A Carpintaria de Bernardo Carvalho - Lido

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A carpintaria de Bernardo Carvalho Lançamento de 'O sol se põe em São Paulo' provoca novas reflexões sobre o projeto literário que sustenta a obra do autor dos premiados 'Mongólia' e 'Nove noites'. Vinícius Jatobá * 10 / 05 / 2007 Bernardo Carvalho é o escritor do esgotamento das convenções narrativas usuais. Seus romances possuem uma lógica própria, e são frutos de um projeto inusual dentro da literatura brasileira. Não seria o caso de cosmopolitismo contra provincianismo; mas de um texto que elege a si próprio como nação, elege sua sintaxe como pátria. Antes de Nove noites Bernardo Carvalho pode ser encarado como um talentoso prosador em busca de um tema que fizesse justiça ao seu luxuriante manejo de linguagem: frases que duram páginas, jogos de metáforas, simetrias entre capítulos – seus romances eram jogos com regras próprias, mas, como todo jogo, podiam ou não ter participantes dispostos a compreender seu funcionamento. Eram livros cuja carpintaria excessiva traziam mais admiração ao adorno que à substância – um prazer meramente intelectual, e até certo ponto pedante: livros de Bernardo Carvalho para leitores como Bernardo Carvalho. Nove noites gera uma nova recepção à prosa do escritor. É um livro diferente, o produto de uma série de escolhas retóricas que já estavam no corpo de livros como Onze e As iniciais.

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A carpintaria de Bernardo Carvalho

Lanamento de 'O sol se pe em So Paulo' provoca novas reflexes sobre o projeto literrio que sustenta a obra do autor dos premiados 'Monglia' e 'Nove noites'.

Vincius Jatob *10 / 05 / 2007

Bernardo Carvalho o escritor do esgotamento das convenes narrativas usuais. Seus romances possuem uma lgica prpria, e so frutos de um projeto inusual dentro da literatura brasileira. No seria o caso de cosmopolitismo contra provincianismo; mas de um texto que elege a si prprio como nao, elege sua sintaxe como ptria.

Antes de Nove noites Bernardo Carvalho pode ser encarado como um talentoso prosador em busca de um tema que fizesse justia ao seu luxuriante manejo de linguagem: frases que duram pginas, jogos de metforas, simetrias entre captulos seus romances eram jogos com regras prprias, mas, como todo jogo, podiam ou no ter participantes dispostos a compreender seu funcionamento. Eram livros cuja carpintaria excessiva traziam mais admirao ao adorno que substncia um prazer meramente intelectual, e at certo ponto pedante: livros de Bernardo Carvalho para leitores como Bernardo Carvalho. Nove noites gera uma nova recepo prosa do escritor. um livro diferente, o produto de uma srie de escolhas retricas que j estavam no corpo de livros como Onze e As iniciais.

Na ordem na construo narrativa, Carvalho quebra a sintaxe complicada (e at complicadora) que foi sua tnica desde seu primeiro livro de relatos. O que simples passa a ser nomeado diretamente; o que complexo passa a ser descrito da maneira mais simples possvel. Esse empobrecimento, longe de banalizar a substncia romanesca, a sabedoria romanesca, faz com seu livro aproxime-se curiosamente do registro oral.

Assim com o narrador dialoga com as fontes, o leitor torna-se mais espectador que decodificador da ao narrativa a aparncia narrativa ainda de indiferena em relao ao pblico, mas a nova velocidade com que o leitor alcana a metfora dramtica que Carvalho desenha e desenvolve faz com que a energia da busca que permeia o livro tambm contagie a curiosidade. A curiosidade, a busca, certo elemento de suspense construdo pelo narrador, faz com que Nove noites se torne um romance de leitura extremamente agradvel. compulsiva a leitura; e gratificante a investigao que ela engendra. A indiferena gera cumplicidade.

Ao leitor, a experincia totalO leitor partilha dessa busca pela verdade que movimenta os narradores de Carvalho seja a busca do paradeiro do Ocidental, o motivo de um suicdio ou a reconstruo de um tringulo amoroso no Japo devastado pela segunda guerra. O que faz com que o leitor se interesse que Carvalho dedica-se construo da personagem do narrador, no em seus aspectos biogrficos, mas na forma como a mente funciona. Sua busca crvel, apesar de o universo em que transita ser pantanoso.

E parte do fascnio do leitor pelas mais recentes narrativas de Carvalho reside no mecanismo das metamorfoses, tanto das verses de um evento retomado inmeras vezes como da identificao crescente do narrador pelo objeto de sua busca, convergindo constantemente no risco de tomar para si a essncia daquilo que busca. o gesto mecnico de refazer o caminho; e o desejo pouco simulado de assumir caractersticas alheias prpria identidade retalhada.

O enredo dos ltimos trs romances a investigao de um suicdio; a investigao do paradeiro de dois desaparecidos; a investigao sobre uma histria de amor e exlio apenas o prego onde Carvalho pendura seu verdadeiro romance: texto que nasce da depurao de eventos visados a partir de outros textos; escrita que se funda enquanto crtica textual de outros relatos. Cartas, dirios, mscaras, gestos tudo legvel aos olhos narrativos da mquina romanesca de Carvalho.

O narrador movimenta-se para diluir as ambigidades e mistrios do mundo que o cerca, todas as duplicidades, mas nessa pesquisa acaba por gerar mais um simulacro: esse texto em busca de unidade que escreve, mas cujo desenvolvimento se d apenas pelo conflito entre verso, reviso; entre fato, interpretao; entre relato oral, e malha de textos; entre experincia revivida, experincia encenada. O leitor quem ir ter, ao final da leitura, a leitura total que o narrador no conseguiu amarrar.

Contra um mundo silenciado pelo excesso de realidade nesse aspecto que talvez, longe da prosa que busca refazer o sentido pluralizado pela realidade, o tema de Carvalho implodir o aspecto mitolgico dos relatos sacralizados. Seja no convvio entre fantasmas de Nove noites, com seus relatos herdados da violncia, seja no suicdio, seja por uma segunda morte misteriosa; ou no convvio tenso entre guia e viajante em Monglia, na barreira da lngua e no choque cultural, e na impossibilidade de transferir valores; e tambm no narrador que mergulha num Japo que desconhece e que apenas poder apreender mais pela influncia da literatura de um escritor marginal do que pelos relatos diretos e dbios indicados pelo espao.

O que parece que Carvalho o escritor que melhor se posiciona contra certa tendncia de neutralizao de relatos insuficientemente explicados do passado recente e que, justamente pelo excesso de narrativas do mundo contemporneo, so colocados de lado e catalogados entre as histrias j assimiladas pelo corpo social.

O suicdio explicado pela doena; os desaparecimentos sugeridos pela geografia; o amor apreendido enquanto teatro todas essas encenaes, quando tocadas pela magia da mquina narrativa de Carvalho, entram e crise e, o que me parece ser a inteno do projeto inteiro, voltam a falar do mundo silenciado pelo excesso de realidade.

* Vincius Jatob edita o blog literrio Outra Babel e colabora como crtico literriocom o jornal O Estado de S. Paulo.