
emite, através da crônica, as opiniões a respeito do caso em voga. Para tanto,
simula algumas posturas contrárias e favoráveis às mudanças na esfera urbana,
criando um jogo do é/não é, tudo permeado com uma boa dose de comicidade. Por
isso mesmo, ratifica-se a percepção de Crispim como um personagem da commedia
dell’arte e da antiga comédia francesa, que representava o criado irrequieto,
pretensioso, velhaco e bajulador. (Barbosa, apud MOURA, 2007, p. 93), traços que
vão caracterizar, de um modo geral, o escritor no cenário cultural da capital mineira
das décadas de 20 e 30.
7 Trata-se de uma expressão do próprio Drummond ao comentar o emprego do pseudônimo Manoel Fernandes da Rocha em seu texto de estreia no jornal Diário de Minas.
68 3.5 Antônio Crispim: na íntima relação com o jornal
Carlos Drummond de Andrade, como se viu, entrou em contato com o meio
jornalístico muito cedo. Antes de completar 20 anos, publicou seus primeiros
trabalhos no Diário de Minas. Para quem disse que “o jornal é a crônica da vida da
gente”, muito se pode esperar da relação entre ambos. Isso se refere tanto ao
espaço dos periódicos - visto como um rico laboratório de exercício da escrita - como
à folha de papel em si. Sobre essa última, Drummond de Andrade confessa que o
jornal sempre o fascinou muito e que desde garotinho gostava de lê-lo8. Em razão
desse encanto pelo suporte textual, pode-se dizer que a carreira do escritor foi
fortemente influenciada pelos periódicos. Ele escreveu para os jornais críticas,
notas, contos, ensaios, poemas, artigos e, claro, as crônicas. Das várias funções
percebidas no interior desses periódicos, interessa, aqui a imagem de leitor que se
delineia em alguns textos do livro Crônicas 1930-1934, de 1987.
Em visita ao arquivo do Minas Gerais9, onde as crônicas foram primeiramente
publicadas, foi possível perceber a configuração do caderno no qual Carlos
Drummond de Andrade escrevia. No confronto dessa publicação com aquela
organizada pela Revista do Arquivo Público Mineiro, em 1984, a relação do cronista
com o espaço do jornal se torna mais clara para o leitor desses textos. É o que se
pode acompanhar na narrativa transcrita a seguir.
Os que partem Na estação, encontraram-se os dois cortejos. Um era do moço mineiro que ia para a Europa, sem chapéu. Outro, do moço americano que regressava aos Estados Unidos, com capote. Os dois grupos eram afetuosos, e melancólicos. Dizem que partir é sempre melancólico, e eu concordo: para quem fica. Porque quem vai não tem tempo de ficar triste, ao passo que quem fica não só sente uma bruta inveja como no fundo alimenta o desejo inconsciente de ver o trem soltar fora dos trilhos e a viagem fracassar. Nós todos estávamos muito melancólicos, não há dúvida. Como houvesse relações comuns, estabeleceu-se ligação entre as duas correntes. A do moço americano tinha um ramalhete maior de moças. Não desfazendo do ramalhete que rodeava o moço mineiro e Deus sabe como eram bonitas. A gente do lado de cá tinha prazer em cumprimentar uns olhos camaradas do lado de lá, e houve momentos em que inglês e português se casavam numa só língua. Respeitando-se, é claro, algumas incompatibilidades pessoais.
8 Trecho da referida entrevista à Maria Zilda Cury (1998). 9 Além desse periódico, ver algumas crônicas dos anos de 1930 e 1931 na Biblioteca Estadual Luiz de Bersa.
69
A família sabe que viajar hoje em dia num paquete da Munson Line ou da Sud Atlantique representa a menos grega das aventuras, mas absolutamente não deixará de comover-se com o espetáculo dos mancebos que partem - de capote, sem chapéu - para as misteriosas Américas e as inacreditáveis Oropas: coitados, tão novinhos! Daí abraços silenciosos e um pouco graves de ontem à tarde na estação. A gente sabe que eles voltam, mas há tantas baldeações e tantas francesas nesse mundo! (ANDRADE, 1987, p. 140).
O presente texto foi publicado em 31/05/1932 na coluna Sociais. Essa crônica
chama a atenção, inicialmente, por dois motivos: o perfil do cronista, como leitor
crítico do espaço do jornal, e a feitura da crônica tendo a seção em que esse
escreve como base de sua narrativa.
O título da crônica “Os que partem” é o mesmo de um gênero publicado na
parte em que Carlos Drummond de Andrade assinava Antônio Crispim. Sem o
contato com o jornal, poder-se-ia atribuir o título ao seu pseudônimo, ao invés de
considerá-lo como um empréstimo realizado na coluna do periódico. Mas não foi a
primeira vez que o personagem conseguiu essa façanha. Em abril de 1923, quando
se encontrava no Diário de Minas, ele escreve uma crítica à obra de Batista
Santiago chamada Folhas que o vento leva... O referido artigo leva o mesmo título
do livro, como aponta Cury (1998).
Não cabe aqui discorrer sobre os motivos que o levaram a empregar o
recurso nessa publicação, mas nos dois casos, está-se mais uma vez diante do
processo de camuflagem tão bem empreendido pelo autor. A crônica com o mesmo
título de um dos blocos do caderno funcionou como uma espécie de atrativo ao leitor
atento do jornal. Enganado pela entrada do texto, o leitor cai numa espécie de
composição-surpresa e é levado a uma leitura mais crítica da seção convencional.
A coluna Sociais era composta pelas crônicas de Antônio Crispim e Barba
Azul, pelas notas informativas que levavam “Os que chegam” e “Os que partem”,
respectivamente, dentre outros textos que podem ser vistos na reprodução feita ao
final deste capítulo.
Há em “Os que partem” um aspecto de lista que se consolida por meio de sua
estrutura, na maioria das vezes, rígida: o nome das pessoas, moradores ou não,
com seus respectivos destinos. Some-se a esse modelo uma série de blocos soltos,
apenas indicados por travessões. Tudo isso confere ao texto uma monotonia, uma
imagem circular que, no geral, termina por onde deveria começar. Com esse mesmo
formato tem-se, do outro lado, “Os que chegam”. Essa nota, guardadas as devidas
70 proporções, é mais elaborada do ponto de vista linguístico, afinal, ela é tratada com
maior entusiasmo por quem a redigia.
Com base nesse aparente modelo foi que Carlos Drummond de Andrade
escreveu a crônica “Os que partem”. Na verdade, ele não se valeu apenas da
estrutura do gênero, mas dos bastidores de quem produzia esse tipo de texto, às
vezes, o próprio autor. Assim como ocorreu com a crônica brasileira, num sentido
jornalístico-literário mais amplo, sobretudo com João do Rio, a presente narrativa foi
inspirada nas atividades ligadas à reportagem. Isso porque o texto, no seu conjunto
de imagens, remonta à cena de um repórter diante de uma estação. Cena essa
encontrada no depoimento do escritor, quando esse se referia ao seu trabalho no
Diário de Minas. Embora o autor exponha a realidade de um outro periódico no que
concerne ao tratamento político, pode-se estender tal prática aos repórteres do
Minas Gerais, quando eles tomavam notas das pessoas ilustres que chegavam ou
partiam da capital:
[...] Naquele tempo (década de 20) eles todos (os políticos) viajavam de trem, o noturno mineiro. Tinha o rápido que saía pela manhã e o noturno que saía ao entardecer. Então ia um repórter para a estação central para tomar nota os passageiros. Se nós disséssemos: “embarcou ontem para o Rio de Janeiro o deputado fulano de tal”, era apenas uma notícia, não tinha esse deputado menor importância. Agora, se disséssemos assim: “Hoje, cercado de amigos, embarcou para o Rio de Janeiro o ilustre deputado fulano de tal” é que o homem estava com as boas graças do governo. (ANDRADE apud CURY, 1998, p. 150)
Na crônica acima, a estação figura como espaço de grande relevância, uma
vez que é o cenário da partida tanto dos viajantes, quanto da própria crônica. Nele o
cronista divaga, deixando entrever a feitura do seu texto, a exemplo da recorrência
da duplicidade no corpo da crônica, marcada pelos contrastes propostos pelo
narrador: “Na estação, encontraram-se os dois cortejos. Um era do moço mineiro
que ia para a Europa, sem chapéu. Outro, do moço americano que regressava aos
Estados Unidos, com capote.” (ANDRADE, 1987, p. 140).
É interessante a forma como o cronista condensa o comportamento de
determinados grupos sociais nesse mesmo espaço. Nota-se que tais viajantes, de
classe média, não são nomeados e deles se sabe a nacionalidade: mineiro e norte-
americano, a faixa etária e a classe social. Dessa forma, tudo converge para o
mesmo espaço, conferindo à crônica o registro de uma cena comum do cotidiano
daquela época, porém afinado com o humor peculiar do pseudônimo e seus
71 comentários que não caberiam na formalidade da notícia.
O cronista demonstra, ao longo de toda narrativa, seu lado arguto,
aproximando-se mais uma vez do cronista benjaminiano ao lidar com as miudezas
da linguagem no periódico em que trabalhava. Nesse sentido, ele sutilmente observa
as cenas da capital mineira, como o embarque/desembarque das pessoas na
estação. Assim, ele não deixa escapar os pequenos acontecimentos do dia,
convertendo-se num exímio leitor da cidade.
As crônicas até aqui analisadas apresentam características singulares do
pseudônimo Antônio Crispim. Nele podem-se observar aspectos do cotidiano da
moderna cidade, narrados como histórias bem próximas do real e que dizem das
formas de apropriação do espaço urbano e das relações que ali se instituem. Ele
carrega uma imagem crítica e, ao mesmo tempo, lírica em relação à Belo Horizonte
dos anos de 1930. Isso se confirma, às vezes, no sentimento melancólico que
perpassa os textos por ele assinados, sentimento esse muito comum na obra do
autor Carlos Drummond de Andrade.
Paixão e crítica, tradição e ruptura, a marcar os percursos enunciativos do
cronista/flanêur a rasurar o mapa da cidade moderna em suas contradições.
MINAS GERAIS10
Figura: 3 MINAS GERAIS Fonte: MINAS GERAIS, 2010.
10 A escolha dessa ilustração se justifica por trazer na íntegra as duas seções: Os que partem e Os que chegam
73 4 NO CENÁRIO DE BARBA AZUL
O exame dos exemplares do jornal Minas Gerais, dos anos 1930 e 1931,
possibilitou delinear melhor a diferença da configuração do espaço em que Carlos
Drummond de Andrade escrevia sob os pseudônimos Antônio Crispim e Barba Azul.
Em geral, os textos se organizavam em colunas no início da seção Notas Sociais,
com fonte em itálico. As letras dos títulos aparecem maiores do que as do corpo dos
textos e geralmente sublinhadas, sem, contudo serem grafadas em itálico. Percebe-
se, no entanto, que, quanto aos títulos, há um tratamento diferenciado entre os
pseudônimos: as crônicas de Antônio Crispim não possuem um título permanente,
pois esse vai ser de acordo com o assunto abordado ao longo de seus textos. Já as
narrativas assinadas por Barba Azul vêm sempre sob o título de “Um minuto,
apenas”.
Apesar de serem apresentadas sempre sob o mesmo título, as narrativas de
Barba Azul, ao contrário dos textos assinados por Antônio Crispim, abordam mais de
um assunto na mesma coluna. Para realizar tal atividade, Carlos Drummond de
Andrade, redator chefe do jornal, separa os temas por um pequeno asterisco entre
os parágrafos, conciliando crônicas, provérbios e poemas, próprios ou de outros
colaboradores.
A presença da multiplicidade de textos pode ser verificada na estreia do
pseudônimo Barba Azul no jornal, em 08/09 de junho de 1931, quando este assina
os seguintes textos na mesma seção: “Programa”, “O amor único” e “Uma Xícara de
chá”. Configuradas dessa forma, as crônicas de Barba Azul, mais uma vez, vão se
distinguir das assinadas sob o pseudônimo Antônio Crispim por serem mais curtas.
Acrescente-se, também, a esse aspecto, uma proposta diferente na relação com o
leitor, como veremos mais à frente. Em alguns dias, no lugar das crônicas são
publicadas críticas literárias, confirmando que o tratamento dado ao espaço do jornal
é diferente para cada um desses pseudônimos. De certa maneira, delineia-se, nos
diversos textos de Barba Azul, uma diversidade de vozes. Traço esse presente nos
dois pseudônimos, mas em razão do trabalho com os vários textos, bem como a
relação com o jornal, vai se evidenciar nas crônicas de Barba Azul. Nesse sentido,
pode-se dizer a polifonia presente nas crônicas remete, também, à multiplicidade da
própria cidade.
74
É interessante ressaltar que, embora tenha lidado com uma maior diversidade
de assuntos em suas crônicas, Carlos Drummond de Andrade utilizou o pseudônimo
Barba Azul num espaço de tempo menor em relação a Antônio Crispim. De acordo
com informações contidas no livro Crônicas 1930-1934, Barba Azul publicou apenas
durante os meses de junho e julho do ano de 1931. Já Antônio Crispim estreou no
jornal em 23 de março de 1930, com a crônica “Do frio que chegou”, publicando
pelos três meses seguintes desse mesmo ano. O fato de Carlos Drummond de
Andrade ter que se ausentar, nesse mesmo ano, para o treinamento militar na
cidade de Barbacena fez com que pausasse sua participação no jornal até o ano
seguinte. Em 1931, após a publicação da crônica do dia 03 de junho, “Baile de
chita”, Carlos Drummond de Andrade vai assinar esporadicamente seus textos no
Minas Gerais como Antônio Crispim, como consta no livro em estudo. Dessa forma,
pode-se dizer que esse pseudônimo perdurou por mais tempo nas páginas desse
jornal em relação ao tempo ocupado por Barba Azul.
Se se pensa na trajetória do personagem Antônio Crispim, sobretudo que ele
tenha escrito anteriormente para outros suportes, como o Diário de Minas e A
Revista, é pertinente inferir que tal personagem cedeu espaço no jornal para que o
outro pseudônimo, Barba Azul, pudesse entrar em cena. Isso se comprova, num
primeiro momento, pelo fato de ambos não assinarem as crônicas do periódico
numa mesma data. Nesse sentido, a presença de Barba Azul na coluna do Minas
Gerais, dado o curto espaço de tempo, dá a impressão de que Carlos Drummond de
Andrade teria planejado/dirigido a performance desse pseudônimo na seção Notas
Sociais. Utilizando-se de um tom mais coloquial, poder-se-ia dizer que a atuação sob
esse pseudônimo foi proposital por parte do autor. Isso se esclarece a partir da
sequência em que as crônicas foram publicadas no Minas Gerais, como se pode
perceber em textos em que o poeta assinou tal pseudônimo, a exemplo de “Bilhete
à oitava mulher” e “O doce incomível”, analisados à frente.
Para analisar o conjunto de narrativas assinadas sob o pseudônimo Barba
Azul, textos esses que corroboram a ideia de um projeto de escrita para a coluna do
jornal Minas Gerais, a pesquisa partirá da primeira narrativa de Barba Azul, escrita
em dia 08 de junho de 1931, transcrita a seguir:
75
Um minuto, apenas Programa Nesta seção se falará de moda, de sentimentos que passam com ela, de atrizes bonitas de cinema, de poetas que não usam entorpecentes nem os fabricam, e de mil outros assuntos terrestres. A senha será: Frivolidade, que, às vezes se confunde com Espírito, outras vezes (sem parecer) é mais grave que um tratado de Finanças. A seção será curta, como a vida, mas sem as complicações da vida, como o telefone não-automático, o cão pisado na rua, o amor pisado no coração, a falta de horário, os telegramas cifrados, a viagem do “Do-X” e o desmemoriado de Collegno. Sairá todo dia útil (domingo) e até mesmo nos dias inúteis (os outros dias): não se aceitam reclamações nem se devolvem bilhetes. Também não há programa. A preocupação única é: aborrecer pouco, aborrecer o menos possível. (ANDRADE, 1987, p.146)
O painel de informações contidas na crônica acima confirma a proposta do
seu subtítulo, “Programa”. Por se tratar do primeiro texto sob tal pseudônimo, tem-se
aí a imagem de uma interação com o público leitor, uma espécie de “contrato de
leitura”, como propôs Porto (2008). Esse é, pois, o programa de escrita de Barba
Azul. Levando-se em conta os sentidos do vocábulo programa , faz-se necessário
discorrer sobre a cena enunciativa de tal texto.
A formatação de uma crônica que traz na sua abertura o signo “programa”
invoca a figura de apresentador desse tipo de evento, pois é assim que vai se
configurar a imagem do foco narrativo no texto em questão. Com as feições de um
apresentador de programa, seja de rádio, no contexto de publicação da crônica, seja
nos moldes da televisão, o personagem Barba Azul vai procurar esclarecer aos seus
leitores o conteúdo, o formato e as características das crônicas que serão
publicadas na respectiva seção a partir daquela data.
Nesse sentido, é interessante pensar não só no lugar de enunciação do
enunciador sob tal pseudônimo, mas também no espaço da crônica dentro da coluna
do jornal, sobretudo no título “Um minuto, apenas”. Ora, o tempo previsto para essa
chamada dialoga com a duração da narrativa, pois esta conta com um texto ágil, de
períodos curtos, com organização interna que se aproxima de um script, uma
espécie de roteiro para aquilo que vai ser lido em voz alta. Ressalte-se que esse
conjunto de aspectos é sugerido pelo tom em que o personagem se enuncia para o
seu público leitor. Dessa entoação, considere-se, ainda, a palavra minuto que vem
no título, ou seja, um dos signos indicados pela modernidade, que pode se referir à
rapidez do tempo. Aliem-se, a esse signo, outras indicações como as novidades do
cinema, da moda e de seus desdobramentos. Assim, o cronista se projeta em mini-
76 textos cujos diversos assuntos fazem referência a signos da modernidade, dentre
eles a ideia de que se gastará “um minuto, apenas” com os acontecimentos fugazes
da cidade de Belo Horizonte, inserida no contexto das novidades.
Considerando-se a imagem do apresentador atribuída a Barba Azul, é de
grande relevância o trecho do texto em que ele, de certa forma, menciona uma
espécie de norma para a interação com o leitor: “A senha será: Frivolidade, que, às
vezes se confunde com Espírito, outras vezes (sem parecer) é mais grave que um
tratado de Finanças.” (ANDRADE, 1987, p.146). Assim como a palavra programa ,
que abriu o texto, senha e frivolidades merecem também uma devida atenção na
cena enunciativa da crônica em estudo.
Senha é uma marca ou indicação para dar a entender uma coisa ou se
chegar ao conhecimento dela. Trata-se de um indício, ação, palavra ou fórmula
secreta previamente convencionada para ser usada como sinal de reconhecimento
entre pessoas (HOUAISS, 2002). Retomando a ideia de que esse foi o primeiro texto
escrito sob o mencionado pseudônimo, ressalte-se que o emprego de tal vocábulo
reforça a intenção de Barba Azul em manter um diálogo com os seus leitores. E a
disposição de uma senha a esse público legitima as condições de um pacto de
leitura.
A senha e o programa podem, sim, ser uma forma de entrada do leitor; uma
forma de interação com esse leitor. Por outro lado, diante de todas as novidades -
moda, aparelhos e vitrines - que começam a chegar à cidade, é de se esperar que
as pessoas desenvolvam um maior interesse por conhecerem e terem notícias
acerca dessas atrações. Partindo disso, parece que o cronista chama/atrai o leitor,
‘fingindo’ que vai tratar apenas de moda, de cinema e de outras novidades, mas,
quando o leitor já está ‘dentro do programa’ depara-se com outras questões,
ironicamente apontadas pelo cronista com o intuito, também, de levá-lo à reflexão.
Considere-se, ainda, que a apresentação dessa senha, frivolidade, vai dizer
muito da maneira com que os “mil assuntos terrestres” serão tratados pelo
apresentador. A senha revela, também, uma importante faceta desse pseudônimo
se pensada no comentário que se segue à entrega da senha. “A preocupação única
é: aborrecer pouco, aborrecer o menos possível.” (ANDRADE, 1987, p.146). Como
bem apontou Porto (2008, p.14), Barba Azul vai se configurar como um comentador
de assuntos mundanos e frívolos. Entretanto, seus comentários resultam de
maliciosa observação da sociedade, confirmados pelo recorrente emprego da crítica
77 às transformações da cidade. Por trás de meros comentários sobre frivolidades, ele
pretende mostrar questões que levarão os seus leitores à reflexão acerca da
sociedade em que vivem. Nesse sentido, reforça-se o jogo de esconde-esconde, em
que o próprio autor Carlos Drummond de Andrade se esconde atrás de seu
pseudônimo, Barba Azul. Dessa forma, todos os acontecimentos dignos e indignos
de nota da capital mineira no ano de 1931 passarão pelo crivo irônico do autor sob
tal pseudônimo.
4.1 Barba Azul: outro enunciador da vida urbana
Diante das principais características das crônicas assinadas por Barba Azul,
dos jogos narrativos por ele apresentados já no seu texto de estreia no jornal Minas
Gerais, optou-se por eleger a palavra Programa como um operador de leitura das
narrativas selecionadas para este capítulo.
Valendo-se do recurso do comentário, traço peculiar ao gênero crônica,
Carlos Drummond de Andrade, sob o pseudônimo Barba Azul, critica algumas
lacunas das relações sociais do contexto em que as crônicas foram escritas. É o que
se pode ler, por exemplo, na crônica “Uma xícara de chá”, publicada na mesma data
de “Programa”, 08 de junho de 1931:
Uma xícara de chá Domingo que vem, todas as pessoas elegantes de Belo Horizonte, menos os cronistas, que geralmente não o são, irão tomar chá no grupo escolar “Afonso Pena”. A tarde e a noite serão frias e meigas. O ambiente será aconchegado, mineiro e ao mesmo tempo rafiné. O chá será um pretexto. Há tantos pretextos neste mundo! Os que gostarem com pouco açúcar, poderão tomá-lo com mais flirt. Nota importantíssima: não será proibido dançar, como em certas festas que nós, ai de nós! Conhecemos. (ANDRADE, 1987, p.147)
A informação de um chá em um grupo escolar muito se aproxima de um
comunicado à elite da cidade. Em uma breve leitura dessas linhas, tem-se uma
referência ao evento sintonizado com os costumes ingleses, indicado no momento
do ‘Chá das 17horas’.
78
Isso se explica, uma vez que tal crônica se aproxima de outros textos
publicados praticamente na mesma página do jornal da época, em colunas
anteriores às Notas sociais, ou seja, ao conjunto de escritos da seção Diversas, cujo
conteúdo dialoga com a matéria da crônica em questão. Diante do percurso
empreendido nesse espaço do jornal, pode-se inferir que Carlos Drummond de
Andrade se valeu desses textos diversos para compor “Uma xícara de chá”.
Pensando nisso, vale olhar mais criticamente para as pequenas fendas do espaço
textual que possibilitaram visualizar a construção da crônica.
Nas três primeiras linhas, o autor/personagem anuncia o chá do próximo
domingo e, pautando-se na distinção dos grupos sociais, atribui requinte à elite que
participará do evento. Só que, ao lado da informação, ele delineia o lugar ocupado
pelos cronistas, entre vírgulas: “Domingo que vem, todas as pessoas elegantes de
Belo Horizonte, menos os cronistas , que geralmente não o são, irão tomar chá no
grupo escolar “Afonso Pena”. (ANDRADE, 1987, p.147). Na sequência, o enunciador
descreve as imagens, bem como os detalhes do suposto acontecimento.
Desse quadro pintado em relação ao chá, observe-se o trecho em que ele diz
que: “O ambiente será aconchegado, mineiro e ao mesmo tempo rafiné.”
(ANDRADE, 1987, p.147). É interessante perguntar qual é a imagem de mineiro
projetada nessa frase. Seria o sintoma de certo provincianismo atribuído à história
do Estado? Pois o emprego do adjetivo raffiné, de origem francesa, permite ao
cronista dar um ar irônico de sofisticação ao evento. Talvez, na ótica urbana, a
possibilidade de uma feição ligada ao cosmopolitismo. Daí a presença do chá no
título do texto, que contribui para a distinção das classes, uma vez que tal costume
não era comum a todos os grupos sociais.
O culto àquilo que é visto como elegância reforça a ironia aos eventos
ocorridos na cidade, indicada na nota importantíssima da crônica: “não será proibido
dançar, como em certas festas que nós, ai de nós! conhecemos.” (ANDRADE, 1987,
p.147). O uso da interjeição ai e do pronome pessoal nós desenha aí o tipo de festa
que frequentava o grupo social a que o cronista pertencia.
Na pista das lacunas sociais, é interessante lançar uma luz sobre o vocábulo
pretexto , considerando em especial o lugar em que se encontra no corpo da
narrativa, isto é, no meio da composição, quando o narrador comenta: “O chá será
um pretexto. Há tantos pretextos neste mundo!” (ANDRADE, 1987, p.147).
Considerando a liberdade expressiva que permeia o exercício desse gênero da
79 literatura e o recurso da metalinguagem, tem-se, em tal vocábulo, o espelhamento
da feitura da crônica. Esse efeito se dá por meio do diálogo entre o conteúdo da
narrativa e os mecanismos empregados em sua confecção, pois se o chá, assunto
do evento, é um pretexto para “outros negócios”, é também pré-texto para a escrita
da crônica. Mais do que isso, o autor/personagem conseguiu, através do chá-
pretexto, apresentar de forma irônica o comportamento da sociedade belo-
horizontina em determinados eventos.
Dessa íntima relação com o espaço do jornal onde assinou seus textos, é
pertinente discorrer, mesmo que de forma breve, acerca daquela que seria uma das
maiores críticas de Barba Azul no que diz respeito ao seu perfil de enunciador da
vida urbana. A ousadia de comentar os fatos da semana se encontra na
emblemática crônica do dia 17 de junho de 1931:
Resumo Os acontecimentos mais palpitantes da semana foram: a moça que engoliu uma bola de golfinho quando abriu a boca, cheia de espanto, por ver o namorado jogar tão bem ; a excursão de Manoelina de Coqueiros (em caráter particular e não de santa) ao Instituto “Raul Soares”; o burrinho sábio do Circo Queirolo, que não tinha graça nenhuma e por isso fazia concorrência ao palhaço ; a ressurreição de “Ben Hur”, sob os auspícios do Instituto Histórico ; e uma frase nova da gíria: “Diz melografado”. No mais, nada de novo na frente ocidental. (ANDRADE, 1987, p.159, grifo nosso)
Da narrativa transcrita podem-se ler dois textos. A parte que não se encontra
grifada configura-se como a sequência exata de cinco acontecimentos da semana
que passou. Esses fatos, verídicos ou não, correspondem à estrutura do resumo que
intitula a narrativa. Nesse sentido, Barba Azul apreende algumas notícias do
cotidiano e as enuncia na seção em que escreve, passando a imagem de alguém
que deu o seu recado, como mostra o desfecho da narrativa: “No mais, nada de
novo na frente ocidental”. (ANDRADE, 1987, p.159).
Já os trechos sublinhados pautam-se no domínio do comentário, indicado por
vírgulas e parênteses, geralmente de caráter cômico. Com o cruzamento dessas
partes, Carlos Drummond de Andrade atualizou o gênero ao condensar as notícias e
os seus respectivos comentários nas linhas de um resumo.
80 4.2 Isso aqui não é o Rio de Janeiro
O percurso pela cidade moderna permitiu ao cronista-flâneur captar os vários
acontecimentos ocorridos nesse espaço. Trata-se de um olhar atento às relações
encenadas no tecido urbano. Ao transitar pelas ruas da cidade, o cronista entra em
contato com as miudezas do cotidiano e, por estar rente ao chão, misturado aos
burburinhos, captura uma infinidade de assuntos/ temas, (CANDIDO, 1993). No
processo de criação das crônicas, ele vai ora enaltecer algumas imagens
recorrentes na cidade, ora construir/ destruir alguns símbolos ligados a esse lugar.
Assim como o percurso desse personagem se multiplica no espaço físico,
multiplicam-se também as configurações da cidade em suas crônicas.
Diante dos aspectos relacionados ao emaranhado demográfico que constitui a
urbe, o narrador-personagem atua de forma meticulosa, flagrando as cenas que
perpassam a cidade. Depois ele vai transformá-las em texto e transpô-las para o
jornal, na coluna “Um minuto, apenas”. Percebe-se, aí, a agilidade e malícia do
cronista, uma vez que tudo que ele vê/observa pode ser dito em um minuto. Nessas
sutilezas do olhar que o cronista lança ao espaço urbano, evidencia-se o paradoxo:
a representação do corpo complexo da cidade em tão pouco tempo. Não se pode
esquecer que ele quer mostrar, aos seus leitores, a efemeridade das coisas; por isso
mesmo a agilidade do seu texto que dialoga com a rapidez das novidades, tão
almejadas no cenário da modernidade.
Em relação a essas imagens captadas pelo cronista-narrador, importa
salientar duas outras crônicas: “Luzes da cidade”, do dia 21 de julho de 1931, e
“Golfinho e outros substantivos”, publicada em 10 de junho do mês ano. Há dois
assuntos que, indiretamente, aproximam essas narrativas: a moda e a questão do
provincianismo da capital mineira em relação ao Rio de Janeiro. Por isso mesmo, é
importante sinalizar, num primeiro momento, que a referência à capital carioca é um
assunto muito explorado nas narrativas de Carlos Drummond de Andrade,
produzidas nesse contexto, sendo que a escolha das crônicas assinadas por Barba
Azul apresenta apenas uma dimensão de tal recorrência.
Como se viu, desde as transformações empreendidas por Pereira Passos, no
início do século passado, a cidade do Rio de Janeiro se tornou um grande ícone da
modernidade em nosso país, influenciando as outras capitais nos diversos setores
81 da economia, arquitetura, cultura e, claro, da moda. Dessa forma, os lançamentos,
as descobertas, enfim as novidades da Europa passavam primeiro pela cidade
carioca. O Rio de Janeiro foi, então, um importante pólo disseminador das
tendências culturais modernas. Daí, provavelmente, seu forte traço de
cosmopolitismo. Essa característica estava em evidência no contexto de publicação
das crônicas de Barba Azul. Diga-se de passagem que, a despeito de sua
relativização por várias causas, esse atributo perdura até os dias atuais. As outras
cidades brasileiras, diante desse quadro, viviam na condição de “atrasadas”, no que
tange aos ideais de avanço e progresso. Paradoxalmente, até mesmo Belo
Horizonte, que já nasceu moderna, vai receber o rótulo de cidade “provinciana”. É o
que se pode ler nas referidas crônicas.
Em “Luzes da cidade”, percebe-se um narrador ávido por ícones diretamente
associados ao cenário da modernidade, a começar pelo título que faz uma alusão à
“cidade-luz”, Paris. Analisando-se mais nitidamente a crônica, pode-se entender
parte do desejo do autor por uma cidade iluminada, pois ele vai reclamar da sombra,
da escuridão que cai sobre a capital mineira: “As vitrinas apagaram-se na noite de
Belo Horizonte.” (ANDRADE, 1987, p.200).
Nessa frase de abertura da narrativa é interessante observar dois aspectos: o
primeiro aponta para a ironia presente no título da crônica, pois naquilo que o texto
propõe, ter-se-ia Belo Horizonte, como a cidade sem luzes. O segundo elemento
consiste no emprego da palavra vitrinas . Luciana Nascimento (2005, p.65), citando
Hardman, expõe:
curiosa ironia dos materiais: ao contrário dos muros de pedra, dos gonzos de ferro, dos postigos maciços, a vitrine é a maneira mais cínica através da qual o luxo se deixa entrever, assinalando ao mesmo tempo, seu preço e seu dono. (HARDMAN apud NASCIMENTO, 2005, p.65).
Daí se tomar a vitrine também como uma das metonímias da cidade moderna.
Parece, pois, que Barba Azul parte da seguinte lógica: se Belo Horizonte é uma
cidade moderna, por excelência, onde está sua luminosidade? Longe dos becos,
montanhas, encruzilhadas, típicas do interior mineiro, o que ele esperava desse
espaço era, sobretudo, a luz. À semelhança de Paris, eleita por Walter Benjamim
como sede da modernidade, metáfora do cosmopolitismo e que serviu de modelo
para a construção de Belo Horizonte, a provinciana noite delineada pelo narrador
82 distancia a cidade mineira de sua matriz. Segundo Barba Azul, “na hora em que o
burguês faz a sua digestão ambulante e as meninas saem do cinema, já não há
nada para espiar atrás dos vidros.” (ANDRADE, 1987, p.200).
O narrador perambula pelas ruas à procura de objetos/situações que ajudem
a configurar a capital em sua versão atrativa, feérica, mas o crepúsculo da cidade o
impede: “As gravatas e os frascos de perfume, os sapatos de baile, as luvas, as
coisas caras e tentadoras desaparecem de nossos olhos. Até uma casa especialista
em pernas artificiais entendeu de fechar as luzes que custavam caro” (ANDRADE,
1987, p.200). E nesse percurso pela escuridão ele, ironicamente, revela outro traço
dos belo-horizontinos, estendido a todos os mineiros: o excesso de sovinice. Soma-
se a isso a imagem de Belo Horizonte como a cidade do tédio o que, segundo
Carlos Drummond de Andrade, devia-se em grande parte ao conservadorismo
mineiro. (MACHADO, 2009)
A ausência de luzes na noite da cidade faz com que Barba Azul a confronte
com a deslumbrante Rio de Janeiro: “Enquanto isso, os jornais do Rio anunciam
ironicamente os concursos de vitrinas.” (ANDRADE, 1987, p.200). Talvez seja nesse
trecho que se encontra a maior evidência do par provincianismo/cosmopolitismo. Ao
se tomar Barba Azul como um enunciador da vida urbana e, pensando na relação
dele com o jornal da época, pode-se ler aí a postura de alguém que reforça para os
seus leitores a ideia de que Belo Horizonte, mesmo moderna, carrega o fardo do
atraso. Porém, como morador desse espaço e instigado pelo sarcasmo, o cronista
encontra a saída para a falta de criatividade da noite belo-horizontina, ofertando ao
seu leitor uma boa dose de humor: “Nós aqui podíamos fazer o mesmo: indagar qual
a vitrina mais escura e, como prêmio, oferecer ao proprietário um lampião a
gasolina.” (ANDRADE, 1987, p.200).
Na mesma linha encontra-se “Golfinho e outros substantivos”, cuja narrativa
se baseia na cena de um cavalheiro tecendo observações sobre um dos costumes
da cidade: o golfinho, diminutivo do golfe, esporte que estava em alta entre os
jovens burgueses da Belo Horizonte dos anos 1930. Tal prática, semelhante às
luzes da cidade, é vista como ponto de partida para a discussão de um tema maior,
ou quem sabe, mais relevante para o cronista. Parece que, novamente, há uma
tentativa de “ajuste cultural” entre a capital mineira e o Rio de Janeiro. Essa busca
de equilíbrio, no plano ideológico, é demonstrada no recurso espaço-temporal que
83 atravessa o corpo da narrativa. O confronto entre as cidades se dá nas mesmas
condições da crônica anterior, até mesmo no emprego de determinados vocábulos,
como se lê nas partes sublinhadas:
- Agora que o golfinho tomou conta de Belo Horizonte, ninguém joga mais golfinho no Rio. Quando ele apareceu lá, há meses, fazia calor e algumas jovens de plástica mais interessante tomaram mesmo a liberdade de jogá-lo em mailot. Aqui , a essa altura do ano, e com os queixos batendo, só mesmo de capotão, e com os queixos batendo, tweed seater e lãs escocesas bem espessas. Enquanto isso , as elegantes cariocas estréiam modelos notabilíssimos de manteaux russos, siberianos e poloneses, que só chegarão ao conhecimento da família mineira (se chegarem ) em dezembro de 1931, isto é, quando toda gente estiver tomando sorvete de coco no bar do Automóvel Club. (ANDRADE, 1987, p.148, grifo nosso).
Observe-se que, junto das partidas de golfinho, o narrador encontra uma
lacuna para abordar a questão da moda carioca, tratada nesse contexto com
requinte e elegância. Curiosamente, para abordar tal questão, o cronista se vale das
estações do ano e a exigida renovação da moda com suas coleções: outono-
inverno; primavera/verão. E por meio do emprego dessas fases do ano, pode-se
dizer que o cronista também faz uma crítica ao Rio, por sua importação de moda
com clima inadequado.
O emprego dos parênteses sugere a impossibilidade de a cidade belo-
horizontina não experimentar a moda que foi sucesso na ‘Paris à beira-mar’: “[...] as
elegantes cariocas estréiam modelos notabilíssimos de manteaux russos, siberianos
e poloneses, que só chegarão ao conhecimento da família mineira (se chegarem )
em dezembro de 1931[...]” (ANDRADE, 1987, p.148, grifo nosso). Diante dessa
distância entre as capitais e, por consequência, o respectivo atraso com que a moda
de Belo Horizonte recebe as novidades do Rio, o cavalheiro termina de expor suas
observações com a seguinte solução: "Se tivermos um pouco de habilidade ou de
paciência, poderemos atrasar doze meses exatos, e então a moda belo-horizontina
deste ano ficará perfeitamente sincronizada com a moda carioca do ano passado".
(ANDRADE, 1987, p.148)
É interessante ressaltar que Barba Azul narra por meio do discurso de
outrem, no caso, de um cavalheiro anônimo que observa um tipo de lazer recorrente
no contexto de 1930. Com essa estratégia, tomando emprestadas as observações
desse cavalheiro, que acompanha o cotidiano da capital mineira, Barba Azul, de
certa forma, endossa a proposta enunciada na sua primeira crônica. Ou seja, a de
que ele é apenas um programa que apresenta as futilidades para os leitores do
84 jornal. Assim, mais uma vez se põem à mostra as artimanhas do pseudônimo de
Carlos Drummond de Andrade que tanto na escuridão de Belo Horizonte, quanto no
esporte em voga, encontrou formas de (re) ler a cidade criticamente.
4.3 Da conversa com as leitoras aos fios da barba
Desde a escrita das narrativas de estreia no Minas Gerais, Barba Azul
demonstrou interesse em manter relações com o seu público leitor, e, não
gratuitamente, dispôs uma senha para selar tais interlocuções, como já visto. Mas é
bom lembrar que, ao final desse mesmo texto, o pseudônimo contradiz a existência
de um Programa, título da crônica, e afirma que a sua preocupação única era:
“aborrecer pouco, aborrecer o menos possível”. (ANDRADE, 1987, p. 146).
A partir dessa intenção, é relevante pontuar que grande parte desse público a
quem Barba Azul remetia suas crônicas era composto por mulheres. Ressalta-se,
também, que esse traço se relaciona basicamente a dois fatores: o primeiro diz
respeito aos assuntos por ele abordados nos textos que levavam sua assinatura,
sobretudo, a moda. O outro se associa diretamente ao nome do pseudônimo, Barba
Azul. Levando-se em conta a interlocução com os seus leitores, bem como as
estratégias envolvidas na construção do pseudônimo, será analisado, através das
crônicas, o tratamento dado à mulher.
Pensando no aspecto de volubilidade, peculiar ao personagem, em relação ao
público feminino, destacam-se as narrativas “Receita de doce” e “O doce incomível”,
publicadas em 21 e 22 de junho 1930, respectivamente. Num primeiro momento,
tomando o título da primeira crônica, pode-se inferir uma espécie de consonância
com a proposta geral de Barba Azul, quando esse mencionou no seu programa a
possibilidade de abordar os “mil assuntos terrestres”. Nesse sentido, indicar uma
receita de doce aos seus leitores não é uma ação que fugiria da pauta. Assim, a
questão que ora interessa é a forma como o autor lidou com esse gênero em sua
narrativa, transcrita a seguir:
85
Receita de doce Faça este doce para sobremesa de hoje: Algumas maçãs descascadas. Cortam-se em pedaços de tamanho regular e põem-se num prato fundo. Salpica-se com açúcar e rega-se com rum; de vez em quando sacode-se o prato, que deve estar coberto. Meia hora de maceração. Põem-se numa tigela três colheres de farinha de trigo (50 gramas), juntam-se duas gemas, uma pitada de sal, outra de açúcar, uma colherinha de conhaque e outra de azeite. Tudo isso é misturado com carinho, juntando-se um pouco d’água, que baste para formar uma massa rala. Mergulha-se cada pedaço de maçã da massa e frita-se na gordura ou no azeite. E aí temos uns excelentes beignets de maçã, que podem ser caramelizados com um pouco de açúcar cristalizado por cima. Serve-se tout de suite. (ANDRADE, 1987, p.166)
Em linhas gerais, pode-se dizer que se trata de uma crônica-receita, pois a
organização do texto apresenta a seguinte estrutura: título, ingredientes e modo de
preparo. Observa-se, porém, no texto, a ausência do título da receita em si, que só
aparecerá no corpo da narrativa - beignets de maçã. No lugar dos ingredientes, o
narrador vai direto ao modo de preparo. Assim, ao descrever a sequência da receita,
ele confere ao seu texto o traço de narrativa. Em outras palavras, os passos de
preparação de uma sobremesa resultam na confecção da crônica. Para alguém que
se aventurou numa área ligada à culinária, misturando as partes de uma receita,
intrometer-se como chef foi uma atitude de sucesso? É o que o leitor do jornal pôde
conferir na crônica “O doce incomível”:
Recebi, hoje, pela manhã, a carta que dou abaixo: “Sr. Barba Azul - Quando acabei de fazer o doce que o Sr. recomendou na sua palestra de ontem com os leitores do “Minas”, e que o provamos, meu marido virou-se para mim e disse: “Mande isso para o Barba Azul, com um cartão perguntando se foi com uma droga dessas q ue ele matou as suas sete mulheres” . Palavra que tive vontade de fazê-lo, mas como as mulheres nunca devem obedecer aos maridos, porque senão eles abusam, deixo de enviar o doce mas envio estas linhas. É o cúmulo, Sr. Barba Azul! O sr. subscrever uma receita de sobremesa onde entra azeite em doces de maçãs! No fundo, eu fui uma boba de experimentar em casa as suas receitas de doce. Se visse a cara de meu marido depois que provou o prato, decerto deixaria de ser doceiro. No mais, continuo sua admiradora, em termos. - L... de S...” Peço perdão à minha gentilíssima correspondente e ao seu marido. A receita saiu com um erro de revisão. Onde está “depois de feito, serve-se tout de suite”, devia estar “jogue-se fora imediatamente”. Eu peço perdão. (ANDRADE, 1987, p.168, grifo nosso)
Considerando o assunto que aproxima as duas narrativas, é importante
observar como o autor se apropriou de outros gêneros textuais, receita e carta, para
compor as suas crônicas, reforçando o aspecto híbrido desse tipo de texto. Nesse
86 sentido, a atitude da leitora aborrecida com a estranha receita de Barba Azul, ao
enviar uma dura crítica ao cronista, permite vislumbrar um dos desdobramentos do
gênero no espaço do jornal: a carta do leitor (verdadeira ou fictícia). A apropriação
da carta, no plano estrutural, resulta na imagem de uma crônica-carta, pois em uma
rápida leitura da narrativa tem-se, primeiramente, como discurso de Barba Azul, o
primeiro e último parágrafos. Graficamente, o discurso que pertenceria à leitora
encontra-se entre travessões. Por isso mesmo, é importante focar o conteúdo da
carta da leitora do “doce incomível”, para desvelar mais uma artimanha do
personagem/autor.
O jogo enunciativo, encenado no espaço textual da crônica, muito diz daquele
que o propôs. Como bem observou Porto (2008):
a reclamação sobre a receita pode indicar que haveria uma relação de confiança estabelecida entre o cronista e o público, e que ao publicar uma receita que não deu certo, esta relação foi senão totalmente rompida, sofreu algum tipo de abalo. (PORTO, 2008, p.15).
Tal leitura é pertinente, sobretudo quando se retoma o trecho em que a leitora
finaliza sua carta: “No mais, continua sua admiradora, em termos. - L... de S ...”
(ANDRADE, 1987, p.168, grifo nosso). Pensando na relação leitora/Barba Azul,
algumas questões emergem a respeito da feitura da crônica, tais como: por que a
leitora aborrecida não assinou o seu nome completo? Que efeito de sentido há no
fato de essa admiradora se referir ao seu esposo durante a exposição da crítica à
receita? Há possibilidade de entrar no jogo de Barba Azul?
Independente das respostas a essas indagações, o que se propõe é puxar
alguns fios da construção do personagem, iniciando-se pela assinatura da leitora
chateada. Ora, dizer que essa saída foi para manter o seu anonimato diante da
cidade belo-horizontina parece uma leitura ingênua, uma vez que no cenário de
Barba Azul os detalhes são imprescindíveis para a leitura de sua performance. Esse
procedimento textual, atribuído à leitura, é típico do criador maior dos personagens,
Carlos Drummond de Andrade. Como discorrido no capítulo anterior, o poeta criou
pseudônimos com nomes completos e também aqueles que foram apresentados
pelas iniciais. Frise-se que o próprio Carlos Drummond de Andrade assinou várias
vezes as iniciais de seu nome, C.D. A e C.D. Talvez o uso mais ousado desse
recurso, por parte do escritor, tenha sido o empregado na assinatura da crônica “A
87 cidade verde” em que ele grafou apenas Y.
Partindo desse quadro criativo, no que diz respeito às estratégias utilizadas
pelo escritor na abordagem dos nomes, nasce uma desconfiança com relação à
autoria da carta. De um modo geral, essa dúvida redimensionará a leitura da
crônica. Até aqui a imagem construída da figura sob tal pseudônimo é a de um leitor
corrosivo da cidade em que estava inserido. Diante disso, questiona-se: a
reclamação da “admiradora de Barba Azul” é pertinente ou a publicação da receita
de doce seria uma pilhéria com os seus leitores?
A resposta a essa indagação, de alguma forma remete ao “programa”
apresentado pelo narrador, uma vez que ele sarcasticamente menciona que sua
preocupação era aborrecer um pouco, no caso, os seus leitores. Independente de a
carta ser verdadeira, o que se tem aí é um contraponto criado pelo cronista.
Quando se desloca o foco para o pseudônimo, tem-se a dimensão do jogo
narrativo aí empreendido. Tanto a receita quanto a carta que a critica são o
resultado da criação literária de Barba Azul. Um percurso investigativo de suas
manobras textuais revela a farsa por ele encenada. Parte desse efeito de sentido
pode se ler no título da crônica do dia seguinte, pois o ‘doce incomível’ cria a
imagem do pseudônimo que foi delineada pela leitora virtual, na carta enviada ao
jornal. Aos olhos dessa leitora, o cronista se tornou uma figura intragável.
No confronto das ideias contidas na primeira crônica de Barba Azul com a
situação dessa senhora, percebe-se que ela representa todo o público leitor do
personagem. Em outras palavras, aquele que contrariasse o acordo assinado
apenas pelo pseudônimo, amargaria consequências semelhantes às da leitora L. de
S. Num tom coloquial, ele assim poderia propor: não se brinca com aquele que tem
como intenção lhe aborrecer.
A partir dessas artimanhas é que se pode perceber a elaboração de um
pseudônimo, e, mais do que isso, a (re) construção de um personagem que vai
assinar por dois meses as crônicas do jornal em que Carlos Drummond de Andrade
era colaborador. Nesse sentido, quando a leitora virtual mencionou em sua a carta a
opinião do marido revelou-se uma importante pista acerca do personagem
drummondiano. Para melhor explicitar isso, é oportuno reler o trecho em que a
referência ao personagem de Perrault aparece de forma explícita no comentário do
marido: “Mande isso para o Barba Azul, com um cartão perguntando se foi com uma
droga dessas que ele matou as suas sete mulheres”. (ANDRADE, 1987, p.168).
88 Com essa posição do marido anônimo, percebe-se o espelhamento entre o Barba
Azul, pseudônimo drummondiano, e o personagem homônimo de Perrault, ambos
relacionados ao “aborrecimento” causado às mulheres. Não se pode esquecer, é
claro, da sedução que perpassa a escrita do cronista. Nota-se uma forma educada
de se interagir com a leitora. Dessa forma, as atitudes do lendário Barba Azul de
Perrault lançarão uma luz às ações do personagem que Carlos Drummond de
Andrade utilizou para assinar seus textos.
“Barba Azul era um homem que possuía belas mansões no campo e na
cidade, baixela de ouro e prata; móveis floreados e todas as carruagens douradas”
descreve Perrault (1997, p. 101). Mas por infelicidade tinha uma estranha barba
azul, que passou a nomeá-lo. Essa característica o tornava tão feio que não havia
mulher ou donzela que fugisse dele. Para atrair o interesse das mulheres, ele fazia
bom uso de sua riqueza, proporcionando a suas pretendentes passeios, viagens,
presença em festas elegantes.
Esses galanteios contribuíram para que ele se casasse várias vezes, e todas
as suas mulheres tinham desaparecido sem deixar vestígio. Há versões da história
que confirmam que o personagem Barba Azul matou sete mulheres. Casou-se,
então, com uma jovem, a quem deu as chaves da casa, mas a proibiu de entrar em
um pequeno gabinete no porão. Tomada pela curiosidade, a jovem visita o quarto
durante uma viagem do marido e constata que o aposento estava repleto de
cadáveres pendurados, com o chão todo coberto de sangue. A chave cai de sua
mão e ganha uma indelével mancha de sangue, a denunciar sua desobediência. O
tenebroso protagonista decide então matá-la, como fez com suas antecessoras. Por
sorte, os irmãos da jovem esposa chegam a tempo de salvá-la. Eles atravessam o
corpo de Barba Azul com uma espada e ali o deixam morto. Por fim, a esposa acaba
por herdar toda a riqueza do marido. Seguindo os moldes da narrativa fabular, esse
conto apresenta em seu desfecho duas moralidades:
Aprazível embora, a curiosidade Traz muitas vez contrariedade, Como com mil exemplos é possível provar. Trata-se de um prazer, mau grado o sexo, vão. Custa a atingir e vai-se ao ar Mal se lhe toca com a mão. Outra moralidade Mesmo quem seja um pouco tonto
89
E pouco saiba desta vida Vê logo que este belo conto É de uma era assaz antiga Não há já esposos tão terríveis A exigir só impossíveis. Mesmo zangado e ciumento, Ao pé da dama é ele sempre obediente; Mesmo que tenha a barba azul ou doutra cor, Não se distingue qual dos dois é mais senhor. (PERRAULT, 1997, p.108)
Diante do enredo do conto, evidencia-se a releitura que Carlos Drummond de
Andrade fez desse personagem para construir o seu pseudônimo. Além das
referências explícitas na tessitura de suas crônicas, saliente-se dois pontos que
merecem destaque ao longo da narrativa de Perrault (1997): a questão da chave
proibida e o número de vezes que o personagem se casou. A relevância desses
pontos se encontra no fato de eles servirem como operadores de leitura das
crônicas assinadas pelo personagem drummondiano. Para isso, faz-se necessário
focar a cena do conto em que Barba Azul deixa a sua última esposa para realizar
uma viagem de negócios:
Quanto a esta chavinha, é a chave do gabinete que fica ao fundo da grande galeria térrea; nesse pequeno gabinete proíbo-vos, porém de entrar, e proibo-vo-lo de tal modo que, se acaso o abrirdes, tudo podereis esperar da minha cólera. (PERRAULT, 1997, p.102)
A cena enunciativa aí representada é bastante simbólica, já que propicia uma
leitura ainda mais verticalizada do jogo narrativo proposto nas crônicas “Receita de
doce” e “O doce incomível”. Na relação com o interlocutor, a atitude dos
personagens de Perrault (1997) e Carlos Drummond de Andrade se aproxima. O
sinal desse diálogo encontra-se na metáfora da chave. Assim como as mulheres que
Barba Azul desposava, para depois matá-las, por essas desrespeitarem o
combinado por ele proposto, o pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade
tornar-se-ia intragável aos leitores que desrespeitassem o contrato de leitura por ele
empreendido, como ocorreu com a leitora que ficou aborrecida com a sua esdrúxula
receita.
Ao se levar em conta a cólera do personagem do conto, tem-se, na pilhéria
construída pelo cronista, a dimensão do que este seria capaz de provocar em seus
leitores. Dessa forma, o excerto acima permite uma reflexão acerca da atuação do
90 personagem drummondiano. Reconhece-se, obviamente, que se trata de uma
releitura que o poeta realizou do famoso personagem e, no entanto, a construção do
seu pseudônimo carrega traços mais leves no que concerne à tragicidade. No
espaço da riqueza, da feiúra, dos crimes dos quais o primeiro se ocupava, encontra-
se um crítico da cidade de Belo Horizonte dos anos 1930, motivado por sarcasmo,
humor e ironia.
Quanto ao segundo aspecto do enredo, tem-se que o Barba Azul de Carlos
Drummond de Andrade, além de levar em conta a interlocução com as mulheres,
apropriou-se do número de vezes que o personagem de Perrault casou, como
consta na crônica “Bilhete à oitava mulher”, evidenciado já no título do texto. Trata-
se de uma das últimas narrativas assinadas pelo pseudônimo, publicada no dia 22
de julho de 1931. Nela o cronista, mais uma vez, vai receber críticas do seu público
leitor. Só que nesse caso, o teor da reclamação é mais específico, uma vez que se
direciona à escrita do personagem. Na primeira parte da resposta ao bilhete de sua
ácida leitora, nota-se uma espécie de atmosfera de galanteios, por parte do
narrador; um charme disfarçado com intuito de enaltecer a remetente da mensagem:
Escrever todos os dias para você uma coisa amável é a obrigação mais doce do mundo, leitora. Mas há dias em que você prefere os ácidos aos doces e não acha gosto naquilo que a gente escreve para você. Certamente ontem foi um desses dias. Daí o bilhete que você me mandou e eu não publico só para fazer inveja aos meus semelhantes. Uma impertinência de mulher vale mais que dois carinhos da mesma mulher. E se eu contasse aos duzentos mil leitores do “Minas” que você foi impertinente comigo, eles todos ficariam gostando pouco de mim e muito de você. (ANDRADE, 1987, p. 208)
A postura de Barba Azul, nesta crônica, difere também daquela adotada em
“O doce incomível”, pois aqui ele, estrategicamente, recusa-se a publicar o bilhete
que macularia sua imagem de bom cronista em relação a outros colaboradores da
época. Mas também esconde do leitor o jogo de sedução em que se envolve. Para
isso, ironicamente inicia a crônica-resposta de forma suave, aspecto conferido nas
primeiras palavras que emprega. Daí, talvez, a escolha da frase impactante por ele
empregada: “Uma impertinência de mulher vale mais que dois carinhos da mesma
mulher.” (ANDRADE, 1987, p. 208). Trata-se de um jogo de sedução com a leitora.
Ele adoça a atitude daquela leitora que critica o seu estilo, para depois amargá-la
com o ácido teor irônico, presente na sequência da narrativa:
91
Oh! Você não foi impertinente comigo. Você disse que o Yves do “Fon-fon” escreve melhor do que eu e não é tão convencido. Você se esqueceu de uma coisa: o Berilo Neves da “Careta” escreve muito melhor do que o Yves do “Fon-fon” e portanto muitíssimo mais ainda do que Barba Azul, seu criado. E é muitíssimo mais convencido do que nós dois juntos. (ANDRADE, 1987, p. 208)
Aí, Barba Azul apresentou uma desenvoltura diferente em relação à outra
narrativa. Pode-se dizer que ele teve uma de suas características atingida: a
imodéstia. O que o personagem vê como saída é argumentar à sua leitora que
existem cronistas mais convencidos do que ele.
Quando se afirma ser esse um tratamento singular à sua leitora é porque
dessa interlocução muitos fios que permitem o cruzamento com a história contada
por Perrault se colocam à mostra. Percebe-se que o cronista, a partir dessa
mensagem, redimensiona a sua atuação diante do leitor, reapresentando assim sua
imagem e proposta:
Você disse que não sabe como é que eu posso ser tão frívolo assim. Menina, quem lhe contou que eu sou frívolo? Meu nome é um programa. Eu sou aquele que liquidou sete mulheres enquanto o diabo esfregava um olho. Eu não sou brinquedo. Eu sou muito homem de apanhar você e [...] (ANDRADE, 1987, p. 208, grifo nosso)
Note-se que Barba Azul aí retoma o primeiro texto escrito nas páginas do
jornal. Ao relembrá-lo à sua leitora, ele permite que tal narrativa seja relida de uma
forma ainda mais ampla, pois quando afirma que programa é o nome dele, a
proposta da senha frivolidade se torna ainda mais forte. Observe-se que, quando o
personagem recorre ao texto de estreia no Minas Gerais, traz consigo a referência
explícita ao Barba Azul de Perrault. A aproximação realizada ao final do excerto é
tão convincente que dá a impressão de que quem emite tais palavras é o tenebroso
assassino. As reticências do trecho apontam para mais um iminente crime. Mas
como saiu da pena do Barba Azul drummondiano, a cena se torna engraçada,
sobretudo, quando esse dá continuidade à sua narrativa:
Não. Paro aqui. No fundo você tem razão. Quem já liquidou sete mulheres não tem sustância para liquidar oito. Oito também é demais, e sucede que você é a oitava, isto é, a que veio “vestida de púrpura e com andar de rainha”, para vencer e pisar na gente. (ANDRADE, 1987, p. 208, grifo nosso).
É interessante analisar a forma como esse pseudônimo demonstra, ao longo
do seu discurso, os fios que se entrelaçam na construção do personagem. A ironia
92 do Barba Azul que assina as crônicas na seção Um minuto, apenas tem origem na
sagacidade do personagem de Perrault. Nesse sentido, os dois também terão como
embaraço a figura de uma mulher. No caso do pseudônimo, a leitora que o critica.
Para o outro, a oitava esposa que descobriu seu estratagema. Levando-se em conta
o traço machista que perpassa a trajetória do pseudônimo assinado por Carlos
Drummond de Andrade, percebe-se, na citação acima que, ao se referir à última
mulher, ele reafirma as ações do personagem de Perrault. Nesse jogo submete-se,
no entanto, ao poderio da sedução feminina.
Não se pode perder de vista a cena enunciativa que atravessa o texto: um
cronista que responde às críticas de sua leitora. Nessa resposta que se mistura com
as características de um jogo de argumentação, é preciso desconfiar dos elogios
atribuídos a essa oitava mulher, uma vez que se refere àquela que derrotou o outro
personagem, e que, metaforicamente, encontra-se corporificada nas atitudes da
leitora da coluna jornalística. Por esse viés, o Barba Azul drummondiano, ao
enaltecer a figura feminina, procura uma justificativa para o seu ponto fraco, como
identificado na sua relação com outros cronistas convencidos. Esses argumentos
serão encontrados na trajetória de personagens que também foram derrotados por
mulheres:
O chamado Sansão, que devia ser meu primo, não ficou valendo de nada depois que lhe apararam o cabelo. O Barba Azul de Perrault e os Gilles de Rais de Anatole France são hoje dois sujeitos escanhoados. Com a barba foi-se a truculência. (ANDRADE, 1987, p. 208)
Neste trecho da crônica, Barba Azul endossa o seu ponto de vista valendo-se
de duas histórias: a que ele teve como origem e a de Sansão. O livro de Juízes
narra que Sansão era um homem muito forte, gozava de prestígio entre as mulheres
e era tremendamente temido pelos homens. Por ter esses atributos, ele contava com
um grande número de inimigos. Em uma ocasião, Sansão rasgou a boca de um leão
sem usar nenhum instrumento cortante. O livro bíblico narra também que ele
amarrou 300 raposas, uma a uma pela cauda, e ateou fogo. Colocou as raposas nas
plantações dos filisteus. Tudo foi destruído, tanto o que estava para ser colhido,
como também as vinhas e os olivais. Todos os filisteus ficaram atônitos, porque
ficaram sabendo que foi somente um homem que causou tamanha destruição.
Diante dessas ações, as pessoas começaram a se perguntar de onde vinha a força
93 daquele. Para se chegar à resposta, esses inimigos contaram com um ponto fraco
de Sansão: ele não resistia às mulheres. Nesse cenário surge uma mulher “vestida
de púrpura e com andar de rainha”, Dalila. Ele se apaixonou por ela e passou a fazer
tudo o que ela pedia. Por duas vezes Dalila enganou Sansão, mas, como se
estivesse com os olhos fechados, ele não conseguia perceber. Ela queria saber,
instigada pelos inimigos de Sansão, de onde vinha a tremenda força que ele
possuía. Num jogo de sedução, o personagem bíblico revelou o seu segredo: a força
estava no cabelo. Dalila o fez adormecer e mandou que raspassem os cabelos
longos de Sansão, de modo que ele perdeu sua grande qualidade.
Com esse enredo bíblico, o argumento do pseudônimo se fortalece. Ao fazer
o cruzamento dessa história com a do Barba Azul de Perrault, nota-se que a figura
da mulher é responsável pela derrota desses personagens. O que seria de Barba
Azul sem as suas estratégias, sem a atmosfera tenebrosa contida na sua horrenda
barba? A atribuição ao pêlo dessas figuras caracteriza o traço de masculinidade,
pois com o cabelo foi-se a força e “com a barba, a truculência.”
Posto assim, a referência a essas histórias corrobora o discurso do
pseudônimo, apresentando, humoristicamente, a informação de que o bilhete da
oitava mulher provocou uma espécie de desarranjo no trabalho do cronista, no que
diz respeito ao seu ar convencido e caráter frívolo. Dessa forma, o pseudônimo de
Carlos Drummond de Andrade compõe a tríade de “personagens derrotados por
mulheres”. O que seria do Barba Azul sem a imodéstia?
Outro ponto que merece destaque na citação acima é a maneira como o
pseudônimo atualiza a fragilidade da tríade. Barba Azul, contextualmente, encontra a
causa, o objeto que justifica a derrota dos seus colegas: “A gilette acabou com a
nossa prosápia . Graças à americanização do mundo, uma mulher hoje pode acabar
com sete homens,”(ANDRADE, 1987, p. 208, grifo nosso). Reafirmando
ironicamente o seu perfil machista, ele adverte que isso “não convenha devido à
carestia.” Após tecer toda essa argumentação à sua leitora, figura que
metaforicamente condensa as personagens Dalila e a oitava mulher de Barba Azul,
o cronista retoma seu traço zombeteiro, finalizando da seguinte forma: “E até
amanhã, se você quiser.”
Com essa narrativa, uma das últimas assinadas sob tal pseudônimo na
coluna do Minas Gerais, muitos fios permitiram revisitar a textualidade literária de
Carlos Drummond de Andrade , sobretudo no que diz respeito à nítida recriação de
94 um personagem com perfil muito bem delineado. Dessa forma, é possível afirmar
que a atuação desse personagem no espaço do jornal, nos meses junho e julho de
1931, foi uma atitude planejada por parte do diretor da cena, o escritor Carlos
Drummond de Andrade.
A leitura das crônicas assinadas por Barba Azul revela traços distintos em
relação aos textos que receberam a assinatura de Antônio Crispim. Além de
narrativas mais curtas, como já mencionado, Barba Azul encontra-se mais próximo
do leitor e "desse contato” com seu público, desponta um sujeito mais ousado em
suas críticas à modernidade. Sua postura diante da escrita demonstra o perfil de
alguém mais sarcástico, performático na relação, sobretudo, com as mulheres.
Acredito que essas características singulares atribuídas ao pseudônimo se devem à
apropriação de elementos explorados do conto homônimo de Charles Perrault. Daí,
então, a imagem de um perfil mais elaborado. Acredito que essas características
singulares atribuídas ao pseudônimo se devem à apropriação de elementos
explorados do conto homônimo de Charles Perrault, porém resultando na imagem
de um perfil mais elaborado.
95 5 CONCLUSÃO
Nas análises empreendidas pela pesquisa, procurou-se investigar as
configurações da moderna cidade de Belo Horizonte - planejada como tal em fins do
século XIX - nas narrativas do livro Crônicas 1930 - 1934, de Carlos Drummond de
Andrade. Como visto, o trabalho contemplou as crônicas publicadas nos anos de
1930 e 1931, com exceção de “Os que partem”, texto de 1932. Embora o título do
livro indique um período de quatro anos, as narrativas dos anos iniciais
compreendem a maior parte do corpus.
O conceito de espaço relacional, proposto pelo geógrafo Milton Santos
(1997), que se amplia com a postura de Doreen Massey (2008) no tratamento do
tema, foi de grande importância para o entendimento das relações engendradas na
esfera urbana. Através dessa abordagem, foi possível vislumbrar os muitos
caminhos que constituem o fenômeno urbano e compreender o traço da
multiplicidade, comumente associado às configurações da cidade.
Se por um lado, a contribuição conceitual desses geógrafos ampliou a visão
do espaço da/na cidade, por outro, as pesquisas de Walter Benjamin (1989)
lançaram uma luz sobre as reflexões tecidas neste trabalho sobre a cidade moderna.
Ao eleger Paris como sede da modernidade, a partir da análise da obra de Charles
Baudelaire, os estudos do teórico permitiram um melhor entendimento das
transformações ocorridas em outras cidades que a tiveram como modelo, tais como
Rio de Janeiro e a própria Belo Horizonte.
Nesse sentido, foi prudente recorrer a dois conceitos/tipos estudados pelo
filósofo alemão, o do flâneur e o do cronista, concebendo-os como operadores de
leitura de algumas crônicas de Carlos Drummond de Andrade. E com base nas
características dessas figuras, em constante movimento, adotou-se a expressão
cronista-flâneur, aproximação que permitiu melhor analisar o trânsito dos sujeitos
narrativos.
O estudo da cidade no cenário da modernidade possibilitou a construção da
equação cidade/modernidade/jornal/crônica. Viu-se que esses elementos estiveram
intimamente relacionados, podendo ser lidos como produtos da modernidade.
Observou-se, no entanto, que, mais que produtos, eles revelam o processo desse
momento com suas contradições.
96
Os acontecimentos e as impressões acerca do cotidiano da capital mineira
eram partilhados com o leitor das crônicas de Carlos Drummond de Andrade,
publicadas no jornal Minas Gerais, importante órgão do estado de que o autor era
redator na época. Assim, mover um dos elementos da equação, no caso, as
crônicas, significou lidar com avanços, transformações e conflitos gerados pela
modernidade.
Importa salientar, sobretudo, que a literatura configura-se como uma ponte, e,
no caso específico desta pesquisa, uma ponte que permitiu nos transportar para o
cotidiano da cidade de setenta e oito anos atrás. Entretanto, na impossibilidade de
ler o todo de uma esfera urbana, recorreu-se ao emprego da palavra percurso ,
ancorando-se nas ideias de Certeau (1999) ao pontuar que esse imprime movimento
ao mapa, recriando-o.
Ademais, a pesquisa confirmou ser a literatura também uma espécie de
percurso pelo rico cenário da cidade. Foi no trabalho com a linguagem, na lapidação
das palavras, no jogo de ironia, na sutileza das críticas que a cidade da década de
30 pode ser lida nas crônicas de Carlos Drummond de Andrade, reforçando a ideia
da literatura como palco que encena o modo como determinado contexto,
determinada realidade são percebidos.
Assim, a crônica se mostrou como o elemento mais relevante da equação
proposta pela pesquisa, consolidando-se como percurso; espaço que acolheu as
representações que Carlos Drummond de Andrade fez da cidade moderna. Na
construção das crônicas, foi a própria construção da cidade, com seus paradoxos e
ambiguidades, que se ergueu aos olhos do leitor. Ao retratar o cotidiano da cidade
nos anos de 1930, percebeu-se a profusão de vozes ouvidas nas crônicas,
mostrando os diferentes olhares que constituíam a própria cidade como sinônimo de
multiplicidade; como mistura de histórias várias. (MASSEY, 2008).
É interessante ressaltar que para o estudo dos pseudônimos, a abordagem de
Michel Foucault (1992) sobre a figura do autor foi de grande importância para que se
percebesse a forma como Carlos Drummond de Andrade, ao assinar em suas
crônicas Barba Azul e Antônio Crispim, exerceu a função-autor. Na esteira desses
pseudônimos, constatou-se que ao longo de sua carreira jornalístico-literária, o
poeta recorreu a esse procedimento em diversos momentos, confirmando aí a sua
“variedade de eus” a legitimar o traço polifônico que caracteriza a cidade como um
feixe de histórias.
97
Ao fazer dialogar o texto “Bom viver”, assinado por Antônio Crispim, com o
romance A Capital, de Avelino Fóscolo, constatou-se o forte traço de provincianismo
que perpassou a história da capital mineira. Escrita vinte e sete anos depois da
publicação do romance, a crônica ampliou as lacunas apontadas por Fóscolo na
construção da cidade moderna. No lugar dos sonhos de uma capital feérica, a
escuridão e o atraso peculiares das cidades interioranas do Estado. Na ausência de
atrativos culturais que pudessem mudar a rotina do espaço, genuinamente moderno,
o que se leu foi a sensação de um tédio que marcou definitivamente a história da
cidade. O delírio da inauguração da capital, delineado no romance de Fóscolo,
desemboca num cenário carente, pacato e mórbido na cidade-texto de Antônio
Crispim, mostrando que a vida da capital mineira muito se aproximava das antigas
províncias, embora fosse um espaço urbano e, por excelência, moderno. A partir
dessa abordagem de gêneros da literatura da cidade, percebeu-se o traço das
contradições recorrentes da modernidade.
Nas discussões em torno do par provincianismo/cosmopolitismo, notou-se
que as crônicas de Antônio Crispim criticavam não só esse par, mas também as
políticas públicas, as posturas municipais e, mais fortemente ainda, a própria
modernidade atropelando tudo e todos em nome do novo, do progresso. Tudo isso
deixou entrever, em seus textos, o sentimento de angústia, desencanto e melancolia
frente às rápidas mudanças.
Já em relação às crônicas assinadas pelo pseudônimo Barba Azul, tem-se
que as mesmas deixaram transparecer um sentimento mais favorável a tais
mudanças, como se essas fossem realmente imprescindíveis para consagrar a
cidade como modelo de modernidade. Assim, parece que o enunciador, ao encetar
duras críticas ao provincianismo da capital mineira, mostrou-se a favor do desapego
à tradição e da consequente aceitação das transformações inauguradas pela
modernidade. Tais posturas evidenciam o paradoxo do homem moderno, ou do
próprio escritor, exposto, então, nos dois personagens.
É interessante observar, ainda, que nas crônicas assinadas por Barba Azul, a
ironia parece ultrapassar os limites da capital mineira, podendo ser estendida à
cidade do Rio de Janeiro, que foi a primeira a ser ajustada aos padrões da
modernidade. É o que se constatou na leitura da crônica “Golfinho e outros
substantivos” ao apontar a inadequação da moda nas respectivas estações do ano.
Mais ainda, destaque-se o olhar crítico e sutil lançado à noite belo-horizontina em
98 “Luzes da cidade”. As luzes, símbolo da modernidade, ironicamente, iluminaram a
ausência de atração cultural na capital mineira.
Nas narrativas “Kodack”, “Avenida ao sol” e “Amigos do verde”, assinadas por
Antônio Crispim, imprime-se o perfil de um cronista também crítico, porém nostálgico
e até mesmo melancólico, característica peculiar na trajetória do autor. O traço
afetivo permeia-se ao histórico, delineando trajetos do que hoje se chama
geopoética.
A forma como Carlos Drummond de Andrade explorou o espaço do jornal
aproxima os dois pseudônimos - guardadas, é claro, as peculiaridades de cada um -
na medida em que eles transportavam para o jornal as imagens colhidas no espaço
da cidade. Isso demonstra o grande conhecimento que Carlos Drummond de
Andrade tinha do formato do jornal na condição de redator-chefe, aliado ao inegável
caráter arguto do escritor e poeta que, ao transformar as imagens da cidade em
palavras, as dispunha de tal modo que parecia saber bem os efeitos que cada texto,
alinhado à respectiva coluna, iria produzir no leitor.
Embora esse traço esteja bem marcado no texto “Os que partem”, de Antonio
Crispim, é nas narrativas de Barba Azul que ele se consolida e se confirma,
sobretudo na adoção do personagem homônimo de Perrault e no pacto que ele
procurou firmar com os leitores do periódico em seu texto de estréia, “Programa”.
Como visto, já nessa crônica de abertura, o autor tentou estreitar a relação com o
seu público leitor, marcadamente feminino. Nessa interlocução, delineia-se, de forma
mais nítida, o perfil desse pseudônimo que levava para seus textos o que observava
da cidade. Atento aos avanços dos meios de comunicação pode-se dizer que o
poeta, sob o pseudônimo Barba Azul, configurou-se como uma espécie de
apresentador de rádio, porém valendo-se do jornal da Belo Horizonte dos anos 30.
Pode-se dizer que a imagem que se construiu desses pseudônimos está
diretamente relacionada à questão da textualidade, magistralmente explorada por
Carlos Drummond de Andrade, sobretudo na feitura do texto. O modo como ele
organizou as crônicas, de forma a alcançar um objetivo junto a seu leitor,
demonstrou as condições de produção das mesmas, principalmente no que se
refere ao trânsito dos sujeitos narrativos, à intencionalidade ao abordar os assuntos
que estavam na ordem dia, à imagem mental que tinha de seus leitores, ao diálogo
travado com outros textos em um arguto exercício de intertextualidade. Escritas
assim, as crônicas representaram muito mais do que simples informações impressas
99 no Minas Gerais sobre o cotidiano da capital mineira.
Diante de todas as estratégias textuais adotadas por Carlos Drummond de
Andrade e das configurações que fez da jovem cidade, a crônica pode ser vista,
pois, como um espelho da equação cidade/modernidade/jornal, já que as
contradições contidas no interior do próprio gênero em estudo retratam, por
conseguinte, as contradições da cidade no impasse do par
cosmopolitismo/provincianismo.
Os textos deixaram transparecer o projeto que tentou erguer uma nova
história da cidade nos moldes da ordem e do progresso, o que implicaria, por
consequência, o apagamento de muitas histórias. Entretanto, num movimento
inverso ao da construção da nova capital, as crônicas fizeram ressurgir histórias que
se queriam apagadas, mostrando que a cidade era muito mais do que pensavam
seus idealizadores. Ela aparece, então, como uma mistura não linear, como lugar de
convívio de diferentes pensamentos, posturas, classes e opiniões; como espaço por
excelência de encontros e desencontros; espaço múltiplo e, por isso mesmo,
complexo, não cabendo nos limites de réguas ou pranchetas.
Para o entendimento dessa imagem da cidade, a relação com o cronista de
Benjamin foi de grande importância à pesquisa, uma vez que Carlos Drummond de
Andrade rompeu com a linearidade da história tradicional e seu conceito totalizante
e uno de progresso. A História da cidade, na concepção dos pseudônimos
drummondianos, permitiu entrever outras versões da vida idealizada no espírito da
modernidade ao mostrar o avesso do cotidiano na capital mineira, reafirmando a
ideia de que o cenário urbano é composto de “histórias” outras.
É assim, pois, que Carlos Drummond de Andrade retratou um momento
particularmente rico da história cultural de Belo Horizonte e de sua gente, como
consta no prefácio da obra Crônicas 1930-1934. Mais do que um retrato do cotidiano
da cidade de Belo Horizonte, as crônicas se configuram como um registro do
percurso daquele que nasceu em Itabira, morou em Belo Horizonte e veio a falecer
na capital carioca, a qual tanto citava como exemplo de modernidade. Isso evidencia
o paradoxo que tomou conta do escritor que nasceu e viveu sob o signo da
modernidade. Paradoxo esse que não se resolve, como se pode ler em poemas que
Carlos Drummond de Andrade escreve mais tarde sobre a capital mineira, a exemplo
de “Triste horizonte” - década de 70 - em que, ao olhar para a cidade já totalmente
mudada, já tornada uma moderna metrópole, o poeta busca na memória as imagens
100 da Belo Horizonte dos anos 30, tão criticada como cidade provinciana.
Inspirada nos vários percursos empreendidos pelo jovem escritor, a pesquisa
encerra seu também percurso pelas narrativas do livro Crônicas 1930-1934,
reconhecendo, no entanto, que vários outros ainda podem ser realizados pela
“cidade que ficou lá adiante com seus ruídos e fogos”.
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