A CASA DO BURRO BRABO: INTERESSE HISTÓRICO NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DE ORIGEM POPULAR

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A CASA DO BURRO BRABO: INTERESSE HISTÓRICO NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DE ORIGEM POPULAR LA "CASA DO BURRO BRABO": INTERÉS HISTÓRICO EN EL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO DE ORIGEN POPULAR THE BURRO BRABOHOUSE: HISTORICAL INTEREST IN POPULAR ARCHITECTURAL PATRIMONY Planejamento, urbanismo e apropriação social na preservação do patrimônio. Ana Carolina Pfitscher Stefanelo Gislene Tais Brenner Isabela Martins Dos Santos Kelly Odizio Carnaval Rafaela Huminhuk Gossner Graduandas do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná Resumo: Construída por volta de 1860, a Casa do Burro Brabo fez parte da formação da cidade de Curitiba, constituindo, portanto, a história do povo curitibano. Porém, o tempo foi mais forte que sua memória, e a degradação e descaso imperaram na obra, deixando o antigo armazém e casa de damas de companhia em situação lamentável. Até que, em agosto de 2010, após um susto de possível destruição, a população se mobilizou para que o tombamento da Casa ocorresse e fosse tida como patrimônio histórico da cidade. Processo que perdurou quinze anos, já que a empresa que comprara a casa visava o lucro com sua demolição e os processos burocráticos não facilitavam a situação. Com o tombamento efetivado e o restauro concluído, mais um capítulo dessa história começara, porém sem conclusão. Visto que apenas a recuperação física da construção não é suficiente, a história que envolve o local precisa ser trabalhada também, visando sua exposição, principalmente, aos moradores da cidade e ao bairro em que se encontra. Palavras chave: Burro Brabo, Patrimônio, Tombamento, Bacacheri. Resumen: Construida alrededor del año 1860, la “Casa do Burro Brabo” hizo parte del inicio del pueblo de la ciudad de Curitiba, constituyendo asi la historia de la gente curitibana. Todavia, el tiempo fue mas fuerte que su propia memoria, con la degradación y la negligencia reinando sobre la edificación, dejando el antigo almacén y la casa de chaperones en estado deplorable. Hasta que en el mes de agosto del año 2010, tras el riesgo de posible demolición, la población se movilizó para el registro de la Casa em el patrimonio histórico de la ciudad suceder efectivamente y esto título tornarse realidad. El proceso duró quince años, porque la empresa que compró la casa trató de sacar provecho com la probabilidad de la demolición. Sin embargo, la burocracia obstaculizó la concretización del hecho. Después del registro del patrimonio histórico y con los trabajos de renovación completos, otro nuevo capitulo de esta historia comenzó, pero sin uma conclusión satisfactoria. Puesto que tan sólo la recuperación física del edifício no es suficiente, la historia que rodea esto sitio necesita de un enfoque con el objetivo de su exposición principalmente a residentes en la ciudad y en el barrio donde está la Casa.

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A CASA DO BURRO BRABO: INTERESSE HISTÓRICO NO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DE ORIGEM POPULAR

LA "CASA DO BURRO BRABO": INTERÉS HISTÓRICO EN EL PATRIMONIO ARQUITECTÓNICO DE ORIGEN POPULAR

THE “BURRO BRABO” HOUSE: HISTORICAL INTEREST IN POPULAR ARCHITECTURAL PATRIMONY

Planejamento, urbanismo e apropriação social na preservação do patrimônio.

Ana Carolina Pfitscher Stefanelo Gislene Tais Brenner

Isabela Martins Dos Santos Kelly Odizio Carnaval

Rafaela Huminhuk Gossner Graduandas do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Tecnológica Federal do Paraná

Resumo:

Construída por volta de 1860, a Casa do Burro Brabo fez parte da formação da cidade de Curitiba, constituindo, portanto, a história do povo curitibano. Porém, o tempo foi mais forte que sua memória, e a degradação e descaso imperaram na obra, deixando o antigo armazém e casa de damas de companhia em situação lamentável. Até que, em agosto de 2010, após um susto de possível destruição, a população se mobilizou para que o tombamento da Casa ocorresse e fosse tida como patrimônio histórico da cidade. Processo que perdurou quinze anos, já que a empresa que comprara a casa visava o lucro com sua demolição e os processos burocráticos não facilitavam a situação. Com o tombamento efetivado e o restauro concluído, mais um capítulo dessa história começara, porém sem conclusão. Visto que apenas a recuperação física da construção não é suficiente, a história que envolve o local precisa ser trabalhada também, visando sua exposição, principalmente, aos moradores da cidade e ao bairro em que se encontra. Palavras chave: Burro Brabo, Patrimônio, Tombamento, Bacacheri.

Resumen: Construida alrededor del año 1860, la “Casa do Burro Brabo” hizo parte del inicio del pueblo de la ciudad de Curitiba, constituyendo asi la historia de la gente curitibana. Todavia, el tiempo fue mas fuerte que su propia memoria, con la degradación y la negligencia reinando sobre la edificación, dejando el antigo almacén y la casa de chaperones en estado deplorable. Hasta que en el mes de agosto del año 2010, tras el riesgo de posible demolición, la población se movilizó para el registro de la Casa em el patrimonio histórico de la ciudad suceder efectivamente y esto título tornarse realidad. El proceso duró quince años, porque la empresa que compró la casa trató de sacar provecho com la probabilidad de la demolición. Sin embargo, la burocracia obstaculizó la concretización del hecho. Después del registro del patrimonio histórico y con los trabajos de renovación completos, otro nuevo capitulo de esta historia comenzó, pero sin uma conclusión satisfactoria. Puesto que tan sólo la recuperación física del edifício no es suficiente, la historia que rodea esto sitio necesita de un enfoque con el objetivo de su exposición principalmente a residentes en la ciudad y en el barrio donde está la Casa.

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Palabras-clave: Burro Brabo, registro de patrimonio histórico, Bacacheri.

Abstract: Built in the 1860s, the House of Burro Brabo took part of the rise of the city of Curitiba, therefore constitutes the history of the people of Curitiba. But the time was stronger than his memory, and the degradation and neglect have been prevalent in the building, leaving the former storehouse and prostitution house in unfortunate situation. Until in August 2010, after a fright of possible destruction, the population has mobilized to the house to be listed by IPHAN and to be regarded as the heritage city. The process lasted fifteen years, because the company that bought the house aimed profit with its demolition and bureaucratic process did not facilitate the situation. After being listed and reform completed another chapter of this story began, however without conclusion. Since only the physical building is not enough, the story surrounding the place also needs to be worked, aiming its exposure mainly to city residents and the neighborhood in which it stands. Keywords: Burro Brabo, Heritage, listing, Bacacheri.

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A memória de uma civilização traduz mais do que os grandes eventos que foram narrados pela história, mais que os créditos aos reis e déspotas, ela deve falar do caminho, do contexto em que os fatos ocorrem. “Quem construiu Tebas das sete portas?”. A pergunta, do “leitor operário” de Brecht, expressa quanto a história de nossa civilização credita a responsabilidade heroica pelas grandes obras da humanidade a poucos e mantem anônimos os personagens que a fundamentaram. Com o amadurecimento das relações históricas, cada vez mais se reconhece o peso desta pergunta.

A arquitetura como parte fundamental neste preceito, deve nos indicar mais do que castelos, deve também falar do povo. É neste princípio que se enquadra a Casa do Burro Brabo. Construída por volta de 1860, a Casa fez parte da formação da cidade, constituindo, portanto, parte da história curitibana. Porém, o tempo foi mais forte que sua memória, e a degradação e descaso imperaram na obra, deixando o antigo armazém e casa de damas de companhia em situação lamentável. O tramite longo e desgastante, tanto pelo desinteresse da empresa proprietária como pela malha de processos burocráticos que não facilitavam a preservação do nosso patrimônio, culminou em agosto de 2010, quando após um susto de possível destruição, a população se mobilizou para que o tombamento da Casa ocorresse e fosse tida como patrimônio histórico da cidade.

Mas certamente o mal que mais fortemente se abateu sobre o processo de tombamento foi cultural. Ao longo dos anos, se estabeleceu como senso comum a máxima de que Patrimônio consiste apenas em residências de relevância arquitetônica, ou onde morava algum personagem da história. Ambas questionáveis no aspecto histórico, tendo como resultado direto deste pensamento, muitas vezes, a elitização da memória.

O restauro de uma residência relevante no cotidiano popular veio no contra fluxo dessa tradição. Preservar um armazém pode parecer de pronto, um ato inválido, mas se trata de mais do que isso. Refere-se à história do povo, como ator principal das lutas e das conquistas pelas quais passou o desenvolvimento do Paraná, e fundamento para a constituição de Curitiba como capital.

A recuperação de um patrimônio cultural transcende a recuperação física de uma construção de importância histórica. Um patrimônio histórico e cultural consolida-se não somente pela recuperação das estruturas, mas principalmente pela recuperação e cristalização da história que lhe envolve.

IMPORTÂNCIA DE PRESERVAÇÃO

Pensar em preservação de uma herança cultural remete ao surgimento dos patrimônios históricos. Mas que herança? Se, desde o Império a história é mostrada e contada por aqueles que têm interesse nela. Durante toda a história da humanidade foi assim: a divisão da sociedade, com a proteção de classes proprietárias e, consequentemente, a exclusão das demais.

Assim, ocorre com a escolha dos patrimônios históricos, que geralmente exprimem a cultura daqueles que “controlam” a sociedade.

A partir da década de 1980, o conjunto dos movimentos sociais começa a mudar esse cenário e, buscando maior democratização do país os segmentos excluídos da sociedade

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começam a ter seu espaço e reconhecimento de contribuição para a formação desta. Importantes momentos da história foram sendo, então, descobertos. Nesse sentido, de inclusão, o patrimônio cultural liga-se à memória social, como destaca Rodrigues

(...) propiciando a inclusão de bens materiais, como fábricas e residências operárias, antes impossível no conjunto de bens tombados, eleitos, até então, por critérios que, no caso das edificações, consideravam apenas a excepcionalidade material e o valor histórico, este ainda baseado no que a História registrara a respeito dos grandes personagens e grandes fatos nacionais (RODRIGUES, 2002).

Desse modo, observa-se a historicidade da memória, que reflete, através de sua mutabilidade, as relações políticas e valorização que se dá ao passado pela sociedade. “A memória social será tão mais significativa quanto mais representar o que foi vivido pelos diversos segmentos sociais e quanto mais mobilizar o mundo afetivo dos indivíduos” (RODRIGUES, 2002).

PATRIMÔNIOS PÚBLICOS

“O patrimônio é a nossa herança do passado, com a qual convivemos hoje, e que passamos às gerações futuras. E, através da preservação deste patrimônio, se exerce a cidadania.” (IPHAN, 2007).

“Entende-se por patrimônio artístico nacional todas as obras de arte pura ou de arte aplicada, popular ou erudita, nacional ou estrangeira, pertencentes ao poder público, a organismos sociais, a particulares nacionais, e a particulares estrangeiros residentes no Brasil”. Esse conceito, definido por Mario de Andrade, inédito para a época, modificou toda uma forma de pensar da sociedade em relação à importância da preservação histórica nacional. Através de seu trabalho, ele conseguiu polemizar o tema e dar os primeiros passos para a conscientização popular. (LEMOS, 1987, p.25)

O escritor, impulsionado pela campanha publicitária intitulada “Contra o vandalismo e o extermínio”, realizada por Paulo Duarte em 1937, que denunciava o precário estado dos prédios históricos, conseguiu a aprovação para a surgimento de um novo órgão vinculado a proteção de monumentos nacionais da destruição ocasionada por quaisquer reformas urbanas. Sendo assim o pioneiro de outras leis, como a do tombamento.

Assim, os patrimônios culturais estão sob a égide da Constituição Federal, que determina em seu artigo 216, V:

Art 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro o bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 1937).

Na legislação curitibana, Lei nº 6337, de 1982, diz-se que o proprietário do imóvel considerado Unidade de Interesse de Preservação - UIP terá restrições parciais de direito sobre tal, porém não impede que retire deste seus frutos, além de ser responsável por realizar as obras referentes a

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conservação da edificação, com o objetivo de manter suas características históricas. Para BARZ, o efeito legal de uma UIP não é considerado efetivo, o que fragiliza o intento de preservação, de forma que Curitiba não tem lei de preservação, e a última vez que tentou implantar foi em 1988,

O que tem é uma lista, um decreto da década de 80, chamado “Unidades de Interesse de Preservação (UIP)”. Então quando um proprietário entra com um alvará pra demolir uma casa do “UIP” você pode tentar ir lá e negociar, mas se ele falar 'não tenho interesse', cai e não acontece nada, porque não tem legislação pra fazer isso.

Além disso, porque a iniciativa privada, a grande especulação imobiliária, não teve vontade que existisse, além de não ter lei de preservação, outra coisa muito ruim que aconteceu em Curitiba diz respeito à lei de uso do solo, dos planos diretores. O que aconteceu em Curitiba: pegaram algumas áreas onde tinham grandes patrimônios, grandes casas de interesse de preservação, e a lei de uso do solo fez com que pudessem construir prédios enormes, potencial construtivo, se numa área em que eu tenho uma casa e a lei me permite construir e ocupar quase 100% da área, e construir quanto eu puder pra cima, você não tem lei que segure, porque o proprietário vai derrubar e vai construir (BARZ, 2011).

Quanto a legislação paranaense, no que diz respeito às obras de reconstrução ou manutenção do imóvel, sendo, o proprietário incapacitado financeiramente de realiza-las, informa a Lei Estadual 1.211/53, que este deverá comunicar o órgão competente a fim de assumir as despesas ou iniciar o processo expropriatório do bem. A lei determina, em seu artigo 16, par.1 os seguintes termos:

Art 16 – O proprietário da coisa tombada que não dispuser de recursos para proceder às obras de conservação e reparação que a mesma requer, levará ao conhecimento da Divisão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná a necessidade das mencionadas obras, sob pena de multa correspondente ao dobro da importância em que for avaliado o dano sofrido pela mesma coisa.

PAR. 1 – Recebida a comunicação e consideradas necessárias as obras, o Diretor da Divisão do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Paraná mandará executá-las, às expensas ao estado, devendo as mesmas serem iniciadas dentro de seis meses, ou providenciará para que seja feita a desapropriação da coisa (PARANÁ, 1953).

Embora a lei tenha sido sancionada, o tombamento geralmente é realizado quando a estrutura da construção está gravemente danificada, inviabilizando a utilização. Nessa hora, empresas da área de construção civil se beneficiam do descaso da comunidade com o patrimônio cultural, e tentam derrubar importantes edifícios antigos mesmo sem possuir o alvará de demolição. Essa divergência de interesses entre o capitalismo e a defesa da história é uma das principais dificuldades para a realização do tombamento, visto que, em algumas situações, o tempo que leva para que a sociedade se mobilize para solicitar o tombamento não é suficiente para impedir a demolição.

Segundo a ex-Secretária de Estado da Cultura, Vera Maria Haj Mussi Augusto:

A legislação estadual que cuida dos tombamentos é pioneira e foi criada na metade do século passado. Antes disso, muito se demoliu em nome da modernidade. Exemplos não faltam: prédios de valor histórico inestimável cederam lugar a projetos de valor arquitetônico duvidoso, paredes com pinturas do

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século XIX receberam quilos de massa corrida... Quando tudo parecia perdido, o Paraná conquistou sua própria lei de proteção, um exemplo para o Brasil, e passou a cuidar diretamente da preservação de seu acervo material, imaterial e natural.

[...]

Quando se fala em preservação histórica, temos a impressão de que nem sempre avançamos na mesma velocidade com que agem os depredadores do nosso patrimônio cultural. Entre os agressores, além do homem e seus interesses econômicos, está a ação do tempo, implacável na deterioração dos bens que representam a vida cotidiana das cidades e campos. (PARANÁ, 2006)

Para BARZ (2011), o descaso e a especulação imobiliária são grandes causas do desaparecimento do patrimônio da cidade,

(...) Porque quando se construíram as 'estruturais' onde eles dividiram e demoliram boa parte das casas históricas e o tal do 'setor histórico', que teve um grande número de casas demolidas, sobrou apenas um pequena parte isolada, a partir daquilo lá, o pensamento que vinha do IPPUC: "o que é significativo a gente já tem preservado, o resto a gente não precisa". Então Curitiba hoje preserva muita coisa assim: o que é significante arquitetonicamente, ou onde morava algum personagem da história. São duas coisas questionáveis no aspecto histórico, pois trata-se de uma história da elite: quem morou sempre, as pessoas que conceberem uma casa de um certo estilo, pra seguir o que era a moda no momento, tinham que ter dinheiro. Se eram pessoas 'significativas', tinham que ter dinheiro.

Então a memória de arquitetura de Curitiba é muito focada nisso, aí que também vem a válvula de escape da Casa do Burro Brabo: não era uma casa das elites, era uma casa dos campeiros, dos agricultores, da pecuária, que era armazém, que depois foi prostibulo.(BARZ, 2011)

PRESERVAÇÃO

Segundo o IPHAN, a preservação pode se dar por duas vias distintas, o da conscientização, através de atividades que gerem a percepção da própria comunidade da necessidade de manutenção, seja da cultura, das obras e documentos históricos ou da arquitetura; ou pelo tombamento, ou seja, a ação do Estado.

No caso de bens privados, o tombamento pode se dar voluntária ou compulsoriamente, o que não significa alteração da posse, ou seja, o indivíduo continua tendo a posse do imóvel, podendo vender ou alugar como lhe convier.

Logo, ““Tombar” significa amparar, preservar através de leis que impedem a destruição desintegração e/ou descaracterização do bem.” (IPHAN, 2007)

ARQUITETURA CAMPESTRE

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No século XIX o Brasil era um país colônia de Portugal ainda, por tal motivo não tinha relevante expressão própria, apenas obedecia ao monopólio de sua metrópole. O país exportava matérias-primas e importava manufaturados, os produtos prontos, dos portugueses. O mesmo ocorria com a cultura e a arquitetura vinda da Europa: prontas, bastava apenas aplica-las no cenário brasileiro.

Após passar por épocas de influência neoclássica em suas construções, e com a implantação de ferrovias no país, principalmente por conta da cultura do café e seu auge, os donos dos imóveis começaram a incrementá-las, começa a partir daí o uso do ecletismo na arquitetura.

O campo, portanto, era a escolha das famílias mais abastadas para erguer suas casas. Num momento em que as cidades ainda eram pequenas e pouco estruturadas.

Para caracterizar esse tipo de arquitetura chamada rural ou campestre, Joaquim Cardoso (apud MIRANDA e CZAJKOWSKI, 1995); registra:

O primeiro tipo é o herdado dos engenhos de açúcar do século XVIII. Em seu aspecto geral essas casas, com alpendres, capelas e puxados que se acoplam ao volume principal, expressam muito mais uma composição acidental que uma intenção plástica determinada, consequência de uma maneira de construir despretensiosa e primordialmente prática. Sua estrutura é quase sempre de esteios de madeira sobre baldrame de pedra, e as paredes, de taipa de sebe. O telhado, de quatro águas, espalha-se sobre os anexos em abas que prolongam as águas principais, dando às fachadas laterais um perfil característico. É a própria irregularidade do todo, muitas vezes sublinhada pela tentativa de ordenar a composição de alguns vãos, que empresta a essas casas uma graça especial.

[...]

O segundo tipo tem como sua única representante aqui a Fazenda Pau d'Álho, pioneira no cultivo do café. Caracteriza-se pelo volume compacto, coberto por grande telhado de quatro águas, pelo alpendre que rasga de ponta a ponta a fachada principal e pela massa sólida de seu embasamento, um porão quase sem aberturas que se assenta pesadamente sobre o solo. Mesmo sem contar com a elegante colunata toscana que confere tanta nobreza aos alpendres de Colubandê, do Capão do Bispo e do Viegas, é grande a semelhança de Pau d'Alho com essas belas casas fluminenses, todas, aparentemente, do final do século XVIII.

[...]

O Terceiro tipo de casa rural é o do grande sobrado de muitas portas e janelas: o "casarão" antológico que vem sempre à mente quando se fala em fazendas de barões do café. Ele não é, no entanto exclusivo do universo rural, sendo, ao contrário, talvez o gênero de construção que mais comparece ao longo de nossa história quando se trata de construir um grande prédio, tanto urbano quanto rural, tanto civil quanto religioso - haja vista os conventos e mosteiros que provavelmente são o seu modelo fundamental.

É nesses casarões que a boa composição arquitetônica se faz mais necessária e perceptível. Aqui o acerto nas proporções e na relação entre cheiro e vazios, bem como a eventual ornamentação, são os únicos recursos para evitar a monotonia que as suas extensas fachadas com janelas e tudo o que a elas se refere são primordiais na evolução estética desses sobrados.

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[...]

O quarto tipo - casas de um pavimento com um sobrado ao centro da fachada, ocupando uma área menor que a do térreo - tem uma longa genealogia urbana. Sua origem está certamente nos sobrados coloniais com dois andares e camarinha ou torrões elevados como a Casa dos Contos, em Ouro Preto, e o , e o Paço dos Vice-Reis, no Rio de Janeiro. Nas cidades a popularidade do gênero, a partir de meados do século XVIII, é atestada não só pelos inúmeros prédios que ainda estão de pé em todo o Brasil como pelas descrições e lustrações dos viajantes estrangeiros do século passado. Essa popularidade se explica talvez pelo perfil aristocrático que resulta da ênfase dada ao corpo central, cujo volume mais alto transforma os corpos mais baixos, mesmo quando rudimentares, em "alas" laterais. Ao virar casa de fazenda e casa chácara, esse tipo de sobrado perde um andar e ganha geralmente uma varanda através da qual se faz o acesso ao jardim.[...]

Sendo a Casa do Burro Brabo, ou Casa Klos, um dos últimos exemplares da arquitetura rural na cidade de Curitiba, encaixa-se em partes na primeira classificação de Cardoso, visto que a edificação possui paredes em taipa (Figura 1) (estrutura de madeira e preenchimento em argamassa) e algumas em tijolos.

Figura 1 – Paredes de taipa

(Fonte: Coordenadoria do Patrimônio Cultural. Arquivo de Restauro, 2004)

O SÍTIO DE PRESERVAÇÃO

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O monumento histórico passou a ser analisado levando-se em conta a integração com o seu entorno: começa a polêmica sobre monumentos percebidos isoladamente ou considerados no contexto do conjunto ambiental. A ideia de isolar ou destacar um monumento passa a ser percebida como uma mutilação. (GRAMMONT, 2006).

A estrada da graciosa

A Estrada nasceu como trilha indígena, assim como a do Arraial e Itupava, e ligava o planalto de Curitiba ao litoral. “Aberta e fechada muitas vezes ao longo do tempo, somente passou a ter relevância como via de acesso ao litoral a partir de meados do XIX.” (CARVALHO e CARVALHO, 2009)

A estrada servia de escoamento da produção de erva mate e madeira dos Campos Gerais e do planalto curitibano:

Somente em 1807 com uma nova abertura a Graciosa passa a ganhar importância entre os caminhos colonais. Através dela se transportou mate, gado e madeiras que saiam dos Campos Gerais e planalto curitibano e se dirigiam aos portos de embarque no litoral.

A cargo de Beaurepaire Rohan, o caminho da Graciosa foi transformado, após duas décadas de trabalho, em estrada de rodagem. Oficialmente concluída em 1873 pelo engenheiro Monteiro Tourinho, carroçável em toda a sua extensão ganhou benefícios e foi macadamizada no governo de Carlos Cavalcanti (1912-1916), possibilitando o trânsito de veículos motorizados. (CARVALHO e CARVALHO, 2009, P. 3876).

A Estrada da graciosa possuiu valor inquestionável pra o desenvolvimento econômico da cidade de Curitiba, bem como para o estado do Paraná,

Ali era a ligação de Curitiba para o mundo, a Graciosa era a saída de Curitiba para o mundo. Pra você sair, por outros lugares, até era possível, mas era mais difícil. Então era mais fácil você ir para o litoral, e dali pegar um navio para qualquer outro lugar. Até para São Paulo era mais fácil fazer isso, Rio de Janeiro, que era a capital, todo esse sítio era a ligação não só de pessoas, mas também ligação comercial. Assim, a Graciosa é uma coisa muito importante, e o sitio que envolve sua história merece ser preservado. Como a Casa do Burro Brabo, por exemplo, tem lá um monolito perto do restaurante Gran Chaco, é o Monolito do Km 6 da Estrada da Graciosa, ou seja, do inicio da estrada, ou seja, a 6 quilômetros de onte fica o atual Shopping Mueller. Nesse monolito está escrito a quantos quilômetros fica Quatro Barras, quantos tem de volta para Curitiba, e está lá, na beira da estrada, como uma pedra abandonada, enquanto deveria ser um patrimônio a ser trabalhado. (BARZ, 2011)

Já próximo a Curitiba a estrada cortava os rios Bacacheri e Juvevê, e chegava ao município na atual Rua Barão do Serro Azul onde hoje se localiza o Shopping Mueller.

Ainda existe no bairro Atuba uma rua chamada “Estrada da Graciosa”, um trecho original da estrada, assim como a Rua Erasto Gaertner, uma das vias estruturais da cidade, foi construída sobre o traçado original da mesma.

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O núcleo urbano, composto inclusive pela casa em questão, só existiu, porque serviam de pernoite para os viajantes e tropeiros antes de chegar a Curitiba.

A Colônia Argelina

A região da Colônia Argelina era, juntamente com a colônia do Pilarzinho e a chácara do Rocio, um dos locais que abrigava estrangeiros na época.

A colônia se fixou em 1864 e contava com 117 imigrantes, sendo 39 franceses vindos da Argélia. Inicialmente a atividade principal desses imigrantes era voltada para a agricultura, que se desenvolveu ali até o ano de 1887.

O Bacacheri

A fundação do bairro Bacacheri se mistura com a ocupação da região pela Colônia Argelina. O nome Bacacheri possui mais de uma explicação. Diz ser de origem tupi onde possui o sentido de rio pequeno, a outra é através de uma estória passada entre os moradores, que devido aos diversos idiomas falados pelos imigrantes, um deles estava à procura e sua vaca chamada Chèrie e perguntava a todos em uma tentativa de reproduzir as palavras em português por sua vaca Chèrie, porém, devido ao sotaque todos acabaram por entendê-lo como Bacacheri. Essas teorias foram passadas por muitas gerações, no entanto há relatos de que o nome surgiu antes mesmo da vinda dos imigrantes.

O Parque Inglez

Em 1866, chegaram em Curitiba os ingleses Phelippe Tod, Frederico Fower, James Good, Balster e George J. Em sociedade, após se instalarem na margem da Graciosa, fundaram o primeiro armazém da região. Este, que ficou conhecido como casa Tod, e foi o responsável pela colocação no mercado curitibano de inúmeros produtos importados e consequentemente uma inovação no consumo de seus frequentadores. Também há de se lembrar, que por estar localizado na ligação de Antonina e Curitiba, se tornou ponto de parada para o intenso numero de viajantes, que além de descansar no local possibilitavam a troca do fluxo de informações dos acontecimentos entre as cidades.

O ponto de vendas era muito mais do que um local de comercio na época. Não podemos esquecer que as distancias e o tempo eram muito diferentes a 100 anos atrás. O armazém representava, principalmente para os imigrantes, o ponto de contato entre o seu mundo e o exterior. Podia ser a farmácia, o banco, o hotel, enfim, significava algo muito diferente do que imaginamos hoje. (TAVARES, apud PARANÁ, 1992).

Outro fato relevante na casa Tod é que em 1882 hospedou D. Pedro II, durante sua estada na cidade para inauguração da estrada de ferro. Segundo BARZ:

ele veio pra inaugurar a estrada de ferro em 1882, a estrada ainda não estava totalmente concluída, como é de praxe no brasil, inaugurar obras antes da conclusão, então ele veio pra cá e inaugurou. Passou por ali, então a Casa tem esse peso histórico, e também o referencial no sentido de que ali era a entrada da cidade, por ali entrou a delegação. Não só pelo personagem do próprio Imperador, mas a estrada de ferro foi muito importante para o desenvolvimento econômico do

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Estado do Paraná. Além de estar nessa saída, Ela faz parte desse marco histórico no sentido do desenvolvimento econômico. (BARZ, 2011)

Além da mercearia, Tod e Fowler deram inicio a outro projeto importante: o Parque Inglês. Este, juntamente com o tanque do bacacheri, compunha a área de lazer mais movimentada da região.

“O parque inglês tinha um restaurante e também tinha aonde as pessoas iam passear que era o tanque do Bacacheri. Hoje já não é o mesmo tanque, mas antigamente era o ponto de lazer, era o Barigui de Curitiba até a década de 30 e 40” (BARZ, 2011).

HISTÓRIA DA CASA

Construída pela família alemã Neyman, por volta de 1860, a Casa Klos, com suas varandas amplas e paredes em taipa, (Figura 2) é uma das duas ultimas construções sobreviventes da arquitetura e cultura campeira na cidade.

Figura 2 – Casa Klos (Fonte: CARVALHO, 2009, p.3882)

Ao longo dos anos a casa passou por inúmeros usos: lar de família, pensão, armazém e pousada para os tropeiros que usavam a rota para o litoral. Deste último que veio o apelido característico, pois dizem que os burros que acompanhavam os viajantes e que ficavam presos aos montes nas proximidades da casa eram muito ariscos.

Porém, a polêmica maior sobre a casa vem do uso que lhe foi atribuído na década de 60: a “Casa das Francesas”, um prostíbulo, em moldes diferentes do que conhecemos hoje. Nela, os membros da sociedade se encontravam com suas amantes. O jornalista Aramis Millarch a intitula como o “avô de nossos motéis”, segundo ele no interior da residência existiam salas individuais onde os casais ficavam em completa tranquilidade. “O garçom, de elegante smoking, só incomodava se os

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amantes quisessem mais alguma bebida. Não havia propriamente camas nas pequenas salas, mas poltronas que ofereciam um certo conforto.” (MILLARCH, 1989).

Através de sua pseudonotoriedade recebeu um lugar em uma das obras do ilustre escritor curitibano Dalton Trevisan no conto “Em busca da Curitiba perdida”:

“Curitiba, aquela do Burro Brabo, um cidadão misterioso morreu nos braços da Rosicler, quem foi? quem não foi? foi o reizinho do Sião; da Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo, esta Curitiba viajo”. (TREVISAN, 1979, p.84)

O local teve seus anos de glória nas noites da capital do estado, porém, com o passar dos anos a casa iniciou um processo de degradação e ficou em uma situação de conservação deplorável.

Por ela, nesse período, só transitavam drogados e animais como morcegos e ratos, como descrito em matéria da época:

Com paredes rachadas ou derrubadas, sem teto ou cercada de mato, a construção está quase que completamente destruída. Há pouco tempo, moradores e proprietários de estabelecimentos comerciais próximos flagraram pessoas estranhas entrando na casa e moradores de rua utilizando-a como abrigo durante a noite. "Na minha opinião, a casa é uma vergonha para um bairro como o Bacacheri", diz a farmacêutica Cleuza Berta. "Como ela não é restaurada, deveria ser destruída. Está muito feia." (VEGAS, 11 JUN.2003).

Já sem o interesse da população, e até um grande sentimento de vergonha dos moradores do bairro, o Burro Brabo passou pelo seu pior momento (Figura 3).

Figura 3 – A casa antes do restauro (Fonte: Coordenadoria do Patrimônio Cultural. Arquivo de Restauro, 2004)

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Aproveitando-se desse contexto, a construtora responsável pelo terreno decidiu demoli-la para construir um edifício moderno no local. Mas no início da demolição, por um gesto de sorte, um dos moradores do bairro percebeu o que viria a ocorrer, e consciente da importância histórica da propriedade, imediatamente contatou o arquiteto e superintendente do IPHAN, José La Pastina Filho, que agiu rápida e assertivamente, como relatou ao Jornal do Bacacheri:

Jornal do Bacacheri – Você teve um papel importante para manter a Casa do Burro Brabo em pé. Como aconteceu?

José La Pastina Filho – A construtora que é proprietária do terreno em que fica a Casa do Burro Brabo queria construir um edifício no local, então ela mandou que a casa fosse demolida. Isso há cerca de nove anos. Um estudante que me conhecia e que morava no Bacacheri me ligou e contou sobre a demolição. Imagina a sorte: ele passou lá, viu o que estava acontecendo, lembrou de me ligar e por sorte ele me encontrou aqui no escritório. Eu estava trabalhando, apesar de ser um sábado. Saí correndo, fui até lá e parei a demolição no grito. Pedi pelo alvará de demolição, e é claro que não havia. Falei que se eles não parassem eu chamaria a polícia. Mas eles já tinham tirado parte do telhado e algumas portas internas.

JB – Mas a construtora não tentou demolir a casa novamente?

La Pastina – Esse caso ainda está na justiça. No dia eu procurei o presidente da Fundação Cultural de Curitiba, que tomou as medidas cabíveis e fez um embargo pela Prefeitura. Eu não tinha atribuição para fazer isso, porque a Casa do Burro Brabo não é tombada pelo Patrimônio Federal, que é a minha jurisdição. Ela foi tombada pelo governo estadual e pelo Conselho do Patrimônio Histórico do Paraná. Como os proprietários do terreno não tinham interesse na preservação, queriam mesmo é que a casa caísse, a Promotoria exigiu que o Estado fizesse uma cobertura provisória. Foi muito importante a mobilização da comunidade do Bacacheri, na figura do João Bello, que se uniram para a preservação da casa, que é um patrimônio fantástico da cidade, e especialmente do bairro. (JORNAL DO BACACHERI, apud CARVALHO e CARVALHO, 2009)

A partir de então várias notas foram publicadas na imprensa e o processo de tombamento foi iniciado com muita pressão popular.

Localização da casa

A Casa situa-se na Avenida Erasto Gaertner, número 2035, inserida no bairro Bacacheri, na cidade de Curitiba (Figura 4 e Figura 5). Possui certa proximidade ao aeroporto do Bacacheri, utilizado apenas para voos com aviões de pequeno porte.

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Figura 4 – Localização da Casa do Burro Brabo (Fonte: http://maps.google.com.br/maps?hl=pt-BR&tab=wl)

Figura 5 – Localização da Casa do Burro Brabo (Fonte: Fotomontagem de imagem do Google Earth)

Processo de tombamento

Dada a importância da Casa no contexto histórico da cidade de Curitiba e do bairro em que está inserida listou-se o imóvel como Unidade de Interesse de Preservação (UIP), e em 18 de

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dezembro de 1992, o Conselho Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico reconheceu-lhe o valor e tombou-a.

Foi registrado, no ano de 1999, na 3º vara da Fazenda Pública, Falência e Concordata a Ação Civil Pública n° 11.949, Comarca de Curitiba, de Responsabilidade por Danos ao Patrimônio Histórico contra OCA Engenharia e Empreendimentos Ltda, empresa proprietária da Casa do Burro Brabo, proposta pelo Ministério Público do Estado do Paraná. Nesta a construtora é alvo de denúncias que diziam ser ela a responsável por destelhar a propriedade, a fim de acelerar o processo de deterioração do imóvel.

A Casa do Burro Brabo era o foco dos requerimentos da associação de moradores do bairro Bacacheri, através da Associação Comunitária Graciosa (SOGRA), às autoridades competentes em prol de sua preservação. Mas, apesar do tombamento desta, a empresa proprietária não demonstrou preocupação com o patrimônio, necessitando, assim, que o poder público intervisse, (Figura 6) com o objetivo de obriga-la a realizar as obras de restauro, iniciando pelas emergenciais, de acordo com o estabelecido após a perícia da Curadoria do Patrimônio Histórico.

Figura 6 – Placa de identificação de imóvel tombado

(Fonte: Coordenadoria do Patrimônio Cultural. Arquivo de Restauro, 2004)

Em sua defesa, OCA Engenharia e Empreendimentos, alegou não ter a Casa valor artístico ou interesse histórico que justifique seu tombamento, visto que funcionara como prostíbulo, a “Casa das Francesas”, local de prática de crimes, sendo, portanto, a atividade processual desenvolvida pelo Ministério Público nula e incompatível a preservação por meio deste órgão da memória ao crime e discriminação de mulheres imigrantes, além de afirmar que não causara dano qualquer ao imóvel. Prossegue defendendo a nulidade do tombamento justificando que este causara-lhe prejuízo, além de ter sido decidido com quórum insuficiente em sessão a qual não foi convocada.

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Em decisão final é dito no processo que a decisão de tombamento não está em discussão ou análise, uma vez que já foi apreciada no Mandato de Segurança, impetrado perante o Juízo de Curitiba, tendo sido confirmada a decisão em instância superior e transitada em julgado.

Complementa dizendo que a restrição instaurada pelo tombamento é apenas parcial, o que não impede o proprietário de exercer poderes característicos de sua propriedade. E frisa inequívoco do reconhecimento histórico da Casa, “pois se assim não fosse, certamente não teria sido levado a efeito o tombamento do imóvel”. Além de apresentar laudo pericial que indica a Casa como excepcional, por conter características da arquitetura rural do final do século XIX, sendo um dos últimos exemplares dessa tipologia na cidade.

Refuta o argumento de prejuízo apresentado pela empresa, apresenta o artigo 1 da Lei Municipal 6.337/82, que garante ao proprietário do imóvel tombado o benefício de incentivos fiscais e construtivos. E diz, baseado na Lei Estadual 1.211/53, que é responsabilidade do dono do imóvel a conservação do bem histórico e suas características.

Para abater a informação de ter-se tratado, em determinada época de sua história, de um prostíbulo, o documento mostra sua insignificância, haja vista que seu valor histórico encontra-se na arquitetura, e não em sua finalidade passada.

Visto todos os argumentos refutados, julgou-se procedente a ação contra a empresa OCA Engenharia e Empreendimentos Ltda, condenando e obrigando a requerida a executar as obras de restauro do Burro Brabo.

Restauro

A proposta de restauro previa recuperar o imóvel e devolver a ele todas as características que lhe eram de origem. Para isso ser possível, foi realizado um levantamento para recuperação de cada um dos oito ambientes da casa.

Na proposta de intervenção era necessário restaurar e reconstruir as partes defasadas da edificação, visando preservar sua arquitetura. Os materiais ausentes no levantamento de campo foram analisados em acervos fotográficos, já que da edificação original pouco restara.

Foi necessária a fabricação de itens idênticos aos originais, como no caso das esquadrias que não estavam disponíveis em quantidades suficientes em condições de restauro (Figura 7).

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Figura 7 – Esquadrias originais

(Fonte: Coordenadoria do Patrimônio Cultural, Arquivo de Restauro, 2004)

O piso da casa por outro lado não foi identificado com exatidão, porém foi encontrado vestígios de um contra piso composto de cimento queimado na cor vermelha. A proposta de colocação do piso seria a utilização do assoalho de madeira.

Em termos elétricos e hidráulicos as instalações iniciais não funcionavam, no entanto ainda era possível encontrá-las, então foram necessários novos projetos para implantação das mesmas.

A cobertura através de resquícios originais deveriam ser refeita com um telha cerâmica igual a encontrada no local. Já em relação ao teto não foram encontrados materiais de possível constituição, então foi instituída a colocação de um forro de madeira estruturado.

Pós-tombamento e restauro

Assim como fala a poesia (FARIA, apud O SEMEADOR DE SONHOS, 2011), a intenção inicial da população do bairro era transformar a casa restaurada (Figura 8) em um espaço cultural de Curitiba. Mas devido ao longo e burocrático processo a que foi submetido o imóvel, a nova utilização do espaço teve que esperar.

Bumba Burro Brabo Daniel Faria

É Bumba Burro Brabo Bumba Bacacheri Um centro de cultura Está nascendo por aqui Meu senhor dono da casa Não adianta derrubar Que é esta casa é Burro Brabo Quando empaca chega lá E conta histórias

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Dos tropeiros que passaram Das lembranças que ficaram Do velho Bacacheri E conta os causos Das polacas francesinhas Das meninas essas gracinhas Que “trampam”por aqui É Burro Brabo que chegou pra cantar Vacacherie aqui chegou para contar A nossa histéria ah..ah..ah. De Curitiba Ah.ah.ah.. Tão ecológica Qua.. Qua.. Qua.. Qua.. Quaaa..

Figura 8 – A casa após o restauro

(Fonte: Circulando Por Curitiba, 2010)

Levando em consideração o fato de que as primeiras ações preservacionistas do patrimônio edificado do Paraná começaram por volta de 1937, nota-se que a preocupação com a preservação da Casa do Burro Brabo foi realmente tardia. O que leva a concluir que o tombamento ocorre, na maioria das vezes, em momentos de perda iminente. Para Kersten (2000), “a retórica da preservação de bens culturais no Brasil é de que se não houver perigo da destruição e de perda, não haveria necessidade de preservação”. A prova disso é que a Burro Brabo só foi tombada quando estava prestes a desaparecer e paralela a uma nova forma de pensar a respeito de patrimônio cultural, que seria a de a preservação não deve se restringir ao monumental ou significativo politicamente, mas também ao que é significativo para a população local e à compreensão de histórias que não estão registradas em livros, mas na memória daqueles que ali viveram.

Entretanto, não foi o que aconteceu nesse caso. O tombamento da Burro Brabo não foi devidamente divulgado e articulado, principalmente no bairro Bacacheri. Pouquíssimo se falou a respeito, a comunidade local não se envolveu como se esperava, e a história e importância do espaço não foram devidamente ressaltadas e reconhecidas, o que fez com que a casa continuasse abandonada, sem ser motivo de orgulho para os habitantes da região. Para Kersten:

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Sacralizados pelo ritual de tombamento, uma certa casa, uma árvore ou um conjunto de documentos tombados expressam muito mais que sua materialidade (...) transformam-se em patrimônios por acoplarem valores que transcendem sua materialidade e se sustentam em referencialidades histórico-culturais, se não vivenciadas, pelo menos sentidas (KERSTEN, 2000).

Infelizmente, não foi o que aconteceu com a casa estudada. Apesar de protegida pela lei, ela não se tornou um bem patrimonial para a população, arruinando-se, literalmente, em meio ao mito, tombamento e abandono.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Casa do Burro Brabo tem grande valor social, além de histórico como apresentado nesta pesquisa e confirmado por seu tombamento que venceu a barreira da especulação imobiliária, feito cada vez mais difícil para o nosso patrimônio atingir. Obstáculo superado porque a casa é muito mais que possuidora de uma arquitetura rara na cidade; ela carrega partes da constituição de Curitiba como capital e da construção do povo curitibano, e é através da biografia do seu povo que a história precisa ser contada.

Noites Francesas passadas, apenas o reconhecimento de uma jornada controversa como parte da nossa formação cultural, justifica a sua preservação, ou sua única importância patrimonial seria a idade. É justamente na consideração dessa Curitiba humana que Trevisan viajou o impasse cultural desse inconcluso processo. A Casa, agora tombada, salva da demolição e restaurada fisicamente, mas em um processo que envolveu pouco a população, a permanece fechada, e sua história, guardada.

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REFERÊNCIAS

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