A Berlinda Do Cirio Como Suporte Midiatico

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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – ESPM/SP PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE CONSUMO Antonio Hélio Junqueira COMUNICAÇÃO, RECEPÇÃO E CONSUMO - construção de sentidos na arena do popular: A berlinda do Círio de Nazaré como suporte midiático. São Paulo 2009

Transcript of A Berlinda Do Cirio Como Suporte Midiatico

  • ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING ESPM/SP

    PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAO E PRTICAS DE CONSUMO

    Antonio Hlio Junqueira

    COMUNICAO, RECEPO E CONSUMO - construo de sentidos na arena do

    popular: A berlinda do Crio de Nazar como suporte miditico.

    So Paulo

    2009

  • Antonio Hlio Junqueira

    COMUNICAO, RECEPO E CONSUMO - construo de sentidos na arena do

    popular: A berlinda do Crio de Nazar como suporte miditico.

    Dissertao apresentada ESPM como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Comunicao e Prticas de Consumo.

    Orientadora: Maria Aparecida Baccega

    So Paulo

    2009

  • Antonio Hlio Junqueira

    COMUNICAO, RECEPO E CONSUMO - construo de sentidos na arena do

    popular: A berlinda do Crio de Nazar como suporte miditico.

    Dissertao apresentada ESPM como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Comunicao e Prticas de Consumo.

    Aprovado em

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________________

    Presidente: Prof. Dr. MARIA APARECIDA BACCEGA Orientadora, Livre Docente

    aposentada da Universidade de So Paulo, professora do Programa de Mestrado em

    Comunicao e Prticas de Consumo da ESPM.

    ____________________________________________________________

    Membro: Prof. (). Dr.()

    ____________________________________________________________

    Membro: Prof. (). Dr.()

  • 2

    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho fruto de largos e profundos afetos que, desde sempre, inundaram toda

    minha vida. A eles, em agradecimento, dedico seus resultados.

    A Marcia Peetz, amiga, incansvel e amorosa companheira de todas as horas, de todos

    os sonhos, de todos os projetos.

    Ao Lucas, que nutre, com carinho, todas as minhas mais profundas necessidades

    paternais, agradeo tambm pelo seu socorro sempre presente.

    A Neide/me e Tat/irm, ncleo do amor familiar. A Irene/Irin, fundadora e fonte

    inesgotvel de toda a minha f.

    Virgem de Nazar, ao povo e terra do Par territrios/lugares de descoberta de

    pertencimento que me fogem completamente razo e que s se explicam pela mais

    inesperada identidade e o mais puro afeto.

    Aos amigos, colegas e parceiros da floricultura paraense, cujos nomes no caberiam

    neste pequeno espao, mas aos quais demonstro toda a minha gratido nas pessoas de Bruno

    Tomaz Couto Moraes, grande inspirador deste trabalho e, desde sempre, um de seus mais

    importantes colaboradores e de Monique Pennafort Silva que, atravs do SEBRAE / PA,

    viabilizou, pelos inesperados caminhos que a vida nos traa, minha aproximao ao universo

    inesgotvel da cultura popular do Estado do Par.

    Diretoria da Festa de Nazar para o ano de 2008, pela sua pronta, gentil e solictica

    acolhida desde o primeiro momento em que apresentamos os esboos iniciais deste projeto.

    Ao corpo docente, aos colegas e a toda equipe de colaboradores e assistentes do

    Mestrado em Comunicao e Prticas de Consumo da ESPM, pela oportunidade mpar de

    poder amadurecer e desenvolver esse projeto sob o amparo dessa instituio de to ampla e

    reconhecida competncia profissional e acadmica.

    minha orientadora, professora Maria Aparecida Baccega, a quem agradeo de forma

    especial, com enorme carinho e respeito pela sua pacincia, dedicao e, sobretudo, pela sua

    sempre segura e amorosa conduo pelas trilhas do conhecimento. Finalmente, no poderia

    deixar de agradec-la, tambm, por tudo o que para mim significou ter me tornado seu

    colaborador, como assistente docente, durante o perodo do meu curso de mestrado.

  • 3

    RESUMO

    A presente pesquisa tem por objetivo investigar a dinmica do processo da

    comunicao e suas articulaes com o consumo material e simblico, sob a perspectiva da

    recepo, tendo como suporte miditico a berlinda do Crio de Nazar, em Belm, PA. O

    trabalho desenvolve-se a partir da anlise da recepo de um projeto comunicacional

    engendrado pelos produtores de flores e folhagens tropicais paraense e que foi materializado

    na substituio das flores tradicionais da ornamentao da berlinda - brancas e amarelas

    importadas anualmente da Regio Sudeste - pelos produtos tropicais oriundos da produo

    regional, visando, assim, ressignificao e valorizao das suas mercadorias. A pesquisa,

    realizada em campo em outubro de 2008 durante o desenrolar dos eventos religiosos e

    profanos constituintes do Crio de Nazar, viabilizou-se pela adoo de um conjunto de

    prticas e instrumentos de pesquisa qualitativa, que alinhou perspectivas metodolgicas

    inspiradas nas tcnicas etnogrficas aplicadas pesquisa em Comunicao e princpios e

    procedimentos da Anlise de Discurso da Linha Francesa. Na ambincia do Crio de Nazar e

    adotando a perspectiva analtica das mediaes, especialmente do popular na cultura, da

    religiosidade e das distintivas posies sociais dos sujeitos, tornou-se possvel indicar e

    discutir a dinmica social da construo dos sentidos e da sua legitimao hegemnica,

    destacando as articulaes entre o consumo e a produo de identidades. E, por esse caminho,

    buscar garantia de xito dos objetivos dos produtores: a insero das flores tropicais no

    cotidiano dos sujeitos.

    Palavras-chave: comunicao, recepo, consumo, berlinda, Crio de Nazar.

  • 4

    ABSTRACT

    This research aims to describe the communication process dynamics and its

    connections with symbolic and material consumption, under the reception studies perspective

    having as its media support the berlinda a movable reliquary for the main religious icon - of

    the Crio de Nazar, in Belm, Par, Brazil. The research developed was based on the

    reception analysis of a communication project created by the flower producers of Par state,

    and it was materialized in the substitution of traditional yellow and white flowers, imported

    annually from Brazils southeast region, by local tropical products, aiming to give a new

    signification and valorization to their goods. The field research was carried through October

    2008 during the religious and profane events course that constitutes the Crio de Nazar, and

    was made feasible by an ensemble of qualitative research practices and instruments that

    aligned methodological perspectives inspired in ethnographical techniques applied to research

    in Communication and principles and procedures of the Discourse Analysis. In the Crio de

    Nazar social-cultural context and adopting the mediation analysis perspective, especially of

    the popular in a culture, of the religiousness, and of the different individual social status, it

    was possible to indicate and discuss the social dynamics of construction of meaning and the

    its hegemonic legitimization, emphasizing the connections between consumption and the

    production of identities. And, this way, search success guaranty for the producers objectives:

    the tropical flowers insertion in the daily life of the consumers.

    Keywords: communication, reception, consumption, berlinda, Crio de Nazar.

  • 5

    LISTA DE ILUSTRAES

    Ilustrao 1. Diagrama do espao das posies sociais, ilustrado com alguns enquadramentos profissionais, conforme identificados por Pierre Bourdieu (A distino: crtica social do julgamento). .................................................................................... 71

    Ilustrao 2. O Crio de Nazar contamina todo o espao pblico da cidade de Belm / PA, da publicidade ao grafite................................................................................. 86

    Ilustrao 3. Acompanhamento em campo da gravao de matria da TV Cultura junto aos produtores de flores para a decorao da berlinda, municpio de Benevides, Mesorregio Metropolitana de Belm, 8 de outubro de 2008. ....................... 93

    Ilustrao 4. Fiis carregam ex-votos e objetos que replicam sonhos de consumo ao longo da procisso do Crio de Nazar 2008. Belm, PA, 12 de outubro de 2008. ...... 94

    Ilustrao 5. Participante do Crio de Nazar 2008 capta imagem da Santa em seu celular.Colgio Gentil Bittencourt, Belm, PA, 11 de outubro de 2008. ....... 94

    Ilustrao 6. O consumo no mbito do Crio de Nazar 2008. Belm, PA, outubro de 2008......................................................................................................................... 97

    Ilustrao 7. Exemplos de antigos cartazes do Crio de Nazar. Da esquerda para direita o de 1909, o de 1924 e o de 1926 (impresso em Milo/Itlia) ............................... 98

    Ilustrao 8. Cartazes oficiais dos Crios de Nazar dos anos de 1998 e 2004 ilustrados com imagens de lrios brancos, imagem simblica recorrente da representao da pureza e da virgindade da Nossa Senhora de Nazar................................................. 99

    Ilustrao 9. Imagem do cartaz oficial do Crio de Nazar 2007 ( esquerda), ilustrado com as plantas e as flores da vitria-rgia, como expresso simblica da Amaznia enquanto tema da Campanha da Fraternidade de 2007, cujo cartaz oficial aparece na imagem direita ........................................................................................... 100

    Ilustrao 10. Decorao da berlinda do Crio de Nazar 2007 com flores e folhagens tropiciais. Belm, PA, outubro de 2007. ...................................................... 127

    Ilustrao 11. Produtores de Benevides (PA) colhem cristas-de-galo (Celosia cristata) especialmente para decorar a berlinda do Crio de Nazar de 2007............. 127

    Ilustrao 12. O artista floral Gilmar Cosme e o resultado do seu trabalho de ornamentao da berlinda para a Romaria do Traslado para Ananindeua Marituba, Belm, 10 de outubro de 2008. ........................................................................................... 130

    Ilustrao 13. Ornamentaes florais da berlinda conforme usada na Trasladao (superior) e na Procisso do Crio de Nazar (inferior) com as flores tropicais regionais nas cores branco e amarelo, Belm, 11 e 12 de outubro de 2008, respectivamente.133

  • 6

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1. Roteiro, percurso percorrido e eventos freqentados durante a pesquisa em campo no Crio de Nazar de 2008 ............................................................................ 63

    Tabela 2. Principais alteraes introduzidas na berlinda utilizada no Crio de Nazar, Belm / PA. ................................................................................................................ 102

    Tabela 3. Principais alteraes introduzidas na decorao floral da berlinda utilizada no Crio de Nazar, Belm / PA. ................................................................................ 114

    Tabela 4. Listagem das flores e folhagens tropicais regionais utilizadas na decorao da Berlinda do Crio de Nazar 2007. ............................................................... 126

    Tabela 5. Listagem das flores e folhagens tropicais regionais utilizadas na decorao da Praa do Santurio no Crio de Nazar 2008.......................................................... 131

    Tabela 6. Listagem das flores e folhagens tropicais regionais utilizadas na decorao da berlinda do Crio de Nazar 2008................................................................. 132

  • 7

    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................... 9

    1. CONTEXTUALIZAO TERICA..................................................................... 27

    1.1. O CRIO DE NAZAR ENQUANTO FENMENO MIDITICO ...................... 27

    1.2. OS ESTUDOS DA RECEPO LUZ DO PENSAMENTO COMUNICACIONAL

    LATINO-AMERICANO................................................................................................ 32

    1.3. AS FRENTES CULTURAIS NA OBRA DE JORGE ALEJANDRO GONZLEZ45

    1.3.1. O Crio de Nazar como Frente Cultural.............................................................. 48

    1.4. CONSUMO E PRODUO DE IDENTIDADE: CONDIO DE EXISTNCIA DO

    SUJEITO NA VIDA CONTEMPORNEA.................................................................. 50

    2. METODOLOGIA ..................................................................................................... 55

    2.1. PRINCPIOS INSPIRADOS NAS TCNICAS ETNOGRFICAS APLICADOS

    PESQUISA EM COMUNICAO............................................................................... 55

    2.2. PRINCPIOS E PROCEDIMENTOS DA ANLISE DO DISCURSO DA LINHA

    FRANCESA ................................................................................................................... 65

    2.3. O DIAGRAMA DOS ESPAOS SOCIAIS EM PIERRE BOURDIEU................ 69

    3. AO ORNAMENTAR, RESSIGNIFICAR: CONSTRUO DE UMA ESTRATGIA

    DE COMUNICAO E CONSUMO A PARTIR DO CRIO DE NAZAR........ 76

    3.1. O CRIO DE NAZAR: IMPORTNCIA SCIO-ECONMICA E CULTURAL NO

    CONTEXTO DO CATOLICISMO POPULAR NO BRASIL ...................................... 76

    3.2. A ECONOMIA DO CRIO DE NAZAR ............................................................. 83

    3.3. A TERRITORIALIDADE DO CRIO DE NAZAR ............................................ 85

    3.4. VIVNCIA E EXPERIMENTAO DA FESTA: AS POSSIBILIDADES

    INDIVIDUAIS E COLETIVAS..................................................................................... 86

    3.5. A HIERARQUIZAO DOS ESPAOS.............................................................. 88

    3.6. A MDIA NO CRIO DE NAZAR ....................................................................... 89

    3.6.1. Presena e atuao miditica da televiso ............................................................ 90

    3.7. OS CARTAZES DO CRIO E OS SEUS IMPACTOS SOBRE AS PRTICAS DE

    CONSUMO DE FLORES E PLANTAS ORNAMENTAIS ......................................... 95

    3.8. OS CONES DO CRIO DE NAZAR ................................................................ 101

    3.8.1. A berlinda ........................................................................................................... 101

    3.8.2. A berlinda como ncleo das atenes do povo e da mdia................................. 104

    3.8.3. A ornamentao floral da berlinda ..................................................................... 105

    3.8.4. As crticas e manifestaes populares ................................................................ 115

  • 8

    3.8.5. O repdio dos dominantes expresso do gosto popular................................... 117

    3.8.6. As flores tropicais chegam ornamentao da berlinda: contexto e estratgia de luta dos

    produtores ..................................................................................................................... 121

    3.8.7. O contexto de luta dos produtores locais de flores, folhagens e plantas tropicais122

    3.8.8. A introduo das flores tropicais regionais na decorao do Crio .................... 125

    3.8.9. O reconhecimento das estratgias dos produtores pelos receptores ................... 127

    3.8.10. A decorao do Crio de Nazar em 2008........................................................ 128

    4. RECEPO: INTERPRETAO DOS RESULTADOS DA PESQUISA EM

    CAMPO ....................................................................................................................... 134

    4.1. AS COMUNIDADES INTERPRETATIVAS ...................................................... 134

    4.2. AS MDIAS TRADICIONAIS NA ARENA DA F ........................................... 139

    4.3. SOBRE O CARTAZ ............................................................................................. 141

    4.4. O DISCURSO IDENTITRIO REGIONAL ....................................................... 143

    4.4.1. Flores regionais e identidade no Crio: uma justa reivindicao .................... 145

    4.5. SOBRE OS SENTIDOS DO NATURAL............................................................. 159

    4.6. ARTICULAES ENTRE COMUNICAO E CONSUMO A PARTIR DA

    BERLINDA DO CRIO DE NAZAR........................................................................ 160

    4.7. A BERLINDA E A SANTA COMO DISPOSITIVOS MIDITICOS................ 160

    4.8. A INFLUNCIA DA DECORAO FLORAL NAZARENA SOBRE O CONSUMO

    COTIDIANO................................................................................................................ 161

    4.9. QUESTES AFETAS AO GOSTO ENQUANTO FONTES DE RESISTNCIA S

    FLORES TROPICAIS REGIONAIS. .......................................................................... 164

    4.9.1. A persistncia da memria da homenagem ao Vaticano.................................... 164

    4.9.2. A sobreposio de hbitos e tradies................................................................ 165

    4.9.3. A disputa com o lrio e outras flores tradicionais: as muitas flores de Nossa Senhora

    ...................................................................................................................................... 165

    5. CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 167

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...................................................................... 179

    ANEXO

  • 9

    INTRODUO

    O projeto de pesquisa que tive a oportunidade de desenvolver nesta dissertao fruto

    de uma longa trajetria de maturao reflexiva. Posso pens-lo comeando a se delinear entre

    as minhas preocupaes no bojo de atividades tcnicas e profissionais com as quais me

    envolvi em Belm, PA, j no perodo de 2003 a 2004, no mbito de projetos de apoio ao

    desenvolvimento da floricultura tropical naquele Estado. Tais iniciativas eram ento

    articuladas pelo Programa Brasileiro de Exportaes de Flores e Plantas Ornamentais

    FloraBrasilis, uma iniciativa conjunta da Agncia de Promoo de Exportaes e

    Investimentos do Brasil - APEX- Brasil e do Instituto Brasileiro de Floricultura Ibraflor,

    atravs do qual visava-se incentivar e organizar a produo de flores e folhagens tropicais

    com foco concentrado essencialmente nas possibilidades oferecidas no mercado internacional.

    Desde aquela poca, diversos acontecimentos e novas propostas profissionais foram se

    sucedendo e a partir deles fui me enredando em projetos cada vez mais complexos,

    envolventes e desafiadores. Tais iniciativas tiveram sempre como preocupao central o

    fortalecimento da produo tropical de flores e folhagens na Mesorregio Metropolitana de

    Belm, PA, em nveis e padres competitivos e sustentveis tanto do ponto de vista ambiental

    e tecnolgico, quanto empresarial. Visavam, tambm, divulgao permanente dos seus

    resultados e avanos.

    Ao longo do desenvolvimento desses trabalhos em campo - processo que me conduziu

    a um aprofundamento permanente no conhecimento e no convvio com os diversos agentes da

    cadeia produtiva da floricultura regional - importantes questes foram emergindo e apontando

    para novas frentes necessrias de investigao, algumas, inclusive, revelando toda a sua

    urgncia e a seriedade de sua demanda. Entre essas, sem dvida a mais relevante, dizia

    respeito ao consumo.

    Frente a uma permanente inquietao dos produtores da floricultura tropical regional

    em relao s resistncias do consumidor, reticente em aceitar um produto que, embora obtido

    na sua terra, no seu espao nativo prprio, o desprezava reiteradamente como coisa catada

    no mato e, portanto, sem valor e indigno do consumo, foi preciso decidir redirecionar alguns

    passos importantes, mas que, para que se viabilizassem, demandavam a anterioridade da

    construo de um novo olhar sobre as relaes articuladas entre produo e consumo. Claro,

    tenho que ressaltar, no se tratava de um processo vivido por mim exclusiva e solitariamente.

    Muito pelo contrrio, tratava-se de uma verdadeira prxis que passava a ser experimentada

  • 10

    por um grupo social relativamente bem definido e que se compunha de produtores,

    intelectuais, artistas, pesquisadores cientficos, tcnicos de instituies de fomento e apoio e

    empresrios ligados ao setor florcola regional. Eu, em realidade, fui um dos convidados a

    participar da aventura de pensar os desafios que ento se impunham; misso qual

    voluntariamente aderi com grande apego e dedicao e que agora, com muita alegria, me

    permite colher frutos to gratificantes.

    Comeava a se delinear, assim, uma certa perspectiva de pesquisa, a qual veio a se

    estruturar e ganhar corpo definitivamente ao longo dos anos de 2007 e 2008. Tratava-se de

    pensar os fenmenos da comunicao e do consumo a partir das prticas sociais e discursivas

    e suas articulaes atravs das quais novos sentidos sociais podem ser construdos.

    Pensar e buscar compreender a estrutura, a lgica e a dinmica do funcionamento do

    consumo no mundo contemporneo um tema que me absorve e desafia h muito tempo.

    Desenvolver tal empresa no mbito das relaes da produo, acrescidas dos processos de

    recepo e das prticas de consumo de flores e plantas ornamentais na regio de Belm, PA,

    foi uma necessidade absolutamente urgente imposta pela prxis do meu cotidiano profissional

    enquanto engenheiro agrnomo diretamente envolvido com projetos de apoio ao

    desenvolvimento econmico regional endgeno e sustentvel. Poder, finalmente, mergulhar

    numa aventura terica e metodologicamente consistente na busca do saber cientfico sobre o

    objeto proposto, foi uma conquista de grande valor e significado pessoal, viabilizada pelo

    Programa de Mestrado em Comunicao e Prticas de Consumo da Escola Superior de

    Propaganda e Marketing, ESPM.

    , portanto, evoluo desses processos de delineamento e de preciso do recorte do

    objeto, construo dos dispositivos terico-metodolgicos para o seu estudo, ao desenho das

    prticas e tcnicas da pesquisa em campo e, finalmente, conquista do domnio da

    metodologia de interpretao e anlise dos seus resultados que pretendo dedicar alguns

    prximos pargrafos.

    A floricultura tropical praticada na Mesorregio Metropolitana de Belm1 vem

    experimentando, desde o final da dcada de 1990, notvel crescimento, principalmente em

    termos de expanso da rea cultivada e dos volumes anualmente colhidos de flores e

    folhagens de corte para consumo exclusivamente ornamental. Ainda que muitos dos projetos

    produtivos implantados visassem s exportaes de flores e folhagens tropicais para o

    1 A Mesorregio Metropolitana de Belm est localizada na regio nordeste do Estado do Par e composta por 11 municpios: Ananindeua, Barcarena, Belm, Benevides, Bujaru, Castanhal, Inhangapi, Marituba, Santa Isabel do Par, Santa Brbara do Par e Santo Antonio do Tau.

  • 11

    mercado internacional, o crescimento da aceitao e do consumo dessas mercadorias no

    mercado interno, especialmente no mbito do regional, sempre consistiu em uma meta

    altamente desejvel e necessria para a consolidao da atividade como empreendimento

    econmica e socialmente saudvel e endogenamente sustentvel. O que, em realidade, no

    vinha ocorrendo j que o consumidor se mantinha ora reticente, ora francamente opositivo

    aceitao do produto.

    Em uma das pesquisas inspirada em princpios etnogrficos que tive a oportunidade de

    realizar, ao longo do ano de 2005, comearam a emergir algumas recorrncias no

    comportamento de consumo do pblico regional, especialmente o belenense, que me

    permitiram iniciar um processo de mapeamento de referncias dos gostos, hbitos, valores e

    sentidos associados compra e ao uso das flores e plantas ornamentais. Entre as concluses

    permitidas por essa investigao, destacava-se a notvel dominncia da utilizao invarivel,

    montona e rgida de um nmero bastante limitado de espcies ornamentais, sempre nas cores

    amarelo e branco. Quaisquer que fossem as naturezas dos eventos sociais e das oportunidades

    de consumo (comemoraes e homenagens pblicas oficiais do Exrcito ou da Marinha,

    cerimnias e eventos religiosos, aniversrios pessoais ou empresariais, bodas matrimoniais,

    enterros e outros eventos fnebres, etc.) as ornamentaes se repetiam com as mesmas flores

    e as mesmas cores, chegando a produzir efeitos nauseantes, pela saturao e desinteresse

    dados pelas suas ininterruptas repeties.

    Uma investigao mais acurada ento conduzida permitiu identificar que o efeito

    repetitivo dessas prticas possua um slido ncleo de referncia e propagao: a

    ornamentao floral do Crio de Nazar e mais especificamente da berlinda que conduz a

    imagem da Santa ao longo das suas procisses principais a da Trasladao e a do Crio.

    Atravs da ornamentao, repetida a cada ano e a cada Crio, com as flores brancas e

    amarelas simbolicamente representativas da bandeira do Vaticano, celebrava-se uma apagada,

    porm sempre presente, lembrana da vigilncia da Igreja na sua secular misso auto-

    atribuda de vigiar o comportamento dos fiis, para que no desvirtuem e corrompam a

    cerimnia sagrada com suas renitentes atitudes profanas, carnavalescas e, s vezes,

    indecorosas. Tratava-se, como terei oportunidade de apontar no captulo dedicado

    interpretao dos resultados das entrevistas realizadas em campo, de uma verdadeira tradio

    inventada, no sentido proposto por Eric Hobsbawn2,

    2 A tradio inventada aqui referida reporta-se especialmente ao trabalho de Eric Hobsbawn no qual esse autor considera que a expresso pode abarcar no apenas as tradies realmente inventadas, construdas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difcil de localizar num perodo

  • 12

    Mediante as constataes desta rede de referncias e considerando a inegvel

    importncia scio-econmica e cultural do Crio de Nazar para a Regio Norte do Brasil,

    especialmente para o povo paraense e a populao de Belm, logo comeou a tomar corpo,

    junto ao grupo dos produtores regionais, o projeto de conquistar a ornamentao floral da

    berlinda com suas flores e folhagens tropicais. Tal projeto intua que a berlinda que transporta

    anualmente a Santa nas principais procisses do Crio - pelo seu impondervel valor

    simblico e elevado grau de exposio nas mais diversas mdias -, detm considervel

    potencial de influncia sobre as prticas cotidianas de consumo, podendo, neste sentido, atuar

    como suporte miditico para uma comunicao persuasiva cuja intencionalidade se delineava

    cada dia mais claramente.

    A berlinda magnetiza e atrai, como m, milhes de olhos no percurso das procisses

    de que participa: a Trasladao e o Crio. Muito alm da sua funo de conduzir e proteger a

    imagem da Santa, a berlinda lhe confere dignidade, solenidade e majestade (pois se trata de

    um veculo que atualiza a memria das cortes, adequada, portanto conduo de uma

    rainha), lhe permite visibilidade (j que a eleva acima da altura das cabeas dos devotos) e,

    ao mesmo tempo, serve aos propsitos da sinalizao e do monitoramento do andamento dos

    cortejos principais. A curiosidade e o interesse popular pelo seu posicionamento ao longo dos

    percursos chega a ser de tal magnitude que justificou, a partir de 2007, a instalao, no seu

    interior, de equipamentos de monitoramento GPS3 com informaes em tempo real acessveis

    ininterruptamente via internet durante toda a durao dos eventos nazarenos.

    Pela centralidade material e simblica que adquire nos espaos das procisses, na vida

    da cidade e na mdia em geral durante o perodo abrangido pelo Crio de Nazar, a berlinda

    converte-se em potente objeto de irradiao das mais diversas referncias, mensagens e

    sentidos, que se espraiam para muito alm do plano litrgico, abrangendo a totalidade das

    prticas sociais.

    importante ressaltar que a imagem venerada de Nossa Senhora de Nazar uma

    figura frgil e delicada que mede apenas vinte e oito centmetros de altura. Sua visualizao

    pelos devotos a distncia e em meio a multides bastante reduzida. Nesse sentido, a

    presena da berlinda, alm das funes j anteriormente enumeradas, agrega papel da mais limitado e determinado de tempo s vezes coisa de poucos anos apenas e se estabeleceram com enorme rapidez (HOBSBAWN, Eric. Introduo: a inveno das tradies. In: HOBSBAWN, Eric & RANGER, Terence (orgs). A inveno das tradies. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 9-23. Citao contida na pg. 9). 3 A sigla GPS origina-se da denominao inglesa Global Positioning System para o sistema capaz de fornecer a posio e o itinerrio de pontos ou objetos mveis, atravs da emisso de sinais por satlites definidores de coordenadas de posicionamento geogrfico. Uma traduo adequada para o portugus, embora no usual na literatura especializada, poderia ser Sistema de Posicionamento Global.

  • 13

    alta relevncia na concentrao do foco da ateno dos fiis, permitindo a canalizao dos

    olhares para a pequena imagem4.

    Neste contexto, uma das primeiras demonstraes do nascimento do projeto de

    ornamentao da berlinda com flores e folhagens tropicais surgiu em 2003, quando, durante a

    realizao da feira e exposio regional anual das flores tropicais do Par (Flor Par 2003), foi

    publicamente apresentada uma rplica da berlinda totalmente ornamentada com esses

    produtos regionais.

    Nos anos seguintes, esse projeto se transformou em uma verdadeira estratgia dos

    produtores e, finalmente, numa luta propriamente instaurada na ambincia do Crio de Nazar.

    Certo foi, porm, que as frentes de resistncia tornaram-se mltiplas e, na maioria das vezes,

    prevaleceu a voz da tradio e do desejo da imutabilidade. Como argumentos justificativos da

    permanncia intocada da ornamentao nazarena, circularam e cristalizaram-se -

    midiaticamente inclusive - discursos sobre a insuficincia quantitativa e qualitativa das flores

    e folhagens tropicais regionais que fossem capazes de dar conta de toda a demanda oficial do

    Crio de Nazar e sobre o mau gosto do uso dessas plantas consideradas, assim,

    grosseiras, rsticas e escandalosamente coloridas para a homenagem Virgem de Nazar,

    que pedia flores suaves, cndidas e simples como a prpria natureza da me de Deus.

    A manuteno da leveza e da delicadeza das flores brancas e amarelas sempre

    importadas da Regio Sudeste - e, evidentemente da perpetuao das homenagens nazarenas

    ao Vaticano, buscava, assim, prevalecer.

    Delineava-se, a, uma arena de luta na qual se punha em disputa a ornamentao

    oficial do cone, motivada no pelo valor das vendas propriamente restritas decorao

    nazarena, de realizao imediata, mas, sim, pelos seus desdobramentos futuros nas prticas

    cotidianas de consumo. A partir desse ponto pretendia-se transformar as flores e folhagens

    tropicais em signos impregnados de valores e contedos identitrios correlacionados sua

    origem regional, ou seja: que se tornassem to paraenses quanto o Crio e to ribeirinhas

    quanto a prpria Rainha da Amaznia, o que as tornaria reconhecveis como cones

    indissociveis da ornamentao nazarena e objeto valorizado no cotidiano do consumo.

    4 Para tanto, ao longo dos anos, a berlinda acumulou uma srie de transformaes e adaptaes que lhe deram maior eficcia visual, tais como sucessivas elevaes na altura dos dispositivos mveis de sua base, incluso de lmpadas no seu interior (especialmente relevantes na procisso noturna da Trasladao), reduo na ornamentao interna (tanto na quantidade de flores quanto na de pingentes de cristais), entre outras.

  • 14

    Afinal, conforme nos desvela Bakhtin, qualquer produto de consumo pode... ser

    transformado em signo ideolgico5.

    Ao ter a oportunidade de acompanhar em campo, no interior da comunidade

    belenense, o desenvolvimento dos processos aqui relacionados, acabei por poder definir, j

    agora no mbito das atividades acadmicas desenvolvidas junto ao Mestrado da ESPM, o

    objeto dessa nossa6 pesquisa: a berlinda como suporte miditico para as articulaes entre

    comunicao, recepo e consumo, a partir da produo e da articulao social dos sentidos

    provocados pelas prticas discursivas no mbito dos fenmenos constituintes do Crio de

    Nazar, em Belm, PA.

    Entre os cones constituintes das festividades do Crio de Nazar, a berlinda constitui-

    se em um elemento fundamental da pompa ritual e sua ornamentao constitui-se em objeto

    de grande ateno e debate pblicos, mediando, portanto, importantes processos da produo

    social de sentidos. Os objetos, como nos ensinam a antroploga Mary Douglas e o economista

    Baron Isherwood, so acessrios altamente relevantes nos rituais e sua presena est

    associada prpria eficcia social dos processos ritualsticos na fixao dos significados, pois

    ...viver sem rituais viver sem significados claros e, possivelmente, sem memrias. Alguns so rituais puramente verbais, vocalizados, no registrados; desaparecem no ar e dificilmente ajudam a restringir o mbito da interpretao. Rituais mais eficazes usam coisas materiais, e podemos supor que, quanto mais custosa a pompa ritual, tanto mais forte a inteno de fixar os significados... 7.

    As flores detm grande significado simblico, constituindo-se em objetos

    popularmente considerados adequados s homenagens e demonstraes de gratido, de

    respeito, amor, carinho e devoo aos entes queridos, entre eles, os santos e suas imagens.

    Includas nos andores das procisses desde tempos imemoriais, as flores podem a se tornar

    tambm portadoras de outros sentidos sociais, como os do reconhecimento identitrio8 que, no

    5 BAKHTIN, Mikail (VOLOCHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. So Paulo: Hucitec, 1992. p.32. 6 Preferi at esse momento proceder narrativa do histrico da pesquisa utilizando-me da primeira pessoa do singular, no intuito de demarcar uma trajetria pessoal previamente empreendida. Daqui para a frente, adoto o plural, compartilhando todo o desenvolvimento do projeto com a equipe docente do Mestrado em Comunicao e Prticas de Consumo da ESPM, essencialmente com a minha orientadora, pelas suas inestimveis e imprescindveis colaboraes, sem as quais esta pesquisa no teria se tornado possvel. 7 DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: por uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. (Coleo Etnologia) p. 112. 8 A ttulo de exemplo citamos a dissertao de mestrado de Ailton Jos Agostini que tratou das flores naturais e artificiais utilizadas na ornamentao dos andores das procisses de SantAna (essencialmente urbana) e de So Sebastio (rural) enquanto elementos de comunicao e de reconhecimento mutuamente opositivo entre os moradores da cidade e do campo na cidade de Sumar, SP. Lembrando que nestes eventos analisados o enfeite no to somente um detalhe: a outra parte essencial na composio do conjunto procisso, e portanto, da

  • 15

    caso do nosso objeto, impregna-se da regionalidade e da origem paraense espraiada desde a

    imagem achada da Virgem at o conjunto ampliado de diversas prticas sociais

    correlacionadas alimentao, ao artesanato, ao festejar, etc.

    Convm aqui ressaltar que, ainda que a produo regional de flores e folhagens

    tropicais na Mesorregio Metropolitana de Belm tenha agregado, nos ltimos anos, um

    grande nmero de produtores de diferentes segmentos scio-econmicos, a produo

    comercial, efetivamente realizada, provm de agentes socialmente mais capitalizados, tanto

    econmica, quanto culturalmente. Diversos levantamentos e diagnsticos conduzidos em

    campo neste perodo9 comprovam que a produo se origina de propriedades de dimenses

    relevantes de rea, conduzidas por membros de extratos mdio a alto de rendimentos mensais,

    que no vivem nem exclusiva nem prioritariamente da floricultura e que possuem, na grande

    maioria dos casos, educao de nvel superior, muitas vezes acompanhada de especializaes

    e at mesmo de doutorado.

    Tal ascendncia social no lhes garante, contudo, hegemonia no universo simblico

    regional. Alis, como bem nos ensinou Srgio Miceli a respeito da sociedade brasileira, em se

    tratando de nosso Pas:

    ... no possvel afirmar a existncia de uma estrutura de classe unificada, e muito menos, de uma classe hegemnica correspondente local da burguesia em condies de impor ao sistema inteiro sua prpria matriz de significaes. Estamos diante de um campo simblico fragmentado, no havendo nenhuma frao da coalizo dominante em condies de impor a legitimidade de sua viso de mundo s demais classes sociais10.

    festa, o autor mostra que as flores tornam possvel a lembrana no somente do prprio grupo, mas tambm to importante quanto a memria da relao com o outro grupo. (AGOSTINI, Ailton Jos. As flores de crepom, os andores e as procisses: interpretao das festas em Rebouas-Sumar. 2001. 196 f. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Universidade de So Paulo, USP. 2001. p. 111. 9 O Servio Brasileiro de Apoio s Micro e Pequenas Empresas - Sebrae, atravs de suas unidades estaduais do Par e do Amazonas, realizou amplos diagnsticos sobre a cadeia produtiva da floricultura na Mesorregio Metropolitana de Belm (PA) entre os anos de 2005 e 2007. Entre eles se destacam o Perfil da Cadeia Produtiva de Flores e Plantas Ornamentais da Mesorregio Metropolitana de Belm, PA, realizado pelo Sebrae /PA no perodo de 2005 a 2006 e o Estudo da Competitividade e Eficincia da Cadeia Produtiva da Floricultura da Amaznia, realizado pelo Sebrae /AM no mbito do Projeto Estruturante da Regio Norte de Flores Tropicais em 2007. Na realizao de ambos os estudos, tive a oportunidade de dividir o planejamento, a coordenao e a execuo tcnica com a economista Marcia da Silva Peetz. (Disponvel em http://www.biblioteca.sebrae.com.br/bds/BDS.nsf/4F8048F06CA79B1F03257222004FB603/$File/NT000B5D02.pdf. Acesso em 12 de agosto de 2007. 10 MICELI, Srgio. A noite da madrinha. So Paulo: Editora Perspectiva, 1972. p. 43-44.

  • 16

    Estas reflexes foram fundamentais para a nossa pesquisa e constituram-se na chave

    do caminho que pudemos empreender em direo aos conceitos e instrumentos terico-

    metodolgicos das frentes culturais conforme propostos e desenvolvidos pelo pesquisador

    mexicano Jorge Alejandro Gonzlez11.

    Para esse autor, as frentes culturais12 se definem como lugares de lutas entre as

    diferentes ideologias presentes numa mesma sociedade, a partir das quais se estruturam novas

    maneiras hierarquicamente legtimas e historicamente construdas de ver o mundo e a vida na

    cotidianidade, construindo os seus sentidos desde os mais mundanos, simples e ordinrios, at

    os mais desejveis, valorosos e utpicos. Constituem pois fronteiras ou limites de contato

    ideolgico entre as concepes e prticas culturais de distintos grupos e classes construdas

    que coexistem em uma mesma sociedade13. Por isso, Jorge Gonzlez chama apropriadamente

    as frentes culturais de arenas do sentido. Para ele, as frentes culturais devem ser analisadas

    segundo quatro eixos problemticos: a construo social dos sentidos; a construo social da

    hegemonia e do poder cultural; a luta pela legitimidade cultural e o papel dos elementos

    culturais transclassistas e suas relaes com a vida cotidiana.

    Mas, por ora, voltemos cronologia anterior do desenvolvimento de nosso projeto.

    Como vimos h pouco, embora os maiores produtores regionais e, tambm,

    responsveis pela articulao da iniciativa sejam eles prprios ocupantes dos campos sociais

    de maior capital social global e tambm de maior participao relativa do capital cultural na

    sua composio, tal fato no lhes isentou de forte oposio social s suas tentativas de

    incluso das flores tropicais na ornamentao do Crio. Mas, precisamente por isso, ou seja,

    por no considerarmos tais agentes como oriundos dos campos sociais dominados, preferimos

    11 GONZLEZ, Jorge Alejandro. Frentes culturales: para una comprensin dialgica de las culturas contemporneas. In: GONZLEZ, Jorge Alejandro. Entre cultura(s) y cibercult@(s): incursiones y otros derroteros no lineales. Buenos Aires: Editorial de la Universidad de La Plata Edulsp, 2007. (Coleccin: Comunicaciones). 12 Para Jorge Gonzlez, a adoo do termo frentes feita precisamente pelo seu carter polissmico, j que o que busca explorar o seu duplo sentido: a) como zonas de fronteira ainda que porosas e mveis - entre culturas de classe e de grupos socialmente diferentes, e b) como frente de batalha, de arena de lutas culturais entre contendores social e culturalmente desnivelados, nas quais se constroem cotidianamente os sentidos da vida e do mundo, ao longo da instaurao permanente do processo hegemnico da construo da legitimidade social (Cf. GONZLEZ, Jorge Alejandro. La Voluntad de Tejer: Anlisis Cultural, Frentes Culturales y Redes de Futuro. Razn y Palabra, ano 3, n.10, abril junho 1998. Disponvel em http://www.cem.itesm.mx/dacs/publicaciones/logos/anteriores/n10/gonzalez2.htm Acesso em 20 de novembro de 2008). 13 Traduo nossa do original: fronteras o lmites de contacto ideolgico entre las concepciones y prcticas culturales de distintos grupos y clases construidas que coexisten en una misma sociedad (GONZLEZ, Jorge A. Ms (+) Cultura (s): ensayos sobre realidades plurales. Mxico: Pensar la Cultura, 1994. p. 63. Grifos do autor.

  • 17

    aqui categorizar os seus movimentos na ambincia do Crio de Nazar como uma estratgia e

    no uma ttica, conforme conceitualmente definidos por Michel de Certeau14.

    Para esse autor, operar estrategicamente requer o concurso de um sujeito ou de grupo

    de sujeitos com um projeto global, um oponente claro e um controle sobre o terreno de onde

    se h de produzir a confrontao, que o que reconhecemos a partir do poder de influncia

    social, ainda que relativo, detido por esses agentes. No se trata, portanto, do caso oposto, o

    da ttica, lugar reservado para os socialmente mais fracos, no dotados de um projeto ou de

    um espao prprio de confrontao, o qual se encontra total ou majoritariamente ocupado

    pelo oponente.

    Evidentemente que as - agora devidamente categorizadas - estratgias dos produtores e

    dos demais agentes sociais afetos produo e ao comrcio das flores tropicais regionais em

    tratar de influenciar o consumo favoravelmente em direo aos seus produtos no se

    limitaram luta para a introduo de suas mercadorias na ornamentao floral oficial do Crio

    de Nazar. Muitas outras frentes foram simultaneamente abertas, umas mais bem sucedidas,

    outras nem tanto. Algumas tiveram, efetivamente, impactos sobre o nosso objeto, o que

    pudemos efetivamente constatar junto s entrevistas realizadas em campo durante o Crio de

    2008. Entre essas, parece-nos importante destacar: a) a conquista pelos agentes regionais da

    deciso oficial do governo do Estado do Par em decorar, ao longo do ano, todos os seus

    eventos, espaos e cerimnias oficiais com as flores tropicais regionais, e b) os esforos em

    criar uma cultura de consumo desses produtos, atravs de um conjunto significativo e

    articulado de aes informativas, educacionais e capacitadoras de artistas florais, varejistas,

    decoradores, prestadores de servios e de consumidores em geral com foco na divulgao das

    formas de uso ornamental das flores e folhagens tropicais e na sua valorizao esttica.

    Ressalte-se, contudo, o fato de nunca ter sido realizada uma campanha publicitria

    regional formalmente estruturada para a promoo do consumo dessas mercadorias.

    Nesse contexto, pde-se observar uma lenta, porm efetiva, apropriao social do uso

    ornamental das flores e folhagens tropicais regionais. E neste ponto encontramos outros

    elementos empricos fundamentais para o desenvolvimento do recorte de nosso objeto, j que

    essa apropriao, ao mesmo tempo em que foi estruturada por um conjunto de disposies

    sociais afetas ao gosto, estruturou formas profundamente distintivas de utilizao simblica e

    material dessas mercadorias. Encontramo-nos, portanto, com a necessidade do apoio terico e

    14 CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

  • 18

    conceptual de Pierre Bourdieu15, na sua fundamental e decisiva contribuio ao estudo da

    dinmica do gosto enquanto habitus de classe.

    O que estamos buscando destacar que a partir desse momento tornou-se igualmente

    relevante a instaurao da disputa simblica pela diferenciao e pelo distanciamento social.

    Tal fenmeno veio a se impor socialmente a despeito do evidente alinhamento e afinamento

    geral dos discursos dos distintos agentes envolvidos sobre a importncia da regionalizao

    dos hbitos e prticas de consumo a partir da priorizao de elementos da pauta prpria de

    produo,

    Este processo instaurou-se profundamente junto sociedade belenense, opondo

    radicalmente o bom gosto vulgaridade, o jeito certo ao jeito errado de consumir

    ornamentalmente as flores e folhagens tropicais. Tal disputa simblica se materializou

    socialmente pela crescente contraposio entre os artistas florais locais, segregando, por um

    lado, os representantes legitimados do gosto da elite, composto por elementos profissional e

    culturalmente melhor preparados - que exibem publicamente seus diplomas e ttulos - e, por

    outro, aqueles oriundos de estratos sociais inferiores, de menor capital social e cultural, cuja

    expresso artstica, no legitimada socialmente, passa a ser denunciada como deturpao

    esttica do consumo das flores e folhagens tropicais16.

    No podemos nos furtar aqui de reconhecer a ocorrncia daquilo que Anthony

    Giddens17 identificou como a presena da reflexividade18 enquanto caracterstica da vida

    contempornea, na qual os saberes se especializam e os sujeitos (que podemos enxergar aqui

    na figura dos consumidores) precisam contar com as indicaes e orientaes precisas dos

    15 BOURDIEU, Pierre. A distino: crtica social do julgamento. So Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk, 2007. 16 Tivemos a oportunidade de explorar mais detalhadamente essa temtica atravs da anlise de pesquisas qualitativas em profundidade realizadas com quatro artistas florais pertencentes a distintos campos sociais da sociedade belenense no artigo A subordinao do gosto: articulaes entre hegemonia e desenvolvimento regional endgeno, a partir das prticas de consumo de flores e plantas ornamentais em Belm (PA), que apresentamos e publicamos nos Anais do IV Encontro Nacional de Estudos do Consumo ENEC: Novos rumos da sociedade de consumo? O evento ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, RJ, no perodo de 24 a 26 de setembro de 2008. 17 GIDDENS, Anthony: Modernidade e identidade; traduo de Plnio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. 18 Para Giddens, a reflexividade consiste essencialmente no fato de que as prticas sociais so freqentemente examinadas luz de informaes renovadas sobre essas prticas, podendo alterar sempre o seu carter. Nesse sentido, o que caracterstico da modernidade no a adoo do novo por si s, mas a suposio da reflexividade no cotidiano. A reflexividade no moderno implica que as aes, escolhas e destinos sejam constantemente minados e reformulados luz de novas informaes, alterando assim continuamente seu carter e sentido. Na modernidade, a reviso das convenes so radicalizadas em todas as esferas e instncias da vida social (Cf. SETTON, Maria da Graa Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contempornea. Revista Brasileira de Educao, n. 20, p.60-70, maio/jun/jul/ago 2002. p.68).

  • 19

    consultores, especialistas ou peritos aptos a julgar e, acima de tudo, informar sobre a

    pertinncia do produto e da sua forma correta de consumi-lo (o artista floral que reivindica o

    reconhecimento do seu melhor preparo tcnico e cultural para apontar as melhores formas de

    se consumir as flores e plantas ornamentais).

    Ao mesmo tempo, porm, em que se desenvolvia essa luta simblica no interior da

    sociedade belenense, os movimentos dos produtores e outros agentes interessados na

    introduo das flores tropicais na ornamentao da berlinda nazarena passava a se intensificar.

    interessante relatar que nos eventos secundrios do Crio, assim como nos crios de

    outros municpios e Estados, as flores tropicais j vinham conquistando espaos cada vez

    maiores nas ornamentaes oficiais. A resistncia mais forte persistia, porm, na sua chegada

    berlinda principal, em Belm, na procisso do segundo domingo de outubro de cada ano;

    essa, sim, fonte visada de toda a irradiao simblica, dada sua inquestionvel importncia

    como mdia, j apontada anteriormente.

    Tal situao veio a alterar-se finalmente sob a batuta de um dos artistas florais

    expoentes do gosto da elite regional, o arquiteto Paulo Morelli, oficialmente designado para

    ornamentar o Crio de Nazar nos anos de 2004 a19 2007. Esse profissional vir adquirir,

    como teremos oportunidade de analisar ao longo do trabalho, um papel histrico fundamental

    no processo ora estudado especialmente no Crio de 2007.

    Naquele ano, frente ao tema da Campanha da Fraternidade que trouxe a Amaznia

    como foco principal20, a Diretoria da Festa de Nazar, conjuntamente com a arquidiocese de

    Belm, aprovou finalmente que a decorao floral no apenas da berlinda principal, mas de

    todos os espaos, objetos e eventos correlacionados ao Crio fossem feitas com flores e

    folhagens tropicais regionais. O evento foi considerado uma grande vitria, amplamente

    comemorada entre os produtores e demais agentes sociais envolvidos nessa cadeia produtiva

    regional. Muitos depoimentos emocionados desse perodo foram por ns coletados e

    compem vrios trechos da presente pesquisa.

    Lembrando que toda a divulgao desses produtos no contou em nenhum momento

    com aes publicitrias tradicionais veiculadas pela grande mdia, como a televiso, o rdio,

    os jornais ou as revistas a utilizao das flores tropicais na ornamentao da berlinda do 19 No Crio de 2006, Paulo Morelli introduziu estrategicamente, sem grande alarde, certa quantidade de elementos tropicais regionais na decorao da berlinda. Apesar dessa sua discrio, as crticas no tardaram, principalmente dos setores populares, e circularam, com certa relevncia, na mdia local, conforme poderemos apontar ao logo do desenvolvimento da pesquisa. 20 Para a Campanha da Fraternidade 2007, a Confederao Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB elegeu como tema: Fraternidade e Amaznia: vida e misso neste cho, com o objetivo de despertar a ateno para a problemtica scio-ambiental prevalecente naquela regio brasileira.

  • 20

    Crio de Nazar, passou, a partir desse momento, a adquirir uma especial notoriedade e grande

    eficcia tanto como influncia direta enquanto pea publicitria, dada sua inquestionvel

    importncia simblica, respeito e credibilidade junto populao, quanto de forma indireta.

    Neste ltimo caso, ressalta-se que o fato das flores e folhagens tropicais regionais passarem a

    ser utilizadas na ornamentao oficial da berlinda foi decisivo para que se conquistasse um

    espao social relevante de discusso do tema na grande mdia, a qual passou a dedicar-lhe

    grande nmero de matrias especiais, entrevistas, artigos, muitos deles disponibilizados ao

    longo de todo o ano em sites institucionais21.

    Entre as questes mais destacadas desde ento pelas abordagens miditicas da temtica

    floral no mbito do Crio de Nazar - alm da evidente importncia econmica e social da

    origem regional das flores- ganhou relevncia o abandono das cores amarelo e branco do

    Vaticano, em 2007 e seu retorno em 2008, tornando tais assuntos sempre recorrentes,

    polmicos e divisores das opinies.

    Se, para conquista definitiva e permanente da decorao floral a partir das flores e

    folhagens tropicais enquanto elemento identitrio regional, um passo fundamental havia sido

    dado, a sua efetiva consolidao, contudo, ainda carecia da legitimao social para que assim

    se completasse sua transformao em um novo cone do Crio de Nazar. Esta expresso

    que acabamos de reproduzir foi repetida inmeras vezes em depoimentos e entrevistas

    realizadas com produtores e agentes interessados na floricultura regional, durante a realizao

    da pesquisa em campo e, em diversos momentos, pde ser interpretada como um slogan ou,

    mesmo, como uma verdadeira palavra de ordem. Alis, como bem nos lembra Zygmunt

    Bauman, para quem a identidade pode ser vista, efetivamente, como um grito de guerra de

    indivduos ou das comunidades que desejam ser por estes imaginadas: o campo de batalha

    o lar natural da identidade22.

    Decididamente, o projeto identitrio associado utilizao das flores e folhagens

    tropicais na ornamentao do Crio de Nazar estava socialmente colocado e no havia mais

    como neg-lo. Persistia, porm, a imprescindvel necessidade de travar a luta definitiva pela

    21 A ttulo de exemplo, citamos que a entrevista filmada e gravada com o arquiteto e artista floral belenense Paulo Morelli exclusivamente tratando da sua atitude inovadora na introduo das flores tropicais regionais na ornamentao da berlinda no Crio de Nazar de 2007 ficou disponvel no site das Organizaes Romulo Maiorana, uma das mais importantes redes paraenses de comunicao, durante um ano, entre os perodos preparativos do Crio 2007 e do Crio de 2008 (FLORES: berlinda decorada com flores tropicais ser novidade no Crio de Nazar. Vdeo disponvel em http://www.orm.com.br/projetos/cirio/2007/videos.asp. Acesso em 1 de setembro de 2007. 22 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi; traduo de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2005. p.22.

  • 21

    sua legitimao. Afinal, um projeto identitrio no se constri a partir dos desejos e

    diligncias de apenas uma classe ou frao de classe. Trata-se, obrigatoriamente de um fato

    social para o qual contribuem os vrios segmentos de uma determinada sociedade.

    E nesse ponto que encontramos a chave definitiva para adentrarmo-nos competente

    explorao terica e metodolgica do nosso objeto, qual seja, o instrumental oferecido por

    Jorge Alejandro Gonzlez que nos permitiu pensar o Crio de Nazar, enquanto uma frente

    cultural lugar de modelagem cultural da dimenso ldica e, como afirmou Jess Martn-

    Barbero, de constituio de identidades coletivas locais regionais, em sua ligao e

    confronto com o nacional23.

    As frentes culturais devem, aqui, serem pensadas enquanto espaos nos quais,

    ...as classes sociais se encontram - compartilham significantes - e lutam por e a partir de significados diferentes, para dotar a festa de sentido. Lutam no necessariamente para estabelecer relaes de domnio ou explorao, mas para ressaltar certos valores, prticas e concepes que so re-presentados em virtude de um determinado projeto de legitimidade social24.

    Consideramos, neste ponto, importante esclarecer que, embora Jorge Gonzlez no

    tenha trabalhado especificamente as romarias, as procisses e as festas religiosas como frentes

    culturais, acreditamos ser metodolgica e cientificamente legtimo expandir os seus conceitos

    tambm aos fenmenos e acontecimentos no mbito do Crio de Nazar, primeiramente por

    sua origem mesma no seio das feiras populares25 da Belm do sculo XVII de onde adquiriu

    o seu carter mercantil e circense que o evento jamais perdeu por completo e, tambm, por

    ele agregar outros elementos contemplados pelas pesquisas daquele autor dentro da

    perspectiva das frentes culturais, especialmente a presena simblica e materialmente densa

    dos ex-votos26.

    Percorridos os caminhos aqui reportados, nos propusemos, finalmente, a entender o

    processo da construo do discurso identitrio regional a partir da utilizao das flores e

    folhagens tropicais regionais na ornamentao floral do Crio de Nazar, relacionando-o

    23 MARTN-BARBERO, Jess. Dos meios s mediaes: comunicao, cultura e hegemonia; traduo de Ronald Polito e Srgio Alcides. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. p.326. Grifos do autor. 24 MARTN-BARBERO, Jess. Op. cit. p.326. Grifos do autor. 25 Cf. GONZLEZ, Jorge Alejandro. Juego peligroso: ferias, memorias y frentes culturales. DIA-LOGOS de la Comunicacin, Revista terica de la Federacin Latinoamericana de Asociaciones de Facultades de Comunicacin Social FELAFACS, n. 23, p.17-33, mar.1989. 26 Cf. GONZLEZ, Jorge Alejandro. Ms (+) Cultura(s): ensayos sobre realidades plurales. Mxico: Pensar la Cultura, 1984.

  • 22

    constatada credibilidade da berlinda como suporte miditico capaz de prover ampla

    divulgao e persuaso, segundo trs momentos, a seguir descritos:

    a) primeiro momento: a luta regional dos produtores de flores e folhagens tropicais

    contra a hegemonia do gosto imposto a partir das prticas de consumo prevalecentes

    nas Regies Sul e Sudeste do Brasil e da importao das mercadorias por elas

    produzidas;

    b) segundo momento: a instaurao do processo da distino social na apropriao

    diferenciada do uso das flores e folhagens tropicais, condicionada ao habitus de classe,

    no interior mesmo da sociedade belenense;

    c) terceiro momento: a instaurao da luta pela legitimao dos valores e sentidos

    associados s flores e folhagens tropicais enquanto elementos identitrios regionais

    tendo, essencialmente, a berlinda como suporte miditico para as articulaes entre a

    comunicao e o consumo no mbito do Crio de Nazar, aqui entendido como frente

    cultural e lugar privilegiado para o enfrentamento entre as diferentes ideologias

    presentes na sociedade. Lembramos que para a conquista da legitimao dos sentidos

    identitrios buscados em relao a esses elementos instauraram-se, nesta arena,

    diferentes disputas simblicas - porm simultneas e superpostas - polarizadas entre: o

    tradicionalismo conformista do branco e amarelo do Vaticano e a possibilidade da sua

    subverso pelo uso do vibrante multicolorido tropical; entre o bom gosto e a

    breguice; entre o Norte e o Sul, e entre o constituir-se discursiva e orgulhosamente

    como ser amaznico, paraense, caboclo e ribeirinho em contraposio ao ser visto a

    partir do olhar do outro, quase sempre carregado do exotismo preconceituoso que

    segrega, incompreende e diminui.

    Os dois primeiros momentos foram tratados no Captulo 3, tendo como material

    emprico de anlise entrevistas em profundidade realizadas com produtores regionais de flores

    e folhagens tropicais, membros da Diretoria da Festa de Nazar e outros agentes relevantes no

    ambiente da organizao do Crio de Nazar em Belm, PA, alm de textos e matrias

    jornalsticas publicadas regionalmente. O material assim coletado foi analisado e interpretado

    com o apoio dos instrumentos terico-metodolgicos da Anlise do Discurso da Linha

    Francesa (ADF).

  • 23

    Finalmente, o terceiro momento foi abordado da perspectiva da recepo e constituiu o

    corpus da pesquisa de campo realizada durante o perodo de acontecimento do Crio de

    Nazar 2008, no ms de outubro daquele mesmo ano. O material emprico coletado foi

    composto por entrevistas semi-estruturadas e em profundidade realizadas junto ao pblico

    participante das diversas procisses e outros eventos realizados no mbito da programao

    oficial do Crio de Nazar, incluindo as celebraes religiosas e outras manifestaes profanas

    como o Auto do Crio e a Festa da Chiquita, entre outras. O dirio de campo, includo no

    Anexo, reporta detalhadamente o desenvolvimento da pesquisa inspirada em princpios da

    etnografia tambm empreendida como componente do presente trabalho. Como no caso do

    captulo anterior, todo o material coletado foi tambm analisado com o suporte dos

    pressupostos terico-metodolgicos da ADF.

    Pensar objetos afetos ao campo comunicao, da perspectiva da cultura, ou mais

    especificamente, do popular na cultura como o caso da presente pesquisa constitui-se em

    uma possibilidade terica e metodologicamente tributria do trabalho empreendido por Jess

    Martn-Barbero no contexto da Amrica Latina contempornea, notadamente a partir da

    dcada de 1980.

    Posicionado na ambincia destas proposies e considerando que a comunicao deva

    ser um lugar estratgico desde o qual pensar a sociedade27, Martn-Barbero consolidou

    novas possibilidades para o seu estudo a partir das perspectivas da anlise cultural e das

    mediaes. Nesse sentido, sua contribuio ao campo tornou-se fundamental, tambm, por

    explicitar e insistir no estatuto da transdisciplinaridade exigida nos estudos da comunicao

    na contemporaneidade latino-americana, na medida em que esto em jogo: profundas

    transformaes na cultura cotidiana das maiorias: mudanas que trazem superfcie estratos

    profundos da memria coletiva ao mesmo tempo em que movimentam imaginrios que

    fragmentam e des-historicizam28. Assim, para Martn-Barbero tornou-se urgente e necessria

    uma movimentao dos limites do campo da comunicao, impregnada do estatuto da

    interdisciplinaridade, que no significa a dissoluo de seus objetos nos das disciplinas

    sociais, mas a construo das articulaes mediaes e intertextualidades que fazem a sua

    especificidade29:

    27 MARTN-BARBERO, Jess. Ofcio de cartgrafo: travessias latino-americanas da comunicao na cultura. So Paul: Edies Loyola. Traduo de Fidelina Gonzlez, 2004 (Coleo Comunicao Contempornea, 3). p. 213. 28 MARTN-BARBERO, Jess. Op. cit. p.209. 29 FUENTES, R. La investigacin de la comunicacin: hacia la post-disciplinariedad en las ciencias sociales. In: Medios y mediaciones, Iteso, Guadalajara, Mxico, 1994.

  • 24

    Por muito tempo a verdade cultural dos pases latino-americanos importou menos do que as seguranas tericas. E assim estivemos convencidos de que a comunicao nos deveria apresentar uma teoria - sociolgica, semitica ou informacional - porque s a partir dela seria possvel demarcar o campo de interesses e precisar a especificidade de seus objetos. Entretanto, alguma coisa na realidade se mexeu com tanta fora que provocou uma certa confuso, com a derrubada das fronteiras que delimitavam geograficamente o terreno e nos asseguravam psicologicamente. Apagado o desenho do objeto prprio, ficamos merc das intempries do momento. Mas agora no estamos mais sozinhos: pelo caminho j encontramos pessoas que, sem falar de comunicao, no deixam de question-la, trabalh-la, produzi-la: gente das artes e da poltica, da arquitetura e da antropologia. Foi necessrio perder o objeto para que encontrssemos o caminho do movimento social na comunicao, a comunicao em processo30.

    Tal tomada de posio, advinda da retomada da abordagem dos conceitos de

    hegemonia em Gramsci aplicados cultura, permitiu a esse autor imprimir centralidade

    decisiva idia de mediao, definindo a relevncia do seu papel na recepo.

    Assim, no mbito do estudo do nosso objeto, a incorporao dos conceitos das

    mediaes enquanto dispositivos atravs dos quais a hegemonia transforma por dentro o

    sentido do trabalho e da vida da comunidade31 permitiu investigar as relaes entre a

    comunicao e a cultura da perspectiva do popular; perspectiva essa na qual o consumo pode

    ser pensado nas suas dimenses no-reprodutivas (da fora de trabalho e dos valores de outras

    classes sociais) e tambm no culturalista, mas, sim, a partir de um novo marco que permite

    uma compreenso dos diferentes modos de apropriao cultural, dos diferentes usos sociais

    da comunicao32. Assim, podemos entender o consumo no apenas como reproduo de

    foras, mas tambm de produo de sentidos.

    Adotando, pois, a perspectiva da recepo ativa e o suporte terico-metodolgico das

    mediaes, vamos poder enxergar os receptores como co-produtores do produto cultural, j

    que so eles que o (re)vestem de significado, possibilitando a atualizao de leituras, o

    rompimento de caminhos pr-estabelecidos de significados, a abertura de trilhas que podero

    desaguar em reformulaes culturais conforme proposto por Maria Aparecida Baccega33.

    30 MARTIN BARBERO, Jess. Dos meios s mediaes: comunicao, cultura e hegemonia; traduo de Ronald Polito e Srgio Alcides. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p. 277-278. 31 MARTN-BARBERO, Jess. Op. cit. p.274. 32 MARTN-BARBERO, Jess. Op. cit. p.301. 33 BACCEGA, Maria Aparecida. Recepo: nova perspectiva nos estudos de comunicao. Comunicao & Educao. So Paulo, n.12, p.7-16, maio /ago. 1988. p. 10.

  • 25

    Ressaltamos tambm, neste contexto, que a recepo no homognea, nem tampouco

    consensual, ainda que se constitua em um fenmeno coletivo. Tornou-se, portanto, relevante

    ressaltar em nossa pesquisa o papel das comunidades interpretativas, pensando-as a partir da

    perspectiva das suas relaes com a comunicao e o consumo. Assumimos aqui a forma

    proposta por Nstor Garcia Canclini, que as identifica como unidades fragmentrias

    compostas por conjuntos de pessoas que compartilham gosto e pactos de leitura a respeito de

    certos bens (gastronmicos, desportivos, musicais) os quais lhes conferem identidades

    comuns34.

    a partir desse instrumental terico-metodolgico que nos propusemos, ento, a

    pensar a berlinda da Virgem de Nazar enquanto suporte miditico das flores tropicais, assim

    vistas como elementos prenhes de sentidos, pois os objetos que se podem consumir, como nos

    diz de Beatriz Sarlo ...nos significam j que os objetos so os nossos cones, quando os

    outros cones que representam alguma divindade, demonstram sua impotncia simblica; so

    os nossos cones porque podem criar uma comunidade imaginria35.

    Os sentidos identitrios diversamente construdos a partir do cone ornamentado pelas

    mltiplas comunidades interpretativas revelaram-se, no decorrer da pesquisa em campo,

    presentes e em permanente inter-relao na arena social representada pelo Crio de Nazar,

    enquanto frente cultural. Mas, na sua negociao coletivizada que reside o poder da

    construo da hegemonia, processo no qual se exige que o grupo pretendente conquista do

    monoplio legtimo de legitimar a identidade36 seja dotado de competncia comunicativa,

    a qual exercite e exera com inteligibilidade suficiente para carrear valores simblicos e

    sentidos para toda a sociedade, ainda que nunca venha a se isentar, de fato, das resistncias

    diversas e mveis dos distintos grupos sociais. Afinal, a legitimidade s pode se concretizar

    efetivamente quando se capaz de dar coerncia ao discurso de um grupo social. Ao mesmo

    tempo, no basta a coerncia se esta no se faz comunicvel em uma linguagem acessvel e

    que proporcione a possibilidade de sua captao pela pluralidade dos grupos portadores de

    distintos e desbalanceados volumes de capital cultural presentes numa determinada sociedade.

    Desta forma, os estudos de objetos na ambincia das frentes culturais, mesclam-se

    necessariamente nas tramas das relaes culturais, inserindo entre elas, de maneira 34 GARCIA CANCLINI. Nstor. Consumidores e cidados: conflitos multiculturais da globalizao. 4 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999. p.285 35 SARLO, Beatriz. Cenas da vida ps-moderna: intelectuais, arte e videocultura na Argentina. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. p.28. Grifo da autora. 36 Cf. GONZLEZ, Jorge Alejandro. Juego peligroso: ferias, memorias y frentes culturales. DIA-LOGOS de la Comunicacin, Revista terica de la Federacin Latinoamericana de Asociaciones de Facultades de Comunicacin Social FELAFACS, n. 23, mar.1989.

  • 26

    indissocivel e prioritria, a comunicao, uma vez que o que se deve buscar o

    entendimento da dimenso relacional nos processos da construo dos sentidos e de sua

    legitimao social. Neste contexto, analisar o papel da berlinda enquanto suporte miditico

    para a comunicao e suas articulaes com o consumo no Crio de Nazar das perspectivas

    das frentes culturais propostas por Jorge Gonzlez, bem como dos dispositivos terico-

    metodolgicos dos estudos da recepo a partir das mediaes e das comunidades

    interpretativas constituiu-se num frutfero e prazeroso exerccio de pesquisa no campo da

    comunicao e do consumo.

    Finalmente, visando organizar e apresentar o mais clara e objetivamente possvel os

    resultados da pesquisa, optamos por transferir para o Anexo, todos os elementos que, embora

    relevantes para a compreenso e apreciao integral do estudo, pudessem receber uma leitura

    paralela. Assim, l foram includos: a ntegra do dirio de campo da pesquisa inspirada em

    princpios da etnografia aplicada aos estudos da comunicao; as tabelas completas contendo

    os elementos florais componentes das ornamentaes dos demais espaos, objetos e eventos

    correlacionados ao Crio de Nazar 2008; a programao oficial completa do Crio de Nazar

    2008 e as relaes e transcries das entrevistas realizadas em campo durante o

    acontecimento dos eventos sagrados e profanos ligados festividade nazarena.

  • 27

    1. CONTEXTUALIZAO TERICA

    Pensar a berlinda que conduz a imagem de Nossa Senhora durante as principais

    procisses do Crio de Nazar enquanto suporte para a comunicao e suas articulaes com o

    consumo, reivindicando o conjunto composto pelos cones a Santa e seu veculo e sua

    ornamentao floral como legtimo objeto de estudo no campo da Comunicao constituiu um

    importante desafio terico-metodolgico realizao da presente pesquisa.

    De fato, ainda que se possam destacar algumas poucas teses e dissertaes focadas no

    estudo das romarias e procisses no mbito do miditico37 uma delas inclusive sobre o Crio

    de Nazar38 , as singularidades da adoo, na nossa abordagem, da perspectiva da recepo e

    com foco concentrado sobre um dispositivo miditico de alcance espraiado, no tecnolgico

    (a prpria berlinda), fez emergir dificuldades adicionais considerveis, na medida em que

    encontramos, para o nosso percurso, pouco amparo de outras pesquisas.

    1.1. O Crio de Nazar enquanto fenmeno miditico

    O Crio de Nazar deve ser entendido enquanto fenmeno que, ainda que enraizado na

    histria religiosa, afeta e afetado pelas culturas e pelos imaginrios de outros diferentes

    campos sociais, nos quais os sujeitos manifestam e expressam seus valores, motivaes e

    significados por meio de operaes discursivas transformadas em elementos simblicos, as

    quais envolvem amplamente a mdia tradicional. Assim, as relaes sociais so estruturadas e

    estruturam a prpria festa atravs de um conjunto de processos scio-discursivos

    comunicacionais empreendidos pelos sujeitos, enquanto elementos agregadores e facilitadores

    de conexes, pontos de vinculao e de integrao entre eles prprios e deles com o

    acontecimento. a partir da instaurao social de tais processos scio-simblicos de

    comunicao e de signos que dem inteligibilidade aos seus rituais, buscando um efeito de

    37 Destacamos particularmente as pesquisas de Viviane Borelli na sua tese de doutoramento desenvolvida a partir dos eventos empricos correlacionados Romaria da Medianeira, que ocorre na cidade de Santa Maria, RS [BORELLI, Viviane. Da festa ao cerimonial miditico: as estratgias de midiatizao da teleromaria da Medianeira pela Rede Vida. (Tese de Doutorado). 2007. 380 f. Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. So Leopoldo, RS, 2007]. 38 ALVES, Regina. Crio de Nazar: da taba marajoara aldeia global. 2002. Dissertao (Mestrado em Comunicao e Cultura Contempornea). Universidade Federal da Bahia, 2002.

  • 28

    reconhecimento39 que os sujeitos elaboram a expresso pblica da sua f e afirmam o seu

    pertencimento identitrio a grupos e lugares especficos.

    Os elementos simblicos, abundantemente presentes em eventos da natureza dos aqui

    estudados enquanto portadores de sentidos, valores e relaes sociais so histrica e

    ideologicamente construdos por meio de processos comunicacionais, atravs dos quais

    podem ser percebidos e reconhecidos, pelos sujeitos sociais, como dados significantes,

    integrantes e constituintes do mundo.

    a partir dessas prticas culturais que os agentes participantes desses eventos

    estabelecem e reconhecem vnculos entre si, com o mundo e com o fenmeno religioso, ainda

    que possam atribuir sentidos singulares aos objetos, acontecimentos e processos sociais, j

    que esses, enquanto elementos de demarcao simblica, denotam no s pontos de contato e

    de contgio, mas tambm nveis e papis hierrquicos que revelam distines40.

    No mbito do Crio de Nazar, a celebrao, na totalidade do seu acontecimento, no

    tem o carter restrito dado pelo campo religioso o litrgico , mas contm, ainda, outras

    manifestaes simblicas que atravessam o imaginrio e as prticas populares e que se

    relacionam com os atos do festejar, do comemorar, do expressar e do atualizar os rituais.

    Neste sentido, constitui-se em uma prtica scio-cultural e tambm em um ato de

    sociabilidade e de comunicao entre seus atores, que se realizam por meio de operaes

    simblicas, transpassadas por mediaes41 da cultura, da classe social, da religio, do

    cotidiano, das instituies, da famlia, entre outras.

    Neste contexto, estabeleceram-se historicamente (e continuam a se estabelecer)

    diversos cones carregados de valores e sentidos sociais atualizados ritualmente ao longo das

    festividades nazarenas repetidas a cada ano. Entre esses elementos icnicos, como j

    demonstramos, a berlinda, acompanhada de sua decorao floral, adquire centralidade,

    dignidade e relevncia, as quais so amplamente acentuadas pela mediao maior do Crio de

    Nazar, em suas amplitude e espessura scio-econmica e cultural inquestionveis,

    especialmente para a Regio Norte do Brasil.

    39 BORELLI, Viviane. Op. cit. p. 144. 40 BORELLI, Viviane. Processos comunicacionais e prticas religiosas: uma leitura de suas perspectivas simblicas. Trabalho apresentado ao GT Prticas Sociais de Comunicao do VIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao da Regio Sul Intercom. Passo Fundo, RS, 2007. Disponvel em http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sul2007/resumos/R0098-1.pdf. Acesso em 29 de agosto de 2008. 41 Cf. NASCIMENTO, Silvana de Souza. A festa vai cidade: uma etnografia da Romaria do Divino Pai Eterno, Gois. In: Religio e Sociedade, v.22, n.2. Rio de Janeiro: ISER, 2002.

  • 29

    O Crio de Nazar constitui-se num amlgama de eventos sagrados e profanos, no qual

    se misturam sincreticamente os ritos do catolicismo popular, elementos do carnaval e

    expresses da comemorao e da alegria. o que lhe confere, ao longo do seu acontecimento,

    o carter festivo que hibridiza inextricavelmente o culto, o mercado e a festa42. Como bem

    definiu Isidoro Alves, em sua feliz e j consagrada expresso, o Crio de Nazar o Carnaval

    devoto43 do povo paraense.

    justamente este carter hbrido entre a festa, a devoo e o mercado que o Crio

    possui que nos incentiva a pens-lo como uma Frente Cultural, nos moldes como

    conceituados e trabalhos por Jorge Alejandro Gonzlez. Para esse autor, conforme poderemos

    discutir mais detalhadamente frente, os rituais pblicos so lugares especficos que podem

    ser proveitosamente estudados como Frentes Culturais, precisamente por seu potencial para

    definir significados sociais entre diferentes verses 44.

    As festas, enquanto rituais45, so momentos extraordinrios que subvertem a rotina.

    Porm, lembramos aqui as ressalvas de Roberto DaMatta para quem, apesar disto os ritos

    no parecem ser momentos substancialmente diferentes daqueles do mundo cotidiano, mas

    combinaes desses momentos 46. Os rituais constituem, portanto, modos de salientar

    aspectos do mundo dirio, os quais se utilizam, para isso, dos mecanismos sociais cotidianos

    do reforo, da inverso e da neutralizao47.

    42 O carter festivo do Crio de Nazar, que se consolida ao extrapolar o espao do exclusivamente religioso para abarcar um conjunto ampliado e diversificado de prticas culturais profanas, tem sido retratado por vrios pesquisadores ao longo do tempo. Destacamos, entre eles, a tese de doutorado de Rita de Cssia de Mello Peixoto Amaral [AMARAL, Rita de Cssia de Mello Peixoto. Festa brasileira: significados do festejar no pas que no srio. 1998. 387 f. Tese (Doutorado em Antropologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, 1998.]. 43 ALVES, Isidoro. O carnaval devoto: um estudo sobre a festa de Nazar, em Belm. Petrpolis, RJ; Vozes, 1980. 44 Traduo nossa do espanhol los rituales pblicos son lugares especficos que pueden ser provechosamente estudiados como Frentes Culturales, precisamente por su potencial para definir significados sociales entre versiones diferentes GONZLEZ, Jorge Alejandro. Entre cultura(s) y cibercult@(s): incursiones y otros derroteros no lineales. Buenos Aires: Editorial de la Universidad de La Plata Edulsp, 2007. p.217. 45 O ritual aqui entendido enquanto processo atravs do qual a sociedade conta histrias sobre si mesma, sendo um modo singular de expresso. Nesse sentido, o ritual o processo de pr em relao, dando sentido aos fatos da vida social (Cf. SILVA. Apud BORELLI, Viviane. Op. cit.) 46 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 82-83. 47 Segundo Roberto DaMatta, separao ou reforo constituem-se em mecanismos bsicos dos rituais, nos quais o objetivo a separao dos elementos, categorias ou regras que esto por um momento confundidas. Na inverso, o processo ritual torna-se radical no sentido de realmente provocar um deslocamento completo de elementos de um domnio para outro, do qual esses elementos esto normalmente excludos. O resultado principal, neste caso, o de juntar o que est normalmente separado. J, no caso da neutralizao, os mecanismos se caracterizam principalmente pelo afastamento, pela evitao, distanciando-se tanto da disjuno (que ocorre pelo reforo ou separao) quanto da conjuno (que obtida pela inverso). (DAMATTA, Roberto. Op. cit.).

  • 30

    Compartilhamos aqui importantes contribuies oriundas do campo da antropologia

    que nos ajudam a pensar a pertinncia e a eficcia da berlinda como suporte miditico para a

    comunicao pretendida, na medida em que ela, como elemento constitutivo do ritual

    nazareno, torna-se capaz de promover o deslocamento das flores e folhagens tropicais

    regionais para alm dos espaos que ocupam no cotidiano e, ao dar-lhes relevncia, permite-

    lhes adquirir o status de smbolo e, assim, exprimir mais do que aquilo que exprimem no seu

    contexto normal48.

    Desta forma, as flores e folhagens tropicais ao serem transpostas do seu contexto

    ordinrio, no qual se acham impregnadas de desprezo ou indiferena, para o do cone amado e

    majestoso, adquirem novos valores, sendo, neste sentido, positivamente ressignificadas.

    Afinal, ao ser a portadora e a transportadora do cone maior de toda a Festa de Nazar

    a prpria imagem da Santa a berlinda se transforma no centro para o qual tudo

    reverenciadamente organizado. Pelo tempo prprio do ritual e da festa, que se suspende para

    alm da temporalidade do dia-a-dia49, a berlinda transforma-se na mdia central e nucleadora

    das atenes e referncias das demais mdias. Sua imagem, reproduzida, replicada e editada

    pelos mais diversos meios e processos tecnolgicos converte-se em fonte simblica e suporte

    comunicacional para as mais diversas possibilidades e intenes.

    As flores possuem muita importncia por que ornam o altar maior, que a berlinda, o foco da ateno; todos os outros elementos na nossa percepo, no dia do Crio, todos os outros carros, desaparecem perante o olhar da multido. Aonde vai Nossa Senhora de Nazar, ali o momento mpar de concentrao de toda aquele aglomerado de gente, ento todos esto focados no olhar da berlinda.Ento a ornamentao da berlinda, onde Nossa Senhora vai, torna-se um expoente maior, uma decorao para uma rainha, e essas flores vo dar vida a um elemento simblico materializado pela cultura atual50.

    Se o ritual, ao transformar o particular no universal joga o jogo produtor de

    identidades sociais, seus elementos constitutivos entre os quais a berlinda se encontram,

    portanto pressupostamente prenhes dessas mesmas prerrogativas e potencialidades. E ,

    afinal, desse entendimento que emergem as estratgias postas em marcha pelos produtores da

    48 DAMATTA, Roberto. Op. cit. p. 76-77. Grifos nossos. 49 O tempo da festa insere-se em um movimento sincrnico ao invs de diacrnico que se suspende para alm da temporalidade do dia-a-dia (Cf. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essncia das religies. So Paulo: Martins Fontes, 1996.) 50 Darcilene Costa, artista plstica, curadora das exposies da Diretoria da Festa de Nazar, em entrevista qualitativa em profundidade realizada em So Paulo, em setembro de 2008.

  • 31

    floricultura paraense ao buscarem, atravs do posicionamento de seus produtos na berlinda,

    angariar valores e significados positivos para as suas mercadorias51.

    Baseamo-nos, aqui, na pesquisa de Viviane Borelli para entender a produo simblica

    como um conjunto de procedimentos e processos comunicacionais que so desenvolvidos

    por meio de operaes discursivas como estratgia singular de expresso e de apresentao

    dos sujeitos, seus campos, seus emblemas, suas aes, seus rituais, seus pontos de vista52. A

    contribuio dessa autora, inspirada pelas idias de Claude Lvi-Strauss, nos ainda til ao

    permitir pensar que toda produo simblica visa obter resultados positivos e eficazes em

    relao a seus objetivos e que, portanto, demanda inteligibilidade suficiente para garantir os

    efeitos buscados53.

    Parece-nos, assim, que o fenmeno da produo de sentidos a partir de elementos

    rituais simblicos clama pela eficcia de uma comunicao que seja capaz de lhe dar

    inteligibilidade suficiente para estabelecer contato e dilogo com todo o grupo social.

    A intencionalidade da ao dos produtores em relao ornamentao floral da

    berlinda qualifica-se desta forma como objeto da nossa pesquisa, na medida em que podemos

    investigar, a partir da pesquisa da recepo, a eficcia da sua ao comunicativa na construo

    social dos sentidos pretendidos.

    Prudentes, mas seguros, em relao pertinncia do objeto ao campo da

    Comunicao, no podemos nos furtar, contudo, de aqui recorrer ao pensamento de Jess

    Martn-Barbero para quem: pensar a comunicao na Amrica Latina cada dia mais uma

    tarefa de envergadura antropolgica54.

    Tal perspectiva transdiciplinar, possibilitada pelos Estudos Culturais, especialmente

    nos seus desdobramentos na Amrica Latina contempornea tema que discutiremos em

    seguida tornou-se fundamental para o prosseguimento do estudo do objeto proposto. Da

    mesma forma, a busca do entendimento dos processos comunicacionais a partir da cultura, ou

    como exigido no caso da nossa pesquisa, do popular na cultura, trouxe, para o campo de

    51 No rito encontra-se o instante da transformao do particular no universal, jogo esse francamente produtor de identidade social no qual uma sociedade se revela como coletivamente diferenciada, como um grupo que se pode reconhecer como nico e diferente dos outros (DAMATTA, Roberto. Op. cit. p. 31). Desta situao advm a importncia do ritual no s para transmitir e reproduzir valores, mas como instrumento de parto e acabamento desses valores (DAMATTA, Roberto. Op. cit. p.31). O ritual representa, portanto, uma poderosa associao com o poder. 52 BORELLI, Viviane. Op. cit. p.114. 53 LVI-STRAUSS, Claude. Eficcia simblica. In: LVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1970. Apud BORELLI, Viviane. Op. cit. 54 MARTN-BARBERO, Jess. Ofcio de cartgrafo: travessias latino-americanas da comunicao na cultura. So Paul: Edies Loyola. Traduo de Fidelina Gonzlez, 2004 (Coleo Comunicao Contempornea, 3) p. 209.

  • 32

    nossas preocupaes, demandas relacionadas s sociabilidades dos agentes no interior dos

    campos sociais ocupados pelos diversos grupos de interesse para a investigao.

    Assim, a contextualizao terica necessria aproximao e anlise do objeto

    consolidou-se em uma abordagem conceitual cujos eixos principais foram divididos nos

    seguintes sub-itens: 1.2. Os estudos da recepo luz do pensamento comunicacional latino-

    americano; 1.3. As Frentes Culturais na obra de Jorge Alejandro Gonzlez, e 1.4. Consumo e

    produo de identidade: condio de existncia do sujeito na vida contempornea.

    1.2. Os estudos da recepo luz do pensamento comunicacional latino-americano

    O papel da recepo nos processos comunicacionais passou a ganhar relevncia

    somente a partir da dcada de 1980, quando novos estudos permitiram enxergar um lugar

    renovado para a compreenso da prpria comunicao e da sua interao com os receptores

    na produo de sentidos. Props-se, a partir da, o entendimento dos estudos da recepo no

    como um lado novo da comunicao, mas apenas como uma nova perspectiva para o olhar

    analtico sobre esse objeto.55 Para Ana Carolina Escosteguy e Nilda Jacks, comunicao e

    recepo so termos que se sobrepem, pois o processo de recepo parte intrnseca do

    processo de comunicao, em que o primeiro parte constitutiva e constituinte desse

    ltimo56. Porm, apesar dessa constatao terica no campo da comunicao ter se tornado