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A CATEGORIA TEMPO VERBAL E O TRATAMENTO EMPREENDIDO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO DA REDE PÚBLICA DE ENSINO Ana Caroline de LIMA, Ana Paula Martins CAVINATO, Maraiza Almeida RUIZ, Nicole Regina RENCK, Stefany Cruz da SILVA & Thamires Madi Pinheiro MORETTE 5 Educação & Docência, Ano2, Número 2 – fevereiro de 2012. P 05-20 A CATEGORIA TEMPO VERBAL E O TRATAMENTO EMPREENDIDO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO DA REDE PÚBLICA DE ENSINO 1 THE VERB TENSE CATEGORY AND ITS APPROACH IN TEXT BOOKS USED IN PUBLIC HIGH SCHOOLS Ana Caroline de LIMA Ana Paula Martins CAVINATO Maraiza Almeida RUIZ Nicole Regina RENCK Stefany Cruz da SILVA Thamires Madi Pinheiro MORETTE 2 Orientadoras: Profas. Dras. Marize Mattos Dall-Aglio Hattnher e Maria Antonia Granville RESUMO: Neste artigo, será abordado o tratamento dispensado ao tempo verbal em livros didáticos adotados pela rede pública de ensino para o Ensino Médio. O objetivo é analisar crítica e comparativamente diferentes obras, contrapondo a descrição empreendida ao tratamento linguístico dispensado ao tema por diferentes autores, e propor encaminhamentos para uma abordagem mais significativa. A análise dos materiais didáticos evidenciou que o tratamento do tempo verbal é predominantemente formal, o que resulta em uma descrição simplista, e, muitas vezes, incoerente, que desconsidera as relações semânticas estabelecidas pelos diferentes tempos verbais em diferentes contextos de uso e, consequentemente, o conhecimento dos alunos sobre a sua própria língua. PALAVRAS-CHAVE: livro didático; tempo verbal; ensino. 1 Trabalho de aproveitamento apresentado às disciplinas Semântica da Língua Portuguesa e Estágio Curricular Supervisionado II: Língua Materna do 4º ano do Curso e Licenciatura em Letras do IBILCE/UNESP. Orientação: Profa. Dra. Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher (Departamento de Estudos Linguísticos e Literários) e Profa. Dra. Maria Antônia Granville (Departamento de Educação). 2 Graduandas do curso de Licenciatura em Letras (UNESP/IBILCE).

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Educação & Docência, Ano2, Número 2 – fevereiro de 2012. P 05-20

A CATEGORIA TEMPO VERBAL E O TRATAMENTO

EMPREENDIDO NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO DA

REDE PÚBLICA DE ENSINO1

THE VERB TENSE CATEGORY AND ITS APPROACH IN TEXT

BOOKS USED IN PUBLIC HIGH SCHOOLS

Ana Caroline de LIMA

Ana Paula Martins CAVINATO

Maraiza Almeida RUIZ

Nicole Regina RENCK

Stefany Cruz da SILVA

Thamires Madi Pinheiro MORETTE2

Orientadoras: Profas. Dras. Marize Mattos Dall-Aglio Hattnher e

Maria Antonia Granville

RESUMO: Neste artigo, será abordado o tratamento dispensado ao tempo verbal em livros

didáticos adotados pela rede pública de ensino para o Ensino Médio. O objetivo é analisar

crítica e comparativamente diferentes obras, contrapondo a descrição empreendida ao

tratamento linguístico dispensado ao tema por diferentes autores, e propor encaminhamentos

para uma abordagem mais significativa. A análise dos materiais didáticos evidenciou que o

tratamento do tempo verbal é predominantemente formal, o que resulta em uma descrição

simplista, e, muitas vezes, incoerente, que desconsidera as relações semânticas estabelecidas

pelos diferentes tempos verbais em diferentes contextos de uso e, consequentemente, o

conhecimento dos alunos sobre a sua própria língua.

PALAVRAS-CHAVE: livro didático; tempo verbal; ensino.

1 Trabalho de aproveitamento apresentado às disciplinas Semântica da Língua Portuguesa e Estágio Curricular

Supervisionado II: Língua Materna do 4º ano do Curso e Licenciatura em Letras do IBILCE/UNESP.

Orientação: Profa. Dra. Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher (Departamento de Estudos Linguísticos e

Literários) e Profa. Dra. Maria Antônia Granville (Departamento de Educação). 2 Graduandas do curso de Licenciatura em Letras (UNESP/IBILCE).

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ABSTRACT: This paper concerns the description of verb tenses in text books given to

students in public high schools. The main objective is to develop a critical and comparative

analysis of these books, confronting the results of this analysis with the description of the

topic which is undertaken by some researches. Moreover, the purpose here is to suggest a

more significant approach of verb tenses. The analysis of the text books demonstrated that

the study of the topic is narrowly formal, resulting in a simplistic, and, frequently,

incoherent description, which ignores semantic relationships established by different verb

tenses in different contexts and, consequently, also ignores students’ knowledge about their

own language.

KEYWORDS: text books; verb tenses; teaching.

Introdução

Segundo Perini (1995), a noção tradicionalmente atribuída ao verbo nas gramáticas

normativas e livros didáticos é puramente formal. Em geral, define-se o verbo como palavra

de forma variável que flexiona em número, pessoa, modo, tempo e voz. Soma-se a isso o

fato de que a análise dessas categorias flexionais também parece ser predominamente formal

e, consequentemente, superficial. Neste artigo, analisaremos o tratamento dispensado ao

tempo verbal em livros didáticos adotados pela rede pública de ensino para o Ensino Médio.

O objetivo é analisar crítica e comparativamente diferentes obras, contrapondo a descrição

empreendida ao tratamento linguístico dispensado ao tema por diferentes autores, tais como

Castilho (2010), Fiorin (1996), Ilari (1997, 2008) e Koch (1987, 2003). Busca-se ainda,

diante dessa análise, propor encaminhamentos para uma abordagem mais significativa do

tema em aulas do Ensino Médio. Para o desenvolvimento do estudo serão analisados os

seguintes livros didáticos: 1) Gramática: texto, análise e construção de sentido, de M. L.

Abaurre e M. Pontara, publicado pela editora Moderna em 2006; 2) Novas Palavras, de E.

Amaral et. al, publicado em 2005 pela FTD; 3) Português: Literatura, Produção de Textos e

Gramática, de S. Y. Campedelli e J. B. Souza, publicado pela editora Saraiva em 2002; 4)

Português: linguagens, de R. W. Cereja e T. C. Magalhães, publicado em 2005 pela editora

atual; 5) Português (Maia): série novo ensino médio, de J. D. Maia, publicado pela editora

Ática em 2004. Além disso, também observaremos o tratamento dado ao tempo verbal nos

Cadernos do Estado do primeiro ano do Ensino Médio, já que, segundo a Proposta

Curricular do Estado de São Paulo, é nessa etapa do ciclo que o tema deve ser abordado.

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O trabalho está dividido em quatro seções. Na primeira delas, serão apresentados os

subsídios teóricos. Discorrer-se-á, brevemente, a respeito do tratamento linguístico dado ao

tempo verbal pelos autores acima mencionados, contrapondo-se, de modo geral, a proposta

desses autores ao modo como o tema é abordado nos livros didáticos. Na seção 2, tem-se a

descrição da abordagem do tema nos livros didáticos e uma análise crítica dessa abordagem,

tendo em vista os conceitos teóricos apresentados na seção anterior. Na terceira seção, é

apresentada uma proposta de abordagem mais significativa do tema para o Ensino Médio.

As considerações finais são apresentadas na seção 4.

1. Fundamentação teórica

Uma análise prévia dos livros didáticos torna evidente que o tratamento da categoria

flexional tempo verbal é predominantemente morfológico.3 Conforme irá se mostrar

adiante, a abordagem que se faz é ancorada em uma visão tradicional da língua, em que não

se distingue morfema de tempo e referência semântica de tempo. Entretanto, conforme atesta

Ilari (1997), não há, nesse caso, correspondência biunívoca entre os recursos expressivos e

os conteúdos expressos. O autor cita o seguinte exemplo, em que a forma verbal do presente

remete tanto a fatos presentes (i) quanto a fatos futuros (ii) ou passados (iii):

(i) X faz anos hoje.

(ii) X faz anos o mês que vem.

(iii) Em 1834 Dom Pedro completa 15 anos e torna-se elegível para o trono

imperial pela lei recém aprovada.

(ILARI, 1997, p. 9)

Nesse sentido, Perini (1991) alerta que, embora seja dada a mesma designação

(tempo) ao tempo formal e à referência temporal que resulta da interpretação semântica, é

preciso descrever claramente a diferença existente entre ambos, já que o tempo gramatical

não é simplesmente uma representação formal do tempo morfológico. Ilari (2008) defende

que se faça uma distinção terminológica entre tempo – que se refere à morfologia do verbo,

isto é, ao conjunto de flexões – e referência temporal – que diz respeito à realidade física ou

3 Conforme irá se mostrar na seção 2.2, apenas a abordagem dos tempos verbais empreendida no Caderno do

Estado foge a essa generalização, pois são considerados tanto aspectos morfológicos quanto aspectos

semânticos na análise dos tempos verbais em uso.

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psicológica que a língua corrente chama de tempo, e em particular, à localização dos eventos

num certo espaço cronológico.

Conforme explicitado anteriormente, o tratamento formal dado ao tempo verbal nos

livros didáticos resulta, muitas vezes, na conclusão equivocada de que há uma relação direta

entre forma e conteúdo expresso, segundo a qual o presente do indicativo, por exemplo,

expressaria somente aquilo que é ou acontece no momento da enunciação. Nesse sentido,

Castilho (2010) ressalta que, ao utilizar a língua, os falantes valem-se de diferentes formas

verbais para obter diferentes efeitos de sentido, a depender de sua necessidade comunicativa.

O autor afirma que:

[…] não utilizamos as formas temporais unicamente para fixar cronologias dos

estados de coisa, situando-nos num tempo real, mensurável pelo relógio, [...] e,

sim, igualmente, para nos deslocarmos livremente pela linha do tempo, de acordo

com nossas necessidades expressivas, refugiando-nos: num tempo imaginário, que

escapa à medição cronológica, ou num domínio vago, genérico, impreciso,

atemporal. (p. 432).

A esse respeito, é exemplar a descrição feita por Fiorin (1996) em As astúcias da

enunciação. O autor apresenta noventa casos de neutralização dos tempos do português –

dentre os quais se pode citar, por exemplo, o uso do presente pelo futuro do presente, para

criar o efeito de sentido de certeza – que, segundo ele, tornam explícito o fato de que “o

tempo é pura construção do enunciador” (p. 191), é efeito de sentido produzido na e pela

enunciação.

A revisão da literatura linguística a respeito da categoria verbal de tempo evidenciou

que, ao tratar do tema, grande parte dos autores defende a importância de se retomar a

proposta do filósofo e lógico Hans Reichenbach, publicada no final da década de 1940 em

obra intitulada Elementos da lógica simbólica. Segundo Ilari (1997), nesse livro

Reichenbach faz uma minuciosa descrição das propriedades lógicas das línguas naturais e,

ao tratar do verbo, defende que a característica central dos morfemas de tempo é a

capacidade de estabelecer uma relação cronológica entre três momentos relevantes para sua

compreensão: (i) o momento da fala ou enunciação (MF); (ii) o momento da realização da

ação expressa pelo verbo (ME); (iii) o momento de referência (MR), entendido como um

ponto a partir do qual é estabelecida a relação entre o momento de fala e o momento do

evento.

Ilari (2008) defende que, para explicar a referência temporal, não basta distinguir

momento de evento (de ação) e momento de fala; o momento de referência também é

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importante, principalmente, para alguns tempos verbais como o pretérito mais-que-perfeito e

futuro do pretérito, pois, para esses tempos o cálculo da referência faz-se em duas etapas: de

um lado, estabelece-se uma relação cronológica entre momento de fala e momento de

referência, e, de outro, entre momento de referência e momento do evento. Conforme será

mostrado na seção seguinte, a descrição dos tempos verbais do português que é apresentada

nos livros didáticos leva em consideração somente o momento da ação e o momento da

fala4, o que resulta em uma caracterização confusa, principalmente no que diz respeito ao

futuro do pretérito.

Para Ilari (2008), o reconhecimento da existência dos três diferentes momentos

propostos por Reinchenbach permite ainda que se resolva algumas ambiguidades de

aplicação dos adjuntos de tempo e se compreenda melhor a noção de perfectividade e as

condições a que obedecem as combinações bem formadas de adjuntos temporais e tempos

do verbo. Somando-se a isso, Fiorin (1996) demonstra que as alterações resultantes da

transposição do discurso direto para o discurso indireto são decorrentes do fato de que,

quando é feita a transposição para o discurso indireto, há uma alteração do momento de

referência.

Neste trabalho, focaremos a descrição dos tempos verbais do português nos livros

didáticos destinados ao Ensino Médio, atentando para a problemática que resulta o fato de

essa descrição ser predominantemente formal e ancorada apenas no momento da enunciação.

Reconhecemos, entretanto, que outros pontos relacionados ao tempo verbal – tais como a

relação entre adjuntos de tempo e tempos do verbo, as transformações das marcas temporais

na transposição do discurso direto para o discurso indireto (mencionadas anteriormente), a

relação temporal que se estabelece entre oração principal e oração subordinada e a descrição

dos conectivos de tempo do português – merecem ser exploradas em estudos posteriores.

2. Descrição e análise

2.1. Similaridades encontradas quanto à abordagem do tempo verbal

Apresentaremos, nesta seção, considerações a respeito das similaridades encontradas

entre os diferentes livros didáticos que constituem o corpus de nosso estudo, quanto ao

tratamento dado ao verbo e, principalmente, ao tempo verbal.

4 Abaurre (2008) considera a existência de um ponto de referência, mas esse é tomado como correspondente ao

momento de fala.

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Conforme adiantado, nos materiais didáticos analisados, pudemos observar que o

tratamento dado ao verbo é predominantemente formal, em virtude da preocupação

excessiva com os aspectos morfológicos e da quase exclusão dos aspectos semânticos

importantes para a abordagem dessa classe. Tal questão fica evidente na definição de verbo

encontrada em alguns dos livros didáticos, dentre as quais se pode citar a oferecida por

Amaral et al. (2005), segundo a qual “verbo é a palavra variável em número, pessoa, tempo

e voz.” (p. 487).

Assim como a definição, também a descrição do verbo nos livros didáticos

analisados é predominantemente (ou quase que exclusivamente) formal, haja vista as longas

listas de conjugação verbal que ocupam a maior parte das páginas dedicadas ao tema no

material analisado. Logo, o tratamento dado ao tempo verbal não poderia ser diferente;

predomina uma descrição formal, da qual resulta a falsa impressão de que há uma

correspondência absoluta entre flexão verbal e referência temporal. Assim, o pretérito, por

exemplo, é descrito nos livros didáticos analisados como o “tempo que indica a ocorrência

de um fato anterior ao momento em que se fala” (CAMPEDELLI e SOUZA, 2000, p. 486),

descrição simplista, que desconsidera os usos que o falante pode fazer da língua a depender

de sua necessidade comunicativa, já que, conforme atesta Fiorin (1996), o pretérito

imperfeito, por exemplo, pode ser utilizado com valor de presente, futuro do presente ,

futuro do pretérito, entre outros..

Além disso, de acordo com essa abordagem morfológica do tempo verbal, as

desinências -rei, -rás, -rá, -remos, -reis e –rão, correspondentes ao tempo verbal futuro do

presente, por exemplo, indicam sempre relação de posterioridade. Esse conceito não é

necessariamente verdadeiro, pois, segundo Fiorin (1996), o futuro do presente pode indicar

também relações de simultaneidade e anterioridade quando há a neutralização desse tempo

verbal, como podemos observar nos seguintes exemplos nos quais o emprego do futuro do

pretérito tem o valor de presente e pretérito, respectivamente: “Por onde andará agora a

alma de dona Eufrásia, que morreu durante um gélido inverno gaúcho, sem nunca sequer ter

mordiscado o fruto do amor (VGP, p. 14)”; “[...] o Realismo [...] é a negação mesma do

princípio da arte. [...] Um poeta, V. Hugo, dirá que há um limite intranscendível entre a

realidade, segundo a arte, e a realidade, segundo a natureza (MA, v. 3, p. 813)”. (FIORIN,

1996, p. 198-200)

Verificamos ainda que, em geral, na maioria dos livros didáticos analisados, o

momento de referência não é considerado ou é implicitamente tomado como correspondente

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ao momento de fala, salvo no material elaborado por Abaurre e Pontara (2008) em que a

associação entre o momento de referência e o momento de fala é explicitada quando a autora

define a noção de tempo:

Tomando-se como ponto de referência o momento da enunciação, os fatos

expressos pelo verbo podem referir-se a um momento presente (o momento em

que se fala), a um momento passado ou pretérito (anterior ao momento em que se

fala), ou ainda a um momento futuro (posterior ao momento em que se fala). (p.

277).

Essa abordagem dificulta o entendimento dos alunos sobre as relações temporais

estabelecidas pelos verbos, principalmente, no que se refere à compreensão dos tempos

verbais futuro do pretérito e pretérito mais-que-perfeito, já que, nesses casos, há, de um lado,

uma relação cronológica entre momento de fala e momento de referência, e, de outro, entre

momento de referência e momento de evento. O entendimento desses três momentos é

importante para que o aluno compreenda as relações de anterioridade, simultaneidade e

posterioridade estabelecidas pelos tempos verbais. Vejamos o exemplo a seguir do emprego

do tempo verbal futuro do pretérito:

Ele disse que João voltaria. ⇒ MR→ ME ← MF

Nesse enunciado, dizer é o momento de referência, que é anterior ao evento João

voltar, e esses dois momentos são anteriores ao momento de fala. Considerando essa

abordagem, notamos que as definições de futuro do pretérito trazidas nos livros didáticos são

confusas justamente por não considerarem o momento de referência, como podemos

perceber nas seguintes definições de Abaurre e Pontara (2008, p. 281) e Campedelli e Souza

(2000, p. 490), respectivamente: “Refere-se a um fato futuro, que pode ocorrer ou não,

relacionado a um fato passado”; “indica o fato que ainda irá acontecer, relacionado com um

fato passado” (grifos nossos). Essas definições bem como outras apresentadas nos livros

didáticos analisados nada ou pouco dizem a respeito do tempo verbal futuro do pretérito e

das relações por ele implicadas.

Outro ponto recorrente encontrado está na associação feita entre as noções de tempo

e aspecto nas definições dos tempos verbais trazidas pelos materiais didáticos, como

podemos notar na definição de pretérito perfeito dada por Cereja e Magalhães (2005, p.

144): “pretérito perfeito: transmite a idéia de uma ação completamente concluída”.

Verificamos que a noção de tempo pretérito e as relações semânticas implicadas por esse

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tempo verbal são desconsideradas, restringindo-se a definição do pretérito perfeito a uma de

suas características, o aspecto perfectivo. Com isso, verificamos que essa associação entre as

concepções de tempo e aspecto privilegia o aspecto em detrimento da descrição dos tempos

verbais em si, o que impede a compreensão do aluno do tempo verbal em sua dimensão

cronológica e discursiva, trazendo prejuízos à aprendizagem dessa categoria.

Com base nos aspectos acima descritos, podemos concluir que o tratamento dado ao

tempo verbal nos livros didáticos analisados, por se deter exclusivamente nos aspectos

formais ou morfológicos, não considera as relações semânticas estabelecidas pelos

diferentes tempos verbais e, consequentemente, o conhecimento dos alunos sobre a sua

própria língua, o que pode ser observado, inclusive, nos exercícios propostos pelos materiais

didáticos, que requerem, em sua maior parte, a depreensão mecânica das estruturas e a

classificação dos tempos verbais. Constatamos que, embora esses exercícios apresentem

anúncios, charges, quadrinhos e contos nos quais se observa o uso da língua, o que

representaria um aspecto positivo, as relações semânticas existentes e o uso que se faz dos

diferentes tempos verbais são desconsiderados.

Em suma, podemos afirmar que os livros didáticos analisados não problematizam as

relações temporais aliadas ao contexto de uso e às necessidades comunicativas dos falantes.5

2.2. Algumas diferenças na abordagem da categoria tempo verbal

Nesta seção, focalizaremos a descrição dos pontos divergentes levantados na análise

dos livros didáticos quanto à abordagem da categoria tempo verbal.

Um primeiro aspecto divergente da abordagem dessa categoria verificado entre os

livros didáticos está na consideração da possibilidade de neutralização – tal como proposto

por Fiorin (1996) – de alguns tempos verbais feita por Abaurre e Pontara (2008, p.278-279)

e Amaral et al. (2005, p.169). As autoras mencionam, no momento em que tratam do tempo

presente, os possíveis valores assumidos por esse tempo, a saber: o valor de futuro, o

chamado “presente histórico” e o presente omnitemporal ou gnômico. Contudo, percebemos

que a abordagem dessas neutralizações é superficial e restringe-se ao tempo presente.

5 Convém ressaltar que, nos Cadernos do Estado da 1ª série do Ensino Médio, o tempo verbal só é abordado

mais aprofundadamente no segundo volume. Essa abordagem, entretanto, destoa da empreendida nos livros

didáticos analisados, pois, conforme será mostrado na seção seguinte, o estudo dos tempos verbais é articulado

a contextos de uso e os exercícios propostos visam à reflexão sobre os efeitos decorrentes do uso de um ou

outro tempo verbal.

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O livro didático elaborado por Cereja e Magalhães (2005) também procura abordar os

tempos verbais em sua dimensão semântica quando reserva, no capítulo destinado ao

tratamento dos verbos, uma seção denominada “Semântica e Interação do verbo”, na qual se

pressuporia uma abordagem diferenciada da presente até então no capítulo. Contudo,

observamos, pelos exercícios propostos nessa seção, uma continuidade da abordagem formal

apresentada ao longo do capítulo. Apenas no primeiro exercício há uma tentativa de

abordagem do verbo, especificamente do modo verbal Subjuntivo, considerando os

possíveis sentidos assumidos por ele no uso da linguagem para além dos tradicionalmente

conhecidos.

A abordagem dos tempos verbais apresentada no segundo volume do Caderno do

Estado da 1ª série do Ensino Médio representa uma alternativa interessante de trabalho com

o tema, em que tanto aspectos morfológicos quanto aspectos semânticos são levados em

consideração. Os exercícios propostos pelo material exploram as diferentes relações

estabelecidas – simultaneidade, anterioridade e posterioridade - entre os tempos verbais em

diferentes gêneros textuais e abordam os efeitos de sentido resultantes do uso de

determinado tempo verbal. Trata-se de uma proposta que destoa por completo da encontrada

nos livros didáticos e merece ser mais atentamente analisada.

De um modo geral, pudemos observar, pela análise dos livros didáticos selecionados

para o estudo da categoria tempo verbal, aspectos que confirmaram as nossas expectativas

quanto ao tratamento dado a essa categoria. Verificamos que a abordagem dos tempos

verbais nos materiais didáticos, dos quais apenas o Caderno do Estado é exceção, é

predominantemente formal, uma vez que estabelece uma relação direta entre flexão e

referência temporal, tomando essas noções como similares quando, na verdade, conforme

nos aponta Ilari (2008), trata-se de conceitos distintos. Constatamos também que a

desconsideração do momento de referência na abordagem do tempo verbal dificulta o

entendimento dessa categoria, haja vista as definições confusas trazidas pelos livros

didáticos como foi demonstrado, o que resulta em um tratamento bastante simplista.

A constatação dessa problemática no tratamento da categoria tempo verbal nos leva a

propor possíveis encaminhamentos que possibilitem uma abordagem mais significativa

dessa categoria, considerando, sobretudo, as relações semânticas implicadas pelos tempos

verbais, viés que acreditamos ser fundamental para a compreensão dos tempos verbais em

Português.

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3. Encaminhamentos: da crítica à busca por soluções

Com a análise empreendida foi possível comprovar que, de modo geral, os materiais

didáticos oferecidos a alunos da rede pública de ensino apresentam incoerências semânticas

na descrição dos tempos verbais do português e pouco exploram esse conteúdo gramatical,

restringindo-se a uma abordagem simplista, como demonstrado anteriormente.

Dessa constatação resulta a necessidade de se apontar sugestões de novos

direcionamentos para o ensino do tempo verbal, em especial, para turmas de Ensino Médio,

tendo em vista que alunos dessa faixa etária já apresentam uma capacidade maior de

abstração, necessária para a compreensão e sistematização do funcionamento da língua.

Primeiramente, seria necessário deixar claro aos alunos que o tempo verbal não

corresponde exatamente ao tempo cronológico, como bem lembra Koch (1987) ao comentar

a obra do linguista alemão Harald Weinrich, que será retomada pouco adiante nesta seção.

Dessa forma, o tempo verbal presente não se relaciona apenas com o tempo cronológico do

“agora” e o mesmo vale para os tempos verbais pretérito e futuro, que não se relacionam

apenas com “passado” e com “amanhã”, respectivamente.

Como foi antecipado na primeira seção deste trabalho, um eficiente usuário da língua

é capaz de se deslocar na linha do tempo, fazendo uso de tempos verbais diferentes em uma

mesma situação, a fim de obter distintos efeitos. Sendo assim, é possível considerar que o

aluno de Ensino Médio é um usuário eficiente de sua língua materna, no sentido em que

utiliza, mesmo que inconscientemente, um tempo verbal diferente daquele relacionado à

priori a certo momento do tempo cronológico para provocar um determinado efeito. A essa

flexibilidade existente entre os tempos verbais é atribuído o nome de “neutralização”.

Um exemplo de neutralização, que pode ser acrescido aos outros já apontados neste

artigo, é o do emprego do tempo verbal pretérito imperfeito ao invés do futuro do presente

quando, nas brincadeiras infantis, como exemplifica Fiorin (1996), um fato futuro é

imaginado e se torna real na fala, permanecendo real também no futuro: “Eu estava doente e

você chamava o doutor” (p. 220). Esse exemplo, além de demonstrar o funcionamento da

neutralização temporal, comprova o quão próxima ela está do cotidiano dos alunos, o que

comprova ser um grande prejuízo para o ensino ignorar sua existência, como o fazem muitos

materiais didáticos.

Dessa forma, faz-se necessário voltar a atenção do ensino de tempo verbal também

para as possíveis neutralizações, que, como comentado, acontecem em grande número na

língua, já que Fiorin (1996) apresenta em seu texto noventa possibilidades de neutralização.

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Esse grande número de possibilidades exigiria, pelo menos a princípio, a feitura de um

recorte, selecionando os casos de neutralização que são mais frequentes, mais utilizados

pelos alunos.

Para o trabalho com os casos de neutralização, contudo, é importante que o aluno já

esteja familiarizado com as relações primeiras estabelecidas pelos tempos verbais, o que

também exige uma reformulação dos materiais didáticos, uma vez que eles pecam não

apenas pelo fato de serem pouco abrangentes da problemática, mas também por serem

incoerentes, como já comprovado. Essa realidade sugere a necessidade de se trabalhar,

também em sala de aula, com os três momentos propostos por Reichenbach, a fim de os

alunos compreenderem as relações existentes em cada tempo verbal, para, assim, ampliar o

estudo, mostrando como se dá o funcionamento daquilo que ele já realiza com a língua em

seu cotidiano intuitivamente.

Após o trabalho com cada tempo verbal, talvez fosse interessante, ainda, trabalhar

com tempos verbais da maneira proposta por Weinrich (KOCH, 2003), em que os tempos

verbais são divididos entre o “mundo comentado” e o “mundo narrado”, isto é, a cada

mundo são associados tempos verbais distintos: pretéritos mais-que-perfeito, perfeito

simples e imperfeito e futuro do pretérito a este e pretérito perfeito simples e composto,

presente e futuro do presente àquele. A utilização de um tempo verbal tipicamente

pertencente a certo mundo em outro, provoca alterações de sentido que mereceriam ser

exploradas na escola e que, talvez, fossem um caminho mais prático para o tratamento da

neutralização temporal.

Essa ideia não é uma inovação total, uma vez que aparecem, no segundo volume do

Caderno do Estado para a primeira série do Ensino Médio, exercícios que exploram, dentre

outras coisas, os efeitos provocados pela utilização do tempo verbal presente, típico do

“mundo comentado”, em narrativas (“mundo narrado”), o que, dentre outros efeitos, permite

uma aproximação do leitor àquilo que está sendo narrado.

É interessante ressaltar ainda o que Koch (1987) comenta a respeito do uso do tempo

verbal presente em textos como resumo de filmes, por exemplo. Segundo a autora, o tempo

verbal presente é preferido em detrimento do tempo pretérito na tipologia textual resumo de

filmes, pois o resumo “[…] serve de base, habitualmente, para se fazer a crítica – isto é,

comentar a obra ou para facilitar a outros essa tarefa.” (p. 39). Desse modo, a inserção de

um tempo por excelência do “mundo comentado”, como o é o tempo presente, nessa

tipologia textual (resumo de filme) que se refere a um texto do “mundo narrado” (filme), faz

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com que o resumo não seja um simples recontar, mas, sim, um comentar acerca de um

narrar.

Assim, é possível sugerir uma atividade em que o professor peça, por exemplo, para

seus alunos resumirem um filme a que tenham gostado de assistir, a fim de que, a partir da

produção dos alunos, a neutralização do tempo verbal e seus efeitos possam ser explorados.

Nesse sentido, é interessante a escolha por trabalhar não com qualquer texto, mas, sim, com

os textos produzidos pelos próprios alunos, pois isso facilita a sua conscientização para o

fato de que sabem utilizar a língua e o que apenas lhes falta é reconhecer o funcionamento

dessa língua.

Para concluir esta seção, é válido organizar as ideias apresentadas. Propõe-se com

este estudo, que o ensino do tempo verbal seja repensado, levando em consideração as

seguintes questões:

(i) A distinção existente entre tempo cronológico e tempo verbal;

(ii) A distinção existente entre flexão verbal e referência temporal;

(iii)A importância de se trabalhar com os três momentos propostos por Reichenbach;

(iv) A importância de se trabalhar com os tempos verbais articulados a diferentes tipos de

texto e contextos de uso, para, posteriormente, mostrar os efeitos de sentido

acarretados pela neutralização de determinado tempo verbal.

Essas são sugestões válidas para se tentar alcançar um ensino de tempos verbais que

valorize mais os aspectos semânticos e que seja mais coerente e completo no que diz

respeito àquilo a que este artigo se comprometeu a analisar.

Para demonstrar que é possível desenvolver em sala de aula uma abordagem mais

significativa do tempo verbal, defendida ao longo do artigo, é descrita a seguir uma proposta

de aula desenvolvida pelas autoras deste trabalho, que pode servir como exemplo do que foi

proposto até agora.

A proposta foi elaborada para ser desenvolvida em uma aula dupla aplicada no 1º ano

do ensino médio e se concentra no uso do presente histórico. Com a finalidade de trabalhar

tal modalidade de presente, é utilizada a narrativa histórica Os fundadores, de Eduardo

Galeano.

Primeiramente, como chamada de atenção, é escrita na lousa uma citação da

narrativa. Tal citação serve como instrumento para que o professor, por meio de

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questionamentos acerca da frase destacada, ative o conhecimento prévio dos alunos quanto

ao contexto em que a sentença poderia ser empregada e por quê.

Em seguida, é feita a leitura do texto mencionado, após a qual o professor

questionaria os alunos sobre que tipo de texto acabaram de ler e o que nele contém, ao que

os alunos devem chegar à conclusão, com a ajuda do docente, de que se trata do gênero

narrativa histórica.

Em seguida, os alunos devem identificar que tempo verbal é predominante na

narrativa e por que é empregado no texto. Pede-se, então, que eles verifiquem se existe

algum tempo verbal que destoa do todo, neste caso, verificariam que é o tempo presente.

Após os alunos chegarem à conclusão de que o presente foi usado no texto narrativo, é

indagado qual o efeito de sentido resultante de tal uso.

Depois de chegar a uma conclusão com os alunos sobre a escolha pelo presente, é

explicado que esse uso do presente com valor de pretérito corresponde ao que se chama de

presente histórico. É necessário atentar, então, para o fato de que a marcação morfológica

não tem relação restrita com o momento de enunciação, já que as ações/estado de coisas que

apresentam a marcação de presente não têm relação, neste caso, com o momento em que se

enunciam os fatos, mas sim com o momento das ações (momento de evento) a que o texto

faz referência.

A partir dessa aula, em que são expostos os tempos verbais comumente utilizados em

narrativas históricas, é possível pedir para que os alunos desenvolvam uma narrativa, como

Eduardo Galeano fez, ao recontar o descobrimento da América Latina, em que reportem a

chegada das embarcações portuguesas ao Brasil.

Como sugestão de tarefa, vale propor que os alunos busquem exemplos de uso do

presente com valor de futuro, preparando-os, assim, para a próxima aula, em que esses usos

seriam estudados..

A avaliação da classe é feita por meio da participação dos alunos nas discussões

propostas e na produção da narrativa histórica por eles.

4. Considerações finais

Discutimos, no decorrer deste trabalho, algumas questões que evidenciam a ausência

de uma abordagem efetiva no ensino do verbo, mais especificamente, dos tempos verbais. O

primeiro aspecto destacado corresponde à valorização, pelos materiais didáticos analisados,

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do estudo da flexão verbal no aprendizado dos tempos verbais em detrimento das relações

semânticas implicadas no uso dos verbos. Tal valorização decorre do tratamento

predominantemente formal e simplista dado ao verbo que restringe seu uso à relação entre

flexão morfológica e referência temporal.

Outro ponto discutido refere-se à desconsideração do momento de referência no

tratamento do tempo verbal. Verificamos que, na maioria dos materiais didáticos estudados,

o momento de referência é tomado como correspondente ao momento da enunciação, o que,

conforme apresentado, acarreta prejuízos à aprendizagem dos tempos verbais no que

concerne à compreensão das relações cronológicas estabelecidas pelos verbos.

A desconsideração do conhecimento linguístico pressuposto do aluno foi outro aspecto

abordado ao longo do trabalho. A abordagem da categoria tempo verbal centrada quase que

exclusivamente na morfologia não inclui os usos reais da língua e as necessidades

comunicativas que os alunos, como falantes do português, apresentam.

Nesse sentido, acreditamos ser importante a consideração das relações semânticas no

ensino dos verbos, em especial, dos tempos verbais. Desse modo, o ensino da categoria

tempo verbal deveria aliar a atual abordagem, centrada nas estruturas morfológicas, à

abordagem semântica proposta por esse artigo, que considera, além dos aspectos já

mencionados, as diferentes situações discursivas em que os tempos verbais estão presentes,

contribuindo para a expressão da intencionalidade dos falantes.

Convém ressaltarmos que a proposta aqui apresentada não defende a exclusão do

ensino dos tempos verbais no seu sentido primeiro, como já é exposto nos livros didáticos.

Consideramos relevante que o sentido primeiro de cada tempo verbal seja o ponto de partida

para o posterior ensino das diferentes manifestações de sentido encontradas no cotidiano dos

alunos, atentando para as neutralizações temporais já mencionadas neste trabalho.

O último ponto a ser destacado diz respeito à importância do papel do professor no

processo de aprendizagem dos tempos verbais. É essencial que o professor utilize

criticamente os materiais didáticos a sua disposição, de modo que selecione

satisfatoriamente a abordagem a ser desenvolvida com os alunos, considerando as limitações

e inadequações presentes nesses livros. Por esse motivo, escolhemos como base para a

proposta de aula, apresentada na seção anterior, o texto Os fundadores, que está presente no

livro didático de Abaurre e Pontara, a fim de mostrar que é possível fazer um bom trabalho a

partir do que está à disposição do professor.

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Disponível em:

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