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A CASADO SONO
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Outras obras do autor publicadas pela Editora Record
Bem-vindo ao clubeO legado da família Winshaw
O círculo fechado
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Jonathan Coe
A CASADO SONO
Tradução de
MARCELO ROLENBERG
2006
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Créditos
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Sumário
Despertar 11
Estágio um 75
Estágio dois 143
Estágio três 201
Estágio quatro 265
MRO durante o sono 325
Apêndice 1: Poema 387
Apêndice 2: Carta 391
Apêndice 3: Transcrição 395
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Nota do autor
Os capítulos de números ímpares deste
romance se passam principalmente nos anos
de 1983 e 1984.
Os capítulos de números pares se passam
nas duas últimas semanas de junho de 1996.
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“Fico confusa em relação ao tempo.
Se uma pessoa perde seu foco emocional” —
ela parou, lutou e continuou fortemente
— “é isso que acontece. As eternidades —
segundos separados — se trocam. A pessoa
sai da forma normal de contagem.”
Rosamond Lehmann, The Echoing Grove
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Despertar
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Aquela foi a discussão final deles, isso estava bem claro. Mas,
embora ele a estivesse prevendo havia dias, talvez até semanas,
nada podia acalmar a maré de raiva e ressentimento que agora
crescia dentro dele. Ela estivera no caminho errado, e se recu-
sara a admitir isso. Todos os argumentos que ele tentara
desenvolver, todas as tentativas de ser conciliador e sensato,
foram distorcidos, retorcidos e jogados de volta contra ele.
Como ousava mencionar aquela noite perfeitamente inocente
que ele passara no “Meia-lua” com a Jennifer? Como ousava
chamar seu presente de “patético” e dizer que ele parecia estar
“evasivo” quando o deu a ela? E como ela ousava mencionar a
mãe dele — a mãe dele, de todas as pessoas do mundo — e o
acusar de vê-la demais? Como se isso fosse algum tipo de
comentário sobre a maturidade dele; sobre a masculinidadedele, até...
Cegamente, ele foi em frente, inconsciente sobre o que o
cercava e sobre os pedestres à sua volta. “Cadela”, ele pensou
consigo mesmo, como se as palavras dela continuassem voltan-
do até ele. E então, bem alto, por entre os dentes cerrados, ele
gritou “CADELA!”
Depois disso, ele se sentiu um pouco melhor.
*
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Enorme, cinza e imponente, Ashdown ficava à beira do mar,
sobre uma montanha, a mais ou menos 20 metros da parte
íngreme do penhasco, onde tem estado há mais de cem anos.
Durante o dia todo, as gaivotas giravam em volta de seu cume
e de seus arredores, grasnando entusiasmadas até ficarem rou-
cas. Durante todo o dia e toda a noite, as ondas jogavam-se
enlouquecidamente contra sua barricada rochosa, mandando
um ronco sem fim, parecido com o do trânsito intenso, através
dos quartos gelados e dos corredores labirínticos e ecoantes da
velha casa. Mesmo as partes mais vazias de Ashdown — e a
maior parte dela estava vazia agora — nunca ficavam em silên-
cio. Os quartos mais habitáveis amontoavam-se no primeiro e
no segundo andares, elevando-se acima do mar, e durante o
dia eram invadidos pelos gelados raios do sol. A cozinha, no
térreo, era comprida e em formato de L, com o teto baixo;
tinha apenas três minúsculas janelas, e estava envolta em uma
sombra permanente. A beleza desoladora de Ashdown, desafia-
dora da natureza, mascarava o fato de ela ser, em sua essência,
inadequada para a ocupação humana. Seus mais velhos e mais
próximos vizinhos conseguiam lembrar, porém mal acreditar,
que ela havia sido um dia uma residência particular, lar de uma
família de apenas oito ou nove pessoas. Mas duas décadas atrás
ela fora adquirida pela nova universidade, e agora abrigava
mais ou menos duas dúzias de estudantes: uma população flu-
tuante, tão instável quanto o oceano que descansava sob seus
pés, alongava-se na direção do horizonte, em um tom doente
de verde e pesando com uma inquietude sem fim.
*
O grupo de quatro estranhos sentados à mesa dela pode ter ou
não pedido permissão para se juntar a ela. Sarah não conseguia
lembrar. Agora, parecia que uma discussão estava se desenvol-
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vendo, mas ela não ouvia o que estava sendo dito, embora
estivesse consciente de suas vozes, aumentando e diminuindo
de volume em raivosas contra-argumentações. O que ela ouvia
e via dentro de sua cabeça era, naquele momento, mais real.
Uma única e venenosa palavra. Olhos em chamas, com um ódio
casual. Uma sensação de que não haviam bem falado com ela,
mas sim cuspido nela. Um encontro que havia durado — dois
segundos? menos? —, mas que ela agora estava repassando,
involuntariamente, em sua memória havia mais de meia hora.
Aqueles olhos; aquela palavra; não havia como se livrar deles,
pelo menos não por um tempo. Mesmo agora, enquanto as
vozes ao seu redor ficavam mais altas e mais animadas, ela con-
seguia sentir outra onda de pânico aumentando dentro dela.
Fechou os olhos, sentindo-se fraca de náusea de repente.
Teria ele a atacado, ela ponderou, se a High Street não esti-
vesse tão movimentada? Arrastado-a até uma porta de entrada?
Destroçado suas roupas?
Ela levantou sua caneca de café, a segurou a alguns centí-
metros da boca, olhou para a caneca. Encarou sua superfície
oleosa, que, de tão brilhante, era notável. Ela agarrou a caneca
com mais força. O líquido se aquietou. Suas mãos não estavam
mais tremendo. O momento passou.
Outra possibilidade: teria sido tudo um sonho?
— Pinter! — foi a primeira palavra da discussão a chamar sua
atenção. Ela se forçou a olhar para o locutor e se concentrar.
O nome havia sido pronunciado em um tom de cansada
descrença, por uma mulher que estava segurando um copo de
suco de maçã em uma das mãos, e um cigarro fumado até a
metade na outra. Tinha cabelos curtos e muito negros, mandí-
bulas proeminentes e vivos olhos escuros. Sarah a reconheceu,
vagamente, de visitas anteriores ao Café Valladon, mas não
sabia seu nome. Depois ela veio a descobrir que o nome era
Veronica.
DESPERTAR 15
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— Isso é tão típico — a mulher acrescentou, então fechou
os olhos enquanto apagava o cigarro. Ela estava sorrindo, tal-
vez levando a discussão menos a sério que o estudante magro,
engomadinho e com aparência íntegra que estava sentado na
frente dela.
— As pessoas que não sabem nada sobre o teatro — conti-
nuou Veronica. — Sempre falam sobre Pinter como se ele fosse
um dos mais incríveis.
— Ok — disse o estudante —, concordo que ele seja super-
valorizado. Concordo com isso. Isso é exatamente o que prova
meu ponto.
— O que prova seu ponto?
— A tradição teatral britânica pós-guerra — disse o estu-
dante — é tão... empalidecida que...
— Desculpe? — disse uma voz australiana perto dele. —
Qual é a palavra que você usou?
— Empalidecida — disse o estudante. — Tão empalidecida
que há apenas uma figura que...
— Empalidecida? — indagou o australiano.
— Não se preocupe com isso — disse Verônica, com o sor-
riso aumentando. — Ele só está tentando nos impressionar.
— O que quer dizer?
— Procure no dicionário — respondeu o estudante agressi-
vamente. — Meu ponto é que há apenas uma figura no teatro
britânico pós-guerra com um apelo para qualquer tipo de nível,
e mesmo ele é supervalorizado. Brutalmente supervalorizado.
Doravante, o teatro está acabado.
— Doravante? — disse o australiano.
— Acabou. Não tem mais nada a oferecer. Ele não tem mais
nenhum papel a representar na cultura contemporânea, neste
país ou em qualquer outro.
— Então o que... você está dizendo que estou perdendo
meu tempo? — Veronica perguntou. — Que estou fora de sin-
tonia com todo o... Zeitgeist, com todo o espírito da coisa?
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— Exatamente. Você deveria mudar de curso de uma vez
por todas: cinema.
— Como você.
— Como eu.
— Bem, isso é interessante — disse Veronica. — Quero
dizer, veja só a suposição que você está lançando. Em primeiro
lugar, você supõe que só porque sou interessada por teatro
devo estar estudando isso. Errou: estou estudando economia. E
depois, toda essa sua convicção de que você tem a posse de
algum tipo de verdade absoluta: eu... bem, eu acho isso uma
qualidade bem masculina, é tudo o que posso dizer.
— Eu sou um homem — o estudante apontou.
— Também é significativo que Pinter seja seu escritor favo-
rito.
— Por que isso é significativo?
— Porque ele escreve peças para garotos. Garotos espertos.
— Mas a arte é universal: todos os verdadeiros escritores
são hermafroditas.
— Ha! — Veronica riu com um contentamento satisfeito. Ela
apagou o cigarro. — Ok, você quer conversar sobre gêneros?
— Achei que estivéssemos conversando sobre cultura.
— Você não pode ter um sem o outro. O gênero está em
todo lugar.
Agora o estudante ria.
— Essa é uma das observações mais sem sentido que já
ouvi. A única razão pela qual você quer conversar sobre gêne-
ros é porque você está com medo de conversar sobre valores.
— Pinter só tem apelo para homens — disse Veronica. — E
por que ele tem apelo para homens? Porque suas peças são
misóginas. Elas têm apelo para a misoginia que está nas profun-
dezas da psique masculina.
— Eu não sou misógino.
— Oh, sim, você é. Todos os homens odeiam as mulheres.
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— Você não acredita nisso.
— Oh, sim, eu acredito.
— Suponho, então, que você ache que todos os homens
sejam potenciais estupradores?
— Sim.
— Bem, eis aí outra declaração sem sentido.
— Seu significado é bastante claro. Todos os homens têm o
potencial para se tornarem estupradores.
— Todos os homens têm os meios para se tornarem estu-
pradores. Isso dificilmente significa a mesma coisa.
— Não estou falando se todos os homens têm o... equipa-
mento necessário. Estou dizendo que não há um homem vivo
que não sinta, em algum cantinho escuro de sua alma, um res-
sentimento profundo — e inveja também — de nossas forças, e
que esse ressentimento às vezes se reflete em ódio e pode tam-
bém, assim, se refletir em violência.
Uma curta pausa se seguiu a esse discurso. O estudante ten-
tou dizer alguma coisa, mas não encontrou as palavras. Então
começou a falar outra coisa, mas mudou de idéia. No final, o
melhor que ele conseguiu articular foi:
— Sim, mas você não tem provas disso.
— As provas estão à nossa volta.
— Sim, mas você não tem provas objetivas.
— A objetividade — disse Verônica, acendendo um novo
cigarro — é uma subjetividade masculina.
O silêncio que essa observação magistral levantou, maior
do que o primeiro e um tanto mais impactante, foi quebrado
pela própria Sarah.
— Acho que ela está certa — ela disse.
Todos na mesa se viraram para olhar para ela.
— Não sobre a objetividade, quero dizer — pelo menos,
nunca pensei sobre isso dessa forma antes —, mas sobre todos
os homens serem basicamente hostis, e como você nunca sabe
quando isso vai... explodir.
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Veronica a olhou nos olhos.
— Obrigada — ela disse, antes de se virar de novo para o
estudante. — Viu? Apoio de todos os lados.
Ele se encolheu.
— Solidariedade feminina, só isso.
— Não, mas isso aconteceu comigo, veja só. — A urgência
vacilante da voz de Sarah prendeu a atenção deles. — Exata-
mente isso que você está falando. — Ela baixou o olhar e viu
seus olhos refletidos, escuros, na superfície negra do café. —
Desculpe, não sei o nome de nenhum de vocês nem nada. Nem
sei por que falei isso. Acho melhor eu ir.
Ela levantou e descobriu que estava entalada em um canto,
a beira da mesa pressionada em suas coxas; espremer-se com
pressa para passar pelo australiano e pelo estudante íntegro
provou-se uma tarefa desajeitada. Seu rosto estava em chamas.
Ela tinha certeza de que todos estavam olhando para ela como
se fosse uma louca. Ninguém falou nada enquanto ela se dirigia
ao caixa, mas enquanto ela contava o troco (Slattery, o dono do
café, estava sentado com muita concentração e indiferença no
canto) sentiu o toque de uma mão em seu ombro, e se virou
para ver Veronica sorrindo para ela. O sorriso era tímido, acon-
chegante — muito diferente dos sorrisos combativos que ela
dirigia aos oponentes da mesa.
— Olha — ela disse —, não sei quem você é, ou o que acon-
teceu com você, mas... qualquer hora que você quiser conver-
sar sobre isso.
— Obrigada — disse Sarah.
— Em que ano você está?
— No quarto, agora.
— Oh — você é pós-graduanda, certo?
Sarah confirmou com a cabeça.
— E você mora no campus?
— Não. Eu moro em Ashdown.
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— Oh, bem. Talvez nos esbarremos por aí.
— Espero que sim.
Sarah saiu rápido do café antes que aquela mulher amigável
e assustadora lhe dissesse mais alguma coisa. Depois daquele
lugar escuro e cheio de fumaça, a luz do sol parecia cegar de re-
pente, o ar estava fresco de sal. Os compradores flanavam pelas
ruas. Teria sido o dia perfeito, normalmente, para andar pelos
despenhadeiros: uma longa caminhada, e a maior parte dela
para cima do morro, mas válida pela doce dor em suas pernas
quando você voltasse, pela sensação de que seus pulmões se dis-
tenderam com o ar limpo e fino. Mas hoje não estava normal, e
ela não gostava do pensamento daquelas solitárias extensões do
caminho, dos homens solitários que poderia ver se aproximando
ao longe, ou que poderiam sentar em um dos bancos, observan-
do-a sem vergonha enquanto ela passava depressa.
Gastando o equivalente a uma semana de jantar, ela pegou
um táxi, chegou em casa muito rápido e então ficou deitada na
cama durante toda a tarde, o entorpecimento se recusando a
cessar.
*
ANALISTA: O que você achou tão perturbador no jogo?ANALISANDA: Não sei se “jogo” é exatamente a palavra certa.ANALISTA: Foi a palavra que você mesma escolheu, há apenas um
momento.ANALISANDA: Sim, mas apenas não sei se é a certa. Acho que o
que eu quis dizer...ANALISTA: Isso não importa agora. Ele alguma vez lhe causou dor
física?ANALISANDA: Não. Não, ele nunca me machucou.ANALISTA: Mas você achou que ele poderia ter lhe machucado?ANALISANDA: Eu acho que pode ter sido... lá no fundo da minha
cabeça.
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ANALISTA: E ele sabia disso? Ele sabia que você achava que elepoderia, um dia, machucá-la? Era esse, de fato, o objetivodo jogo?
ANALISANDA: Sim, acho que pode ter sido.ANALISTA: Para ele? Ou para vocês dois?
Sarah estava na cama quando Gregory voltou de seu drinque.
Ela havia levantado, rapidamente, no começo da noite, para
vestir sua camisola e descer à cozinha, mas mesmo lá ela conti-
nuou nervosa, e estranhamente suscetível a sustos. A cozinha
estava vazia, e ela conseguia ouvir os sons de uma novela norte-
americana — Dallas ou Knots Landing — vindos da sala de TV
no fim do corredor. Pensando estar sozinha, Sarah abriu uma
lata de sopa de cogumelos e despejou o conteúdo em uma pane-
la. Então acendeu o fogão, que ficava em uma área própria,
depois da virada, escondido do restante do cômodo em forma
de L. Ela mexia a sopa com uma pesada colher de pau, achan-
do a atividade inesperadamente relaxante. Mexia três vezes no
sentido horário e depois três vezes no sentido anti-horário, de
novo e de novo, observando as texturas se formando e vagaro-
samente desaparecendo na grossa massa da sopa. Absorvida na
atividade, ela ficou estarrecida quando ouviu uma voz masculi-
na dizendo “Então, onde é que eles guardam o café?”, e soltou
um curto, porém alto grito enquanto se virava para ele.
Ele dobrou a virada da parede, a viu e deu um passo para
trás.
— Desculpe. Achei que você soubesse que eu estava aqui.
Ela disse:
— Não, eu não sabia.
— Eu não queria ter assustado você.
Ele tinha um rosto gentil: foi a primeira coisa que ela per-
cebeu. E a segunda coisa que percebeu foi que parecia que ele
estivera chorando — bem recentemente, na verdade. Ele se sen-
DESPERTAR 21
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tou à mesa da cozinha para beber o café, e ela sentou-se à fren-
te dele para tomar a sopa, e enquanto ela puxava uma cadeira,
olhou rapidamente para ele e poderia jurar ter visto uma lágri-
ma escorrendo por sua face.
— Você está bem? — ela perguntou. Eles não tinham mui-
tos calouros em Ashdown, mas ela ponderou que ele poderia
ter acabado de chegar à universidade, e já sentia saudades de
casa.
Acontece que não era esse o caso. Ele estava no terceiro
ano, estudando línguas modernas, e havia se mudado para
Ashdown um dia antes. O que o havia angustiado foi um tele-
fonema de sua mãe, que havia ligado da casa de sua família para
dizer que Muriel, a gata da família, havia sido morta naquela
mesma manhã — atropelada por um carrinho de leite na parte
de baixo da rua da frente. Ele estava claramente envergonhado
por estar mostrando tanta emoção sobre o assunto, mas Sarah
gostou dele por isso. Para poupá-lo de maiores vergonhas, de
qualquer maneira, ela mudou de assunto o mais rápido possí-
vel, e lhe disse que ele não era o único a ter tido um dia de abor-
recimento.
— Por quê; o que aconteceu com você? — ele perguntou.
Não ocorreu a Sarah, até mais tarde, que era surpreenden-
te ela ter se encontrado conversando tão francamente com um
conhecido tão recente, alguém cujo nome ela nem havia, nesse
ponto, se dado o trabalho de descobrir. Ainda assim, contou a
ele tudo sobre seu estranho encontro na rua com um completo
desconhecido que a havia encarado e a chamado de cadela sem
nenhuma razão aparente. O novo morador ouvia atentamente
enquanto bebericava o café: espantoso, Sarah pensou, exata-
mente o equilíbrio correto entre a preocupação (pois ele pare-
cia entender quão traumático aquele incidente devia ter sido
para ela) e um sopro mais leve e bondoso de segurança (pois ele
a encorajava, ao mesmo tempo, a rir como se aquilo houvesse
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sido a explosão de algum excêntrico digno de pena). Ela contou
para ele sobre a conversa que teve no Café Valladon, como o
assunto se havia virado para a misoginia, e como ela tinha se
sentido forçada a entrar na discussão.
— É um assunto muito vivo atualmente — ele concordou.
— Há uma grande revanche antifeminista acontecendo por aí.
— Ele contou como o novo Departamento de Estudos da
Mulher da universidade havia sido atacado por vândalos recen-
temente: alguém o havia invadido e pichado as palavras “Morte
às Irmãs” em letras enormes nas paredes.
Sarah estava gostando bastante de conversar com aquele
homem, mas começava a se sentir cansada. Às vezes, era acome-
tida por um tipo de cansaço que era extremo para os padrões
da maioria das pessoas, e chegava a cair no sono uma ou duas
vezes no meio das conversas. Não queria que nada assim acon-
tecesse naquele momento: estava muito ansiosa para deixar
uma boa impressão.
— Acho melhor eu voltar para a cama — ela disse, levan-
tando e enxaguando sua caneca de sopa na torneira de água
gelada. — Foi legal conhecer você. Estou feliz por você estar se
mudando para cá. Acho que seremos amigos.
— Espero que sim.
— Meu nome é Sarah, por falar nisso.
— Eu sou Robert.
Eles sorriram um para o outro. Sarah passou uma das mãos
pelos cabelos, pegou uma mecha e a puxou suavemente. Robert
notou esse gesto, e se lembrou dele.
Ela subiu para o quarto e dormiu por uma hora ou duas, até
que Gregory a acordou ao entrar e acender a luz . Piscando, ela
olhou para o rádio-relógio. Era mais cedo do que pensava: ape-
nas 22h15.
— Já em casa? — ela disse.
DESPERTAR 23
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Ele estava de costas para ela, colocando alguma coisa em
uma gaveta, e grunhiu:
— Parece que sim.
— Pensei que, já que esta é a última noite em que todos
vocês estarão juntos, fossem ficar fora mais tempo. Fazer disso
um acontecimento.
Era o início do semestre, e Gregory havia vindo da casa
dos pais, em Dundee, apenas para pegar alguns pertences, ver
velhos amigos e passar uns dias com Sarah. Ambos haviam aca-
bado seus cursos de graduação em julho. No fim daquela
semana, ele começaria a estudar em uma escola de medicina
em Londres, onde se especializaria em psiquiatria. Ela ficaria
mais um ano na universidade, para treinar como professora
primária.
— Dia ocupado amanhã — ele disse, sentando na ponta da
cama, tirando um dos sapatos. — Tenho de começar cedo. —
Seus olhos se fixaram nela pela primeira vez. — Você parece
acabada.
Sarah contou a história do homem que a havia agredido na
rua, e a primeira resposta dele foi:
— Mas isso não faz sentido. Por que alguém faria isso?
— Suponho que eu era uma mulher — disse Sarah —, e isso
era suficiente.
— Você tem certeza de que ele estava falando contigo?
— Não havia mais ninguém em volta. — Gregory estava
preocupado com um nó no cadarço, então ela falou: — Foi bas-
tante perturbador.
— Bem, você não vai deixar que essas coisas lhe consu-
mam. — O nó do cadarço se desfez, ele pegou o tornozelo dela
e o massageou com a roupa de cama por cima. — Achei que
havíamos superado isso. Você agora é uma garota crescida. —
Ele franziu a testa. — Isso aconteceu mesmo?
— Acho que sim.
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— Hmm... mas você não tem certeza. Talvez eu deva ano-
tar isso.
Gregory sentou-se na penteadeira e pegou um livro de
exercícios na prateleira de cima. Rabiscou umas palavras, então
sentou-se de novo e folheou o livro. Seu rosto, refletido no
espelho, entregava um sorriso satisfeito.
— Sabe, eu tive sorte de encontrar você — ele disse. — Veja
todo o material que você me forneceu. Quero dizer, você sabe
que essa não é a única razão, mas... pense na vantagem que terei
sobre meus colegas.
— Não é um pouco cedo para pensar desse jeito? — disse
Sarah.
— Bobagem. Se realmente quer chegar ao topo, nunca é
cedo demais para começar.
— Não é uma corrida... ou é?
— Existem vencedores e perdedores na raça humana, assim
como em qualquer outra — disse Gregory. Ele havia afastado
o livro e estava tirando a camisa. — Quantas vezes já lhe disse
isso?
Para seu próprio espanto, Sarah levou a pergunta a sério.
— Meu chute seria entre 15 e 20.
— Aí está, então — disse Gregory, aparentemente bem
satisfeito com essa estatística. — Isso se aplica a tudo, também,
até a acomodação. Quero dizer, é difícil de acreditar, mas o
Frank vai para Londres em uma semana e ainda não encontrou
um lugar para morar. — Ele riu, descrente. — Como você dácrédito a esse tipo de comportamento?
— Bem — disse Sarah —, talvez ele não tenha a sorte de ter
um pai que possa lhe comprar um apartamento em Victoria.
— É em Pilmico. Não em Victoria.
— Qual é a diferença?
— Mais ou menos 200 mil libras, para começar. Escolhe-
mos a localização com muito cuidado. Conveniente para o hos-
DESPERTAR 25
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pital. Ótima vizinhança. — Parecendo sentir um contentamen-
to silencioso da parte de Sarah, acrescentou: — Graças a Deus,
acho que você vai gostar de lá como todo mundo. Você vai ficar
lá todo fim de semana, não vai?
— Vou?
— Bem, eu presumo que sim.
— Você sabe que vou ter de preparar aulas e tudo mais. Vou
fazer um bocado de aulas práticas neste semestre. Posso ficar
ocupada.
— Não consigo imaginar que preparar algumas aulas possa
tomar muito de seu tempo.
— Algumas pessoas não precisam se esforçar. Eu preciso.
Sou uma estudante aplicada.
Gregory sentou-se na cama ao lado dela.
— Sabe, você tem um problema sério de auto-estima — ele
disse. — Nunca lhe ocorreu que é em grande parte por causa de
sua baixa auto-estima que você nunca conquista nada?
Sarah levou um momento para digerir aquelas palavras,
mas não conseguia, dentro dela, ficar com raiva. Pelo contrário,
sua mente voltou à cena da cozinha. — Encontrei um dos nova-
tos hoje — ela disse. — O nome dele é Robert. Ele parecia ser
bem legal. Você já o encontrou?
— Não. — Gregory havia se despido e estava só de cueca,
e, sem pensar, havia enfiado a mão dentro da camisola de
Sarah, descansando-a em seu seio.
— Você não falou com ele nem nada?
Ele suspirou.
— Sarah, vou embora amanhã. Vou viver em Londres. Por
que eu gastaria meu tempo conhecendo pessoas que nunca mais
vou ver?
Ele tirou a cueca, ficou por cima dela, e então tirou a cami-
sola dela, de forma que seus seios ficaram totalmente expostos.
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Ele pegou seus mamilos e começou a torcê-los simultaneamen-
te. Sarah examinou sua expressão enquanto ele fazia isso, ten-
tando lembrar onde ela já havia visto algo assim antes: suas
sobrancelhas estavam tomadas por impaciência e concentração,
da mesma forma que ela as havia visto outra noite, enquanto o
observava ajustando o contraste e a sintonia da televisão do
piso de baixo, tentando conseguir uma boa imagem para assis-
tir ao Notícias das Dez. Aquilo, ela lembrou, havia tomado uns
dois minutos dele, porém menos de metade desse tempo se pas-
sou até que ele tomasse seus pequenos pulsos, colocasse seus
braços no travesseiro atrás de sua cabeça e a penetrasse rapida-
mente. Ela estava seca e comprimida, e achou aquela sensação
desconfortável.
— Olha, Gregory — ela disse —, não estou bem no clima.
Na verdade, não estou nem um pouco no clima.
— Tudo bem, não vou demorar.
— Não. — Ela segurou os quadris dele com força e parou
seu rebolado. — Não quero fazer isso.
— Mas tivemos as preliminares e tudo. — Seus olhos esta-
vam feridos, incrédulos.
— Saia — disse Sarah.
— O quê. Qual é o problema: é você, a cama ou o quarto?
— Sua confusão parecia sincera.
— Sou eu, para começar.
Ele a encarou por um segundo ou dois, então se tateou e se
retirou de dentro dela, sem graça, dizendo:
— Você consegue ser tão inconsistente algumas vezes. —
Mas ele permaneceu sobre ela, e ela sabia o que viria depois.
— Feche seus olhos por um minuto.
Ela o encarou de volta, desafiadora, mas sem poder.
— Vamos brincar de “espião dos olhos”?
— Gregory, não. Agora não.
— Anda. Eu sei que você gosta disso.
DESPERTAR 27
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— Eu realmente não gosto disso. Nunca gostei. Quantas
vezes tenho de lhe dizer que nunca gostei disso?
— É só um jogo, Sarah. É sobre confiança. Você confia em
mim, não confia?
— Me deixa — ela disse. Suas duas mãos estavam presas em
uma das mãos dele, e ainda estavam presas ao travesseiro. A
outra mão dele estava agora pairando sobre o rosto dela, com
os dedos indicador e médio esticados, chegando mais perto de
seus olhos.
— Vamos lá — ele disse. — Mostre que confia em mim.
Feche seus olhos.
As pontas dos dedos dele estavam tão perto que ela não
tinha opção: fechou os olhos como que por reflexo, e então os
apertou bastante. Logo ela sentiu a pressão dos dois dedos dele
sobre os globos oculares protegidos — uma pressão suave, em
um primeiro momento —, e ela ficou dura, com um terror
familiar remexendo-se dentro dela. Desenvolvera um método
para lidar com essa sensação, que envolvia esvaziar a mente de
todas as idéias relacionadas ao momento presente. O tempo,
para Sarah, havia parado quando Gregory se arrastara até ela, e
se seus pensamentos se viraram na direção de qualquer coisa,
na direção do que parecia (agora) ser o passado distante: o
comecinho da relação deles, quando ela gostava tanto da com-
panhia dele, antes de os dois se trancarem nesse padrão de dis-
cussões perpétuas e de esquisitos rituais de cama.
Como eles tinham saído daquele começo para parar ali
onde estavam?
Ela ainda tinha uma lembrança vívida da primeira vez que
o encontrara, durante o intervalo de um concerto, no bar do
Centro de Artes. Ela não pretendia ir àquele concerto, mas os
ingressos estavam extremamente baratos, e a bilheteria come-
çou a distribuir ingressos de graça para quem passasse um pou-
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quinho antes de começar, para encher a casa e livrar o artista
convidado de uma vergonha. O programa consistia de A arte dafuga, de J. S. Bach, um trabalho sobre o qual ela não tinha
conhecimento anterior, todo executado no cravo. A única outra
pessoa na sala além de Sarah era um estudante alto e ar de
malandro, com os cabelos escuros cortados bem certinhos e
sem costeletas, sentado muito ereto em sua cadeira, usando
uma jaqueta de tweed, uma gravata antiga e um colete amarelo
com um relógio de bolso, que ouvia a música com uma concen-
tração rígida e que vez ou outra suspirava alto ou estalava a lín-
gua desesperadamente, sem razão aparente. Uma vez que pare-
cia que ele não havia percebido a presença de Sarah, foi uma
grande surpresa quando ele foi sentar-se à mesa dela durante o
intervalo, e uma surpresa ainda maior quando, após um silên-
cio tenso de dois ou três minutos, ele de repente falou para ela,
com um sotaque escocês, as palavras: “Tempo prepóstero no
décimo primeiro contraponto, não achou?”
Foram as palavras mais pitorescas e menos compreensíveis
que ela já havia ouvido: mas levaram a uma conversa variada, e
aquilo levou a um relacionamento variado. Em todos os cinco
semestres anteriores da faculdade, Sarah não havia tido um
namorado, e sua vida social, da forma que era, tendia a consis-
tir de ocasionais e encrencadas noites fora com grandes grupos
de amigos que nunca a haviam convidado (era assim que ela
sentia) para fazer parte da vida deles de coração aberto. Ser
convidada para jantar por Gregory, para acompanhá-lo ao cine-
ma ou ao teatro, foi, por um tempo, uma experiência nova e
feliz. Na maior parte das vezes, eles iam a
concertos, e se ela percebia que o gosto musical de Gregory
mostrava uma forte tendência às peças secas, acadêmicas e sem
emoção, não deixava que isso a aborrecesse. Não, de qualquer
forma, até ela perceber que essas mesmas qualidades marcavam
sua forma de fazer amor.
DESPERTAR 29
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Sarah perdeu a virgindade com Gregory, mais ou menos seis
semanas depois que ele começou a levá-la para sair. Foi uma
experiência difícil e dolorosa, como ela estava esperando; o que
não esperava, porém, era que encontros subseqüentes seriam
igualmente sem prazer. Gregory fazia amor com a mesma efi-
ciência fria e inteligente que ele achava tão admirável nos exer-
cícios de piano mais difíceis de Bach. Ternura, flexibilidade,
expressividade e variação no tempo não estavam entre os itens
de seu repertório. O melhor que Sarah podia esperar — o
melhor que ela tinha a desejar, depois de vários meses desses
encontros sexuais — era o momento da fadiga pós-coito, quan-
do Gregory, com a performance completa e as energias gastas,
algumas vezes conversava de uma maneira lisonjeira e íntima
que ela considerava atípica e deliciosa. Foi em uma dessas oca-
siões que ele lhe fez uma pergunta inesperada.
Eles estavam deitados juntos na cama, profundamente mer-
gulhados em uma noite calma e de ar estagnado, agarradinhos
de forma quente, a cabeça dela no ombro dele. E Gregory lhe
perguntou, aparentemente do nada, qual parte do corpo dele
ela achava mais bonita. Surpresa, Sarah olhou para ele, e disse
que não tinha certeza, que teria de pensar sobre isso, e então
ele, para alívio dela (porque ela não poderia, honestamente,
pensar em qualquer parte do corpo dele que fosse especialmen-
te bela), disse: “Posso dizer qual é a parte mais bonita do seu
corpo?”, e ela disse “Sim, diga”, mas por um tempo ele quis que
ela adivinhasse, e eles percorreram, rindo, todas as possibilida-
des óbvias, mas não era nenhuma delas, e ela finalmente desis-
tiu, e então Gregory sorriu e disse, calmamente: “Suas pálpe-
bras.” Ela não acreditara nele em um primeiro momento, mas
ele disse: “Isso é porque você nunca viu suas próprias pálpe-
bras; e nunca as verá, a não ser que eu tire uma foto” (mas ele
acabou nunca tirando a foto), e então ela perguntou: “Bem,
quando foi que você se tornou tão intimamente conhecido das
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minhas pálpebras?”, e ele respondeu: “Enquanto você dormia.
Eu gosto de observar você quando você está dormindo.” E foi o
primeiro indício que ela teve, a primeira pista, do fato de que
ele gostava de ficar sobre as pessoas em suas camas, olhando
para elas enquanto dormiam, algo que ela considerou interes-
sante a princípio, o sinal de uma inteligência questionadora, até
que ela começou a ponderar, no final, se não havia algo de
sinistro nisso, quase um fetiche, esse desejo de observar as pes-
soas por cima enquanto elas dormem sem proteção, inconscien-
tes, enquanto ele, o sujeito observador, conseguia o controle
total de suas mentes adormecidas.
Era mais difícil conseguir dormir depois disso, depois de
saber que a qualquer momento da noite ele poderia sair da
cama e ficar sobre ela, observando seu rosto adormecido e ilu-
minado pela luz da lua. (E isso foi antes de ela despertar mais
ainda o interesse dele por contar os sonhos que ela tinha,
sonhos tão reais que às vezes ela não conseguia saber se eram
sonhos ou coisas que aconteciam quando estava acordada.)
Mas ela se acostumou com a idéia, da mesma forma que, ima-
ginou, as pessoas se acostumam com a maioria das idéias, e
saber da presença observadora de Gregory não perturbou mais
seus padrões de sono por muitos meses (ou teriam sido sema-
nas?) até o dia em que ela acordou gritando, nas primeiras
horas de uma manhã de dezembro, por causa de um de seus
pesadelos recorrentes sobre sapos. Esse era sobre um sapo do
tamanho de um homem que ficava pulando na beira da rua
principal do campus enquanto ela tentava se apressar: ele havia
coaxado de uma maneira horrível para ela e então se agarrou às
pálpebras dela com as pontas de sua língua bifurcada, uma
ponta em cada olho. Sarah havia lutado para acordar do pesa-
delo, e então começou a chorar com mais pânico ainda quando
percebeu que, mesmo com o sonho acabado, a sensação de
pressão contra suas pálpebras não havia acabado; existia
DESPERTAR 31
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mesmo alguém, ou alguma coisa, se agarrando a elas. Ela ten-
tou abrir os olhos, mas não conseguiu. Algo obstruía o movi-
mento de suas pálpebras. Então a obstrução foi removida rapi-
damente e ela abriu os olhos e viu Gregory sentado bem perto,
ao lado dela, com o rosto inclinado intensamente em sua dire-
ção, com as mãos — os dedos indicador e médio esticados —
suspensos no ar a apenas dois ou três centímetros de distância
dos olhos dela.
— Que diabos você está fazendo? — ela perguntou, mais
ou menos dez minutos depois, quando já estava completamente
acordada, a respiração e os batimentos cardíacos haviam volta-
do ao normal, e estava convencida, finalmente, de que não
havia nenhum sapo gigante no quarto com eles. — O que você
estava fazendo ali?
— Nada — disse Gregory. — Eu estava apenas observando
você.
— Você estava tocando em mim — disse Sarah.
— Eu não queria acordar você.
— Bem, então não deveria ter posto seus malditos dedos
nos meus olhos.
Depois de uma pausa, Gregory murmurou “Desculpa”,
muito suavemente, quase se derretendo, e apertou a mão dela.
Então ele avançou para a frente e a beijou.
— Não queria acordar você — ele repetiu. — Eu tinha de
tocá-los. É inacreditável... — À meia-luz do quarto, ela conse-
guia sentir o sorriso dele. — ... há tanta vida acontecendo no
fundo dos seus olhos quando você está dormindo: eu conseguia
ver essa vida. E eu queria tocá-la: eu pude senti-la, na ponta dos
meus dedos. — E ainda acrescentou: — Eu já tinha feito isso
antes, você sabe.
— Sim, mas... me assustou. Pareceu tão real. — Acusando
humildemente, ela disse: — Você estava fazendo uma pressão
meio forte.
32 A CASA DO SONO
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Ele sorriu de novo.
— Sim, mas você confia em mim, não confia? Que eu não
vou machucá-la.
Ela sentiu a mão sendo apertada e o pulso, alisado.
— Acho que sim.
— “Acho que sim”?
Seu silêncio ferido era pesado demais para agüentar.
— Sim, claro que confio. Mas não é essa exatamente a
questão, é?
— Eu acho que essa é exatamente a questão. O que você
pensou que eu fosse fazer contigo?
Enquanto ele dizia isso, levou a mão para perto do rosto
dela de novo. Suas pálpebras se fecharam por conta própria, e
ele pressionou as pontas dos dedos contra elas.
— Espião — ele sussurrou — dos olhos. Você não está com
medo agora, está?
— Não — disse Sarah, em dúvida.
Então pressionou com mais força.
— E agora?
E foi assim que tudo começou, a coisa a que eles passaram
a se referir como “o jogo”, e que se tornou mais e mais associa-
do ao ato de fazer amor para eles; até que começaram a jogar
isso (ou melhor, Gregory começou a jogar, pois Sarah não era
nada mais que sua acompanhante passiva) não apenas no pós-
coito, mas até durante o ato em si; até o ponto em que não era
incomum ele realmente chegar ao clímax estando por cima
dela, equilibrado sobre o rosto dela, com os dedos indicador e
médio pressionados ora mais firmemente, ora mais desafiado-
res, contra as pálpebras dela.
Foi disso tudo que Sarah se lembrou agora, nos poucos ins-
tantes em que ficou por baixo de Gregory, quando ele adotou
essa posição mais uma vez. Pela última vez, como se revelou:
porque de repente, possuída por um espírito de rebeldia e de
DESPERTAR 33
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uma força física que surpreendeu os dois, ela soltou um grito
agudo e final de “Não!” e jogou Gregory longe dela, forte o
suficiente para ele rolar para fora da cama e acabar estatelado e
nu no chão.
— Jesus Cristo, mulher!
Sarah saiu da cama e vestiu-se novamente.
— Porra, por que você fez isso?
Ela então pegou o penhoar do gancho atrás da porta e se
enfiou nele de qualquer jeito, contorcendo-se para encontrar as
mangas. Gregory ajoelhou-se ao lado da cama, sacudiu-se,
apoiou-se em sua testa e puxou o fôlego de novo.
— Você vai me responder ou o quê?
Sarah abriu a porta sem dizer palavra e correu pelo corre-
dor na direção do banheiro. Trancou a porta e se sentou no
vaso e chorou. Ela se balançou para a frente e para trás por
muitos minutos. Aos poucos, o choro e o balançar acabaram, e
ela então lavou o rosto com água fria e se olhou no espelho. Os
olhos estavam vermelhos, e sua boca estava moldada em uma
linha desconhecida e resoluta. Ela começou a ensaiar frases
apropriadas.
Gregory, desculpe-me, mas agüentei demais.Acho que seria melhor se não nos víssemos mais.Isso não está dando certo, está?Acho que deveríamos tentar ser amigos daqui por diante.Estranhamente, com o discurso montado em sua cabeça,
ela se encontrou ansiosa por falá-lo: ou melhor, estava já imagi-
nando como seria, com um brilho fraco e tímido, seu senso de
satisfação por perturbar ao menos uma das certezas mais enrai-
zadas de Gregory. Em cinco minutos, ela disse para si, tudo terá
acabado: e parecia repentinamente inacreditável que uma rela-
ção que havia se arrastado, até este ponto, por mais de um ano,
trazendo em seu despertar a maior parte do que ela aprendeu
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sobre felicidade, mas também — e mais e mais, nos últimos
meses — uma boa porção de frustração, poderia ser finalizada
em poucos momentos, com um punhado de frases bem escolhi-
das: dando a ela — o quê? — liberdade, presumivelmente, a
liberdade de ter outras e mais bem-sucedidas amizades (os
nomes e rostos de Robert e — para sua rápida e impensada sur-
presa — Veronica apresentavam-se imediatamente). Mas era
tudo especulação: em curto prazo, ela não conseguia prever
nada além do simples apagão emocional: um vácuo de senti-
mentos — a escuridão. E até mesmo essa perspectiva começava
a parecer interessante.
A escuridão a abraçou quando ela abriu a porta do quarto e
entrou. A escuridão e o silêncio: nem mesmo o som dele respi-
rando. Ela tateou em busca do interruptor, mas pensou bem e
achou melhor desistir. Simplesmente limpou a garganta e disse,
fraquinho:
— Gregory?
A luz do criado-mudo acendeu-se imediatamente e ele esta-
va sentado ereto, encarando Sarah, com os braços cruzados,
com a blusa do pijama abotoada — como de costume — até o
pescoço. Antes que ela conseguisse falar qualquer coisa, ele já
havia começado um monólogo curto, articulado e inexpressivo.
— Só tenho uma coisa a dizer para você, Sarah, e vou dizer
agora, da maneira mais rápida e delicada possível, para poupá-
la da dor. Seu comportamento nesta noite confirmou uma sus-
peita que vinha crescendo em meus pensamentos havia algum
tempo: a suspeita de que você está — não querendo me apro-
fundar demais nisso — longe de ser uma parceira com quem eu
me sentiria confortável para viver pelo resto de minha vida.
Conseqüentemente, me sinto obrigado a informá-la de que
nossa relação chegou ao fim neste exato momento. Uma vez
que agora está tarde demais para eu querer que você se arranje
em um lugar alternativo, vou permitir que divida a cama comi-
DESPERTAR 35
parte 1-a 30/11/06 12:16 Page 35
go esta noite, e apenas esta noite. Minha posição sobre este
assunto não está aberta para negociações e agora que deixei isso
claro, gostaria apenas de lembrá-la que tenho uma longa via-
gem de carro pela frente amanhã, e espero que você me permi-
ta ter, pelo menos por essa razão, uma noite sem interrupções.
... e ele então apagou a luz...
... e dormiu...
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2
Aqui, por apenas algumas centenas de metros, a cidade repenti-
namente tentava aproveitar algo de sua localização litorânea, e
adquirir, pelo menos, um pouco da personalidade de uma
estância de férias. Vinte barracas de banho, descuidadamente
pintadas em tons pálidos de amarelo, verde e azul, ficavam
entre a esplanada e a praia. Um quiosque vendia sorvete e algo-
dão-doce. Havia espreguiçadeiras para alugar. Mas havia, nisso
tudo, algo de superficial, de gelado. Acabava antes de realmen-
te começar. Poucos turistas iam até lá; poucos dos quartos dis-
poníveis nas diversas pousadas de frente para o mar eram ocu-
pados, mesmo na altíssima temporada. E hoje, nessa quente e
abafada tarde de domingo no fim de julho, enquanto saquinhos
de salgadinhos jogados fora batiam desconsoladamente nas
paredes de cimento e seixo do banheiro público, e as gaivotas
balançavam-se de acordo com a ritmada maré, havia apenas
dois vultos visíveis na praia. Um deles, uma jovem mulher na
casa dos 20 anos, estava com os braços cruzados, tinha os cabe-
los longos, finos e pretos como nanquim, e estava parada a ape-
nas alguns centímetros da água, observando o mar. A outra, que
era talvez 15 ou 20 anos mais velha, estava sentada na praia
perto das barracas de sol, com o sobretudo dobrado com per-
feição ao lado , uma pequena mala perto dos pés, estava com os
olhos fechados e sua face estava virada para o lado do sol que
aparecia ocasionalmente.
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A mulher mais jovem virou-se e começou a andar de volta
pela praia de pedrinhas. Ela parou, abaixou-se, pegou uma
pedra de formato curioso, mas depois a jogou longe. Chutou
uma lata de Pepsi acidentalmente, e o som a fez perceber como
aquela tarde estava quieta.
Ao ouvir o barulho, a mulher mais velha abriu os olhos e
olhou em volta.
Havia três bancos, mas um deles havia sido destruído,
quase desmontado, e não era mais usável; e um outro estava
totalmente ocupado pela forma esticada e dormente de um
homem de meia-idade, com o rosto roxo e muito mal barbea-
do, as roupas exalando um cheiro de mofo, a mão direita agar-
rando uma lata de sidra forte.
A mulher mais jovem, porém, ainda queria sentar-se.
— Você se importa se eu sentar aqui? — ela foi forçada a
perguntar, no final.
A mulher mais velha sorriu, balançou a cabeça e tirou o
sobretudo para lhe dar lugar.
As duas ficaram sentadas em silêncio.
A mulher mais velha estava cansada. Ela havia andado da
estação de trem até a praia, carregando sua mala. Estava suan-
do bastante, e começava a suspeitar que seus sapatos, que com-
prara havia apenas duas semanas, eram um tamanho menor do
que os pés dela. Ela os havia tirado quando se sentou na praia,
e viu os pés marcados com fortes linhas vermelhas que só
agora começavam a sumir. Continuava a torcer e retorcer os
dedos dos pés, adorando a liberdade, até perceber que a
mulher mais nova estava encarando seus pés; encarando-os
com um tipo de fascinação espantada. Imediatamente, cruzou
as pernas e os escondeu debaixo do banco, fora do alcance da
vista da mulher mais jovem. Ela odiava seus pés malfeitos e
masculinos e seus tornozelos grossos, e a forma como as pes-
soas os encaravam — sobretudo as mulheres, e especialmente
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(como já era o caso neste caso) as mulheres pelas quais ela se
sentia atraída.
Envergonhada, a mulher mais jovem olhou nos olhos da
mais velha, sorriu timidamente, como que pedindo desculpas.
Agora estava claro: elas teriam de conversar.
— Se você estiver procurando algum lugar para ficar — a
mais jovem arriscou — posso lhe ajudar. Posso lhe recomendar
algum lugar.
— Oh?
Ela deu o nome de uma pensão próxima.
— E o que tem lá que a torna diferente das outras?
A mulher mais jovem riu.
— Nada, na realidade. Apenas que minha mãe é a gerente.
A outra sorriu.
— Bem, obrigada, mas não estou procurando nenhum
lugar para ficar.
— Oh. Apenas pensei, por causa de sua mala...
— Estive fora — disse a mulher mais velha. — Acabei de
descer do trem.
Havia algo na forma como ela dissera aquilo — algo sobre
a frase “Estive fora” — que fez a mulher mais jovem pensar que
ela estava se referindo a mais do que férias. Soava mais como
um período de exílio.
— Oh — ela disse. — Uma viagem longa?
— Duas semanas na Itália. San Remo. Muito bacana.
Ela estava errada.
— Você mora aqui, então?
A mulher mais velha estava começando a considerar essa
linha de questionamento bastante direta. Um pensamento sel-
vagem passou pela sua cabeça: seria possível, apenas possível,
que ela estivesse levando uma cantada?
Ela decidiu testar essa hipótese sendo totalmente aberta,
dando qualquer informação que fosse pedida e vendo aonde
isso chegaria.
DESPERTAR 39
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— Mais ou menos cinco quilômetros da costa — ela disse.
— Na Clínica Dudden. Eu trabalho lá.
— Mesmo? Você é médica?
— Psicóloga. — Ela vasculhou a bolsa procurando por um
lenço de papel e secou a testa. — Conhece o lugar de que estou
falando?
— Acho que sim. Não está lá há muito tempo, está?
— Dois anos. Um pouco mais.
— Que tipo de... hospital é?
— Nós tratamos pessoas com distúrbios do sono. Ou ten-
tamos.
— Você quer dizer... pessoas que falam enquanto dormem,
é isso?
— Pessoas que falam enquanto dormem, sonâmbulos, que
dormem demais, que não dormem o suficiente, que se esquecem
de respirar enquanto dormem, que têm sonhos terríveis... todas
essas coisas.
— Eu costumava falar enquanto dormia.
— Muitas crianças fazem isso. — A mulher mais velha
olhou no relógio: haveria um ônibus no ponto da frente da
praia em quatro minutos. Ela se inclinou para a frente e espre-
meu os sapatos em seus pés reclamões. Então, quando pegava a
mala, disse: — Aqui, fique com meu cartão. Nunca se sabe,
você pode querer nos visitar um dia. Você será muito bem-
vinda, se mencionar meu nome.
A mulher mais jovem não sabia o que dizer. Ela nunca havia
recebido o cartão de alguém antes.
— Muito obrigada — ela improvisou, pegando o cartão.
Ela pensou, enquanto a mulher mais velha se despedia, que
podia ver desapontamento nos olhos dela: não apenas o desa-
pontamento passageiro de uma pequena expectativa criada e
não satisfeita, mas, por trás disso, algo mais profundo e mais
habitual. Suas costas, à medida que ela ia embora com sua mala,
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estavam curvadas para a frente. A mulher mais jovem olhou o
cartão em sua mão e leu as palavras “Dra. C. J. Madison,
Psicóloga, Clínica Dudden”. Embaixo havia os números do
telefone e do fax.
A mulher mais velha havia se esquecido de perguntar seu
nome. Mas ela também não o revelaria.
Ela um pouco andou e um pouco correu até a pensão de
sua mãe, com a cabeça girando.
*
Enorme, cinza e imponente, Ashdown ficava à beira do mar, so-
bre uma montanha, a mais ou menos 20 metros da parte íngre-
me do penhasco, onde tem estado há mais de cem anos. Du-
rante o dia todo, as gaivotas giravam em volta de seu cume e de
seus arredores, grasnando entusiasmadas até ficarem roucas.
Durante todo o dia e toda a noite, as ondas jogavam-se
enlouquecidamente contra sua barricada rochosa, mandando
um ronco sem fim, parecido com o do trânsito intenso, através
dos quartos gelados e dos corredores labirínticos e ecoantes da
velha casa. Mesmo as partes mais vazias de Ashdown — e a
maior parte dela estava vazia agora — nunca ficavam em silên-
cio. Os quartos mais habitáveis amontoavam-se no primeiro e
no segundo andares, elevando-se por cima do mar, e durante
o dia eram invadidos pelos gelados raios do sol. A cozinha, no
térreo, era comprida e em formato de L, com o teto baixo; tinha
apenas três minúsculas janelas, e estava envolta em uma sombra
permanente. A beleza desoladora de Ashdown, desafiadora da
natureza, mascarava o fato de ela ser, em sua essência, inade-
quada para a ocupação humana. Seus mais velhos e mais próxi-
mos vizinhos conseguiam lembrar, porém mal acreditar, que ela
havia sido um dia uma residência particular, lar de uma família
de apenas oito ou nove pessoas. Mas três décadas atrás ela fora
adquirida pela nova universidade, e usada por um tempo para
DESPERTAR 41
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a acomodação de estudantes; então os estudantes foram trans-
feridos de lá, e ela foi doada ao Dr. Dudden, para abrigar sua
clínica privada e seu laboratório do sono. Havia espaço na clí-
nica para 13 pacientes: uma população flutuante, tão instável
quanto o oceano que descansava sob seus pés, alongava-se na
direção do horizonte, em um tom doente de verde e pesando
com uma inquietude sem fim.
*
Na manhã seguinte, o Dr. Dudden ficou do lado de fora da sala
onde sua colega conduzia uma consulta com três de seus
pacientes, e ouvia suas vozes através da porta fechada. Seu
corpo estava tenso de desaprovação: a atmosfera soava rouca.
Uma mistura de vozes falava quase continuamente, interrompi-
da de vez em quando por arroubos agressivos de gargalhadas,
no meio dos quais ele conseguia distinguir claramente a risadi-
nha peculiar e discreta da Dra. Madison. Então ele a ouviu
começar um monólogo que talvez tenha durado meio minuto,
seguido, desta vez, por onda sobre onda de gargalhadas histéri-
cas, acompanhadas de batidas de mesas e de todos os outros hilá-
rios e involuntários sons. Dr. Dudden deu um passo para longe
da porta e tremeu de fúria. Existia um rumor circulando havia
algum tempo de que os pacientes da Dra. Madison estavam gos-
tando de suas consultas, e ali estava a prova concreta. Era ultra-
jante: e, além do mais, não era científico. Isso não seria tolerado.
Ele chamou a Dra. Madison em sua sala ao meio-dia. Era
uma sala melancólica nos fundos da casa, com vista para um
pedaço descuidado de jardim. Um calendário com uma escala
elaborada tomava metade da maior parede, e ao seu lado havia
uma planta da casa, mostrando os quartos do dia e os da noite,
e os nomes dos pacientes para quem eles estavam designados
no momento. Havia quatro prateleiras repletas de livros e arti-
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gos enfileirados de qualquer jeito, enquanto as outras paredes
eram cobertas — enfeitadas dificilmente seria a melhor palavra
— por pôsteres conseguidos em indústrias farmacêuticas e em
fábricas norte-americanas de softwares. Música barroca de piano
era tocada bem baixinho ao fundo, em um toca-fitas.
Sua primeira pergunta foi:
— Você trouxe os QPS?
O Questionário de Percepção do Sono era um documento
de sua própria autoria, em que se pedia que os pacientes, todas
as manhãs, avaliassem vários aspectos da noite de sono, em
uma escala de um a cinco. Era perguntado se eles haviam tido
pensamentos acelerados na hora do sono, se haviam precisado
urinar durante a noite, se haviam sofrido de palpitações ou de
movimentos das pernas, pesadelos ou longos períodos de fra-
queza, e mais de 80 outras perguntas. O questionário deveria
ser completado no começo de cada consulta da manhã, e for-
mar a base de qualquer discussão subseqüente.
— Não — disse a Dra. Madison.
— Acho isso incrível.
— Não tivemos tempo de preenchê-los.
— Acho isso ainda mais extraordinário — disse o Dr.
Dudden —, porque do que pude ouvir, vocês pareciam estar
com muito tempo para contar piadas, rir e fofocar, como um
bando de lavadeiras.
“Lavadeiras?”, pensou a Dra. Madison, mas ela deixou passar.
— Uma vez que você não estava na sala conosco — ela
disse —, eu presumo que estava espiando do outro lado
da porta. E uma vez que estava espiando do outro lado da
porta, presumo que não podia ouvir sobre o que falávamos. Se
você pudesse ouvir, teria descoberto que estávamos rigorosa-
mente de acordo com os negócios da clínica.
Ela colocou uma pequena e gelada ênfase na palavra “negó-
cios”, que o Dr. Dudden ou não percebeu ou fingiu não perceber.
DESPERTAR 43
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— Essa — ele disse — não é a questão. Estou pronto para
acreditar que você se atém, durante esses... bate-papos, ao
assunto. Mas devo lembrá-la de que você é empregada aqui...
por mim... para chegar nesse assunto a partir do ponto de vista
da psicologia clínica em vez dos shows de comédia.
— Não consigo entender muito bem — disse a Dra.
Madison, alisando a saia distraidamente.
— Alguns minutos atrás, eu estava conversando com a Srta.
Grander, uma das pacientes de sua consulta desta manhã.
Perguntei a ela o que estava causando tanto contentamento, e
com alguma relutância ela me contou. Citou uma observação
sua, na verdade. — Ele se inclinou para a frente e leu do bloco
de notas em sua mesa. — “Todas as terças-feiras, o Dr. Dudden
convida os pacientes desta clínica para assistir a uma de suas
palestras na universidade. Nesta semana, foi tão chato que até
os narcolépticos ficaram acordados o dia todo.” — Ele olhou
para cima. — Você nega ter feito essa observação?
— Não.
— Você provavelmente acha que estou pessoalmente ofen-
dido por isso. E de fato estou, mas não é essa a questão.
— Foi só uma piada.
— Oh, entendo. Acredite em mim, Dra. Madison, eu con-
sigo reconhecer uma piada quando vejo uma. Devo lhe pergun-
tar, então, se você considera a narcolepsia, para usar sua pró-
pria palavra, uma piada, ou se você a considera, como eu con-
fesso considerar, uma séria e debilitante doença psicofisiológica
que causa muito trauma e estresse em quem sofre dela?
— Sou especializada em narcolepsia, doutor, e há muitos
anos. Você sabe disso muito bem. Então não vejo como meu
comprometimento ao seu tratamento, a seriedade de meu com-
prometimento, possa ser questionado. — Ela suspirou. — Além
de que, presumo que você esteja alerta para o fato de que a ver-
44 A CASA DO SONO
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gonha trazida pela gargalhada é um dos sintomas mais pertur-
badores e socialmente vergonhosos da síndrome. Essas sessões
são feitas para ajudar os pacientes a lidar com ela: para que eles
se sintam confortáveis com suas gargalhadas de novo.
Considerei óbvio que o humor fosse uma ferramenta terapêuti-
ca absolutamente essencial nesse processo.
— Uma explicação engenhosa — disse o Dr. Dudden,
depois de uma pausa. — Mas não satisfatória. — Ele cruzou os
braços e girou a cadeira suavemente, de modo que não mais
ficasse de frente para ela. — Nesta manhã, você deve lembrar-
se de que eu liderei uma discussão com um grupo de quatro
insones crônicos. Você sabe o que teria escutado, se tivesse fica-
do parada do lado de fora de minha porta, nessa ocasião?
— Roncos, provavelmente — disse a Dra. Madison, sem
conseguir se conter.
Os cantos da boca do Dr. Dudden repuxaram-se por um
momento, mas fora isso ele não se traiu mostrando nenhuma
emoção.
— Vejo que a apnéia também está em sua lista de assuntos
ajustáveis para a leviandade. Devo anotar isso. — Ele fingiu
rabiscar alguma coisa em seu bloco de notas, enquanto a Dra.
Madison olhava com crescente descrença. Então ele disse: — A
verdade dos fatos é que você teria ouvido, se tivesse se esforça-
do bastante, o som de lápis riscando papéis, enquanto quatro
Questionários de Percepção do Sono eram apropriadamente
preenchidos, e então o som de vozes falando, uma de cada vez,
em tons razoáveis e maneirados, enquanto os resultados desses
questionários eram coletados e analisados.
A Dra. Madison viu que não conseguia mais agüentar aqui-
lo, e ficou em pé, pronta para sair da sala.
— Entendo seu ponto, doutor. E se isso é tudo...
— Não é tudo, temo dizer. Sente-se, por favor. — Ele espe-
rou, sugestivamente, que ela se acomodasse de novo. — Gos-
DESPERTAR 45
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taria de lembrá-la de que você deve auxiliar o Dr. Goldsmith,
hoje à tarde, a conduzir a entrevista preliminar com o Sr.
Worth. Está claro?
— Pode estar claro, mas acho que será praticamente impos-
sível. Já tenho diversas consultas agendadas, e um considerável
acúmulo de...
— Entendo. — Ele pegou um lápis e começou a batucar na
mesa, à medida que suas bochechas ficavam coradas de aborre-
cimento. — Então você insiste em suas objeções, é isso?
— Objeções, doutor?
— Você já deixou sua atitude em relação a esta administra-
ção bastante clara. Ou se esqueceu da conversa que tivemos um
pouco antes de você partir?
A Dra. Madison não havia se esquecido, absolutamente,
embora tivesse sido apenas a última de uma longa série de con-
frontos crescentemente acalorados. Dr. Dudden mostrara a ela
uma coluna de uma recente edição de dia de semana do jornal
Independent, escrita pelo jornalista freelance Terry Worth, que
trabalhava, aparentemente, para diversos jornais: em geral,
escrevia sobre filmes, mas às vezes acabava abordando outros
temas. Naquela coluna, ele havia anunciado sua intenção de
entrar em uma competição que aconteceria em um cinema de
Londres, onde seria feita uma “cinemaratona” de dez dias. Os
filmes seriam exibidos continuamente durante o evento, 24
horas por dia, e um prêmio seria oferecido a quem conseguisse
ficar mais tempo acordado ininterruptamente. Revelando que
já era um insone de longa data, Worth declarou que seria capaz
de ficar acordado durante 134 filmes, e o Dr. Dudden, ao ler a
coluna, imediatamente entrou em contato com o jornal e pediu
para ser colocado em contato com o jornalista.
— Pense nas possibilidades de pesquisa, sem contar todo o
resto — ele se entusiasmara com a Dra. Madison. — Vamos
46 A CASA DO SONO
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trazê-lo para cá no minuto em que o evento acabar. Vamos
colocá-lo direto em um quarto e então... um equipamento de
sete eletrodos para avaliar os distúrbios e a arquitetura do
sono... 16 canais para gravar os eletroencefalogramas... conta-
gem manual do registro do sono a partir do disco óptico...
questionário do sono completo, é claro. É uma oportunidade
sem igual de ver que tipo de efeitos a exposição contínua às
imagens da mídia pode ter nos conteúdos dos sonhos.
— E essa é a única razão? — perguntara a Dra. Madison.
— É razão suficiente, não é? O que você quer dizer?
— Só imaginei se o retorno dessa história pode ter ocorri-
do a você. O Sr. Worth pagará pelo tratamento?
— Isso não tem importância.
— E ele escreverá sobre nós para o jornal? Isso é parte do
acordo?
— Não há acordo, Dra. Madison. Considero sua insinuação
altamente censurável. E mesmo se houvesse, eu pediria que
você tivesse em mente que esta clínica é particular, que depen-
demos do pagamento dos pacientes, e que não há nada intrin-
secamente mau na idéia de tentar gerar um pouco de publicidade
de vez em quando. — Ele abrira sua agenda de mesa em uma
página já marcada com uma fita azul. — O Sr. Worth chegará
daqui a 15 dias, em uma segunda-feira, no final da manhã.
Acho que você já terá voltado de suas férias no dia anterior,
então sugiro que você e o Dr. Goldsmith conduzam a primeira
entrevista com ele à tarde. Anotarei isso, posso?
— Tanto faz — ela dissera, dando de ombros para se livrar
da história logo; e a insolência daquela observação, e aquele
gesto, voltaram à mente do Dr. Dudden, enquanto ele olhava
para ela do outro lado da mesa, quase tremendo de raiva.
— Não pense — ele disse calmamente —, não suponha por
um minuto que meus bons modos são infinitos.
DESPERTAR 47
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— Esse pensamento nunca me ocorreu — disse a Dra.
Madison.
Depois de um silêncio de alguns segundos, ela percebeu
que a conversa havia acabado. Saiu, fechando suavemente a
porta.
*
Pouco depois da meia-noite, ainda acordada, a veneziana aber-
ta para entrar a brisa morna e todo o quarto iluminado pela luz
da lua, Dra. Madison ouviu passos no terraço da frente. Colo-
cou o penhoar e espiou pela janela. Havia um homem do lado
de fora, apoiado no poste de luz, fumando um cigarro. O bri-
lho da brasa, um pequeno ponto de luz, aumentava e diminuía
de acordo com as tragadas. Ele não parecia assustador. Não
parecia um invasor. Ela decidiu descer e investigar.
No caminho, foi interrompida por Lorna, uma das técni-
cas, apressada no corredor, com um olhar assustado no rosto.
— Eu estava indo acordar o Dr. Dudden — ela disse. —
Algo pitoresco aconteceu. Eu coloquei um paciente no quarto 9
e o coloquei na cama há uma hora. Observei-o por um tempo e
ainda não havia sinal de que ele iria dormir, mas ele parecia
estar bem. Estava deitado bem quieto. Então fui fazer uma xíca-
ra de chá para mim, e quando voltei, ele tinha saído.
— Saído? Você quer dizer que ele tirou todos os eletrodos
sozinho?
— Acredito que sim.
— Quarto 9... era o Sr. Worth lá esta noite, não era?
A Dra. Madison correu na direção do quarto 9 e encontrou
uma cena exatamente como Lorna descrevera: a cama vazia, os
lençóis desarrumados, fios e eletrodos amontoados na cabe-
ceira da cama e vestígios de cola sobre os travesseiros. Isso era
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muito incomum: embora os pacientes com insônia muitas vezes
quisessem levantar no meio da noite, era raro um deles despis-
tar a vigilância dos técnicos e resolver o problema com as pró-
prias mãos.
— Não se preocupe — disse a Dra. Madison. — Acho que
sei onde ele está. Vou conversar com ele.
— E o Dr. Dudden?
— Não o acorde. Não acho que ele precise saber disso.
Ela foi à sala de estar na parte da frente da casa, onde uma
janela francesa dava acesso ao terraço. Conseguia ver o homem
do lado de fora, caminhando na escuridão. A janela era usada
com freqüência, mas as dobradiças estavam enferrujadas e
entregavam qualquer movimento com um ruído estridente. O
homem virou-se, em um sobressalto, e olhou para a Dra.
Madison à medida que ela se aproximava, avançando rapida-
mente nas sombras. O rosto dele, mesmo na escuridão, brilha-
va mais pálido que a lua.
Havia uma lâmpada no terraço, mas a Dra. Madison não a
acendera.
— Sr. Worth, não é? — ela disse.
— Correto. — Como ela, ele estava vestindo pijama e um
robe.
— Sou a Dra. Madison. A “Assim como a médica garota”
do Dr. Dudden, como se diz. — Ela fez uma pausa para ver
como ele reagiria a essa frase, se notaria seu tom de deboche. A
luz da lua e o brilho da brasa do cigarro iluminavam o rosto
dele o suficiente para revelar um pequeno sorriso. — Parece
que você desertou seu posto.
— Sim, eu não conseguia dormir.
— Não esperávamos que você conseguisse.
— Não. Eu não dormi, veja.
— Tanto faz, presumo que você saiba que deveria pedir
permissão antes de levantar.
DESPERTAR 49
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— Me disseram isso, sim, mas não pensei que fosse sério.
— Bem, o equipamento que estava em você é bem delica-
do, e muito caro. Além disso, agora você tem cola nos seus
cabelos, o que não deve ser muito confortável.
O homem passou a mão nos cabelos, demonstrando repug-
nância.
— Tenho mesmo. Bem, desculpe por isso. Espero não ter
estragado nada.
— Não estragou, não. Mas tem uma outra coisa: nós não
gostamos que nossos pacientes fiquem passeando no escuro.
Achei que alguém também tivesse explicado isso para você.
Ao longe, o oceano agitava-se com raiva. As ondas batiam
nas pedras com uma irregularidade cansativa. Ele as ouviu por
um tempo antes de se explicar:
— Eu tenho de relaxar de alguma maneira.
— Sim, entendo isso. Não se preocupe. Não vou colocar
você de castigo, ou mandar escrever alguma coisa cem vezes.
Ele riu e disse:
— Por que você não me chama de Terry?
— Está bem. Vou fazer isso — disse a Dra. Madison; mas
em vez de oferecer o tratamento pelo primeiro nome dela tam-
bém, como Terry esperava, ela disse: — Você conseguiu?
— Perdão?
— Sua maratona de filmes. Dez dias. Cento e trinta e qua-
tro filmes. Como você se saiu?
— Oh, isso. Sim, consegui numa boa. Sem problemas. Acho
que vou entrar no Livro Guinness dos Recordes.— Parabéns. — Parecia, para Terry, que a Dra. Madison
queria voltar para o interior da casa, mas algo a impedia; algu-
ma urgência semi-relutante em prolongar a conversa. Ela con-
tinuou: — O Dr. Dudden ficará maravilhado. Você já é o favo-
rito dele.
— Oh?
— Essa é a área dele. Privação de sono. — Então, depois de
uma pausa: — Ratos.
50 A CASA DO SONO
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Terry interpretou isso errado, e perguntou:
— Não é possível... você alguma coisa?
— Não: é isso mesmo o que ele usa. Ratos. Ele os priva de
sono, para ver o que acontece.
— Que hobby encantador. E o que acontece?
— Eles normalmente morrem. Mas suas vidas nunca são
em vão, porque ele consegue acrescentar uma ou duas páginas
na própria bibliografia.
— Começo a sentir — disse Terry — que a “garota” do Dr.
Dudden não é sua serva mais leal.
— Tudo o que digo a você é em off, por falar nisso.
— Claro.
Apesar dessa confirmação, ela pareceu se afastar um pouco
mais dele, quase imperceptivelmente, enfiando-se em uma
escuridão maior. Ele não conseguia mais ver o rosto dela.
— Não é sobre curar as pessoas, sabe — ela disse. — Co-
nhecimento é tudo em que ele está interessado. Ele não vai
curar você.
— Talvez não — disse Terry. — Mas talvez esse lugar me
cure.
Por um momento, os dois estavam atentos, mais uma vez,
aos murmúrios zombeteiros das ondas; às nuvens passando
rápido pela luz da lua; à imensidão do oceano. Apagando o
cigarro, Terry lambeu os lábios e apreciou o gosto de sal.
— Sim, há um certo... clima nesta casa — disse a Dra.
Madison. — Você vai achá-la muito relaxante. Por quanto
tempo vai ficar?
— Estou com duas semanas reservadas — disse Terry. —
Mas não é isso que eu quis dizer. Tem uma outra razão pela
qual eu pensei que aqui poderia... bem, não me curar, exata-
mente...
Ele se encolheu. A Dra. Madison esperou.
— Eu morava aqui, sabe?
DESPERTAR 51
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— Você morou aqui?
— Não por muito tempo. Quando eu era estudante. Há 12
anos. Nunca mais havia vindo aqui. Isso é, em parte, a maior
parte, acredito, por que decidi vir. Curiosidade.
A Dra. Madison disse, laconicamente:
— Bem, isso é algo que você tem em comum com o Dr.
Dudden, então.
— Como assim?
— Ele também foi estudante aqui.
— É mesmo? Quando?
— Não acredito que vocês tenham estado aqui ao mesmo
tempo.
— Nunca se sabe, não é? Qual é o primeiro nome dele?
— Gregory.
— Gregory Dudden... Não me lembra nada... — Sua mente
buscou uma outra memória. — Eu tinha uma amiga naquela
época... engraçado, mal pensei nela desde aquele tempo, mas
vendo Ashdown de novo... aparecem memórias... De qualquer
forma.. Ela deveria voltar para cá, porque ela teve a mais estra-nha... síndrome, acho que é como vocês chamariam.
— Em que sentido?
— Ela tinha sonhos — sonhos incrivelmente nítidos,
sonhos tão nítidos que ela não conseguia diferenciar as coisas
com que sonhava das que realmente haviam acontecido com.
— Alucinações hipnagógicas — disse a Dra. Madison. —
Também conhecidas como sonhos do pré-sono.
— Existe nome para isso? Quer dizer que é comum?
— Não, não é comum mesmo. Pode ser um dos sintomas da
narcolepsia. Ela era narcoléptica?
— Não tenho certeza.
— Você a conhecia bem?
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— Acho que a conhecia, sim. Moramos juntos por um
tempo, apenas umas poucas semanas, no ano em que nos for-
mamos.
— Quando você diz que moraram juntos...
— Não, quero dizer que apenas dividíamos um apartamen-
to. Nós nunca... — As palavras sumiram em um silêncio ambí-
guo, meio cuidadoso e meio arrependido. Apenas quando ele
acrescentou “O nome dela era Sarah” foi que algo suave e refle-
xivo apareceu em sua voz. Então o tom ficou estimulante de
novo. — Desculpe, estou provavelmente prendendo você aqui.
Você deve estar cansada.
— Na verdade não. E você?
Terry estridulou de tanto rir.
— Estou sempre cansado — ele disse — e nunca cansado.
Essa é minha sina, receio. Eu certamente não sinto vontade de
dormir agora. Nós temos a noite toda, no que depender
de mim.
— Certo, então — encorajou a Dra. Madison. — Conte-me
sobre a Sarah e os sonhos dela.
DESPERTAR 53
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3
— Conte-me sobre seus sonhos — Gregory disse uma vez para
Sarah, sentado naquele mesmo terraço, em uma manhã clara de
novembro, muitos anos antes. — Conte-me há quanto tempo
isso vem acontecendo.
Sarah aqueceu as mãos na caneca, tremendo um pouquinho
por causa da brisa do oceano, e olhou para ele com carinho.
Isso foi nos primeiros meses do relacionamento deles, muito
antes de eles se distanciarem. Ainda achava, naqueles dias, que
ele podia ser muito gentil. Ela ainda o considerava um homem
sábio e compreensivo. Sentada naquele terraço, apoiada, como
que por instinto, nele, com os joelhos tocando os dele, sentia
que suas ansiedades começavam a se dissolver. Ele esquecia que
eles vinham discutindo com mais freqüência, recentemente, e a
respeito de coisas cada vez menores. Em relação ao sexo, ela
repetia para si que ele melhoraria com o tempo. Tentava igno-
rar o fato de que, enquanto falava com Gregory, ele escrevia o
que ela dizia em um caderno que trazia escrito na capa “PRO-
BLEMAS PSICOLÓGICOS DE SARAH”.
De qualquer forma, ela estava excitada, não havia como
negar: eles acabavam de fazer uma importante descoberta.
Haviam encontrado uma explicação para algo que vinha con-
fundindo Sarah nos últimos cinco anos ou mais. Eles haviam
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descoberto, naquela mesma manhã, que ela não conseguia notar
a diferença entre seus sonhos e as memórias de sua vida real.
— Conte-me sobre esses sonhos — Gregory estava dizendo.
— Conte-me há quanto tempo isso vem acontecendo.
E Sarah tomou um longo fôlego, e contou para ele.
*
Isso começara, ela disse, quando tinha 14 ou 15 anos. Estava
infeliz na escola, freqüentemente tinha problemas para termi-
nar seus deveres de casa, e tinha um medo especial de seu pro-
fessor de História, um certo Sr. Mountjoy. No fim de uma noite
difícil, percebendo-se completamente incapaz de escrever um
artigo sobre as causas da Guerra Franco-Prussiana — um artigo
que ela teria de ler em voz alta na aula do dia seguinte —, ela fora
para a cama aos prantos, disposta, em seu desespero, a faltar a
aula no dia seguinte ou fingir estar doente. Mas, em vez disso,
ela acordou com uma sensação imediata de leveza, com uma
lembrança pura de ter escrito o artigo, e tendo escrito, ela
sabia, em alto nível: ela conseguia visualizá-lo no livro de exer-
cícios, quatro páginas e meia, diversas rasuras na página três,
mas ainda assim limpinhas e apresentáveis, o título sublinhado
duas vezes com caneta vermelha e com algumas notas de roda-
pé para dar a ele um aspecto acadêmico. E foi só às 11h30
daquele mesmo dia, na primeira aula após o intervalo, quando
ela abriu o livro de exercícios pouco antes de ser chamada para
ler diante da turma, que ela descobriu que o artigo, inacredita-
velmente, não existia. Aquela foi a conclusão a que ela chegou,
no fim: primeiro, pensou que devia ter cometido um engano
tolo e escrito o artigo em outro livro, e ela procurou frenetica-
mente em sua mochila, nos livros de inglês, geografia e fran-
cês, com o pânico tornando-se tão visível e audível que o Sr.
Mountjoy teve de interromper quem estava lendo e perguntar
DESPERTAR 55
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qual era o problema. Ela explicou que devia ter deixado o arti-
go no armário e pediu permissão para ir buscá-lo: a permissão
foi dada; mas a busca em seus livros de matemática, alemão,
física e biologia no pouco habitual silêncio da sala de armários
vazia ainda não havia produzido nenhum resultado prático; e
então, tomada por uma confusão que beirava a histeria, ela
fugiu do prédio da escola de uma vez e correu para o parque
municipal onde, com as mãos na cabeça, tentou em vão encon-
trar o sentido dessa seqüência de eventos e começou a pensar,
com seriedade, pela primeira vez, se estava ficando louca. O
artigo nunca apareceu e ela foi colocada de castigo naquela
semana (e o Sr. Mountjoy não acreditou em uma palavra da his-
tória dela): e se todos esqueceram aquele incidente, Sarah não
esqueceu, e nunca mais falou sobre ele, embora tenha passado
por outras situações desagradáveis semelhantes em intervalos
irregulares nos anos seguintes. Uma vez, alguns semestres
depois, repreendera amargamente sua melhor amiga, Angela,
que não apareceu na hora em um encontro marcado do lado de
fora da piscina. Angela negou que o tal encontro havia sido
marcado, e uma discussão levou a um desentendimento entre as
duas que nunca foi bem resolvido. Houve uma outra ocasião,
também, quando Sarah confundiu sua família ao parar na far-
mácia no caminho da escola para casa e trazer — em resposta,
ela insistia, a um pedido específico de sua mãe — seis tubos de
pasta de dente para fumantes, dez sachês de pot-pourri e um
estoque de supositórios para pelo menos um ano.
Embora muito envergonhada para admitir isso até para os
amigos mais próximos ou para a família, Sarah se convenceu de
que era a vítima das ilusões: vôos vívidos e incontroláveis da
imaginação que, em um primeiro momento, ela não tinha por
que conectar com seus sonhos (já que os sonhos dos quais con-
seguia se lembrar normalmente tinham pouco a ver com a rea-
lidade e tendiam, como os de todo mundo, ao grotesco e ao
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fantástico — ela tinha muitos pesadelos com cobras, por exem-
plo, e outros ainda piores com sapos). Foi apenas naquela
manhã no terraço, com a ajuda de Gregory, que a verdade real-
mente veio à tona. E embora Sarah estivesse chateada com a
discussão que eles haviam tido na noite anterior, por outro lado
estava agradecida por: porque foi aquela discussão, e suas estra-
nhas conseqüências, que finalmente destrancaram a porta do
mistério.
O problema começara na tarde anterior, quando Gregory
disse a Sarah que eles haviam sido convidados para um jantar
de aniversário em um restaurante local (o nome do restaurante
ainda seria decidido), em uma festa de um colega da escola de
medicina, alguém chamado Ralph, que Gregory, ao que pare-
cia, não conhecia muito bem. Sarah perguntou se ela havia sido
incluída nesse convite nominalmente, e Gregory foi forçado a
admitir que não: até onde sabia, Ralph não tinha conhecimen-
to de que eles eram namorados, e apenas dissera a Gregory que
ele poderia levar um amigo, se desejasse.
— Faz sentido — disse Sarah. Gregory pediu que ela expli-
casse essa observação: e ela contou a ele que costumava ser ami-
gável com Ralph, até um episódio embaraçoso que acontecera
uns meses antes, depois do qual eles não se falaram mais.
— Sabe aquele restaurante de frutos do mar perto do
porto? — ela disse.
— O Planetário?
Ele tinha esse nome por causa do teto arredondado sobre o
salão de jantar principal, em que um artista local pintara recen-
temente uma enorme vista do céu à noite.
— Bem, ele me convidou para ir lá uma vez. Somente eu e
os pais dele, que estavam aqui para passar o fim de semana.
Deus sabe como me senti especial com essa honra: acho que ele
devia ter uma queda por mim. De qualquer forma, era uma
noite de sábado, e lá estava bem cheio, e quando chegávamos
DESPERTAR 57
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ao fim da refeição, quando estávamos tomando café, comecei a
passar mal, mas realmente mal. Acho que deve ter sido por
causa dos mexilhões. Fui ao banheiro achando que fosse vomi-
tar, mas nada aconteceu: então voltei para o andar de cima e
todos estavam se preparando para ir embora, e eu ainda estava
me sentindo realmente terrível, mas ainda assim, pegamos nos-
sos casacos e então todos paramos nos degraus do restaurante
para nos despedirmos. Seus pais voltariam para o hotel na cida-
de, entenda. De qualquer forma, lá estávamos todos nós,
papeando e nos despedindo, e então de repente eu sabia que
iria vomitar. A qualquer momento. E dito e feito, no meio da
conversa, sem nenhum aviso, me dobrei e vomitei nos degraus
e na calçada. Ali estava toda a minha refeição, espalhada em
todos os degraus do restaurante, para todo mundo ver. E o mais
surpreendente foi que Ralph e seus pais não pararam de conver-sar. Quero dizer, isso é realmente lisonjeiro, não? Eles simples-
mente continuaram, como se nada tivesse acontecido. A única
coisa que a mãe de Ralph fez foi me dar um lencinho de papel,
para eu poder limpar minha boca. E então eles bateram papo
por mais uns minutos, planejando o que fariam no dia seguin-
te, e então deram um beijo de boa-noite no filho, e então o pai
dele se inclinou para me dar um beijo de despedida, e exata-
mente quando fez isso, aconteceu de novo, eu de repente me
senti mal e, antes que eu soubesse o que estava acontecendo, eu
estava vomitando nos degraus de novo, mas dessa vez metade do
vômito foi parar nas calças e nos sapatos do pai dele. E ainda
assim, sabe, eles nem piscaram mais rápido. Nunca disseram
uma palavra. E então os pais dele agradeceram-no pela noite
encantadora ou algo assim, e lá se foram eles em uma direção e
nós na outra, e tudo o que ele falou para mim foi: “Você está
bem agora?”, nesse tom frio de voz. Então, nós entramos em um
táxi e voltamos ao campus, e nós nem demos um beijo de boa-
noite nem nada. Fiquei com a impressão de que ele pensou que
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a coisa toda era bem engraçada, de um jeito meio nojento, por-
que seus pais eram esnobes, e eu não, e ele achou que eu propor-
cionei uma divertida demonstração de como as classes mais bai-
xas se comportam diante de seus superiores.
— Não, você está sendo injusta com eles — disse Gregory.
— Não conheço Ralph muito bem, mas tenho certeza de que
ele nunca teria esse tipo de atitude.
— Então por que ele não falou mais comigo desde então?
Gregory não tinha resposta, mas gastou a maior parte das
horas seguintes reafirmando para Sarah que era seguro ela ir ao
jantar. Quando eram 19h45, quando eles chegaram do lado de
fora do hall da casa de Ralph no campus, ela ainda demonstra-
va dúvidas.
— E se ele levar todo mundo ao mesmo restaurante?
— E qual o problema?
— Bem, isso seria muito embaraçoso, não seria?
— Não consigo deixar de pensar que você está exagerando
nisso, Sarah. — Eles estavam subindo as escadas.
— É fácil para você dizer isso. A questão é que eu sei, eu
simplesmente sei, que essa coisa toda se tornou uma grande
piada entre os amigos dele. Consigo até imaginá-lo contando
toda essa história e gargalhando. Serei uma piada ambulante
entre eles.
— Isso é absurdo — disse Gregory enfaticamente. Eles ha-
viam chegado ao corredor de Ralph. — Estou estudando para
ser psiquiatra, Sarah. Um especialista no funcionamento da
mente humana. E se eu sei alguma coisa sobre a natureza huma-
na, posso garantir que ele não terá mencionado essa história
para qualquer outra pessoa. Tudo isso é apenas um outro exem-
plo da sua paranóia e da sua mania de perseguição. — Parado
do lado de fora do quarto de Ralph, ele pegou um bilhete que
estava pregado à porta, e o leu em voz alta. — Amigos do Ralph
— ele leu. — Encontrar às 20h30, no Vomitário.
DESPERTAR 59
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E foi nesse ponto que as versões de Gregory e de Sarah
começaram a divergir; embora isso só tenha se tornado aparen-
te na manhã seguinte, quando Sarah acordou, bem cedo, e des-
cobriu que Gregory não estava mais deitado ao lado dela na
cama. Ela levantou e abriu as cortinas. Olhando lá para baixo,
ela o viu sentado no terraço, encarando o mar, vestindo seu
casaco azul grosso abotoado até o pescoço.
Sarah escolheu algumas roupas e desceu para a cozinha,
onde preparou duas canecas de café. Ela as levou para o lado de
fora, chegando ao terraço pela janela francesa da sala de TV.
— Aí está você — ela disse, colocando a caneca de café dele
na mesa, perto do caderno em que ele estava escrevendo. —
Parece que você está congelando. Algum problema?
— Não consegui dormir — ele disse, bebericando agradeci-
do o café. — Na verdade, tive uma noite de sono terrível na
noite passada.
— É mesmo?
— Sim. Você ficava me acordando.
— Como assim? — disse Sarah.
— Você me manteve acordado. Você estava soniloquando.
— Eu estava o quê?
— Soniloquando. Falando enquanto dormia.
— Eu não faço isso.
— Bem, na noite passada fez.
— Mesmo? E o que eu estava falando?
— Oh, não sei. — Ele deu um enorme e longo bocejo, e
franziu a testa. — Algo sobre um bangalô em um rio, acho.
— Que pitoresco.
— Bastante. — Vagarosamente, o café começou a reavivá-
lo, e ele perguntou. — Então, você se divertiu ontem, no final?
— Foi normal — disse Sarah, após uma surpreendente
pausa.
— Gostei de Harriet, devo dizer — Gregory falou de
repente.
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— Harriet?
— Sim. Garota divertida, achei. Deu um pouco de ritmo à
noite.
— Quem é ela?
Gregory olhou para ela; um olhar impaciente.
— Harriet. A nova namorada de Ralph. Você ficou sentada
do lado dela a noite toda.
— Sentada ao lado dela? Onde?
— No restaurante.
Sarah assoprou a superfície de seu café. Ela decidiu que ele
estava jogando algum jogo mental chato.
— Não sei de que você está falando.
— Olha — disse Gregory, exasperado. — Foi só uma obser-
vação. Não devo ser punido por isso, devo?!; apenas por dizer
algo que elogie uma outra mulher?
— Bem, uma vez que eu nunca encontrei a mulher em ques-
tão, eu mal tenho como comentar.
Gregory virou-se para ela.
Estou falando sobre a noite passada, Sarah. Estou falando
sobre a mulher que sentou perto de você, e com quem você
conversou a noite toda.
Sem dizer mais palavra, Sarah ficou em pé, virou-se e desa-
pareceu do terraço, deixando Gregory se sentindo ameaçado e
dando grandes goles no café, achando que havia rompido algu-
ma parte tácita do protocolo namorado-namorada. Quando ela
voltou, aproximadamente dez minutos depois, parecia preocu-
pada e disposta a pedir desculpas. Ela deslizou com carinho no
banco ao lado dele e disse:
— Isso vai soar muito estranho, eu sei, mas não me lembro
de nada do que aconteceu no restaurante com você ontem à
noite, eu tenho minha própria memória do que aconteceu, e é
completamente diferente.
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Gregory olhou para ela com intensidade.
— Nos últimos anos, desde quando eu era adolescente, de
vez em quando tenho tido essas experiências pitorescas. Eu me
lembro de coisas de formas diferentes de como elas acontece-
ram. Eu imagino coisas, eu invento coisas, não sei como isso
acontece. Nunca contei isso a ninguém. Você é a primeira pes-
soa. Estou contando isso para você agora — ela olhou para ele,
e sua voz começou a tremer — porque confio em você. Porque
amo você.
Gregory contorceu os lábios. Por um momento, ela pensou
que ele fosse beijá-la. Em vez disso, ele pegou sua caneta, abriu
o caderno de novo e folheou com vontade até achar a primeira
página em branco.
— Mas isso é fascinante — ele disse. — Você quer dizer que
não se lembra de chegar ao restaurante? De sentar perto de
Harriet? De cantar “Parabéns a você”? De pedir peixe?
A testa de Sarah começou a ficar funda.
— Não sei... Parece familiar... Levemente familiar... Mas
existe uma outra memória; uma bem mais forte.
— Um tipo de memória alternativa?
— Sim. Sim, acho que sim.
— Isso — disse Gregory, rabiscando com fúria — é muitobrilhante. Algo assim não cai no seu colo todos os dias. Então o
que você pensa que aconteceu na noite passada?
A lembrança de Sarah coincidia com a de Gregory apenas
até o momento em que eles descobriram o bilhete afixado à
porta de Ralph. Depois disso, ela afirmava, eles tiveram uma
discussão violenta, no fim da qual ela se recusara a ir com ele ao
jantar de aniversário: Gregory fora sozinho, enquanto Sarah foi
ao Jonah’s, que era um restaurante self-service bem popular no
campus.
— Quando você chegou lá? — perguntou Gregory, ainda
anotando tudo.
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— Não sei, por volta das 20h?
— E por quanto tempo você ficou lá?
— Um pouco. Não tinha mais nada a fazer. Por uma hora,
mais ou menos.
— E o que você comeu?
— Essas coisas realmente são necessárias? Isso tem alguma
relevância?
— Tudo é relevante. É vital que estabeleçamos quão especí-
fica essa... alucinação foi. Então, o que você comeu?
— Sopa. Apenas sopa.
— Apenas sopa? Você não estava com fome?
— Eles não tinham mais muita comida. Não gostei de
nenhum dos pratos principais.
— E quais eram os pratos principais?
— Bem, torta de carne ou de fígado.
Gregory começou a escrever isso, mas parou no meio da
palavra. Ele olhou para cima, com os olhos brilhando.
— Você falou isso na noite passada — enquanto dormia.
— O quê?
— Sim, “torta de carne ou fígado”. — Ele jogou a caneta
longe e riu, mais triunfante que alegre. — Sarah, isso tudo foi
um sonho. Você sonhou com isso.
Ele levou apenas alguns minutos para convencê-la de que
essa era a explicação mais racional, a mais plausível, na verda-
de, a única concebível; e foi assim que Sarah aprendeu que ela
não era vítima de alucinações, mas que freqüentemente estava
propensa a ter sonhos tão reais que não conseguia distingui-los
dos eventos da vida quando estava acordada; mais que isso, tão
reais que eram capazes de expulsar os eventos que realmente
ocorreram da memória, de modo que os sonhos eram lembra-
dos no lugar deles, vistos através da superfície nebulosa e apa-
gada como as palavras originais do manuscrito.
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— Mas isso explica tudo — ela disse. — Todas as coisas
estranhas que aconteceram comigo. Todos aqueles mal-enten-
didos...
— Por quê? Isso aconteceu antes? — perguntou Gregory.
— Você teve esse tipo de sonho antes?
— Sim. Várias vezes.
Ele virou uma nova página de seu caderno e escreveu um
título em suas letras maiúsculas caracteristicamente perfeitas e
pequenas. — Então, vamos lá, Sarah — disse, sorrindo empol-
gado. — Conte-me sobre seus sonhos.
*
O relacionamento de Sarah com Gregory chegou ao fim 11
meses depois, nos primeiros dias do seu ano de pós-graduação.
Seus padrões de sono, nunca muito regulares nem quando ela
estava em boas fases, haviam ficado ainda piores durante esse
período, e seus sonhos continuaram a se provar duvidosos.
Muitas vezes, era em momentos de mais intenso distúrbio
emocional que seus sonhos tornavam-se mais reais e decepcio-
nantes, e na noite em que ela se separou de Gregory foi assim.
Ela não tinha como saber disso, mas começou a sonhar bem
cedo naquela noite, apenas alguns minutos depois de se deitar
com muita relutância. Pois ela então caiu, com uma rapidez
estranha, em um sono profundo que foi imediatamente acom-
panhado por um sonho tão traiçoeiro quanto todos os outros
que já havia tido. Quando acordou na manhã seguinte, a essên-
cia desse sonho estava grudada em sua mente como uma
memória vívida e agridoce. Estava convencida de que o que ela
havia sonhado havia realmente acontecido.
Apesar do discurso pomposo e dolorido de Gregory, apesar
do fato de que foi Gregory quem se aproximou dela na cama,
ressonando pesadamente enquanto dormia, não foi com
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Gregory que ela sonhou. Sonhou com Robert, o novo amigo
que havia conhecido na cozinha em formato de L de Ashdown.
Sonhou que ele estava sob um estresse muito grande, e que ela
era a única pessoa que sabia por quê. Sonhou que a irmã de
Robert havia morrido.
Na manhã seguinte, ela esperava vê-lo na cozinha durante
o café-da-manhã, mas ele não estava lá. Gregory foi embora
para Londres aproximadamente às 10h, sem se despedir, e
depois disso Sarah foi para a biblioteca do campus, onde não
conseguiu fazer trabalho algum por muitas horas. Ela pensava
um pouco em Gregory, porém pensava mais em Robert, e se
perguntava como ele estaria lidando com as terríveis notícias.
Ele provavelmente já havia ido para casa — havia pais para
confortar, providências do funeral a tomar.
Ficou na biblioteca até as 16h, remoendo todos esses acon-
tecimentos tristes. Até então, Sarah não havia adquirido o hábi-
to de monitorar seus sonhos, de manter uma constante atenção
nos limites entre seu mundo de sonhos e sua vida real, e ainda
não percebera que talvez poderia ter sonhado com a morte da
irmã de Robert. Não ocorreu para ela que a demonstração de
pesar de Robert por causa da morte da gata da família, combi-
nada com o slogan maldoso que ele havia repetido para ela —
“Morte às Irmãs” — poderia ter inspirado essa fantasia confu-
sa. De qualquer forma, ela não tinha uma recordação precisa
do encontro deles na cozinha na noite anterior; isso havia sido
totalmente substituído pelo sonho dela. E Robert ficaria, sem
dúvida, comovido por saber que ela estava na biblioteca pen-
sando nele, preocupada com o futuro dele, que poderia ser
congelado pela morte prematura da irmã, mas não havia neces-
sidade nenhuma para isso, pois ele estava, naquele mesmo
momento, deitado na banheira de Ashdown, com nada mais
sério na cabeça que uma vaga incerteza sobre o que comeria
naquela noite.
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Finalmente, foi um ruído rápido na mesa que fez Sarah sair
de seus devaneios. Alguém havia tombado três livros na mesa e
agora estava parado ao lado dela, sorrindo de forma excitada,
bastante orgulhosa de si. Era Veronica, a mulher estranha e
amigável do Café Valladon.
— Achei que fosse encontrar você aqui — ela disse. —
Trouxe algo para fazer você pensar.
Os títulos dos livros eram O segundo sexo, de Simone de
Beauvoir, Política sexual, de Kate Millett, e The SadeianWoman, de Angela Carter. Sarah já havia lido dois deles.
— Dê uma chance a eles — disse Verônica — e então venha
falar comigo. Você me encontra no Café na maioria dos dias,
especialmente à tarde.
— Obrigada — disse Sarah. Ela estava surpresa demais para
acrescentar qualquer coisa.
— De nada — disse Veronica. À medida que ela desapare-
cia na escuridão, entre duas pilhas de livros, Sarah ficou para
trás com uma imagem de suas costas longas e flexíveis.
*
A água da banheira estava ficando fria quando Robert comple-
tou a tarefa de fazer a barba. Como de praxe, deixara sua parte
menos favorita — a garganta, e em particular o pomo de Adão
— para o fim. A água, turvada pelo sabão e pela imundície de
seu corpo, estava agora salpicada com pequenos pêlos pretos.
Ele enxaguou a lâmina na torneira, pronto para se livrar das
barbeadas mais resistentes do final. O vento uivava pelas pare-
des de Ashdown quando ele se afundou um pouco mais na água
que esfriava — ao menos ela o protegia do calafrio mais feroz
do banheiro, que era, absurdamente, o maior e mais confortá-
vel cômodo da casa. Ele correu a lâmina pelas bochechas de
novo, sonhando, então levantou uma perna para fora d’água e
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examinou sua brancura magra. Os pêlos repousavam lisos e
achatados contra a canela e a coxa. Após um momento de refle-
xão, colocou a lâmina um pouco acima do joelho, e começou a
raspar. Logo ele deixara um pedaço limpo, de mais ou menos
cinco centímetros quadrados.
Em um primeiro momento, ele considerou raspar as pernas
um entretenimento, depois, meramente mecânico. Parou de se
concentrar por um momento no movimento suave e abrasivo
da lâmina, e deixou sua mente começar a divagar em assuntos
aleatórios. Antes de tudo, pensou em Muriel. A família de
Robert tivera três gatos ao longo de sua vida, mas ela era sua
favorita: de natureza doce e a mais carinhosa. Mesmo assim,
ele estava chocado — e de alguma forma com vergonha dele
mesmo — de pensar em quão visivelmente afetado ficara com
a notícia de sua morte no dia anterior. Tinha certeza de que
Sarah o notara chorando quando conversavam na cozinha. Ela
provavelmente já o desprezava. Isso era o que o pai dele sem-
pre falava para ele, sempre que o encontrava chorando: “Se
uma mulher alguma vez o vir desse jeito, ela vai desprezá-lo.
Nenhuma mulher gosta que um homem seja fraco. Você quer
respeito. Ninguém respeita um bebê chorão.” Ele conseguia
ouvir essas palavras agora, ditas no único tom que ele conse-
guia se lembrar de seu pai falando com ele: com desprezo,
imperdoável.
Sarah não parecera desprezá-lo, porém. Talvez ela não
tenha notado, no final das contas — ela pode ter ficado muito
entretida com os próprios problemas. Aquela era uma história
pitoresca, sobre o homem que a insultou na rua. Ele esperava
que ela não estivesse mais preocupada com isso. Ela tinha belos
olhos, de um azul metálico e claro, contornados com cinza.
Olhos ambíguos, calorosamente acolhedores e friamente inteli-
gentes ao mesmo tempo.
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Ele não estava usando uma lâmina de segurança, e agora
uma pontada repentina de dor em algum lugar na região de sua
panturrilha o fizera se encolher. Havia se cortado bem feio —
um fio de sangue fluía pela água da banheira. Raspar as pernas
não era o negócio relaxante, que agradavelmente limpava os
pensamentos que ele achava que poderia ser, no final, requeria
um pouquinho de concentração. Ainda assim, havia algo pro-
fundamente satisfatório nisso, alguma qualidade fundamental
de justiça. Nunca entendera a razão de pernas peludas. Sempre
pedira a opinião de suas namoradas sobre esse assunto, e ficara
estupefato de descobrir que elas consideravam pernas peludas
atraentes. Tudo bem, de verdade, mas ele não conseguia deixar
de achar isso uma inexplicável falta de gosto.
Já quase terminara, agora, apenas os tornozelos a fazer, e
eles seriam um desafio. Ele descansaria um pouco antes. Dei-
tou-se na água cinza, agora densa com os pêlos escuros, e enca-
rou um pouco, sem foco, os azulejos quebrados e gastos da
parede. Eles o lembravam dos chuveiros da escola, e essa era
outra memória nojenta: chuveiros comunitários, todas aquelas
provocações e comparações furtivas...
Robert estava na banheira havia mais de uma hora, tempo
suficiente para Sarah ter deixado a biblioteca, pegado um ôni-
bus do campus e ter retornado a Ashdown, ansiosa para lavar
os cabelos. Não havia tranca na porta do banheiro. O truque
era colocar a barra da toalha contra ela, mas Robert, residente
novo, não havia descoberto isso ainda. Foi assim que ela deu de
cara com ele inesperadamente, sem nem bater antes de entrar.
Tudo aconteceu muito rápido. Sarah gritou chocada e mor-
tificada, mas Robert gritou de dor, pois estava no meio da ras-
pagem de seu tornozelo esquerdo, com a perna levantada no ar.
Quando a porta se abriu, sua mão escorregou e as lâminas
duplas do aparelho penetraram fundo em sua perna, duas
vezes, em ângulos perfeitos, deixando uma cicatriz dupla que
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ficaria com ele pelo resto da vida, como aspas. E dessa vez o
sangue veio em mais do que um fio, jorrava e inundava a água
da banheira, deixando-a vermelho-morango em muito pouco
tempo. Sarah o encarou, horrorizada, transfigurada, e por um
momento ele pensou que ela fosse se apressar em ajudá-lo, mas
ele evitou isso gritando:
— Está tudo bem! Está tudo bem! Eu estava raspando meus
pêlos, só isso.
— Desculpe, eu... volto quando você tiver terminado.
Ela se dirigiu à porta, mas logo parou. Ela estava cobrindo
os olhos e olhando em outra direção.
— Você está bem? Quero dizer, você precisa de ajuda? Tem
uma caixa de primeiros socorros no armário.
— Obrigado. Vou ficar bem. Apenas... apenas deixe comi-
go, tá?
Ela saiu do cômodo, mas parou de novo no corredor.
— Achei que você tinha ido para casa — ela disse, rápida e
enigmaticamente, e então desapareceu.
Robert não gastou seu tempo analisando o significado dessa
observação. Ele saltou da banheira e estancou o fluxo de sangue
de seu tornozelo com papel higiênico, e então colocou curati-
vos bem justos. A água estava pingando de seu corpo e ele esta-
va com muito frio. Robert se secou com a pequena toalha de
rosto, e correu de volta para o quarto.
Sarah veio a encontrá-lo alguns minutos depois, assim que
ele acabou de se vestir. Ela havia lavado os cabelos e os havia
escovado, mas não secado, e pareciam mais escuros do que ele
se lembrava da noite anterior. Por alguma razão, ele ficou toca-
do com aquilo: ou talvez já estivesse próximo daquele estado
vulnerável do coração em que mesmo os menores e mais
comuns detalhes ganham uma qualidade luminosa e transfigu-
rada. Qualquer que houvesse sido a razão, ele sentiu seu peito
apertar quando ela se sentou na cama do lado oposto de sua
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mesa, e se encontrou, por um momento, completamente inca-
paz de falar. Até respirar era difícil em um primeiro momento.
— Ainda dói? — ela perguntou.
— Oh... só um pouco. Vai ficar bem. — Ele torceu para que
ela não perguntasse por que ele estava raspando as pernas, para
começar.
— Eu não queria... bem, desculpe por eu ter incomodado
você. As pessoas normalmente colocam a barra da toalha con-
tra a porta, sabe.
— Oh. Certo. Bem, isso é o que vou fazer, então, na próxi-
ma vez.
Sarah concordou com a cabeça. Isso não estava indo do
jeito que esperava. Ela se perguntava como eles poderiam res-
tabelecer a atmosfera fácil e confiável da conversa da noite pas-
sada.
— De qualquer forma — ela disse —, eu só vim para ver se
você estava bem. Você sabe, você parecia bem... aborrecido na
noite passada, e eu queria saber como você estava lidando.
— Lidando?
— Bem, sim, deve ser bem difícil para você.
Ele juntou coragem para olhar para ela, cutucado pela
curiosidade em relação ao tom de genuína e trêmula preocupa-
ção em sua voz. O que estava acontecendo ali, exatamente? Ela
realmente achava que ele era o tipo de homem que ficaria de
cama de luto por dias por causa da morte de uma gata? Parecia
ser tão patético assim? Incapaz de dizer, pela pergunta dela, se
ela o estava mimando ou simplesmente fazendo graça, ele disse,
resguardando-se:
— Oh, você sabe, não é tanta coisa assim, na verdade. Vou
superar.
Que másculo, Sarah pensou, blefar dessa forma. Os ho-
mens realmente acreditavam que eles não poderiam mostrar
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seus sentimentos, mesmo quando falando sobre alguém próxi-
mo — o mais próximo, neste caso, que era possível ser? Ela
percebeu como ele estava tenso e ansioso com a presença dela,
como estava desconfortável com o pensamento de ter sua casca
de insensibilidade retirada, revelando a natureza mais suave e
verdadeira que havia por debaixo. Mas ela sabia que era inte-
resse dos dois persistir.
— Quando eu disse que achava que você teria ido para casa
— ela continuou —, eu quis dizer que, bem, o funeral deve
acontecer logo.
— Funeral? — perguntou Robert.
— Para... desculpe, esqueci o nome dela...
— Para Muriel, você quer dizer?
— Sim. Para Muriel.
Ele se encolheu, rindo sem parar.
— Oh, acho que não vamos fazer tanto alarde por isso —
ele disse. — Seria um pouco demais, você não acha?
Tomada de surpresa por um momento, ela murmurou:
— Bem, o que quer que vocês todos considerem... apro-
priado.
— Quero dizer, quando isso aconteceu antes — disse
Robert —, nós não nos preocupamos com funeral nem nada.
— Isso já aconteceu antes? — ela perguntou, horrorizada.
— Sim, duas vezes.
— Oh, Robert, eu simplesmente... não sei o que dizer. Isso
é um horror. Pensar que vidas podem ser tão... perturbadoras,
e ainda assim você segue em frente, de alguma forma.
— Bem, devo dizer que Muriel é a mais difícil de eu aceitar.
— Ele se sentou mais para a frente, mais perto dela, e esfregou
suas mãos, aquecendo-as com a chama da compaixão dela. —
Eu era mais apegado a ela, acredito.
— Sim, posso imaginar.
Ele se permitiu um sorriso nostálgico.
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— Todas as noites, sabe, ela costumava vir ao meu quarto,
e se enrolava na cama perto de mim. Eu alisava a cabeça dela
e... apenas conversava com ela. Conversava durante horas,
algumas vezes.
— Isso é tão doce.
— De certa forma — ele ria agora —, de uma forma boba,
ela me conhecia melhor do que meus pais. Certamente melhor
do que meu pai.
— Eles não gostavam tanto dela quanto você?
— Bem, ele nunca se deu com Muriel, isso não há como
negar. — Ele suspirou. — Eles se bicavam da forma errada.
Sabe, pequenos hábitos bobos dela que costumavam irritá-lo.
— Que tipo de coisas?
— Bem, ele não gostava do jeito que ela costumava fazer
xixi no carpete da sala de estar, por exemplo.
Sarah absorveu essa informação vagarosamente. Uma nova
imagem começava a surgir: uma criança, disfuncional de algu-
ma forma, e uma família que talvez nunca tenha aprendido a
lidar com ela; talvez nunca tenham sequer aprendido a conside-
rá-la uma humana completa. A situação agora era mais doloro-
sa, mais trágica do que ela havia imaginado. E agora o significa-
do real das observações enigmáticas que Robert havia feito mais
cedo começava a se explicar.
— Veja, Robert — ela disse com cuidado —, o que você
disse antes, sobre um funeral ser demais... eu acho que é muito
importante, sabe, que a sua família... marque essa morte de
alguma forma.
— Bem, eu falei com papai ontem à noite por telefone,
sobre... ele fez uma careta... como nos livraríamos dela. Eu que-
ria saber se alguma espécie de cremação seria possível.
— E?
— Ele riu. Disse que eu estava sendo patético. Disse que ia
apenas cavar um buraco no canto do jardim e colocá-la em uma
caixa de metal. Como ele fez com as outras.
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Sarah olhou para Robert com integridade por um longo
tempo, e então disse, com grande cuidado e ênfase:
— Mas você acha que isso está errado, não acha? Você sabeque isso está errado.
Robert concordou com a cabeça.
— Sim. Sim, eu sei.
— Bom. — Sarah levantou da cama e ficou parada perto da
porta. — Está bem, Robert, estou achando essa conversa... um
pouco difícil, e vou descer um pouco. Mas quero que você
pense sobre o que eu falei, e lembre que, você sabe, quão ruim
quer que as coisas sejam, na sua família, você sempre pode falar
comigo sobre isso. Estarei sempre aqui.
Exatamente quando ela estava saindo, eles se olharam dire-
tamente nos olhos pela primeira vez; e alguma coisa aconteceu
então, alguma conexão se fez, por um momento apenas, antes
que Sarah se virasse e deixasse o quarto, aliviada por ter ganha-
do o santuário do corredor e por estar se dirigindo com segu-
rança na direção do topo da montanha e da brisa de outono. À
medida que ouvia os passos dela se afastando, Robert começou
a respirar de novo de forma longa e desigual.
Ele não a viu de novo por vários dias depois daquilo; ou ao
menos, mesmo tendo a espiado pela janela, no caminho dela
saindo ou chegando à casa, ou tendo uma visão rápida dela desa-
parecendo em seu quarto ou passando pela cozinha em forma-
to de L, ele nunca teve a oportunidade de falar com ela, e se
convenceu de que ela o estava evitando de propósito. Uma
tarde, no fim de semana, ele perguntou diretamente a ela sobre
isso, e ela admitiu que estava chocada com o comportamento
dele — por ele ter falhado, especificamente, em ir para casa
logo após a morte da irmã. Uma vez que o engano veio à tona,
claro, foi fácil lidar com ele. Robert explodiu em uma garga-
lhada assim que percebeu o que havia acontecido, mas ela esta-
va muito sem graça para ver o lado engraçado da história, e
estava perturbada, além disso, com mais uma evidência de
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como seus sonhos eram maus. Pediu desculpas bem friamente,
e não fez nenhum esforço para prolongar a conversa.
Naquela noite, muito depois de todos os estudantes terem
ido para a cama, Robert olhou por sua janela e viu Sarah sozi-
nha no terraço iluminado pela lua. Ela estava olhando a escuri-
dão e apoiada no poste de luz, no qual havia equilibrado o que
parecia ser uma taça de vinho branco. Ele desceu para ficar com
ela, conseguindo chegar no terraço pela janela francesa na sala
de televisão, na qual as dobradiças enferrujadas entregavam
qualquer movimento com um ruído estridente. Ela se virou
quando o ouviu se aproximando, e deu um sorriso encorajador.
Eles começaram a conversar no terraço, e continuaram na
cozinha, e já passava das quatro da manhã quando finalmente
desejaram boa-noite e subiram para seus quartos separados. Foi
provavelmente, até aquele ponto, a conversa mais longa que
Robert já tivera em sua vida. O silêncio melancólico que sem-
pre o envolvera em casa — sua mãe, tímida e formal, seu pai,
taciturno e devagar — nunca o preparara para esse tipo de
troca de confidências contínua e impulsiva. Quando termina-
ram, ele se sentia bêbado de conversa; alto nas confissões. Eles
haviam discutido tudo, parecia, e não haviam escondido nada
um do outro. A conversa começara com o rompimento de
Sarah com Gregory, e depois disso discorreram livremente
sobre romance, amizade, famílias e gêneros, as intimidades
compartilhadas e as revelações vindo cada vez mais rápido e
mais forte à medida que os assuntos em si ficavam maiores
e mais complexos, até que Robert percebeu que confiara a
Sarah segredos sobre ele mesmo, sobre seus pais, sobre sua vida
em casa, em que ele nunca pensou.
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