A casa de Avis - Calicute
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A CASA DE AVIS
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Marcelo Mússuri
Sã o Pa u l o 2013
coleção novos talentos da literatura brasileira
A CASA DE AVISCalicute
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índice para catálogo sistemático:1. Ficção : Literatura brasileira 869.93
Copyright © 2013 by Marcelo Mússuri
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº 54, de 1995)
Coordenação Editorial
Capa
Diagramação
Revisão
Letícia Teófilo
Monalisa Morato
Project Nine
Mônica Vieira/Project Nine
Mila Martins
Rinaldo Milesi
2013IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL
DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO ÀNOVO SÉCULO EDITORA LTDA.
CEA – Centro Empresarial Araguaia IIAlameda Araguaia 2190 – 11º Andar
Bloco A – Conjunto 1111CEP 06455-000 – Alphaville Industrial – SP
Tel. (11) 3699-7107 – Fax (11) 3699-7323www.novoseculo.com.br
Mússuri, Marcelo
Calicute / Marcelo Mússuri. -- Barueri, SP : Novo Século Editora, 2013.
1. Ficção brasileira I. Título.
13-09561 CDD-869.93
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Ao meu filho Lucas,
por me amar
quando ninguém mais me amou.
À minha bela esposa Juliana,
por manter-se com os pés firmes no chão
para que os meus pudessem voar.
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“No mundo há três tipos de homens:
os vivos, os mortos e
os que são do mar.”
Platão
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Precisei de muito encorajamento para amadurecer, acreditar
e seguir adiante com esse projeto. Gostaria de agradecer a meus
amigos historiadores de aquém e além-mar: Vittorio Serafin,
Rui Oliveira, Vitor Sousa e Edgar Teles, pela inesgotável gene-
rosidade com que partilham seus conhecimentos. Erros serão
fruto unicamente da minha ignorância ou teimosia.
É preciso agradecer também aos editores Cleber Vasconcelos e
Letícia Teófilo da Novo Século, por tornarem essa travessia muito
mais tranquila. A meu amigo Daniel Castelani pela paciência e
tolerância com que leu meu manuscrito e pelas constantes pala-
vras de estímulo. Finalmente, a meu amigo e escritor Nivaldo
Lariú, que forçosamente foi nomeado meu padrinho literário.
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PRÓLOGO
Verão do ano de 1483, cidade de éVora, portugal. antes
do amanhecer, a Praça do Giraldo já estava completamente
tomada. A ansiedade era tanta que as pessoas tinham come-
çado a sair de suas casas ainda na escuridão. Lentamente,
aquela corrente de gente se transformou numa massa silen-
ciosa, arrastando-se entre as ruas estreitas e escorregadias.
Nas casas, as lamparinas penduradas nas fachadas já
tinham se apagado, pairando uma fantasmagórica nuvem
cinza no ar quente daquela sufocante noite de verão. As
poucas lâmpadas, que teimavam em permanecer acesas, ilu-
minavam precariamente o caminho repleto de um esgoto
fétido que corria livremente pela rua.
Com o surgimento dos primeiros raios de sol, a praça já
estava apinhada. Os últimos a chegar forçavam a passagem
com os braços e cotovelos. Em meio ao tumulto, alguns
meninos tentavam subir numa grande árvore encravada no
extremo sul da praça; mas com os pés sujos daquela lama
pútrida, a tarefa se tornava ainda mais difícil. Um dos garo-
tos, o mais franzino e de cabeça raspada grosseiramente para
livrá-lo dos piolhos, foi se esgueirando por entre os galhos
retorcidos até chegar ao topo e, de lá, ficou apavorado
quando viu se desprender dos seus joelhos pontiagudos uma
placa de excremento pegajoso que acabou caindo na orelha
esquerda de Diogo e foi escorrendo, lânguida, pelo pescoço
até se acomodar dentro da gola de sua camisa.
– Jesus, estou todo cagado! – Diogo praguejou baixo, não
querendo olhar para cima, receoso de receber ainda mais
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daquela massa languinhenta pela cara. E assim, cagado e
espremido, ficou onde estava, confinado naquele espaço
apertado.
O sol já estava alto, esquentando as pedras do calçamento
e fazendo subir à altura dos narizes um odor ainda mais insu-
portável. Já era quase meio-dia quando o silêncio absoluto
foi rompido abruptamente pelo som ritmado e profundo
dos sinos das igrejas da cidade, rasgando o ar quente com o
seu som metálico e funesto.
Situado bem em frente ao antigo templo romano, estava
o Palácio das Cinco Quinas, uma grandiosa construção de
estilo mudéjar flanqueada por duas imponentes torres de
pedra. De lá, quem se posicionasse no pórtico gótico pode-
ria ver a torre quadrangular e uma grande procissão que se
iniciava.
À frente de todos, pajens defumavam solenemente as
ruas, misturando o cheiro de esgoto quente com o de ervas
aromáticas. Logo atrás dos turíbulos, seguia o velho bispo
D. Garcia de Menezes, ostentando sua impecável túnica
branca sobreposta por outra roxa, bordada com fios de ouro.
Sobre a cabeça uma mitra branca cravejada de pedras e na
mão esquerda um báculo de ouro. Quem o observava altivo
durante o cortejo não percebia o medo que percorria suas
entranhas deixando seu passado de guerras gloriosas na
África pateticamente para trás.
Junto a ele, seguia seu contemporâneo D. Duarte de
Almeida, um homem de aparência gélida, rosto quadrado e
cabelos negros. Seus olhos eram profundos como os de um
falcão. Trajava sua armadura de batalha completa, reluzindo
os raios de sol como um espelho, pois tinha sido lubrificada
com azeite de oliva e polida à exaustão durante a noite com
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vinagre e areia por seu cavalariço. Sobre a armadura, sua
túnica branca com a cruz de Cristo vermelha.
As pessoas observavam com curiosidade respeitosa o vete-
rano da batalha de Toro, conduzindo seu majestoso corcel
entre as ruas, apenas com o toque dos calcanhares, já que
não tinha as duas mãos. Todos sabiam que D. Duarte, ape-
sar de tê-las perdido durante aquela sangrenta batalha, não
entregou a bandeira portuguesa ao inimigo e a sustentou
entre os dentes antes de tombar semimorto cercado pelos
Castelhanos e ser conduzido pelo próprio exército inimigo
ao hospital. Pelo seu homérico esforço e coragem, recebeu
do inimigo, além de respeito, o salvo conduto para retornar
a Portugal.
Junto dele na procissão, seguia silenciosamente a coluna
de fumaça a mais alta nobreza portuguesa. Cortando as ruas,
os nobres iam se contorcendo nas selas de seus garanhões,
sacudindo seus estandartes de guerra completamente apare-
lhados com suas reluzentes armaduras de batalha. Estavam
logo atrás de uma imensa cruz de madeira de aproximada-
mente três metros de altura, carregada solenemente por seis
cavaleiros reais através de um suporte de madeira com seis
hastes cruzadas.
Entre eles vinha D. Fernando II, Terceiro Duque de
Bragança. Um homem de rosto pálido e petrificado. Com pas-
sos firmes, mantinha os olhos vazios ostentando sua túnica
com o brasão bordado das Armas da Casa de Bragança. As
linhas entrecruzadas criavam a figura do escudo prata, uma
aspa de vermelho vivo, carregada de cinco pequenos escu-
dos azuis com as quinas de Portugal.
Das janelas dos andares superiores, a multidão que
acompanhava desviava o olhar e baixava a cabeça num ato
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discreto de profundo respeito a D. Fernando, até que a pro-
cissão chegou ao centro da praça onde tinha sido erguido
um palanque de madeira. No alto, dois homens aguarda-
vam a chegada do cortejo. O mais alto possuía a aparência
tranquila, suas roupas eram simples, indicando que se tra-
tava de alguém que ocupava algum cargo público de baixa
hierarquia. Com ar de resignação, aguardou a chegada do
nobre ao centro do tablado e não pôde conter um gesto que
repetiu por muitos anos; e seguindo o que fazia a multidão,
baixou discreta e brevemente a cabeça.
No centro do palanque, havia uma mesa grossa de
madeira escura forrada com veludo cor de sangue e fixada
à borda da mesa por botões dourados. Em cima, repousava
um objeto aparentemente grande e pesado sob um pano
de linho branco. Logo atrás, o segundo homem, de cabeça
baixa e roupas sujas, aguardava nervoso, tentando esconder
um tremor persistente em seu braço esquerdo e um senti-
mento que fazia o pão azedo que tinha comido pela manhã
subir várias vezes à boca, sendo empurrado goela abaixo
com extrema dificuldade.
O próprio rei de Portugal, D. João II, observava da sacada
principal do Palácio das Cinco Quinas a trajetória grandiosa
de D. Fernando. Cercado por paredes decoradas com passa-
gens romanas do imperador Trajano e de alguns juízes, ele
era a figura da mais absoluta calma e desinteresse. Enquanto
assistia ao farfalhar da multidão, não parava de girar uma
espada com os dedos cobertos de pedras raras, sem se preocu-
par com o furo que a ponta da arma fazia no imenso tapete
mourisco abaixo dos seus pés.
No salão, ao lado do rei, um menino de aproximada-
mente seis anos assistia a tudo com um olhar distante. Seus
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cabelos pretos eram cortados ligeiramente acima dos olhos,
deixando os fios lisos cobrirem quase totalmente a fronte,
formando um círculo negro e brilhante; sua roupa azul, do
mais fino tecido, era decorada com as quinas de Portugal e
trabalhada com fios de ouro. Sua aparência revelava a altivez
de quem era nobre desde o primeiro suspiro e estava acos-
tumado com cerimônias intermináveis e com a rigidez dos
protocolos da corte.
O rei parou de girar a espada por um instante, olhou para
o garoto sentado aos seus pés e, tentando ser o mais bondoso
possível, disse:
– Viu, criança, isso acontece com quem esquece o seu lugar.
Do cadafalso de madeira montado na praça, o homem
alto e tranquilo que estava à espera de D. Fernando começou
a enrolar, como num ato litúrgico, o pano de linho branco
que ocultava o objeto adormecido. Primeiro, uma espessa
lâmina de aço brilhante e depois, encaixado a ela, um longo
e resistente cabo de madeira. Sob o olhar atento da mul-
tidão, após o objeto ter sido completamente revelado, o
homem agarrou com as duas mãos um grande machado de
guerra e o suspendeu para a população reverenciá-lo com
pavor. O sujeito sujo e mais baixo sentiu um nó desatar de
suas tripas e se contorceu em agonia observando aquele ins-
trumento assassino girar ameaçadoramente no ar. No cen-
tro do tapume, D. Fernando parou, olhou durante um breve
momento para a sacada real e avistou seu pequeno filho
que assistia a tudo ao lado do rei. Sem dizer uma só palavra,
curvou-se diante da multidão observando fixamente as fei-
ções desconhecidas e esperou o movimento brusco e preciso
do machado, que num único golpe decepou-lhe a cabeça,
fazendo jorrar seu sangue grosso e escuro.
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Sua cabeça se desprendeu na cesta de palha e o homem
sujo e mais baixo aparou-a com dificuldade.
Tão logo a cabeça se separou do corpo, o rei ordenou com
sua voz rouca ao capitão da guarda:
– Tirem esse bastardo de merda daqui!
Abruptamente, os guardas suspenderam o menino pelos
braços e o arrastaram com os pés quase sem tocar o chão.
Aos trancos e empurrões, o conduziram até uma carroça que
aguardava estacionada na saída de serviço do palácio.
O povo na praça começou a se retirar tão silenciosamente
quanto chegou. Em poucos minutos, o local da execução
estava completamente vazio, exceto pela presença dos guar-
das que observavam o trabalho realizado no alto do tablado.
De lá, os dois homens rolaram o corpo de D. Fernando até
cair, desconjuntado, numa carroça que já levava outros cor-
pos recolhidos da prisão de Évora. A cabeça, entretanto, que
já havia parado de pingar os fluidos da medula, estava den-
tro de um cesto que foi entregue a um ginete.
– Deixe cair e será a sua cabeça em outro cesto – avisou ao
subordinado quando esse quase deixou cair o cesto de suas
mãos.
– É mais pesado do que imaginei, senhor – respondeu
visivelmente constrangido.
O ginete partiu a galope para o palácio. O cadáver percor-
reu as ruas até sair da cidade, oscilando conspurcado, foi ati-
rado num terreno pantanoso junto com outras carcaças para
apodrecer ao tempo. Tão logo a carroça apontou retornando
para a cidade, um bando escondido na floresta que circun-
dava o lodaçal correu para o corpo, despindo-o bruscamente
para retirar-lhe as roupas e as botas.
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D. João II estava bebendo vinho na companhia de alguns
fidalgos quando a porta do salão se abriu e o ginete entrou,
carregando uma cesta coberta por um tecido manchado de
sangue, e se curvou na direção do rei estendendo as mãos.
Com um gesto silencioso, o monarca ordenou que o homem
colocasse a cesta em cima de uma mesa ao lado de cachos de
uvas, pêssegos, damascos e figos que estavam delicadamente
dispostos em baixelas de prata.
Assim que a porta se fechou, o rei caminhou serenamente
até a borda da mesa e olhou através do tecido por um breve
momento. Depois, retirou o pano com a mão esquerda, e
com a direita puxou a cabeça pálida pelos cabelos e ficou
olhando fixamente para os olhos murchos que estavam
entreabertos. Depois de respirar fundo, virou-se para os pre-
sentes e disse:
– Eu sou o senhor dos senhores, não o servo dos servos.
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PARTE I
RODA DA FORTUNA
diogo, com a camisa suja de merda e fedendo com o esgoto em
seu pescoço, se juntou ao irmão mais velho quando a praça
esvaziou.
– Jesus, Diogo, você está fedendo como uma fossa! Você
se cagou?
– Eu não, um menino em cima de uma árvore – respon-
deu com um leve sorriso.
– Pelo amor de Deus, como você consegue ser cagado por
um menino que está em cima de uma árvore? – Dias estava
tentando parecer severo, mas a tarefa de ser rígido era quase
impossível diante do humor contagiante do irmão.
Diogo, de dezessete anos, era bem mais alto do que Dias.
Seus ombros deveriam ter pelo menos o dobro da largura
das costas do irmão e sua postura leve e descontraída escon-
dia um exímio espadachim. Ainda era um garotinho quando
seu treinamento começou na escola italiana de Giovanni
Dall’Agocchie, a melhor da Europa. Dall’Agocchie em pes-
soa oferecera uma bolsa de estudos a Diogo, depois de ter
presenciado a luta do menino contra cinco garotos para
defender um cachorro doente do apedrejamento. Por sua
coragem, Diogo ganhou a oportunidade de estudar a arte do
manejo da espada, onde ficou até ser chamado de volta por
Dias. Naquela movimentada manhã, não havia completado
vinte dias longe da academia.
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Dias, o mais velho, possuía um rosto placidamente
comum; quando mais moço, frequentara as aulas de
Matemática e Astronomia na Universidade de Lisboa e ser-
vira na fortificação da cidade de Ceuta. Com trinta e três
anos, era calado e podia passar despercebido se assim qui-
sesse, mas com sua grande coragem e firmeza de caráter,
infligia quase que instantaneamente a admiração e respeito
até dos mais perigosos ladrões e assassinos de Portugal.
– Vamos para casa – falou com a fisionomia cansada.
Diogo sorriu e os dois, montando num suspiro, puse-
ram os cavalos a girar, se posicionando no rumo da saída da
cidade.
Lentamente, os cavalos iam atravessando as ruas seguindo
um passo preguiçoso. Dias não os instigou. Em sua memória,
reverberava a imagem da cabeça se desprendendo do corpo.
E a expressão dos olhos murchos, vitrificados da face sem
vida, teimava em retornar espasmodicamente à sua consci-
ência. Diogo não tentou puxar conversa, e optou por deixar
seu irmão imerso em seus próprios pensamentos.
Uma última guarnição permanecia posicionada na saída
da cidade para controlar o tráfego aduaneiro. Um cavalete
de madeira era erguido toda vez que uma carroça recebia
permissão para entrar ou sair. Os guardas observaram com
desinteresse os dois conjuntos se aproximando. Como viaja-
vam sem bagagem, não foram incomodados, e os sentinelas
rapidamente voltaram a atenção para uma grande carroça
carregada com sardinha seca que se aproximava. Uma junta
de bois exaustos arrastava com dificuldade a carga para den-
tro da cidade, enquanto o atrito do eixo de madeira roçando
no cocão de encaixe apitava uma melodia deprimida e
monótona.
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A estrada mais larga e bem pavimentada foi se estreitando
à medida que os cavalos seguiam adiante, até se transformar
numa trilha no meio da espessa vegetação. O número de
casebres fervilhando ao redor da muralha da cidade também
ia diminuindo a cada palmo percorrido, até finalmente desa-
parecerem por completo. Muito raramente, algum viajante
solitário seguia no sentido oposto, geralmente um caixeiro
com sua mula carregada de arcas, e Diogo conseguia perceber
o medo e a apreensão daqueles rostos castigados, enquanto
os caminhos se cruzavam. Um sorriso brejeiro brotava inter-
namente sempre que escutava o bufar aliviado dos viajantes
quando se distanciavam em segurança.
Já haviam cavalgado o suficiente para sentir cansaço
quando finalmente começaram a procurar um abrigo para
passar a noite. A estradinha seguia sinuosa, e a marcha
cadenciada servia como um elixir atraindo o sono insisten-
temente. Dias encarava divertidamente seu irmão toda vez
que o rapaz bocejava ruidosamente num ritual orquestrado:
primeiro a boca era escancarada, depois um ruído pavo-
roso punha alguns passarinhos que cochilavam na beira da
estrada a voar desesperados de susto, e para finalizar, uma
sacudidela esquisita quando o frio percorria sua coluna no
final da oscitação.
Mais adiante, a luz reconfortante de uma fogueira que-
brou o silêncio de horas.
– Ali parece um bom lugar – as palavras se encontraram e
os dois sorriram.
Dias esfregou os olhos umedecendo a retina ressecada
pela poeira, enquanto Diogo se empertigava na sela que-
rendo acelerar o passo. Na chegada, observaram guardas
reais em volta de um coelho estalando sobre o fogo alto.
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Mais ao lado, próximo aos cavalos apeados junto às árvores,
uma carroça com um menino de braços amarrados ao torno-
zelo, que gemia abafado. Diogo escutou-o choramingando e
se consternou com a aparência suja e os pulsos feridos pelos
nós da corda áspera. O menino não se virou para ver quem
se aproximava. Os nós estavam apertados demais e seus
movimentos contidos ao limite. Dias percebeu que, apesar
de não ter se movido, o garotinho parara de gemer, como
se quisesse ouvir quem estava se aproximando. Diogo teve
o ímpeto de se jogar sobre o grupo de homens e, depois de
abatê-los como porcos, soltar o menino daquelas amarras,
mas se conteve com dificuldade.
Antes de desmontar, Dias falou ao que parecia ser o líder
do grupo.
– Eu e meu irmão estamos a caminho de casa, podemos
parar aqui por esta noite? Já estamos viajando há bastante
tempo.
Os soldados cruzaram um sorriso cínico enquanto aguar-
davam as palavras do capitão daquele pequeno esquadrão.
O cavalo de Diogo trocou o peso das patas e voltou a se
acomodar, exausto. Dias não demonstrou qualquer sinal de
impaciência. O silêncio se estendeu até que o líder do grupo
finalmente rosnou para Dias.
– Vocês podem colocar os traseiros de vocês em qualquer
lugar, desde que não atravessem o meu caminho. – A frase
foi seguida pelo escárnio de seus companheiros.
Dias, com uma expressão serena, se curvou ligeiramente
apoiando as mãos no arção da sela, como se quisesse che-
gar mais perto daqueles homens, e olhou, por um breve
momento, profundamente nos olhos de cada um deles. Até
que os risos foram sendo substituídos por uma expressão
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constrangida e respeitosa, como se vissem algo assustador
através daqueles olhos brilhantes. Agora foi a vez de Diogo
sorrir levemente, como se já tivesse presenciado seu irmão
fazer isso outras vezes, e, enquanto sorria, era correspondido
pelos soldados desconcertados.
Os dois amarraram seus cavalos próximos aos outros e se
acomodaram ruidosamente ao redor da fogueira. Naquele
momento, enquanto remexia seu alforje em busca do que
comer, Dias não parava de pensar no garoto amarrado
junto à árvore. Um desconforto incomum atormentou sua
prudência, a ponto de uma antiga sensação despertar sua
mente, cansada da longa viagem. O menino está muito bem
guarnecido, ponderou. E será difícil soltá-lo com todos esses
homens em cima da gente, continuou avaliando. Suas mãos
se mantinham vasculhando a bolsa de couro, mas estava
desconcentrado demais para identificar ali dentro algo que
pudesse comer. Olhou seu irmão de soslaio. Diogo estava
sentado com os dedos cruzados atrás da nuca. Seus olhos
semicerrados apontavam em direção às estrelas, enquanto
seus lábios se moviam silenciosamente no que parecia ser
um diálogo muito íntimo. O que esse desgraçado está pen-
sando!, tentou adivinhar.
O silêncio ameaçador só era quebrado quando o fogo cre-
pitava alguns feixes de lenha ainda verdes, fazendo as fagu-
lhas alaranjadas estalarem no ar parado da noite. Dias final-
mente achou um pedaço de pão perdido dentro do alforje e,
depois de parti-lo em duas metades, arremessou uma banda
para Diogo, avisando-o com um assobio curto. Diogo estava
tão absorvido naqueles pensamentos que não conseguiu
segurar a sua porção a tempo, e teve de se contentar em dar
alguns safanões no pão para tirar o excesso de terra que gru-
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dou no miolo. Depois de verificar meio de qualquer jeito,
assinalou com um sorriso que estava satisfeito com o serviço
e meteu um naco na boca antes de dar com os ombros para
o resultado do asseio.
– O que as donzelas fazem sozinhas à noite? – perguntou
o líder dos soldados com ar provocativo. – Não têm medo de
perder seu pudor?
– Prezado senhor – agora era a vez de Diogo responder
sarcástico –, estou cansado, fedendo à merda, com fome e
sede, mas percebo que eu e meu irmão não vamos conseguir
descansar enquanto não resolvermos nosso impasse – disse
ainda de boca cheia.
O soldado riu alto.
– E o que um cagão filho de uma cadela sugere?
Diogo, em silêncio, ficou de pé e retirou a espada da cin-
tura lentamente. Os soldados comemoraram a diversão e se
aprumaram para acompanhar o desafio.
O capitão da guarda real puxou, com esforço, um pedaço
de coelho preso entre os dentes e arremessou na direção
de Dias. O naco de carne girou no ar sufocante da noite.
Percorreu um semicírculo perfeito até ser apanhado pelas
mãos ágeis de Dias, que se mantinha sentado calmamente.
Quando já estava de pé com a espada apontando na dire-
ção de Diogo, o capitão disse com um sorriso cínico para Dias:
– Guarde para mim. Depois que eu enviar a alma des-
graçada do seu irmão para o inferno, comerei esse coelho
enquanto meus homens comem o seu traseiro.
Dias se manteve calado. Por um breve momento, ficou
pensando se realmente deixaria seu irmão, apenas um rapaz
exultante e espontâneo, enfrentar aquele homem calejado
pela guerra. Sabia da habilidade fora do comum de Diogo,
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afinal, o jovem passara boa parte da vida num internato
italiano famoso por desenvolver os mais primorosos espa-
dachins da Europa, mas a visão do rosto imaturo do rapaz,
contrastando com as cicatrizes daquele lobo traiçoeiro, mar-
telava o seu coração a ponto de doer.
Já estava decidido a levantar e interromper aquele
absurdo, quando percebeu o movimento rápido da espada
do capitão rumando com fúria na direção da cabeça de
Diogo. O jovem aparou o golpe com tranquilidade. Dias se
surpreendeu com a técnica precisa. Seguramente, se Diogo
não tivesse se defendido do assalto, já estaria morto e com
a cabeça dividida em dois pedaços, como uma laranja par-
tida. Com o movimento quase imperceptível do tronco,
Diogo ficou lado a lado com o capitão ainda atônito, e num
giro simples da espada cortou a orelha direita do oponente,
levando junto uma fina camada da lateral do rosto. O capi-
tão sentiu o líquido quente escorrendo fartamente pelo feri-
mento e tentou inutilmente dar mais um golpe, completa-
mente desorientado. A arremetida foi facilmente aparada
pela espada de Diogo e, novamente, num curto movimento,
cortou-lhe a outra orelha. O homem caiu de joelhos, pos-
tando as duas mãos nas laterais da cabeça, tentando estancar
o sangue que escorria fartamente. O ferimento ardia como
brasa, e seus olhos se encheram de lágrimas carregadas de
frustração e desespero.
Diogo então disse, secamente:
– Agora você poderá escutar melhor os avisos silenciosos
que a vida lhe der.
Olhando para os soldados que o assistiam, seu ar sério foi
se transformando novamente naquele olhar descontraído e,
em tom pungente, disse:
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– Podemos descansar agora?
O grupo perplexo assentiu com a cabeça e correu em
seguida para socorrer o colega que estava caído com as mãos
cobrindo os buracos abertos onde antes estavam as orelhas.
Da carroça, o menino amarrado esticava os nós ainda
mais tentando ver o que estava acontecendo e, por um ins-
tante, seu olhar de medo e dor cruzou com o olhar jovem de
Diogo. O reflexo causado pela chama da fogueira nos olhos
negros mareados do menino deixou Diogo desconcertado
por um segundo.
Dias lembrou instantaneamente da praça, do sangue gru-
dado nos cabelos desgrenhados, da expectativa estampada
nos rostos sofridos da população antes da execução e, mais
do que tudo, da imagem dos olhos entreabertos completa-
mente vitrificados naquela cabeça sem vida.
– Desamarre-o e dê-lhe água e comida – ordenou ainda
sentado junto à fogueira.
Sem demonstrar nenhuma insatisfação, o soldado foi até
o menino e desamarrou seus pulsos e tornozelos. As peque-
nas mãos estavam inchadas e azuladas, os pulsos esfolados
pelo atrito da corda áspera e em um dos olhos havia um
hematoma tão grande que não podia se abrir.
Dias finalmente se levantou e foi em direção ao menino
trêmulo de medo. Retirou a longa capa negra que pendia
em suas costas, assinalando para a sociedade seu status de
homem casado, e, num gesto de afeto, passou-a às costas do
menino e disse:
– Venha, junte-se a nós, saboreie esse delicioso coelho
oferecido com tão boa vontade por nossos novos amigos.
O menino os seguiu em silêncio. Seus joelhos em carne
viva eram testemunhas de sua sorte. Diogo pegou um copo
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de vinho que estava sendo levado à boca pelo soldado sen-
tado ao seu lado. O sujeito ficou olhando com os olhos arre-
galados, mas não reclamou. Diogo passou o copo para Dias,
que estendeu ao garoto. Este, por sua vez, o agarrou com
as duas mãos com grande determinação, tomando todo o
líquido com desespero, deixando escorrer um fio vermelho
pelo canto da boca.
Com a ajuda do vinho e com a barriga forrada pelo coe-
lho, o menino dormiu profundamente, chegando a ron-
car de vez em quando. Durante o sono pesado, a pequena
cabeça foi lentamente pendendo solta, até se acomodar na
perna de Diogo. Dias sorriu observando a reação encabulada
do irmão.
– O rapazinho deve estar exausto... – comentou sem jeito.
Dias acenou concordando e voltou a fechar os olhos na
tentativa de aproveitar o resto de sono. Diogo não conse-
guia relaxar, ficou ali parado por um longo tempo obser-
vando o garotinho. Sua perna formigou com a posição,
mas não se moveu. A imagem do menino muito machu-
cado despertou uma compaixão adormecida, e por um
momento chegou a se imaginar naquela situação de com-
pleto abandono.
A noite estava quente, sem a menor brisa para refrescar
o ar; até os animais da floresta sentiam aquele terrível calor
e optaram em permanecer inertes. Diogo ficou olhando o
céu estrelado de verão completamente sem nuvens. Como
era lindo!, pensou. Ainda estava de queixo para cima quando
uma luz esfiapada riscou o céu de ponta a ponta. – Deus...,
sussurrou. O firmamento proporcionava um espetáculo de
brilho, como mil fagulhas de prata, e contando as estrelas,
finalmente adormeceu.
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Os primeiros raios de sol começavam a surgir, enquanto
os soldados se preparavam para mais um dia de viagem arru-
mando a pouca bagagem que levavam. O pequeno ainda
dormia encolhido sobre a capa que Dias envolvera em seu
corpo durante a noite, quando um soldado se aproximou e
fez menção de acordá-lo com um chute. O chute foi inter-
rompido pelo olhar atento de Diogo liberando um leve sor-
riso, enquanto balançava a cabeça com ar desaprovador,
como se o que o soldado estivesse prestes a fazer fosse ape-
nas uma grande travessura.
– Tenho uma novidade para vocês, rapazes! – Dias estava
se divertindo.
Os homens se entreolharam cheios de desconfiança.
– Mas depois do desjejum. Estou faminto!
O grupo compartilhou em silêncio um garrafão de vinho.
Comeram pão duro e um punhado de frutas secas. Diogo
retirou do alforje uma maçã e mordeu, prendendo a fruta
entre os dentes. Depois voltou a caçar mais algumas dentro
da bolsa de couro pendurada na sela, e quando encontrava,
as atirava na direção de cada soldado acocorado.
O garotinho lutava para conseguir mastigar aquela massa
escura que parecia feita de pedra. Seus dedos desincharam
significativamente durante a noite, mas ainda guardavam
as marcas do sofrimento e dos hematomas. O olho fechado
permanecia azulado, e Diogo achou que uma bolsa de san-
gue coagulado estava se formando na pálpebra.
– É assim que se faz – Dias mergulhou um pedaço de pão
duro no vinho e aguardou a massa de farinha absorver o
líquido. À medida que se encharcava, o pão ia mudando de
cor, até só restar uma pontinha branca e dura entre a ponta
dos dedos.
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Dias sorriu quando estendeu aquele pedacinho molhado
para o garoto. Depois, enquanto o observava comer tudo
com sofreguidão, se dirigiu ao grupo mais uma vez.
– Eu e meu irmão andamos discutindo durante a noite,
enquanto vocês sonhavam que mamavam nas tetas pelu-
das das suas mães, e decidimos que vamos acompanhá-los
durante a viagem, caso algum malfeitor tente algo contra
a vida de vocês... O que acham? – Dias e Diogo levaram as
mãos às espadas.
Os homens se olharam e permaneceram calados, fina-
lizando a amarração da bagagem nos cavalos, e logo em
seguida montaram em silêncio.
O sujeito que conduzia a carroça foi em direção ao garoto,
determinado a amarrá-lo novamente. No mesmo momento,
Dias esporeou seu cavalo, fazendo o animal dar um tranco
firme nas costas do infeliz, tirando-lhe o equilíbrio.
– Acho que o menino viajará melhor na carroça com
as mãos desamarradas – e assim desceu do cavalo, pegou a
criança por baixo dos braços e a acomodou na carroça.
Durante a viagem, os soldados foram se acostumando com
a situação e aos poucos começaram a dar menos importân-
cia à vergonha que tinham passado. Lentamente, voltaram a
conversar entre si e, antes do meio-dia, já estavam rindo um
do outro novamente; a exceção era o capitão, que ficara sem
as orelhas. Esse viajava taciturno, com a cabeça envolta num
pano branco manchado de sangue.
– Vamos parar aqui para descansar. Os cavalos preci-
sam de água – disse friamente enquanto se aproximava de
um fino regato. Seu cavalo bufou aliviado com a pausa na
marcha.
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Dias apeou e ficou com as mãos nas costas girando o
tronco de um lado para o outro com os olhos cerrados como
se estivesse contra o sol, no mesmo momento em que Diogo
tomava as rédeas do seu animal para enlaçá-lo numa árvore
próxima. Enquanto girava no próprio eixo, Dias percebeu a
aproximação do capitão sem as orelhas, mas continuou se
mexendo.
– Já estamos muito próximos da cidade. Logo chegaremos
ao estaleiro real – disse o capitão puxando assunto com ar
despretensioso.
Dias permaneceu calado e com a fisionomia distante. O
capitão então mudou a voz para um tom ameaçador:
– Você sabe que o que me fez será retribuído à altura, não
sabe?
E completou vomitando as palavras:
– Chegando em Lagos vou cortar o pau de vocês e enfiar
um no rabo do outro antes de matá-los.
Dias apenas deu as costas e saiu para oferecer um pouco
de água ao menino que acabara de acordar na carroça.
Viajaram por mais um dia inteiro num compasso lento
e enfadonho, até um estalo seco vindo debaixo da carroça
obrigar a pequena comitiva a parar. Os animais reclamaram
do tranco e os homens pularam de suas selas.
– Mas que merda! – gritou o sujeito com a cabeça por baixo
da carroça. – Esta porcaria aqui vai dar trabalho, senhor! – O
som saiu abafado e espremido por entre o eixo e o traseiro
dos animais.
O acampamento foi montado ainda no alto de uma
pequena estradinha e de lá se podia ver, no final da linha
sinuosa que serpenteava a encosta, uma cidade cravada
entre duas enseadas, formando uma enorme ferradura
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avançando para o mar; e flutuando nas águas calmas da
baía, um pontilhado de embarcações dava a impressão de
que se podia pular de um convés para o outro sem molhar
os pés. De onde estavam, os navios ancorados pareciam
imóveis e sem vida, com suas velas recolhidas e mastros
vazios. O sol se escondia rápido atrás de uma montanha.
Seu reflexo na água, como um gigantesco espelho averme-
lhado, iluminava os cascos negros impermeabilizados com
alcatrão.
Lagos era uma cidade portuária com intenso comércio.
Navios do mundo todo ancoravam no seu moderno porto
em busca de reparos, conexões de carga ou passageiros. O
estaleiro era responsável pela renda da maior parte da popu-
lação, assim como os bordéis eram os responsáveis pelas des-
pesas na mesma proporção. Em torno do estaleiro, ferrei-
ros, carpinteiros, tecelões, calafates, funcionários públicos,
espiões, cientistas e todo tipo de gente se apertava nas ruas
estreitas da cidade.
Um vibrante comércio se espalhava durante todo o
dia próximo ao grande portão da cidade. Várias lojinhas,
bancas e esteiras estendidas no calçamento se alastravam
ao redor do porto. Pessoas iam e vinham o tempo todo.
Compravam, vendiam, gritavam, praguejavam uns com os
outros e riam, mesmo sem motivo aparente. Sardinhas tem-
peradas com ervas assavam em braseiros espalhando seu
perfume no ar. Crianças corriam em meio à sarjeta, as mães
gritavam ralhando com elas, mas a brincadeira logo reco-
meçava. Carroças se arrastavam com dificuldade, acom-
panhadas por cachorros magricelas latindo atrás dos bois
de tração. Mas bastava o sol se recolher para a vida sumir
junto com sua luz. Apenas as tascas se mantinham funcio-
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nando. Recebiam os trabalhadores do porto em busca de
bebidas e prostitutas.
O estranho grupo dormiu mal e muito pouco. Ainda não
havia amanhecido quando retornou à estrada, e já estava
escuro quando finalmente chegaram, indo diretamente ao
estaleiro real de Lagos.
No portão principal, uma guarnição bem armada
defendia a joia da coroa portuguesa. Os navios e seus pro-
jetos de construção eram o bem mais precioso do rei e,
por isso, guardados com a máxima segurança. Apenas os
melhores soldados do reino exerciam a tarefa de prote-
ger o local onde eram fabricadas as embarcações contra
possíveis ameaças. Tinham ordem para matar ao menor
sinal de perigo e geralmente trucidavam os infelizes que
se aproximassem sem aviso.
Quando o grupo finalmente parou em frente ao grande
portão, o capitão avançou, ansioso com seu cavalo e disse ao
guarda, que possuía o olhar mais ameaçador:
– Este menino deve ficar aqui. Estamos sendo escoltados
por esses dois desgraçados e um deles me feriu gravemente
enquanto eu estava despreparado e indefeso.
O soldado olhou para Dias e Diogo, sujos e com a apa-
rência de profundo cansaço. Diogo suspirou consternado
enquanto via de soslaio os homens do capitão sem as ore-
lhas sorrindo em deboche para eles. O sujeito que pro-
vavelmente deveria ser o segundo em comando daquele
destacamento saiu às pressas, passou pelo pesado portão e
sumiu lá para dentro. Enquanto partia num passo duro e
acelerado, escorava o punho da espada embainhada com
a palma da mão esquerda evitando o tilintar do metal.
Quando retornou, trouxe mais seis homens armados.
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Estancou o trote ao lado do chefe da guarnição, escon-
dendo a respiração profunda. Os seis homens se distribuí-
ram em alerta ao redor dos forasteiros ostentando fisiono-
mias de cães prontos a atacar.
A confusão na entrada do porto havia atraído a atenção
dos fregueses da taberna. Algumas mulheres saíram para
espiar o movimento. Duas estavam com os seios à mostra
e uma terceira tentava arrumar o cabelo desgrenhado num
nó sobre a cabeça. Os homens também haviam saído para
espiar. Muitos estavam com canecas de vinho nas mãos, e
a maioria sorria esperando a reação violenta dos soldados
sobre os intrusos encardidos.
Os cavalos giraram as orelhas captando toda a atmos-
fera prestes a explodir. Dias respirou fundo, se acomodou
melhor na sela e aguardou o inevitável com profunda
tranquilidade.
O líder dos soldados em frente ao portão se certificou do
posicionamento de seus homens e disse, enquanto o resto
da guarnição apontava as armas para o grupo cercado:
– O que faremos, senhor? – e curvou-se respeitoso para Dias.
– Vamos dar a ele a oportunidade de se purificar!
Pendurem-no ao costado daquela embarcação – os homens
viraram as cabeças em direção ao local que Dias apontava
com o queixo. – Vamos deixá-lo de molho por três dias.
Acho tempo suficiente para ficar com a alma limpa nova-
mente – finalizou tranquilo.
E assim, o capitão sem as orelhas ficou com água até o
pescoço.
Dias retirou as ordens que estavam acomodadas dentro
de um cilindro de couro, pendendo em seu pescoço por uma
tira de couro e a entregou ao líder da guarnição.
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– Entregue-as ao administrador do estaleiro. Eles traziam
ordens para deixar o menino aqui – o garotinho suspirava
assustado enquanto Dias voltou a falar friamente. – Espero
a colaboração de vocês para tratá-lo com um mínimo de
decência! – os homens curvaram-se respeitosos e Dias girou
o cavalo e saiu sendo seguido por Diogo.
Enquanto o cavalo se adiantava, Diogo torceu o pescoço
para trás e fitou a criança com tristeza; depois olhou de
esguelha para Dias e perguntou silenciosamente com seus
olhos vivos: Podemos ficar com ele? E recebeu em resposta a
expressão taciturna de Dias: Não. Se fizermos isso, vamos nos
meter em encrenca, completou com um suspiro naquela lin-
guagem de mudo.
O cavalo avançou dois passos e o garoto teve o ímpeto de
sair correndo e gritando, pedindo que o levassem embora.
Ficar ali parado observando era ameaçador demais; ele
nunca se sentira tão desprotegido quanto agora, nem
quando se viu sozinho naquela carroça. Lá, quando amar-
rado e jogado com extrema violência, sua mente entorpe-
cida demais com o choque fazia tudo parecer apenas um
sonho ruim.
O cavalo de Diogo resfolegou pressentindo os pensa-
mentos de seu condutor. A perna esquerda do rapazinho
se adiantou à distância de um pequeno passo, logo após a
outra, e quando já se sentia prestes a disparar, percebeu uma
pressão no ombro.
– Aonde você pensa que vai, rapaz? – a voz grave o trouxe
de volta à realidade.
Três passos à frente, Dias girou o cavalo novamente em
direção ao menino e perguntou serenamente:
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– Como se chama?
– Jaime, senhor!
Com um sorriso triste, voltou o cavalo novamente para a
saída e partiu.
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