A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ATEUS E AGNÓSTICOS …§ão... · associação de direito privado sem...
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A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ATEUS E AGNÓSTICOS (ATEA) E JUDICIALIZAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA
Ricardo Cortez Lopes1 Carla Silva dos Santos2
RESUMO: Esse trabalho se destina a analisar as bases do grande uso da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA) - na mediação da sua relação com a pressuposta opressão de instituições religiosas - de ações judiciais. Analisaremos alguns trechos de processos publicados no site oficial da instituição em que se defende uma suposta desvirtuação de avanços constitucionais (sedimentados a partir de muitas lutas históricas do humanismo) através de exceções ilegais e que estaria constantemente sobre ataque por agentes não-interessados na manutenção da herança da qual se deriva essa laicidade. Assim, na ótica dessa instituição, o uso do Direito através dessa atividade jurídica reafirmaria a autonomia do campo do Direito ao mesmo tempo em que o recolocaria na esfera pública brasileira de modo revigorado. PALAVRAS-CHAVE: judicialização da liberdade religiosa. Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos. Ações Judiciais. Herança Humanista. Laicidade. INTRODUÇÃO
Os antigos gregos inauguraram a democracia direta e totalitária no século V
a.C. E de seu princípio de isonomia se segue naturalmente que a lei passa a ser o
valor moral máximo, de modo que não há a imputabilidade dos sistemas não-
democráticos para nenhum de seus cidadãos. Esse modus operandi foi continuado no
sistema representativo, de modo que um sistema burocrático de justiça é montado em
povos que adotam esse sistema para realizar esses procedimentos que ficam não
apenas padronizáveis, como também registráveis, importante em uma sociedade do
conhecimento onde a informação é vital para levantamentos de dados.
Dessa forma, a possibilidade de se acionar judicialmente alguém ou uma
instituição é uma burocratização das desavenças sociais, de modo a corrigir algum
desequilíbrio que tenha se gerado na interação entre as pessoas. Os processos
judiciais podem ocorrer por diversos motivos. O que propomos aqui é analisar uma
1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, [email protected], Mestrando em
Sociologia. 2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, [email protected], Mestrando em
Sociologia.
2
das razões possíveis para o acesso ao sistema judiciário, que vão além da mera
indenização material ou restituição de um bem em um campo de interesses. O agente
que se move por essa concepção diferenciada é a Associação Brasileira de Ateus e
Agnósticos (ATEA) em suas atividades, que não se encerram em um objetivo
imediato. Vamos argumentar neste artigo que um dos objetivos da ATEA é o de, ao
acionar o judiciário, por meio de ações coletivas, reafirmar a autonomia e a eficiência
do direito (reforçando o princípio da isonomia) e o recolocar na esfera pública diante
de forças que buscam deslegitimá-lo em prol de um holismo hierárquico3 de origem
religiosa que é danoso à isonomia. Vamos tentar captar essa argumentação através
da análise dos processos divulgados no site oficial da instituição.
Cabe esclarecer, resumidamente, que a palavra “ação” na dogmática jurídica,
assume vários sentidos, e a delimitação do seu conceito foi um dos principais objetos
de pesquisa dos processualistas, na fase em que o processo civil ainda estava se
afirmando como ramo autônomo do Direito, surgindo, assim, inúmeras teorias. No
presente texto, nos reportaremos à concepção eclética de Enrico Túllio Liebman, que
é adotada pelo Código Civil Brasileiro, e segundo a qual ação é o direito de provocar a
jurisdição, de instaurar a relação processual, acionando o Estado, por meio do Poder
Judiciário, para que ele preste justiça e julgue o mérito da causa, afirmando a
existência do direito material. Inclusive, no art. 5º, XXXV, da Constituição da República
é assegurado a todos, incondicionalmente, o direito de exigir do Estado a prestação
jurisdicional. No entanto, para que seja julgado o mérito da causa, é necessário o
preenchimento de determinadas condições, denominadas “condições da ação”, quais
sejam: legitimidade de agir em juízo, interesse processual e possibilidade jurídica do
pedido (DIDIER, 2006: p. 165-168).
Importante destacar, também, que a legitimidade de agir em juízo diz respeito
aos sujeitos da relação processual, em que o autor (sujeito que teve um direito
material violado) está legitimado a propor ação em face de determinado réu (sujeito
supostamente responsável pela violação). Esta legitimidade pode ser ordinária,
quando o sujeito é o próprio titular do direito ou o ofensor, e extraordinária, quando há
substituição processual do titular do direito, autorizada por lei, em que o legitimado
extraordinário, no polo ativo o passivo da relação processual, age em nome próprio,
defendendo direito de outrem (DIDIER, 2006: p. 173-182).
E a ATEA, portanto, enquanto associação legalmente constituída há mais de
um ano, tem legitimidade (nos termos do artigo 5º da Lei Federal nº 7.347/1985 e do
artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor) para atuar como parte em ações
3 Segundo a terminologia de Louis Dumont de um igualitarismo que individualiza aos homens,
ao invés de os unir holisticamente ao preço de os hierarquizar. Conf. DUMONT, 1970.
3
coletivas, defendendo o direito dos ateus e agnósticos. Inclusive, pode acionar o
Ministério Público Federal para que o faça.
Impende ressaltar, ainda, que a palavra judicialização, empregada no texto,
significa, segundo Luís Roberto Barroso, o fenômeno pelo qual algumas questões de
larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder
Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o
Poder Executivo, o que consiste na transferência de poder para juízes e tribunais, com
alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da
sociedade. Para o autor, este fenômeno tem causas múltiplas, algumas delas
expressam uma tendência mundial, outras estão diretamente relacionadas ao modelo
institucional brasileiro. (BARROSO, 2008)
O ATEÍSMO NO BRASIL, A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ATEUS E
AGNÓSTICOS E O LAICISMO CONSTITUCIONAL DE UMA PERSPECTIVA
GENEALÓGICA
O campo religioso brasileiro sempre foi diversificado em termos de número de
religiões. Mas é importante ressaltar que o catolicismo sempre foi uma presença
constante nesse cenário. Durante o Império, o catolicismo constituiu-se na religião
oficial do país. A república buscou a laicidade (ou seja, a separação entre o Estado e
uma Religião considerável oficial), e, ao mesmo tempo em que buscou alcançar essa
conformação política, também buscou a higienização da população (dentro da ideia de
garantir a ordem pública). No entanto, a laicidade funcinou no sentido de apenas se
desvincular da Igreja práticas tradicionalmente católicas (como o casamento), de modo
que o catolicismo se insere na esfera pública (tanto no início da República como
atualmente) como vocabulário e como atribuidora de relevância para determinadas
reivindicações. E a higienização (fruto do cientificismo da primeira metade do século
XX) oportunizou uma perseguição a práticas consideradas como feitiçaria (como
práticas de cura, danças, tambores, sacrifícios de animais, reuniões de possessões,
atos que eram considerados o oposto de modelo de religiosidade, pensada sempre em
moldes católico), perseguição oficial que somente foi se encerrar na segunda metade
do século XX, a partir do esforço de uma série de intelectuais em demonstrar que
essas práticas também eram práticas religiosas. Portanto, o pluralismo religioso nasce
desse questionamento sobre a legitimidade de determinadas práticas religiosas (que
as inseriram dentro da liberdade religiosa), e não do confronto das religiões com
alguma religião dominante (conf. MONTERO, 2009). Todavia, dentro desta conjuntura
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pluralista, ainda há membros de determinados credos ou mesmo agnósticos e ateus
que afirmam se sentirem marginalizados dentro desta ordem. Uma possível explicação
para isso pode ser o fato de a religião católica ainda ser considerável como
hegemônica:
Eu diria que, embora tendo perdido hoje sua folgada hegemonia, o fato de ser a única instituição que pode apresentar-se publicamente como “Igreja” indica que essa associação se mantém no imaginário político. Se isso é verdade, diríamos que a esfera pública brasileira se forja historicamente deixando em baixo-relevo a marca invisível da civis cristã. Ao lançar o catolicismo para o espaço social ele se torna a matriz da distinção Estado / mundo civil / mundo privado. No mesmo movimento, forja a linguagem do que pode ser dito e pensado legitimamente nesse espaço, definindo os modos aceitáveis de dizer e aparecer, as formas legítimas de reivindicar direitos (MONTERO, 2009: p. 13)
O censo de 2000 dá conta de que o ateísmo vem crescendo no Brasil,
considerando-o dentro do grupo “sem religião”, que compõe 1% deste (NOVAES,
2004: p. 322), e contabilizava 10% do quadro de pertença religiosa no Brasil na época.
De acordo com um artigo de Ari Pedro Oro (2012), ser sem-religião em Porto Alegre é
mais difícil do que pertencer a alguma religião marginalizada, como às religiões Afro,
por exemplo. E essa rejeição social gerou algumas iniciativas.
[...] vale destacar que de forma semelhante aos afro-religiosos que se mobilizam politicamente, realizando marchas e campanhas em favor da liberdade religiosa, “os “sem-religião” também fundaram entidades para defender o estado laico e o direito de não serem religiosos. Destaca-se a iniciativa “Brasil para todos”, fundada em 17/01/2007 pelo engenheiro civil Daniel Sottomaior, para defender o “Estado Laico e uma arena pública secular distanciada de valores, instituições e símbolos religiosos” e a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (ATEA), fundada em agosto de 2008, também por Sottomaior, com o objetivo de promover o ateísmo, o agnosticismo e a laicidade de Estado (ORO, 2012: p. 192)
Atualmente, o movimento social ateu é mais ativo em dois territórios: na
internet (por conta da possibilidade da circulação da informação ser mais facilitada, e,
segundo membros desse movimento, pois a informação pode garantir um maior
esclarecimento das pessoas) e na dimensão jurídico institucional da sociedade. Nos
focaremos nessa dimensão da internet, que também ajuda a ter acesso às incursões
jurídicas do grupo ateu, relatadas no site. O fato de a internet ser um meio de
aproximação micro-interacionista não-físico pode contribuir a se conceber o ateísmo
como uma concepção individualizante. Como afirma Daniel Sottomayor em uma
entrevista:
Congregar os ateus em uma organização atuante, no entanto, não é fácil. De acordo com ele, o maior desafio é a "indiferença dos ateus".
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"Grande parte dos ateus tem uma independência intelectual tão forte que acaba sendo contraproducente a eles mesmos. Eu entendo que lutar contra o preconceito e a favor da laicidade deveriam ser causas caras não só aos ateus, mas a toda a sociedade", diz. (SITE ATEA, S/P)
Segundo o site da própria Instituição, a ATEA “Foi criada em 31 de agosto de
2008 por Daniel Sottomaior, Alfredo Spínola e Mauricio Palazzuoli”. Ela é uma
associação de direito privado sem fins lucrativos, que busca possibilitar uma maior
coesão [expressão nossa] entre os ateus em território nacional, visto que estes sofrem
constante preconceito por conta de sua condição descrente em um país
tradicionalmente religioso (LOPES, 2013). Desse modo, esta organização justifica sua
existência na busca por ajudar a mitigar a rejeição social aos ateus. Em entrevista à
BBC Brasil, Sottomaior diz que: “o objetivo da Atea é criar indignação em relação à
discriminação de ateus e "fazer com que o Brasil, 120 anos depois da proclamação da
República, se torne (de fato) um Estado laico".”4
A ATEA possui um estatuto oficial registrado junto à Receita Federal e conta
com um número no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). A existência do
estatuto, a nosso ver, demonstra-nos também duas posições da organização atéia
com relação à mensagem que deseja passar: a) o fato de este estatuto dar origem a
uma instituição que pode ser uma espécie de “laboratório” (ou um microcosmos) para
uma democracia laica, visto que aceita pessoas de todas as crenças (desde que
protejam o laicismo) e que se utilizam de uma série de dispositivos caros a regimes
constitucionalmente democráticos:
Poderão filiar-se somente pessoas maiores de 18 (dezoito) anos, ou maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) legalmente autorizadas, independente de classe social, nacionalidade, sexo, raça, cor ou crença religiosa [grifos nossos] e, para seu ingresso, o interessado deverá manifestar sua intenção através de qualquer meio documentado, dirigida à Diretoria Executiva, que a submeterá à análise, e, uma vez aprovada, terá seu nome, imediatamente, lançado no livro de associados, com indicação de seu número de matrícula e categoria à qual pertence, devendo o interessado [...] A perda da qualidade de associado será determinada pela Diretoria Executiva, sendo admissível somente havendo justa causa, assim reconhecida em procedimento disciplinar, em que fique assegurado o direito da ampla defesa [...] (ESTATUTO DA ATEA, (SITE ATEA, S/P)
E: b) o fato de querer se integrar como uma ideia já constitucionalmente viável
(portanto legal), daí a sua redação em um formato semelhante à Constituição da
República de 1988.
4 http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/02/130222_ateus_mobilizacao_cc.shtml
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A ATEA busca promover a proteção ao laicismo já corretamente
institucionalizado a partir de uma intensa luta histórica de séculos em que as
instituições políticas lograram se separar das instituições religiosas. É possível
observar essa busca de proteção ou de “manutenção” em seus princípios:
Parágrafo Único - A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, adota como princípios: a) A separação entre o Estado Brasileiro e instituições religiosas, seja em esfera Federal, Estadual ou Municipal, no exercício da administração direta ou indireta; b) O respeito à DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948; c) O repúdio a qualquer tipo de preconceito e discriminação de qualquer natureza, conforme definida pela legislação brasileira em vigor; d) A legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade; e e) O respeito e defesa da Constituição da República Federativa do Brasil, em todos os seus artigos, unidade e soberania do Brasil. (ESTATUTO DA ATEA, S/P)
Os trechos acima dão conta de que a presença e a ação de entidades
religiosas dentro da arena pública podem implicar o desrespeito aos direitos humanos
e discriminação, em prejuízo aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade
e publicidade, assim como a possibilidade de prejudicar a unidade e a soberania do
Brasil. São os princípios posteriores os que concedem o recorte que gostaríamos de
realizar:
f) Promover a laicidade efetiva do Estado, combatendo em todas as esferas legais qualquer tipo de associação que seja contrária ao descrito na Constituição da República Federativa do Brasil; (ESTATUTO DA ATEA, S/P)
Ou seja, a Constituição da República é uma espécie de sagrado para a ATEA,
a qual será defendida dentro das esferas legais. Defenderemos que esse combate não
é meramente defensivo, mas também demonstrativo. Em seguida:
h) Defender os direitos legais de ateus e agnósticos podendo participar e contribuir com as instituições democráticas legalmente descritas e fundamentadas na Constituição da República Federativa do Brasil, fazendo sugestões, participando de discussões sociais e representando ações públicas ou privadas sempre com base nos objetivos descritos e fundamentados neste estatuto. (ESTATUTO DA ATEA, S/P)
Esse princípio já descreve a defesa dos direitos individuais e das instituições
democráticas, todos fundados na Constituição da República. Mas a instituição também
se reserva ao direito de fazer sugestões, realizar participações em discussões sociais
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e ingressar com ações judiciais a fim de proteger direitos individuais e coletivos
relativos à liberdade religiosa e de crença, garantidos constitucionalmente.
A Constituição da República de 1988 não é tão citada em seus artigos na
mesma medida em que é referida como autônoma e respeitável, de modo que
podemos concluir que ela é como um princípio não discutido pela auto-evidência de
seus postulados. O mesmo ocorre com a questão da laicidade: sua auto-evidência
impede a sua escrutinação ou a sua conceituação. Mas há um motivo para isso.
Vamos explanar brevemente sobre o princípio de laicidade para poder
compreender melhor o que a ATEA busca defender. O princípio de laicidade já integra
a norma constitucional vigente desde a primeira Constituição da República de um país,
e descreve a separação do Estado de qualquer instituição religiosa. No caso brasileiro,
essa separação é mais enfatizada, principalmente, no tocante à Igreja Católica, que foi
vinculada ao Estado desde a época do descobrimento (MONTERO, 2009). Segundo
Cesar Ranquetat Junior, a instauração da República Brasileira em 1889 pôs fim à
união Igreja-Estado, a partir do “Decreto 119-A, de sete de janeiro de 1890, de autoria
de Rui Barbosa [...]” (RANQUETAT, 2012: p. 51).
A defesa da laicidade é importante, pois ela já foi aprovada racional e
cientificamente: é a única maneira de manter-se a decantação do indivíduo dentro da
imensidão de variedadares religiosas, sem tornar seus interesses confundidos com um
coletivo multifacetado (por conta da variedade de religiões) e caótico (por conta de
conflitos interiores à religião). Mas o Estado laico é uma herança em constante
ameaça, daí a necessidade da militância.
A religião em si não é um problema, pois a proibição de qualquer exercício de
religiosidade representaria um atentado contra a liberdade de crença, ferindo-se,
assim, um direito humano fundamental. O ataque à laicidade gera dois problemas: (1)
a mistura da religião com a administração estatal e (2) discriminação aos ateus, que,
ao não poderem usufruir do laicismo estatal, não podem se defender legalmente com
isonomia.
Os ateistas modernos não possuem a pressuposição de que o mundo se
encaminha para um processo de racionalização crescente, e que bastaria se observar
empiricamente para constatar que isso ocorrerá inexoravelmente. Por essa razão, não
postulam uma esfera pública, na qual possam realizar a sua atividade por um fim
maior, o da abolição da religião. De modo que a constituição que redigiram busca
justamente complementar e defender a Constituição Federal de 1988, e não negá-la.
O trabalho é apenas o do esclarecimento sobre a necessidade de se cultivar o Estado
laico, não havendo interesse em afirmar que a religião é fruto de algum atraso mental
(embora alguns segmentos mais radicais assim o pensem, e expressem essas
8
concepções a partir do anonimato da internet), mesmo que o rompimento com a
religião seja definitivo (não há a intenção de se continuar a religião ou substitui-la,
como ocorre com os positivistas, como veremos mais adiante). Os ateístas acreditam
que é possível manter-se a convivência pacífica das religiões com o ateísmo, desde
que se respeite o individualismo e a liberdade de crença (um direito humano
assegurado constitucionalmente). Defendem que a atividade religiosa na esfera
pública é danosa, por representar um retrocesso, na medida em que a atividade
política não estaria embasada em bases racionais, além de vincular-se à determinada
religião, em detrimento de outras.
Em suma, é possível se afirmar que a relação da ATEA com a laicidade é a
concepção de que este é o único caminho possível de se levar à esfera política o
interesse humanista, em que a preocupação seja o ser humano e não o culto a uma
divindade específica. É aquele um instrumento para depurar os interesses religiosos
(que se referem à esfera privada, o que seria por si só antidemocrático) e tornar a
atividade política mais direcionada para um fim em si (em termos kantianos): o ser
humano.
A laicidade e a sua relação com o ateísmo à qual nos referimos é a
continuidade de um processo diacrônico que remonta há muitos anos (LOPES, 2013:
14), e que pode ser interessante de ser apreciada antes de passarmos propriamente
para o caso da ATEA. Para abordar essa diversidade vamos nos utilizar do recurso à
Genealogia. Mas o que é uma genealogia?
A Genealogia é um recurso metodológico pensado por Foucault que pretende
analisar um problema, procurar por indícios, por discontinuidades, e não por causas
que estabeleçam uma continuidade temporal (FONSECA, 2012: p. 13), papel
reservado à investigação histórica (que estuda os períodos e se caracteriza por um
tratamento exaustivo do material). A Genealogia, a rigor, segue quatro regras: 1)
escolha do material em função dos dados do problema, 2) focalização da análise
sobre os elementos suscetíveis de resolver esse problema, 3) estabelecimento das
relações que permitem essa solução e 4) indiferença com a obrigãção da exaustão do
material (adaptado de NETO, 2008: p. 537). É de se notar que, devido a essa
diferença metodológica, há confrontos entre essas duas perspectivas, como a crítica
por Jacques Leonard rendida à “Vigiar e Punir” (NETO, 2008: p. 537).
Munidos desse “estoque de conhecimento” (adaptando essa expressão de
Herbert Mead), partimos para a montagem da genealogia, pensada a partir dos
apontamentos realizados por Charles Taylor em “Uma era secular” no tocante à
transformações da fé.
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Em um primeiro momento, postulamos que o que se desenvolveu foi uma
Etapa Tateante (1497 – 1844 5): nesta etapa, os ateus manifestavam-se
esparsamente, individualmente e sem um fim maior definido, não deixando tantos
vestígios materiais de associações. Também o faziam de maneira não-explícita,
através de personagens de romances literários (usando figuras de linguagem para se
comunicar com pessoas com o mesmo capital simbólico) ou sociedades secretas. O
nosso parâmetro para tratar o pensamento ateu nesta época, parte de uma premissa
apresentada por Erich Auerbach, quando este fala das alternativas religiosas na Itália
Renascentista: esta região não possuia as religiões reformadas que pudessem
absorver pensadores não católicos (AUERBACH, 1972: p. 159), daí a irupção do
laicismo neste local. Pensamos que é impossível determinar o ateísmo dos autores da
literatura brasileira, mas pensamos que o fato de autores descreverem personagens
ateus ou portadores de outras religiosidades como não execráveis ao menos abriria
espaço para a viabilidade da identidade ateia em território brasileiro.
A genealogia continua em um segundo momento, com o que denominamos
Etapa Revolucionária (1844 – 1930 ): nesta etapa, erigem-se as metanarrativas (na
expressão de Lyotard) que buscam erradicar o conceito de Deus, seja por sua
eliminação ou por sua substituição. As metanarrativas que mais buscam esse intento
são as metanarrativas científicas (HOLLINGER, 2003: p. 63) e também as
materialistas e pragmáticas, como o positivismo, o anarquismo e o comunismo. Nessa
etapa, florecem os sistemas simbólicos que são chamados por Albert Piette de
“Religiosidades Seculares” (conf. PIETTE, 1993). Em uma pesquisa anterior, tivemos
a oportunidade de nos debruçar sobre o ateísmo dos positivistas como um estudo de
caso referente a essa etapa, pois os positivistas propõem-se a subsituir a religião
católica por uma religião da humanidade, focada no homem, e não em uma entidade
abstrata e transcedente como Deus. O ateísmo em si ainda não é o centro exclusivo
das preocupações, mas vem a reboque no carro da república ditatorial, da qual
teceremos mais detalhes neste outro estudo quando da sua publicaçaõ. Nesta etapa,
o objetivo é homogeneizante (tornar a todos iguais), mas sem o recurso à violência
próprio da outra etapa. Aqui seria a introdução do Humanismo Exclusivo no Brasil,
outra expressão de Charles Taylor (conf. Taylor, 2011).
Em um terceiro momento, e é o momento em que nos focaremos, inicia-se a
Etapa Reivindicatória (19306 – dias atuais), quando da penetração da modernidade
5 Ano da defesa da primeira tese científica de um positivista: “Plano e Método de um Curso de
Fisiologia”, de Justiniano da Silva Gomes (SOARES, 1998 : 87). 6 Começo do governo Getúlio Vargas, que incentivou um forte nacionalismo centralizador,
acabando com o projeto federalista a que os positivistas ainda se apegavam (SOARES, 1998:
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nas elites brasileira. Certa e específica diversidade cultural, no plano legal, acaba
surgindo, a partir daí, algum espaço para certas práticas que puderam ser levadas a
cabo sem a enérgica punição normativa estatal. Assim, após a consolidação do estado
laico (apesar de este ainda ser denunciado como endêmicamente teísta pelos ateístas
até os dias de hoje), o ateísmo se reivindica como variedade cultural que merece ser
respeitada dentro de um contexto de estado de direito, buscando atuar dentro do
legalismo. Assim, surgem uma série de organizações que buscam reivindicar o fim do
preconceito contra pessoas atéias. A esse contexto pertencem a ATEA, a Sociedade
Brasileira de Céticos e Racionalistas, Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos,
etc. Nesta etapa, o objetivo é pluralizante, igualmente sem utilizar o recurso à
violência.
Essa genealogia foi construída em outras pesquisas e foi resultante da coleta e
posterior da análise das representações sociais de “Religião”, “Deus” e “Laicidade”
(LOPES, 2013, LOPES, WEISS, 2013). No entanto, pensamos que seja interessante
primeiramente explanar um pouco sobre a Análise de Conteúdo. Para tornar mais
clara a construção dessa genealogia.
O PROCESSO COMO CORREÇÃO DE UMA SITUAÇÃO KAFKANIANA: ANÁLISE DIRETA E INDIRETA DE AÇÕES JUDICIAIS
A laicidade ser atacada é uma situação que pode fazer ruir o “edifício” da
democracia secular (uma situação tão impensável que poderia ser considerada
kafkaniana), que valoriza ao indivíduo e não à sua crença, que tende a querer se
universalizar e se sobrepor à Constituição. Portanto, é essencial que ela seja
defendida, e a maneira de realizar essa defesa é a partir de um “argumento circular”:
acionar a justiça para reafirmar a sua autoridade.
Primeiramente, vamos analisar as citações de processos realizados na esfera
civil nos quais a ATEA agiu efetivamente. Em seguida, vamos abordar as ações
judiciais influenciadas através da ação da ATEA. É importante ressaltar que nem todos
os processos estão transcritos diretamente para o site, mas sim citados indiretamente.
Acreditamos que mesmo assim eles mereçam ser abordados, uma vez que a seleção
de partes dos processos indica a mensagem que se deseja passar, pois entram em
consonância com a percepção da realidade dos integrantes.
117), e que buscou modernizar ao Brasil, dando início a uma maior industrialização e maior concentração de população nas cidades, e não no campo (KONRAD, 2007: 97).
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CITAÇÕES DE PROCESSOS EM QUE ATEA ESTÁ ENVOLVIDO DIRETAMENTE
No link do site da ATEA em que estão localizados os contatos do usuário, é
possível observar que a ATEA tem sua administração dividida nos seguintes setores:
Figura 1: Printscreen do site da ATEA da parte da página que se refere ao contato
A organização lembra muito um aparato de um estado moderno, de modo a
possuir dois dos três poderes clássicos de Montesquieu: o executivo (a presidência e a
diretoria executiva) e o legislativo (as Assembléias Gerais, que se reunem anualmente
na segunda quinzena de janeiro). O terceiro poder, o judiciário, é enlaçado com o da
sociedade civil, o que ajuda a reforçar a ideia de que é a Constituição o ideal máximo.
E é na atividade desse setor jurídico que gostaríamos de nos focar. Não é uma
acessoria jurídica, mas sim um setor jurídico especializado em lidar com questões
jurídicas. Esse setor é o que recebe as denúncias e que as encaminham para a sua
postagem no site.
Vamos analisar uma mensagem na qual o processo educativo da ATEA parece
ter funcionado, recebida no dia 10-04-2009 e enviada por Daniel Garcia Bohrer. A
exibição dessa mensagem reforça essa necessidade de se acessar o aparelho judicial.
Talvez tenha visto meu caso pela internet ou pelos meios de comunicação, no dia 10 de Março de 2009 fui discriminado em minha escola - só para citar é uma escola estadual – em que há um momento de oração todo o dia feito por um sistema de sons, no momento em que começa a oração é exigido que se retire o boné, abaixe a cabeça e permaneça em silencio. (SITE ATEA, S/P)
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A internet, então, é o meio de propagação mais rápida da mensagem ateia.
Isso porque, como é possível verificar, no próximo e em outros trechos, os meios de
comunicação estão tomados por desinteresse na causa ateia. Assim, a internet se
mostra como um meio onde a mensagem do preconceito sofrido pode ser passada
sem ser selecionada de maneira parcial.
Nunca desrespeitei tais ordens apesar de achar um absurdo tudo aquilo.Mas no dia 10 de março de 2009 fui retirado da sala de aula porque não quis retirar o boné no momento da oração, com todos meus colegas rindo de mim, resolvi tomar uma atitude de uma vez por todas, filmei a diretora conversando com minha mãe e consegui até trazer a imprensa para fazer uma matéria. (SITE ATEA, S/P)
O ateu buscou manter a convivência social, todavia teve a sua individualidade
atingida por constrangimento de uma professora e de seus colegas. A imprensa foi
chamada:
Mas apesar de todo o movimento o colégio não se sentiu intimidado.Até que a ATEA entrou na justiça e enviou um decreto declarando que deveriam encerrar as orações em um prazo de 48 horas.Então a escola e eu entramos em um acordo que no momento da oração, eu assim como um eventual aluno, poderíamos nos comportar de maneira normal sem seguir as ditas 'regras' em troca de [não] recorrer a justiça. Só tenho a agradecer a ATEA, que me acolheu neste momento, e lhes pergunto: Teria eu, sozinho, voz suficiente para sufocar o clero da minha escola? (SITE ATEA, S/P)
A instituição - pois não foi apenas a professora - não se intimidou, até que a
ATEA interviu judicialmente. A escola, nesse momento, escutou ao aluno e negociou a
sua não participação obrigatória. Enfim, o aluno se pergunta se sua iniciativa individual
seria capaz de reverter a situação. Reforça-se, assim, a ideia de que sozinho não é
possível se defender, invocando a laicidade: é preciso o apoio tanto social quanto
jurídico (pois não houve, literalmente, nenhuma outra alternativa).
O site disponibiliza uma lista com representações jurídicas. Os informes são
acompanhados de links que conduzem a mais informações sobre os fatos, o que
contribui para a ideia de que a informação é uma palavra chave dentro da ATEA, que
se opõe a um pressuposto obscurantismo religioso. Vamos citar as representações
que possuem uma ligação a um site externo com trechos específicos:
27/03/13 - Representação feita contra o custeio da "marcha para jesus
2013" pelo Estado:
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(https://www.facebook.com/photo.php?fbid=563712440326009&set=a.5637124
00326013.1073741826.172083906155533&type=1)
29/03/13 – Sentença - Datena Condenado:
(https://www.facebook.com/photo.php?fbid=564697440227509&set=a.1916475875324
98.43552.172083906155533&type=1)
25/02/13 - ATEA contesta bancada teocrática no Congresso:
(http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/02/130222_ateus_mobilizacao_
cc.shtml) e http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI175482,31047-
Datena++Band+e+reporter+indenizarao+por+palavras+ofensivas+contra)
08/08/13 - ATEA entra com representação contra afixação de símbolos
religiosos em escola em Formiga-MG:
(https://www.facebook.com/photo.php?fbid=629781490385770&set=a.1916475
87532498.43552.172083906155533&type=1 e
http://www.paulopes.com.br/2013/08/atea-pede-retirada-de-santos-de-escola.html) e
http://www.atea.org.br/index.php/dia-a-dia/923-dia-a-dia/197-datena-falta-de-deus-no-
coracao)
Vamos analisar brevemente alguns trechos disponibilizados pelos referidos
links.
O primeiro processo que analisaremos se trata de um caso paradigmático, que
é o caso de José Luiz Datena, julgado pelo juiz Régis Rodrigues Bonvicino, 1ª vara
Cível do foro de Pinheiros (São Paulo).
O site descreve os autos da acusação:
Os autores alegam nos autos que Datena teria afirmado, no programa Brasil Urgente e com a conivência dos corréus, que "quem não acredita em deus geralmente não tem limites". Segundo eles, para o apresentador, "os ateus são criminosos e responsáveis por todos os males do Brasil contemporâneo". Conforme afirmaram os autores, Datena chegou a colocar uma enquete no ar, durante boa parte da programação, perguntando se os telespectadores acreditariam ou não em Deus. Diante dos números da enquete, o apresentador teria dito que, entre os que responderam não acreditar em Deus, havia "muito bandido votando".
7
A explicação supra é complementada com o protocolo com o processo na
íntegra para poder ser acessado. O trecho mostra como os ateus no caso confiaram
na justiça ao relatar tudo o que se sucedeu, mostrando como Datena teria manipulado
7 http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI175482,31047-
Datena++Band+e+reporter+indenizarao+por+palavras+ofensivas+contra
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a opnião pública. As evidências foram apresentadas e deixou-se a cargo do juiz tomar
a decisão. E essa decisão foi favorável aos ateus.
Citando Shakespeare, Bonvicino fixou o quantum indenizatório em R$ 135.600, sendo que cada corréu pagará a quantia de R$ 45.200 a cada autor. O magistrado concedeu ainda 15 minutos de direito de resposta, sob pena de multa diária de R$ 50 mil por descumprimento, "haja vista a resistência da Rede Bandeirantes em cumprir decisões judiciais no que se refere ao direito de resposta e sua insistência em não fiscalizar José Luis Datena". A resposta ocorrerá em apenas um programa, no mês de abril de 2013, com dia à escolha dos autores.
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O juiz não apenas estabeleceu a pena, mas também reforçou que o canal
Bandeirantes não cumpriu decisões judiciais, pois não fiscalizou efetivamente Datena.
Portanto, é a reafirmação da autoridade do Poder Judiciária em determinar o
cumprimento da Constituição, por sobre qualquer outra força.
A ATEA publicou uma parte do processo em sua página da rede social
Facebook:
O estado, por meio de uma Concessão do Estado, como demonstrou a prova sob o princípio do contraditório, injuriou e difamou os ateus, subtraindo-lhes o direito fundamental da descrença, que equivale o da crença. Tal infração merece ser reparada mediante dinheiro e exercício do direito de resposta no âmbito da emissora concedida. (SITE ATEA, S/P)
A título de citação, vamos elencar mais alguns processos e marcos
institucionais cujos trechos não foram disponibilizados, mas foram citados no item
Realizações de 2012:
Representações ao Ministério Público em 2012 e 2013
1) Biguaçu – SC - Lei que autoriza construção de monumento à Bíblia.
2) Araguaína – TO - Projeto de Lei obrigando a leitura de versículos bíblicos na rede municipal.
3) Juiz de Fora – MG - Inclusão de mensagens Bíblicas nos contracheques dos servidores da Câmara Municipal.
4) Campina Grande – PB - Monumento à Bíblia construído pela Prefeitura.
5) Ilheus – BA - Lei do Pai Nosso.
6) Betim – MG - Parque Batismal
7) Feira de Santana – BA – Lei que obriga o fechamento de bares na sexta-feira santa.
8) São Luis – MA - Oração e culto em escola pública
9) Rondonópolis – MT - Monumento à Bíblia.
10) Cuiabá – MT - Uniforme de escola pública com frase religiosa
11) Iguatu – CE - Prefeitura quer gastar 12 mi em estátua religiosa.
8 http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI175482,31047-
Datena++Band+e+reporter+indenizarao+por+palavras+ofensivas+contra
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12) Tangará da Serra – MT - projeto de lei criando o dia da bíblia.
13) Bauru – SP - Evento Dance para Jesus no Teatro Municipal
14) Estado da Paraíba - Corpo de Bombeiros utilizou auditório para eventos religiosos
15) Estado de Goiás - Repasse do Governo Estadual ao instituto Videira.
16) Sorriso – MT - Aprovação pela câmara de vereadores de repasses a eventos religiosos.
17) 25/03/13 Associado da ATEA entra com representações ao MP, Sec. de Educação
18) 13/03/13 - Denúncia ao Ministério da Educação (Protocolo de n° 11649761)
19) 07/04/13 - Datena, Band e repórter indenizarão por palavras ofensivas contra ateu
20) 16/06/11 – Juiz concede liminar histórica à ATEA
Portanto, é possível perceber que as ações da ATEA não são ajuizadas
apenas pela instituição, mas também por seus integrantes, que são incentivados pela
instituição a ingressar individualmente com ações judiciais. Percebe-se, também, que
a ATEA insere nessas descrições julgamentos de valor relacionados ao contexto atual:
seria um contexto em que a religiosidade estaria tão naturalizada que apenas ações
judiciais poderiam apontar que existe uma constiuição a ser respeitada. É importante
também que os ateus dêem-se conta disso e se unam para tentar mudar essa
realidade através do auto-reconhecimento interior e o reconhecimento exterior por
meio da coerção judicial.
PROCESSOS INFLUENCIADOS PELA AÇÃO DA ATEA
A ATEA pode deixar de existir como instituição física e burocrática. No artigo
27 está escrito:
A Associação poderá ser dissolvida, a qualquer tempo, uma vez constatada a impossibilidade de sua sobrevivência, face à impossibilidade da manutenção de seus objetivos sociais, ou desvirtuamento de suas finalidades estatutárias ou, ainda, por carência de recursos financeiros e humanos, mediante deliberação de Assembléia Geral Extraordinária, especialmente convocada para este fim, composta de associados contribuintes em dia com suas obrigações sociais, não podendo ela deliberar sem voto concorde de 2/3 (dois terços) dos presentes, sendo em primeira chamada, com a totalidade dos associados e em segunda chamada, uma hora após a primeira, com a presença de, no mínimo, 1/3 (um terço) dos associados. Parágrafo único - Em caso de dissolução social da Associação, liquidado o passivo, os bens remanescentes, serão destinados para outra entidade assistencial congênere, com personalidade jurídica comprovada, sede e atividade preponderante nesta capital e devidamente registrada nos órgãos públicos competentes. (ESTATUTO DA ATEA, S/P)
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Ou seja: se a laicidade se desfizer totalmente ou se não houver mais recursos
humanos, inicia-se uma Assembléia Geral Extraordinária que deve obter 2/3 de
votantes favoráveis a extinção da instituição.
Portanto, fora a questão da operacionalidade de membros, há o perigo objetivo
de a laicidade ser instinta. A instituição efetivamente entra com ações na esfera
pública, mas também incentiva uma “cultura judicialista” para ateus ou defensores da
laicidade em geral. Esta seção busca justamente analisar os processos e levantar os
locais onde foram empregadas essas ações.
Um desses casos onde a luta pela laicidade – influenciada pela ATEA – se fez
presente em uma notícia posta no site:
No último dia 3, o recém-empossado presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Luiz Zveiter, mandou retirar os crucifixos espalhados pela corte e desativou a capela. Como é de costume, a mídia ignorou solenemente o assunto. Assuntos que possam despertar a ira ou a felicidade daqueles que lutam pela laicidade efetiva do Estado nunca são notícia, como ficou bem claro na (ausência de) cobertura do recente acordo assinado entre Brasil e Vaticano, que cobriu de privilégios a igreja católica apostólica romana. Mas voltemos ao assunto. (SITE ATEA, S/P)
O relato sobre o caso de Luiz Zveiter é sobre a retirada de crucifixo. Há uma
pequena digressão que se mostra muito interessante: a mídia não possui o interesse
em evidenciar casos de rompimento da laicidade ou do reforço dos privilégios
religiosos no poder político. Essa concepção se justifica no subtítulo de uma
reportagem escrita sobre organizações atéias brasileiras:
Para fazer frente ao que chamam de influência de grupos religiosos na política, organizações de ateus brasileiros aumentam cada vez mais seu alcance usando a mobilização pelas redes sociais e eventos temáticos em todo o país
9.
De modo que a página cumpre com o dever jornalístico que deveria ser feito
por uma das instituições democráticas, a imprensa livre:
O fato é inédito, e gostaríamos de pensar que representa mais um indício da mudança de ares com relação à escandalosamente inconstitucional presença de símbolos religiosos nas repartições públicas do país. O indício anterior foi a iniciativa intitulada Brasil para Todos, que busca a remoção desses símbolos através do judiciário, até agora sem sucesso. (SITE ATEA, S/P)
O quadro descrito é desalentador. Há o ferimento da constituição, algo que não
é levado em conta nem mesmo no Tribunal de Justiça, o local onde a constituição
9 http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/02/130222_ateus_mobilizacao_cc.shtml
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deveria ser mais levada em conta. Foi um juiz recém chegado que tentou mudar o
quadro, e é necessário um programa externo à constituição para esta ser respeitada.
O juiz, no entanto, pretende criar um espaço que atenda a todas as religiões, o que deixa em dúvida se sua intenção é realmente de cumprir à risca a separação entre igreja e Estado. Talvez ele ache mesmo que o Estado deva apoiar e financiar a religião em detrimento do ateísmo, desde que não favoreça umas em detrimento de outras: é a posição "tudo menos ateísmo". Mas existe uma interpretação que é mais favorável ao magistrado: talvez a criação do espaço ecumênico seja apenas uma maneira de suavizar o impacto causado pela remoção dos crucifixos. (SITE ATEA, S/P)
Mas para a ATEA não é suficiente a posição do juiz de privilegiar a todas as
religiões, pois a laicidade é a separação total do estado de qualquer religião. Nesse
sentido, abre-se uma desconfiança: seria apenas um paliativo pensado para não
deixar o ateísmo acessar o Tribunal ou seria só uma maneira de não se criar tensões
com grupos que buscam a laicidade estatal? Ou seja, o quadro ainda não deixa de ser
desalentador, mas ainda sim é um avanço, mesmo que os fins talvez não sejam os
mesmos:
De um jeito ou de outro, a posição do juiz é notável no mar de religiosidade e religiocentrismo alavancados pelo Estado que vivemos no Brasil desde sempre, a despeito de qualquer legislação em contrário. Por isso sugerimos a todos que mandem suas congratulações ao juiz. Atea já está planejando um evento público para prestar a justa homenagem ao juiz. Procuramos aprovação de uma importante autoridade da igreja metodista, assim como de outros líderes evangélicos, além da Associação Brasileira de Liberdade Religiosa e Cidadania, mas todos preferiram silenciar ou declinar. Esperamos dar notícias positivas em breve. (SITE ATEA, S/P)
De qualquer maneira, para se diferenciar de instituições religiosas que
preferem se calar ante ao fato, a ATEA preferiu enviar congratulações ao juiz, aliando-
se a outros credos não católicos, que não conferiram apoio. Isto reforça a existência
da leitura “mar de religiosidade e religiocentrismo alavancados pelo Estado que
vivemos no Brasil desde sempre, a despeito de qualquer legislação em contrário”.
Essa questão do silêncio das instituições religiosas está em um link postado em uma
entrevista a Daniel Sottomoayor:
"Desde o começo venho tentando contactar minorias religiosas. Os maiores interessados nisso são os grupos religiosos afro-brasileiros, que também são afetados como nós pela discriminação e pela violação da laicidade. Que também é o caso dos homossexuais. Um dos grandes parceiros nossos sempre foi a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)", diz.
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http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/02/130222_ateus_mobilizacao_cc.shtml
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Outras rápidas notícias dão conta desse panorama, mas sem se utilizar de
trechos:
O Ministério Público Federal anunciou que recorreu da decisão judicial de
primeira instância, a qual negou a retirada de todos os símbolos religiosos de
repartições públicas federais no Estado de São Paulo.
(http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,procurador-insiste-na-retirada-de-
simbolos-religiosos-de-reparticoes-publicas-,991391,0.htm”)
1/01 Protocolada representação no MP-MG: comarca de Formiga-MG, por
ostentação de símbolos religiosos em Escola pública, dita representação ainda
encontra-se em análise. Vale resaltar que a representação ganhou destaque meses
depois, por sua repercução e divulgação em um jornal diário de importancia regional,
onde fez referência à mesma destacando-a na primeira página.
31/01 - Noticias na imprensa. Bandeirantes condenada por intolerância
religiosa
Jefferson Dias recorre para a retirada de símbolos religiosos de repartições
públicas”
“02/04 - PEC que ameaça estado laico avança no Congresso brasileiro. Daniel
fala sobre a PEC 99/11, que possibilita que entidades religiosas questionem decisões
judiciais e eleva os valores da fé a argumentos jurídicos.
(http://www.sul21.com.br/jornal/destaques/pec-que-ameaca-estado-laico-avanca-no-
congresso-brasileiro/)
04/04 - Ato IV Direitos Humanos JÁ!
Esses processos mostram como a laicidade tem se mostrado uma pauta muito
recorrente nos dias atuais. A ATEA tenta fornecer suporte para essas iniciativas, seja
juridicamente, seja através da divulgação, que fornece um grau de reconhecimento
social, a qual deveria ser provido pela imprensa livre – que está presa a interesses
religiosos e invisibiliza manifestações desse tipo.
A JUDICIALIZAÇÃO DA LAICIDADE
Esse volumoso número de processos com os quais a ATEA está envolvida
direta ou indiretamente indica que há, por parte da instituição, uma relação
diferenciada com a luta pela igualdade religiosa. Há sem dúvida um elemento
contextual, mas também há um elemento valorativo que, a nosso ver, explica muito
mais a judicialização.
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Mas também existe um elemento relacionado à análise que propomos aqui.
Que é o da herança humanista que se traduz na laicidade estatal. Laicidade que foi
conquistada historicamente através de banhos de sangue (como os da Revolução
Francesa). Assim, a lei deve ser a instância máxima de legitimidade de poder político.
Daí a necessidade da judicialização: se trata de recordar a função da justiça e como
maneira de reafirmar essa autoridade. Os processos mostram como os atores
consideram necessário uma cultura jurídica que faça o estado-em-si mais presente.
CONCLUSÕES
Esse trabalho buscou desvelar o motivo do frequente acionamento por parte da
ATEA da Justiça comum em prol da liberdade religiosa, um processo que
denominamos de judicialização da laicidade, que seria um princípio constitucional por
si e que, por definição, não precisaria, necessariamente, transitar no poder judiciário.
Utilizamos, para chegar a essa formulação conceitual, a análise de conteúdo de ações
imprecadas pela ATEA e ações impregadas inspiradas na “cultura judicialista”
resultante das ações educativas, também previstas no estatuto da instituição.
Concluímos esse breve artigo afirmando que essa versão sobre a centralidade
da lei é muito otimista, e diametralmente oposta à noção weberiana de que o avanço
da burocracia produz um desencantamento do mundo, e que isso acaba com a
espôntaneidade do indivíduo. Essa confiança irrestrita na lei é interessante, pois
retrata um universalismo dos Direitos Humanos, o que, efetivamente, comprova o
sucesso dessas ideias no meio intelectual (JOAS, 2012: 13). A despeito de todo o
descrédito que no senso comum teriam caído os defensores dos Direitos Humanos,
que, defenderiam os “bandidos” (no sentido utilizado por Datena).
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