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Artigos São Paulo / FEVEREIRO 2017 1 Artigo publicado na Revista Tributária e de Finanças Públicas - RTrib n. 132. BRITO, Edvaldo Pereira de (Coord.). São Paulo: Thomson Reuters, p. 211-238, Jan/Fev 2017. Autor: Fabiana Carsoni Alves F. da Silva DIREITO TRIBUTÁRIO E CONTABILIDADE: INDEPENDÊNCIA E INTERSECÇÃO. A CONVIVÊNCIA DAS DUAS CIÊNCIAS RESUMO: Este artigo analisa como a Contabilidade e o Direito Tributário passaram a interagir após as inovações introduzidas pelas Leis n. 11638/07 e 11941/09 nos métodos e critérios contábeis, dentre elas a primazia da essência sobre a forma jurídica, o subjetivismo responsável e a visão prospectiva. O artigo identifica pontos de intersecção das duas Ciências, bem como pontos de distanciamento, que devem ser observados, no plano fiscal, sob pena de se admitir a tributação em ofensa à capacidade contributiva, à legalidade e à segurança jurídica. PALAVRAS-CHAVE: contabilidade - primazia da essência sobre a forma jurídica –visão prospectiva – direito tributário – capacidade contributiva

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Artigo publicado na Revista Tributária e de Finanças Públicas - RTrib n. 132. BRITO, Edvaldo Pereira de (Coord.). São Paulo: Thomson Reuters, p. 211-238, Jan/Fev 2017.

Autor: Fabiana Carsoni Alves F. da Silva DIREITO TRIBUTÁRIO E CONTABILIDADE: INDEPENDÊNCIA E INTERSECÇÃO. A CONVIVÊNCIA DAS DUAS CIÊNCIAS

RESUMO: Este artigo analisa como a Contabilidade e o Direito Tributário passaram a interagir após as inovações introduzidas pelas Leis n. 11638/07 e 11941/09 nos métodos e critérios contábeis, dentre elas a primazia da essência sobre a forma jurídica, o subjetivismo responsável e a visão prospectiva. O artigo identifica pontos de intersecção das duas Ciências, bem como pontos de distanciamento, que devem ser observados, no plano fiscal, sob pena de se admitir a tributação em ofensa à capacidade contributiva, à legalidade e à segurança jurídica. PALAVRAS-CHAVE: contabilidade - primazia da essência sobre a forma jurídica –visão prospectiva – direito tributário – capacidade contributiva

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ABSTRACT: This article analyses how Accounting and Tax Law began to interact after changes introduced by Laws n. 11638/07 and 11941/09 in Brazilian accounting methods, such as the principle of substance over form, responsible subjectivity and prospective approach. The article identifies points of intersection of both Sciences and also points of detachment, which must be observed, in a tax perspective, so as to avoid taxation in violation of ability to pay, legality and legal certainty. KEYWORDS: accounting - substance over form - prospective approach – tax law – ability to pay.

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1. Introdução O Direito Tributário caminha ao lado de outras ciências cujas

diretrizes asseguram, viabilizam ou simplesmente facilitam a tributação. É o caso, por exemplo, das ciências econômicas e das ciências contábeis.

Isso ocorre porque o Direito Tributário colhe fatos econômicos da

realidade fenomênica, estabelecendo a tributação que sobre eles recairá, conforme a manifestação de riqueza exteriorizada por cada contribuinte. Estes mesmos fatos são estudados e retratados pela Economia, além de serem registrados pela Contabilidade. Daí a correlação entre essas ciências.

Essa correlação não implica, nem requer que conceitos, normas ou

padrões de cada ciência sejam iguais, tampouco significa que eles estejam necessariamente entrelaçados. Pelo contrário: a dissonância de conceitos, normas e padrões é consentânea com os diferentes propósitos visados por cada ciência: a) no campo do Direito Tributário, criam-se regras que asseguram a arrecadação tributária, sem olvidar dos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes; b) na Economia, estuda-se a organização da riqueza em sociedade, levando-se em consideração fatores como escassez e concorrência1; e c) na Contabilidade, quer-se prover ao “stakeholder” (cliente, trabalhador, acionista, credor, investidores, fornecedor, etc.) informação sobre a mutação patrimonial da sociedade, permitindo-se, assim, que o processo de tomada de decisões e as análises comparativas estejam lastreados em dados fidedignos.

A discrepância de propósitos entre cada ciência justifica, a um só

tempo, a existência de conceitos, normas ou padrões distintos e também a independência do Direito Tributário, da Economia e da Contabilidade.

Ocorre que, no Brasil, a independência que deveria nortear cada

ciência viu-se comprometida, no campo da ciência contábil, em virtude da indevida e corriqueira interferência do fisco na escrituração comercial das pessoas jurídicas. Este cenário perdurou por décadas, até a edição da Lei n.

1 Nas palavras de N. Gregory Mankiw, “Economia é o estudo de como a sociedade administra seus recursos escassos”, (In: MANKIW, N. Gregory. “Introdução à economia”. 5ª edição. São Paulo: Cengage Learning, 2009, p. 4).

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11638, de 28.12.2007, seguida da Lei n. 11941, de 27.5.2009, responsáveis pelo rompimento das amarras até então criadas pelo fisco, e impostas à prática contábil. Mais do que uma ruptura em relação aos ditames da lei tributária, as Leis n. 11638 e 11941 introduziram diversas alterações nos critérios e métodos de registro dos fatos econômicos da pessoa jurídica na escrituração mercantil, baseados, fundamentalmente, no primado da essência econômica sobre a forma jurídica e na visão prospectiva dos fatos.

Se, de um lado, essa mudança de perspectiva contribui para o

avanço da ciência contábil e, especialmente, para o atingimento de seus propósitos, de outro lado, ela traz reflexões sobre o alcance ou interferência dos novos métodos, critérios ou padrões contábeis no Direito Tributário. Estas reflexões, muitas vezes traduzidas como verdadeiras preocupações, não se manifestam à toa: seriam estas ciências independentes, ou a correlação entre elas permitiria a equivalência de conceitos e regras?

Essa indagação retrata um tema atual, muito debatido desde a

edição da Lei n. 11638, e cuja resposta é fundamental para impor limites à tributação baseada em noções econômicas, desvinculadas da realidade jurídica dos fatos, ou desacompanhadas de verdadeira manifestação de capacidade contributiva.

Para demonstrar quais são e como devem ser aplicados esses limites

no plano fiscal, é necessário situar a ciência contábil antes e depois das modificações introduzidas em nosso sistema pelas Leis n. 11638 e 11941, bem como esclarecer as principais novidades apresentadas pela novel legislação e sua interferência ou independência na seara tributária. Eis o que faremos nas linhas que se seguem.

2. Contexto histórico “Accounting follows economics”. Esse adágio contábil quer dizer que

a escrituração mercantil registra fatos, eventos e responsabilidades decorrentes do exercício de atividade econômica2. Mas, antes de ser retratada nas

2 Cf. FERNANDES, Edison Carlos. “Direito e contabilidade: fundamentos do direito contábil”. São Paulo: Trevisan, 2015, p. 21.

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demonstrações financeiras, a atividade econômica é traduzida pelo direito de acordo com normas que disciplinam as relações e situações jurídicas. Contudo, sendo diferentes seus propósitos, a avaliação da atividade econômica, para a ciência contábil e para o direito, pode não coincidir. Ou, ao menos, deveria não coincidir em determinadas circunstâncias, de tal sorte a não desvirtuar os objetivos de nenhuma destas ciências.

A despeito disso, no Brasil, historicamente, a contabilidade sofreu

forte influência da legislação tributária, de tal sorte que o retrato das mutações patrimoniais das sociedades, que deveria servir, também, aos credores, investidores e acionistas, atendia, na verdade, e primordialmente, aos interesses do fisco. De fato, a legislação tributária interferiu de tal modo na contabilidade que ela passou, em sua essência, a ser uma fotografia das informações importantes e necessárias à tributação. A Contabilidade, neste contexto, constituía instrumento de tributação, não estando a serviço, como deveria estar, de “stakeholders”.

Exemplo disso é a depreciação, disciplinada pela Lei n. 4506, de

30.11.1964. De acordo com o art. 57 da referida lei, a diminuição do valor dos bens do ativo resultante do desgaste pelo uso, ação da natureza e obsolescência normal poderia ser computada como custo ou encargo dedutível, obedecendo-se às taxas anuais editadas pela Administração Tributária.

Não obstante os critérios contábeis de depreciação não

correspondessem aos fiscais, a fiscalização tributária somente admitia a dedução daqueles custos os encargos quando registrados na contabilidade, em conformidade com as taxas divulgadas pela então Secretaria da Receita Federal, atual Receita Federal do Brasil. Quer dizer, se a pessoa jurídica quisesse adotar, para efeito de apuração de seus tributos, as taxas fiscais, necessariamente, elas deveriam estar retratadas na escrituração mercantil. Com isto, a regra fiscal, em última análise, acabava prevalecendo, também, na contabilidade.

São vários os motivos dessa influência exercida pelo Direito

Tributário sobre a Contabilidade, podendo-se destacar, por exemplo, a praticabilidade tributária, o interesse perene de arrecadação e a incipiência do mercado de capitais brasileiro.

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Na tentativa de modificação desse cenário, a qual se fez premente no contexto de aprimoramento do nosso mercado de capitais e do intercâmbio internacional, em 1976, foi editada a Lei n. 6404, de 15.12.1976, a qual pode ser considerada um marco histórico da contabilidade no Brasil. Isto porque, mais do que estabelecer conceitos, pressupostos e métodos de adoção obrigatória na escrituração mercantil, a Lei n. 6404 determinou, com clareza e precisão, a separação entre Contabilidade e Direito Tributário.

De fato, o art. 177, parágrafo 2º, da Lei n. 6404 determinou que a

sociedade observasse em registros auxiliares, sem modificação da escrituração mercantil e das demonstrações reguladas na referida lei, as disposições da lei tributária que prescrevessem métodos ou critérios contábeis diferentes.

Diante dessa separação, que era mandatória, por provir da lei,

editou-se o Decreto-lei n. 1598, de 26.12.1977, com vistas a adaptar a legislação do imposto de renda da pessoa jurídica (“IRPJ”) à nova contabilidade, estabelecendo-se que os ajustes positivos ou negativos no lucro líquido deveriam ser feitos em livros auxiliares de apuração do lucro real (art. 8º, inciso I), de modo a atender ao disposto no art. 177, parágrafo 2º, da Lei n. 6404.

Ocorre que o Decreto 1598/77, ao adaptar a legislação do IRPJ à

contabilidade, deu continuidade à longa fase de interferência da legislação tributária na escrituração mercantil, a qual só teve fim com a edição das Leis n. 11638 e 11941.

Mas, afinal, o que foi essa ruptura trazida pelas Leis n. 11638 e

11941? Com as Leis n. 11638 e 11941, foram introduzidos novos critérios,

métodos e padrões contábeis, com vistas à harmonização das normas contábeis brasileiras aos padrões internacionais, objetivando-se prover informações fidedignas aos “stakeholders”, onde quer que eles estejam situados.

Sempre se exigiu que o balanço patrimonial exprimisse, com

fidelidade e clareza, a situação real da empresa, como declarado textualmente pelo art. 1188, “caput”, do Código Civil. Ocorre que, para além deste retrato confiável e fiel da atividade econômica da pessoa jurídica, a uniformização de

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critérios de mensuração e de registro de mutações patrimoniais permitiu que a expressão econômica das empresas brasileiras fosse compreendida internacionalmente, fomentando a atração e retenção de capitais e de novos investidores, inclusive estrangeiros, por conferir maior segurança ao interessado na análise do grau de risco do investimento, da lucratividade e da capacidade e da perspectiva de geração de lucros, auxiliando, assim, a tomada de decisões.

Dentre os novos padrões contábeis introduzidos pelas Leis n. 11638

e 11941, destacamos três deles, por serem representativos do distanciamento entre a Contabilidade e o Direito Tributário e, pois, representativos da quebra do paradigma até então característico da escrituração mercantil brasileira, fortemente influenciada que ela era pela legislação fiscal. São eles: a) primazia da essência econômica sobre a forma jurídica; b) subjetivismo responsável; e c) visão prospectiva.

Vejamos, no tópico vindouro, o alcance desses novos padrões

contábeis. 3. Principais mudanças introduzidas na Contabilidade Os novos critérios e métodos contábeis brasileiros, alinhados aos

padrões internacionais, buscam gerar confiança a investidores, credores, fornecedores e acionistas, criando transparência nas atividades empresariais, além de facilitarem a análise comparativa entre empresas sediadas em diferentes países e reduzirem o custo de captação no mercado financeiro3.

Como, então, atingir esses desideratos? Para isto, e com vistas a

permitir que as mutações patrimoniais da pessoa jurídica sejam representadas de forma fidedigna, a contabilidade, após as inovações das Leis n. 11638 e 11941, passou a estar assentada em três grandes premissas, princípios ou critérios norteadores, a saber: a) primazia da essência econômica sobre a forma

3 Cf. LOPES, Alexsandro Broedel; MOSQUERA, Roberto Quiroga. “O direito contábil. Fundamentos conceituais, aspectos da experiência brasileira e implicações”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 63-64.

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jurídica; b) subjetivismo responsável; e c) visão prospectiva. Analisemos cada um deles.

3.1. Primazia da essência econômica sobre a forma jurídica A “essência econômica sobre a forma jurídica” constitui pressuposto

básico da Contabilidade. A forma jurídica, para o direito, como explica João Francisco Bianco,

constitui a maneira pela qual o negócio jurídico é exteriorizado, não tendo qualquer relação com a sua natureza jurídica. O negócio jurídico que vise à transferência de direitos reais sobre bens imóveis, conforme exemplo dado pelo autor, exige a forma de escritura pública (art. 108 do Código Civil), sob pena de nulidade (art. 166, inciso IV, do mesmo Código). Enquanto a forma, neste caso, é a escritura pública, a transferência daqueles direitos pode dar-se com a natureza jurídica de compra e venda, doação, permuta etc. Por isto é o que autor propôs, com acerto, que o princípio contábil fosse denominado como “primazia da substância econômica sobre a natureza jurídica do negócio realizado”4.

Em que pese a imprecisão em sua nomenclatura, em linhas gerais, o

referido princípio contábil requer que as transações e os eventos sejam analisados sob a perspectiva de sua substância ou aparência econômica, o que pode implicar, na hipótese de descompasso, o afastamento de sua natureza jurídica. Trata-se de princípio que contribui para a representação fidedigna das mutações de ativos, passivos e patrimônio líquido da pessoa jurídica, porquanto viabiliza a dimensão econômica dos fatos, necessária à compreensão das atividades e dos potenciais de geração de riqueza da pessoa jurídica.

De se notar que o princípio da essência econômica sobre a forma

jurídica já permeava a ciência contábil, antes mesmo das modificações trazidas pelas Leis n. 11638 e 11941.

4 BIANCO, João Francisco. “Aparência econômica e natureza jurídica”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 176.

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Realmente, José Luiz Bulhões Pedreira, um dos autores do anteprojeto que deu origem à Lei n. 6404, afirmou, em 1989, que a Contabilidade brasileira era informada pelo princípio da “prevalência da substância econômica” por “considerar os fatos admitindo a prevalência da substância econômica sobre a forma jurídica. Em regra, a forma se ajusta à substância econômica, mas quando diferem, as informações fornecidas devem destacar a substância, e não a forma do fato”5.

Naquela mesma época, Fábio Konder Comparato criticou, com

veemência, a utilização do princípio da prevalência da substância econômica sobre a forma, ao estatuir que o contador não “tem legitimidade para julgar, segundo critérios próprios e diversos das regras de direito vigentes, sobre o que pode e o que não pode ser considerado a substância das operações a serem contabilizadas”6. Na visão do autor, isto seria “arrogar-se um privilégio odioso inadmissível num Estado de Direito: pretender excluir sua atividade profissional do regime da legalidade”7.

Mais do que menção doutrinária, o princípio em foco tinha respaldo

em pronunciamentos contábeis, como é o caso da “Estrutura Conceitual Básica da Contabilidade”, do Instituto Brasileiro de Contadores (“IBRACON”), aprovada pela Deliberação CVM n. 29, de 5.2.1986, a qual dispunha o seguinte:

“A contabilidade possui um grande relacionamento com os aspectos jurídicos que cercam o patrimônio, mas não raro a forma jurídica pode deixar de retratar a essência econômica. Nessas situações, deve a Contabilidade guiar-se pelos seus objetivos de bem informar, seguindo, se for necessário para tanto, a essência ao invés da forma. (...)

5 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. “Finanças e demonstrações financeiras das companhias: conceitos e fundamentos”. Rio de Janeiro: Forense, p. 557, 1989. 6 COMPARATO, Fábio Konder. “O irredentismo da ‘nova contabilidade’ e as operações de ‘leasing’”. Revista de Direito Mercantil, n. 68. São Paulo: RT, out/dez 1987, p. 56. 7 Idem, ibidem, p. 56.

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Por exemplo, uma empresa vende um ativo, mas assume o compromisso de recomprá-lo por um valor já determinado em certa data. Essa formalidade deve ensejar a contabilização de uma operação de financiamento (essência) e não de compra e venda (forma)”.

De igual forma, o art. 1º, parágrafo 2º, da Resolução do Conselho

Federal de Contabilidade (“CFC”) n. 750, de 1993, destacou que: “Na aplicação dos Princípios Fundamentais de Contabilidade a essência das transações deve prevalecer sobre seus aspectos formais”.

Novamente o CFC, agora por meio da Resolução CFC n. 774, de 1994,

estabeleceu que:

“Cumpre também ressaltar que, na realização do objetivo central da Contabilidade, defrontamo-nos muitas vezes com situações nas quais os aspectos jurídico-formais das transações ainda não estão completa ou suficientemente dilucidados. Nesses casos, deve-se considerar o efeito mais provável das mutações sobre o patrimônio, quantitativa e qualitativamente, concedendo-se prevalência à substância das transações”.

Como é possível notar, o princípio da essência sobre a forma era

consagrado em pronunciamentos e manuais de contabilidade, muito antes da edição das Leis n. 11638 e 11941. A novidade destas leis, nas palavras de João Francisco Bianco, “é a revitalização do princípio, pois enquanto no passado ele existia mas não era obedecido (...), hoje pretende-se que ele exista e seja efetivamente observado”8, até porque, como dito, a nova contabilidade libertou-se das amarras da legislação fiscal, tendo independência, enquanto ciência autônoma e com objetivos próprios, para estabelecer que, no conflito entre substância econômica e natureza jurídica, a primeira deva prevalecer nos assentamentos contábeis da pessoa jurídica, em detrimento da segunda.

Há múltiplas situações em que esse princípio se apresenta na

escrituração mercantil. Um exemplo da aplicação do princípio em foco é o da 8 BIANCO, João Francisco. “Aparência econômica e natureza jurídica”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 177.

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compra e venda com cláusula de retrovenda. Em contratações deste jaez, o vendedor pode reservar-se o direito de recobrar a coisa no prazo máximo de três anos, restituindo o preço recebido e reembolsando as despesas do comprador (art. 505 do Código Civil). Efetuada a venda, a titularidade do imóvel passa a ser do adquirente, e não mais do vendedor, em que pese a cláusula de retrovenda. Ocorre que, para a contabilidade, a essência econômica desta transação é de empréstimo, na medida em que a entidade poderá usufruir dos benefícios econômicos gerados pelo ativo, se recomprá-lo futuramente. Daí que, nos assentamos contábeis da pessoa jurídica vendedora, o ativo não deixará de ser seu.

O exemplo clássico da primazia da essência econômica, adotado em

escolas, livros e artigos sobre o tema, é o do arrendamento mercantil financeiro. Segundo o Pronunciamento Técnico CPC 06, do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (“CPC”), no “leasing” financeiro, havendo transferência substancial de riscos e benefícios inerentes à propriedade ao arrendatário, o negócio jurídico deve ser retratado contabilmente como um financiamento.

Quer dizer, o arrendatário registra o bem arrendado em seu ativo

imobilizado, depreciando-o ou amortizando-o contabilmente. Registra, também, em seu passivo, uma dívida (financiamento) com o arrendador. Eis o que retrata o item 4.6 do Pronunciamento Conceitual Básico (“Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro”) do CPC:

“Ao avaliar se um item se enquadra na definição de ativo, passivo ou patrimônio líquido, deve-se atentar para a sua essência subjacente e realidade econômica e não apenas para sua forma legal. Assim, por exemplo, no caso do arrendamento mercantil financeiro, a essência subjacente e a realidade econômica são a de que o arrendatário adquire os benefícios econômicos do uso do ativo arrendado pela maior parte da sua vida útil, em contraprestação de aceitar a obrigação de pagar por esse direito valor próximo do valor justo do ativo e o respectivo encargo financeiro. Dessa forma, o arrendamento mercantil financeiro dá origem a itens que satisfazem à definição de ativo e de passivo e, portanto, devem ser reconhecidos como tais no balanço patrimonial do arrendatário”.

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O arrendador, em contrapartida, na perspectiva contábil da prevalência da essência econômica, não é proprietário do bem, não obstante a propriedade, juridicamente, lhe pertença, e não obstante a opção de compra seja mera faculdade posta à disposição do arrendatário a ser exercida, conforme o caso, no final do contrato. Desse modo, na contabilidade, o arrendador não registra o bem seu ativo, lançando, isto sim, um crédito a receber do arrendatário.

É interesse notar que o princípio da prevalência da essência

econômica, conquanto contábil, já permeou julgados em matéria tributária, inclusive no tocante ao leasing financeiro. De fato, embora a jurisprudência reconheça, maciçamente, que o arrendamento mercantil é um contrato complexo e típico9, com características próprias e peculiares, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, ocorrida em 2.12.2009, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 547245-SC, afirmou que, no leasing financeiro, prepondera o caráter de financiamento, estando, assim, tal contratação, sujeita à incidência do ISS.

Para chegar a tal conclusão, o Ministro Eros Grau, desapegando-se

de conceitos jurídicos, sustentou que o ISS incide não somente sobre obrigações de fazer, mas sobre serviços de qualquer natureza, no que estariam compreendidos os negócios cuja essência econômica, ou cujo núcleo essencial, fosse de financiamento, tal como o arrendamento mercantil financeiro.

Em que pese o princípio da prevalência da essência econômica não

tenha sido invocado na ocasião, em última análise, seus pressupostos acabaram norteando a decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da incidência do ISS, sobressaindo-se os aspectos econômicos da transação, em detrimento de sua natureza jurídica.

9 Nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 213828-RS, de 29.9.2003, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, dirimindo controvérsia, assentou que antecipação do valor residual garantido não transforma o arrendamento mercantil em compra e venda, atestando, assim, não só a tipicidade daquele contrato, como também suas peculiaridades.

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A menção a esse julgado denota que a tentativa de se valer de critérios econômicos, em detrimento da natureza jurídica das transações, aparece, também, no Direito Tributário. Esta tentativa, contudo, não está albergada pelo nosso Sistema Tributário Nacional, consoante examinaremos no tópico 4. Antes, porém, vejamos outras modificações introduzidas pelos novos critérios, métodos e padrões contábeis.

3.2. Subjetivismo responsável Antes das modificações introduzidas pelas Leis n. 11638 e 11941, a

contabilidade era marcada pelo critério da objetividade, o que significa dizer que a ciência contábil priorizava a documentação formal, evidências materiais e a tangibilidade do objeto passível de mensuração10. O contador, sob estas regras, devia atuar de forma conservadora, em atenção ao princípio da prudência, o que se via, por exemplo, pela determinação de que os fatos, eventos ou transações fossem registrados por seu custo histórico.

Sucede que a avaliação objetiva, baseada em fatos passados, e

desatrelada das perspectivas de rentabilidade ou fluxos de caixa futuros, se por um lado atendia aos anseios do fisco em matéria de arrecadação tributária, de outro, era insuficiente a investidores, credores e outros interessados, pois pouco contribuía para sua decisão de investimento ou de concessão de crédito. É que a utilização, unicamente, do critério do custo histórico implicava, não raro, subavaliações de ativos e superavaliações de passivos, comprometendo, de conseguinte, a representação fidedigna das mutações patrimoniais da pessoa jurídica.

Como decorrência, a objetividade restou substituída pelo chamado

“subjetivismo responsável”, após as inovações das Leis n. 11638 e 11941.

10 Cf. FUJI, Alessandra Hirano; SLOMSKI, Valmor. “Subjetivismo responsável: necessidade ou ousadia no estudo da contabilidade”. In: Revista Contabilidade e Finanças. Vol. 14, n. 33, Set/Dez 2003. São Paulo: Departamento de Contabilidade e Atuária da FEA/USP, p. 41. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rcf/issue/view/2767/showToc (Acesso em: 14.5.2016).

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A partir desse novo critério contábil, certos fatos, eventos ou transações deixaram de ser contabilizados por seu custo histórico, adotando-se, em seu lugar, o chamado “valor justo” (ou “fair value”), assim entendido como “o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração.” (item 09 do Pronunciamento Técnico CPC 46 - Mensuração do Valor Justo).

O “subjetivismo responsável” também fundamenta a adoção do

chamado teste de “impairment” (ou de recuperabilidade de ativos), por meio do qual o contador deve avaliar possíveis perdas, ou desvalorizações de um ativo. Conforme explica o item 59 do Pronunciamento Técnico CPC n. 01 (Redução ao Valor Recuperável de Ativos): “Se, e somente se, o valor recuperável de um ativo for inferior ao seu valor contábil, o valor contábil do ativo deve ser reduzido ao seu valor recuperável. Essa redução representa uma perda por desvalorização do ativo”. O mesmo CPC n. 01 prossegue afirmando, agora em seu item 60, que: “A perda por desvalorização do ativo deve ser reconhecida imediatamente na demonstração do resultado, a menos que o ativo tenha sido reavaliado”.

A adoção do “valor justo”, em contraposição ao custo histórico, bem

como a adoção do teste de recuperabilidade de ativos, expõem que a avaliação objetiva, calcada em documentos e evidências materiais, cedeu lugar, nas situações autorizadas por lei ou atos normativos, para o subjetivismo do contador, com vistas a melhor retratar a realidade patrimonial da pessoa jurídica, fornecendo-se, deste modo, informações fidedignas aos “stakeholders”, alinhadas às práticas de mercado entre partes independentes, ocorridas na atualidade, e não aos fatos históricos vivenciados pela pessoa jurídica no passado.

3.3. Visão prospectiva Já foi dito neste estudo que, antes das inovações trazidas pelas Leis

n. 11638 e 11941, as demonstrações financeiras eram uma espécie de fotografia do passado, circunstância que atendia, fundamentalmente, aos interesses do fisco. Para que a contabilidade se tornasse fonte de consulta confiável e relevante aos seus principais usuários, os “stakeholders”, fazia-se necessário que as demonstrações financeiras deixassem de retratar o passado, passando a ser elaboradas a partir de uma “visão prospectiva” dos fatos.

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Como explica Nelson Carvalho, “O principal papel – na verdade o

mais nobre objetivo – das demonstrações financeiras no mundo corporativo (...) é informar sobre o futuro esperado à luz do passado realizado”11. Ainda segundo o autor, “só se tomam decisões econômicas sobre o futuro; para este fim, o passado é dado, concluído, e sobre ele podem caber interpretações, mas jamais interpretações que advenham de análise de alternativas visando resultados distintos dos que os já alcançados”12.

O olhar dos usuários da contabilidade é preditivo, ou seja, recai

sobre o futuro, na medida em que, para a tomada de suas decisões, estes usuários fazem análises de risco, investigam fluxos de caixa esperados, examinam a capacidade de geração de lucros, etc. Logo, a demonstração financeira que somente registra informações históricas, e que porventura contém superavaliações de passivos ou subavaliações de ativos, não fornece as informações úteis, fidedignas e, pois, necessárias e suficientes para o processo decisório daqueles usuários.

A visão prospectiva, nesse contexto, é útil aos stakeholders e ao

processo de tomada de decisão, porquanto propicia a verificação do potencial de geração de riqueza da pessoa jurídica e do grau de risco do investimento, estando em consonância com o propósito da ciência contábil de representar, fidedignamente, as mutações patrimoniais das empresas13.

11 CARVALHO, Nelson. “Essência x Forma na contabilidade”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 374. 12 Idem, ibidem, p. 372. 13 É digna de nota a análise feita por Ana Isabel Morais e José Dias Curto sobre a experiência portuguesa após a adoção dos padrões internacionais de contabilidade. De acordo com os autores, em estudo comparativo que alcançou os dois anos posteriores à introdução dos novos métodos contábeis, mostrou-se melhoria na qualidade da informação sobre os ganhos das empresas (In: MORAIS, Ana Isabel; CURTO, José Dias. “Accounting quality and the adoption of IASB standards – Portuguese evidence”. In: Revista Contabilidade e Finanças. Vol. 19, n. 48, Set/Dez 2008. São Paulo: Departamento de Contabilidade e Atuária da FEA/USP, p. 103-111. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rcf/article/view/34274/37006 (Acesso em: 14.5.2016).

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4. O Direito Tributário, suas premissas e sua convivência com os novos postulados da Contabilidade

4.1. O Direito Tributário O Direito Tributário colhe fatos econômicos regulados pelo direito,

definindo regras de competência e limites para a tributação. É o que se encontra no capítulo atinente ao Sistema Tributário Nacional da Constituição Federal, no qual estão delineados os princípios gerais do Direito Tributário (Seção I), os limites ao poder de tributar (Seção II) e as regras de competência (Seções III, IV e V)14.

O legislador tributário não tem liberdade. Só lhe é dado atuar em

conformidade e nos limites estabelecidos pelo texto constitucional. O legislador tributário não pode, por exemplo, alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, como declara textualmente o art. 110 do Código Tributário Nacional, recepcionado pela Constituição Federal, inclusive a de 1967, com “status” de lei complementar, responsável por disciplinar as normas gerais em matéria de legislação tributária (art. 146, inciso III, da atual Constituição).

O legislador infraconstitucional não pode, assim, atribuir a todo e

qualquer fato o qualificativo de renda, para, assim, tributá-lo pelo imposto de renda, quando tal fato não se compaginar, sob o ponto de vista do Direito Privado, ao conceito de acréscimo patrimonial, é dizer, quando nada acrescer ao patrimônio jurídico do contribuinte15. Não fosse assim, estar-se-ia autorizando tributação em desrespeito à regra de competência estabelecida no art. 153, inciso III, da Constituição Federal.

Igualmente, são insuscetíveis de incidência da contribuição ao PIS

(“Programa de Integração Social”) e da COFINS (“Contribuição para o financiamento da seguridade social”), no regime não cumulativo de sua 14 Outras regras de competência também se encontram firmadas no Capítulo atinente à Seguridade Social (Título VIII – Da Ordem Social). 15 Sobre o patrimônio jurídico, lembre-se de que, nos termos do art. 91 do Código Civil, “Art. 91. Constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”.

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apuração, os ingressos não correspondentes ao conceito jurídico de receita, tendo em vista a regra de competência estatuída no art. 195, inciso I, “b”, da Constituição Federal. Daí que, se determinado ingresso for classificado contabilmente como receita, mas sua natureza jurídica não for esta, o atributo jurídico deverá prevalecer, conforme declaram os art. 1º, “caput” das Leis n. 10637, de 30.12.2002, e 10833, de 29.12.2003, ao estabelecerem a incidência daquelas contribuições sociais “sobre o total das receitas auferidas no mês pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil”.

A tributação, como se vê, opera sobre fatos ocorridos no mundo

fenomênico, e regulados pelo direito. Não era de se esperar que fosse diferente, já que o Sistema

Tributário Nacional, como acenam Paulo Ayres e Caio Takano, está calcado em princípios e regras que “prestigiam, sobremodo, a certeza do direito, a segurança jurídica e a estrita legalidade”16, valorizando, segundo os mesmos autores, a previsibilidade da ação estatal, bem assim eliminando a discricionariedade da atuação das autoridades administrativas17, cuja atividade de lançamento tributário, embora lhes seja privativa, é plenamente vinculada, nos termos do art. 142 do Código Tributário Nacional.

Nessas condições, a disciplina do fato jurídico tributário, para ser o

mais objetiva possível e, de conseguinte, condizente com o desiderato constitucional de certeza e segurança, deve ser norteada pelas normas do ordenamento jurídico, já que, segundo Geraldo Ataliba, “[o] Direito é, por excelência, e acima de tudo, instrumento de segurança”18.

16 BARRETO, Paulo Ayres; TAKANO, Caio Augusto. “Entre o direito tributário e a nova contabilidade: a questão da tributação dos dividendos na Lei n. 12.973/14”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. 19º Volume. São Paulo: Dialética, p. 356, 2015. 17 Idem, ibidem, p. 356. 18 ATALIBA, Geraldo apud BARRETO, Paulo Ayres; TAKANO, Caio Augusto. “Entre o direito tributário e a nova contabilidade: a questão da tributação dos dividendos na Lei n. 12.973/14”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (coord.). Grandes Questões Atuais do Direito Tributário. 19º Volume. São Paulo: Dialética, p. 356, 2015.

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Além de baseada no direito, a tributação é retrospectiva, eis que recai sobre o retrato da situação econômica ocorrida no presente imediato ou, então, que se iniciou no passado e foi concluída no exato momento da ocorrência do fato gerador (art. 116 do Código Tributário Nacional). Ou seja, a tributação observa e acompanha a capacidade contributiva manifestada no presente imediato ou durante certo interregno que antecede a consumação do fato gerador.

4.2. O Direito Tributário e sua relação com os novos critérios e

padrões contábeis Diante dos breves apontamentos apresentados no tópico anterior

sobre o Direito Tributário e suas premissas, é possível conciliá-lo com a nova Contabilidade? Melhor dizendo, a tributação é compatível com o princípio da primazia da essência econômica sobre a forma jurídica, com o subjetivismo responsável e com a visão prospectiva?

Para nós, não. As colocações anteriores acerca da retrospectividade

da tributação e da sua observância às normas de direito, a rigor, são suficientes para demonstrar a incompatibilidade entre o Direito Tributário e os citados princípios, regras ou critérios contábeis.

Contudo, não há uniformidade de pensamento sobre o tema.

Vejamos. Alexandre Pacheco, por exemplo, defendendo que o Direito

Tributário é informado pelos princípios da solidariedade, da isonomia e da capacidade contributiva, afirmou que, “havendo tensão entre forma jurídica e essência econômica, a última deve prevalecer, pois não se tributa a forma jurídica de ‘atos ou negócios jurídicos’ utilizada para vestir fatos econômicos. O que se entrega ao Estado, a título de tributos, é uma fração de riqueza (...)”19. Escorado naqueles princípios, o autor prosseguiu aduzindo que:

19 PACHECO, Alexandre S. “O uso de conceitos intermediários contábeis, jurídicos e fiscais em matéria tributária”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 44.

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“(...) os conceitos jurídicos, em matéria tributária, costumam ser traidores, porque não necessariamente têm, nos subsistemas em que adquirem consistência (...), compromisso (...) com o referencial econômico que, em matéria tributária, é crucial para o aferimento de capacidade contributiva e de igualdade tributária – para afirmar a materialidade, a base de cálculo e a sujeição passiva dos tributos20”.

Outros autores também defendem que a tributação deve ser

estabelecida em atenção aos princípios da solidariedade, da isonomia e da capacidade contributiva. O jurista português José Casalta Nabais, por exemplo, sustenta o chamado “dever fundamental de pagar tributos”, o qual está assentado na premissa de que a tributação é instrumento de realização da ordem econômica, capaz de viabilizar a “justiça distributiva”, traduzida na redistribuição dos rendimentos dos contribuintes para os que não o sejam21, por não manifestarem capacidade contributiva. Ou seja, embora todos sejam destinatários do dever fundamental de pagar impostos, este dever é exercido nos limites da capacidade contributiva, propiciando, assim, a satisfação da solidariedade social.

Ora, no Brasil, a tributação obedece a regras rígidas de competência

estabelecidas na Constituição Federal, concebidas pelo constituinte sem olvidar de valores como a igualdade, a solidariedade e a capacidade contributiva, conforme anunciado no preâmbulo e nos arts. 3º, inciso I, e 5º, “caput”, da Carta Magna. Logo, a pretensão de afastar ou mitigar tais regras não encontra guarida no nosso sistema constitucional, tampouco tem autorização no interesse ou praticabilidade da arrecadação.

A par de Alexandre Pacheco, Luís Eduardo Schoueri também

sustentou a possiblidade de aplicação dos métodos, conceitos e critérios contábeis em matéria tributária. No entanto, Schoueri o fez com respaldo em outra linha de raciocínio.

20 Idem, ibidem, p. 45. 21 Cf. NABAIS, José Casalta. “Solidariedade Social, cidadania e direito fiscal”. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra (Coords). Solidariedade Social e Tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 128-129.

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De fato, o jurista, analisando a hipótese de incidência do imposto de renda, concluiu que a Lei n. 11638 teria introduzido um novo conceito de patrimônio, baseado em critérios que sobrelevam a aparência econômica dos fatos, eventos ou transações, em detrimento de sua natureza jurídica, conceito esse extensível ao campo de incidência do imposto de renda, já que o art. 43 Código Tributário Nacional autoriza a tributação do acréscimo patrimonial disponibilizado não só jurídica, como também economicamente. Baseado nessa premissa, o jurista concluiu que:

“(...) a lei tributária não deve necessariamente se curvar ao conceito de patrimônio do Direito Civil. Tanto que o próprio Código Tributário Nacional, em seu artigo 43, faz referência não somente à disponibilidade jurídica sobre a renda, mas também à disponibilidade econômica. Assim, se os novos padrões contábeis revelam, do ponto de vista econômico, o acréscimo de disponibilidade fruído pelo contribuinte, não parece incompatível com o referido dispositivo do Código Tributário Nacional que aquela ‘disponibilidade econômica’ acrescida seja alvo da tributação prevista em lei22”.

O jurista não defende a aplicação dos novos padrões e conceitos

contábeis quando houver ofensa às regras de competência, no caso, quando se pretender tributar pelo imposto de renda algo que não corresponda a efetivo ganho ou acréscimo patrimonial. Mas, para Schoueri, em nome da praticabilidade tributária, e tendo em vista a norma do art. 43 Código Tributário Nacional, que permite a tributação da renda cuja disponibilidade é apenas econômica, é possível, ao menos em tese, para fins de tributação, a adoção dos métodos de mensuração do patrimônio veiculados pelas Leis n. 11638 e 11941.

Não obstante essas colocações do autor, em estudo posterior, ele

reconheceu que o legislador, na edição da Lei n. 12973, de 13.5.2014, fruto da conversão da Medida Provisória n. 627, de 11.11.2013, de um modo geral, optou pela prevalência das normas de Direito Civil em matéria tributária, ou seja, pela 22 SCHOUERI, Luís Eduardo. “O mito do lucro real na passagem da disponibilidade jurídica para a disponibilidade econômica”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2010, p. 261.

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manutenção da “tributação vinculada às formas de Direito Civil antes que à realidade econômica. Fica latente, diante de tal posição conservadora, o clamor por revisão, para que se afaste de vez o distanciamento entre resultados contábeis e tributos recolhidos”23.

Em que pese Schoueri tenha clamado pelo nivelamento ou

equiparação dos resultados contábeis às bases tributárias, não nos parece que a tributação seja compatível com o princípio da primazia da essência econômica sobre a forma jurídica, com o subjetivismo responsável e com a visão prospectiva. Vejamos o motivo.

No que tange ao princípio da essência econômica sobre a forma

jurídica, seu emprego no campo do Direito Tributário: - pode causar ofensa à proibição legal de emprego da analogia

quanto dele resultar a exigência de tributo não previsto em lei (art. 108, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional). Trata-se de vedação legal originada do princípio da legalidade, a qual obsta a que o fisco, na ausência de norma legal, tente cobrar tributo com fundamento em norma legal aplicável a outra situação de fato ou de direito. A adoção da essência sobre a forma em matéria fiscal pode resvalar na tributação em desconformidade com as regras de competência estabelecidas na Constituição, e instituídas e regulamentadas pela lei, tributando-se, por exemplo, pelo imposto sobre doação, o que é compra e venda, suscetível de tributação pelo imposto sobre a renda, e vice-versa, de sorte a contrariar a legalidade e o art. 108, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional. O recurso da analogia, em matéria fiscal, equivale a admitir a criação de norma jurídica não expressamente formulada no ordenamento, o que significaria que a Administração Tributária se converteria em “criadora do Direito”, em âmbito reservado à lei e sujeito ao princípio da legalidade24;

23 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Nova contabilidade e tributação: da propriedade à beneficial ownership”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2014, p. 221. 24 NOVOA, César Garcia. “La Cláusula Antielusiva Em La Nueva Ley General Tributaria”. Madrid: Marcial Pons, 2004, p. 251.

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- pode acarretar o uso, não admitido pelo ordenamento jurídico, da interpretação econômica no Direito Tributário. Ora, as leis tributárias devem ser interpretadas como qualquer outra lei, inseridas que elas estão no ordenamento, ao lado das demais leis. Assim, é necessário, por exemplo, relacioná-las com as demais leis do sistema jurídico (interpretação sistemática) e com os sistemas jurídicos antecedentes (interpretação histórica). Trata-se do chamado “cânone hermenêutico da totalidade do sistema jurídico”, propugnado por Alfredo Augusto Becker25. Por um de seus vieses26, e à semelhança do princípio contábil da essência econômica sobre a forma, a interpretação econômica considera irrelevante a natureza jurídica dos atos ou negócios, quando não corresponder à realidade econômica subjacente. Contudo, tal interpretação pode ferir a legalidade e a segurança jurídica, porque, a partir dela, a tributação pode ocorrer por analogia e mediante arbítrios e discricionariedade das autoridades fiscais, em desobediência ao art. 142 do Código Tributário Nacional, que estabelece ser vinculada a atividade do fisco. No mais, não se pode olvidar que a tentativa de inserir a interpretação econômica no Direito Tributário não foi acolhida pelo Congresso Nacional, eis que o art. 74 do Anteprojeto do Código Tributário Nacional, que continha tal previsão27, não foi incorporado ao texto final28; 25 BECKER, Alfredo Augusto. “Teoria Geral do Direito Tributário”, São Paulo: Saraiva, 1963, p. 103-104. 26 Há grande debate doutrinário acerca do significado e extensão da interpretação econômica. No Direito alemão, por exemplo, tal interpretação é admitida. Ocorre que, no modelo daquele país, com o passar dos anos, a consideração econômica do fato gerador evoluiu para algo bastante semelhante à interpretação teleológica (cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Planejamento tributário e garantias dos contribuintes: entre a norma geral antielisão portuguesa e seus paralelos brasileiros”, 2012, p. 371-437). Para os fins deste estudo, a interpretação econômica deve ser compreendida no sentido de prevalência da aparência econômica sobre a natureza jurídica. 27 “Art. 74. A interpretação da legislação tributária visará sua aplicação não só aos atos, fatos ou situações jurídicas nela nominalmente referidos, como também àqueles que produzam ou sejam suscetíveis de produzir resultados equivalentes”. 28 Ao definir o sujeito ativo do ICMS nas importações de mercadoria, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, no Recurso Extraordinário n. 268586-SP, de 24.5.2005, assentou sua conclusão na assertiva de que “a forma não prevalece sobre o conteúdo”. Ocorre que, como se colhe do voto vencedor, da lavra do Ministro Marco Aurélio Mello, a afirmação estava baseada, não na interpretação econômica dos fatos, mas no imperioso afastamento da simulação verificada no caso dos autos, tanto que ele consignou o seguinte: “Poucas vezes defrontei-me com processo a revelar maior drible ao Fisco. (...) À toda evidência, tem-se quadro escancarado de simulação”.

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- pode ocasionar ofensa ao princípio da legalidade, já que as Leis n.

11638 e 11941 disciplinaram de maneira enxuta, e não exaustiva, os novos critérios, métodos e padrões contábeis, conferindo liberdade para órgãos competentes editarem pronunciamentos técnicos, resoluções, orientações, etc. sobre o tema. Como resultado, a quase totalidade das normas contábeis está contida em atos normativos infralegais, de estatura secundária, sendo certo que algumas destas normas são de legalidade duvidosa, eis que nem sempre a Lei n. 6404, com as modificações que lhe foram dadas pelas Leis n. 11638 e 11941, confere legitimidade àquilo que os referidos atos infralegais determinam que a pessoa jurídica faça em seus assentamentos contábeis29. Logo, a tributação lastreada nestes atos normativos pode resvalar em ilegalidade também por tal motivo;

- pode acarretar ofensa ao art. 110 do Código Tributário Nacional, já

que admitir a tributação sobre a aparência econômica dos fatos, atos ou negócios, em detrimento de sua natureza jurídica, importa ferir conceitos do Direito Privado, por vezes, adotados pelo constituinte como delimitadores das regras de competência tributária. Como bem anotado pelo Ministro Cezar Peluso no julgamento do Recurso Extraordinário n. 358273-RS, de 9.11.2005, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, ainda que o art. 110 não sirva a interpretar a Constituição, ele certamente “tem eficácia enquanto predica de sanção de invalidez às normas tributárias que a contrariem nos aspectos enunciados. E não deixa de confirmar que a Constituição da República usa, implicitamente, conceitos de direito privado para definir ou limitar competências tributárias”. Sendo assim, contrariar a natureza jurídica dos fatos e eventos, em nome da essência econômica, e, pois, contrariar o art. 110 do

29 João Francisco Bianco, a propósito das avaliações a valor justo, constatou que: “No que diz respeito aos elementos do passivo, não há previsão na Lei n. 6404 de avaliação a valor justo. Estes deverão ser avaliados sempre pelo seu valor atualizado até a data do balanço. (...) A despeito disso, o Pronunciamento Técnico CPC 46, emitido pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis, admite a possibilidade de elementos do passivo serem avaliados a valor justo” (BIANCO, João Francisco. “O conceito de valor justo e seus reflexos tributários”. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (coords.). Controvérsias jurídico-contábeis (aproximações e distanciamentos). São Paulo: Dialética, 2014, p. 162).

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Código Tributário Nacional importa subverter as normas que guiam o Sistema Tributário Nacional;

- pode ocasionar a inadmissão do negócio jurídico indireto em

matéria tributária. No negócio jurídico indireto, as partes adotam um contrato tipificado pelo direito para alcançar um efeito que não é o seu escopo imediato, mas não há simulação porque as partes desejam efetivamente o negócio jurídico adotado e submetem-se integralmente ao seu regime jurídico e aos seus efeitos e consequências30. No negócio jurídico indireto, as partes observam a causa jurídica do negócio, ainda que a sua função típica não seja o escopo último almejado pelas partes, mas, sim, meio para se alcançar objetivo diverso. Como exemplo, pode-se mencionar a compra e venda com pacto de retrovenda, com a finalidade de garantia. As partes submetem-se integralmente ao regime jurídico da compra e venda, ainda que o seu intuito final seja a função de garantia. O escopo de garantia está situado no plano dos motivos, pois a causa do negócio jurídico foi objetivamente observada pelas partes (transferência da propriedade mediante pagamento do preço)31. No Recurso Extraordinário n. 82447-SP, julgado em 8.6.1976, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal validou o referido negócio jurídico, não admitindo sua requalificação como mútuo. Se, no Direito Tributário, a prevalência da essência sobre a forma fosse a regra, tal como se verifica na seara contábil, mais do que ofensa à legalidade e porventura à proibição de emprego da analogia, ver-se-ia negado o uso do negócio jurídico indireto, ou seriam seus efeitos não oponíveis ao fisco, em que pese a legislação não contenha qualquer norma neste sentido32. Isto porque, na situação acima

30 ALVES, José Carlos Moreira. “A retrovenda”. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 8. 31 ALVES, José Carlos Moreira. “A retrovenda”. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 16-17. 32 Tentou-se, no plano legal, tornar o negócio jurídico indireto inoponível ao fisco. De fato, a Medida Provisória n. 66, de 29.8.2002, em seu art. 14, parágrafo 3º, na tentativa de regulamentar o parágrafo único do art. 112 do Código Tributário Nacional, considerou passível de desconsideração “a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado”. A Medida Provisória n. 685, de 21.7.2015, ainda, tentou inserir obrigação legal de informação ao fisco de transações que consistissem em negócios jurídicos indiretos (art. 7º, inciso II). Contudo, nenhuma dessas tentativas prosperou, pois elas não constaram das respectivas leis de conversão, tampouco de outras leis.

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narrada, o negócio jurídico seria qualificado, contabilmente, como mútuo, afastando-se sua efetiva natureza jurídica, regulada pelo direito.

Tudo o que se apresentou acima evidencia a inaplicabilidade do

princípio da essência econômica sobre a forma jurídica na seara tributária. E quanto à visão prospectiva? Seria admitida tributação

“prospectiva”? A resposta é negativa. No âmbito do Direito, como pontua Humberto Ávila, “(...) a perspectiva é retrospectiva, não apenas estática, mas especialmente dinâmica, de acordo com os requisitos constitucional e legais para a apuração de determinado fato gerador”33.

Não fosse assim, admitir-se-ia a tributação do que não é renda,

receita etc., mas mera expectativa, não reveladora de efetiva capacidade contributiva. Quer dizer, a tributação teria assento em meras potencialidades, ou capacidades futuras de geração de lucros, mas não na real manifestação de riqueza. A tributação atingiria, não a renda, a receita, ou os acréscimos, mas o próprio patrimônio do contribuinte, comprometendo o direito individual e fundamental à propriedade (art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal).

Por fim, no que tange ao subjetivismo responsável, sua adoção fere a

objetividade e a segurança características do Direito, em especial do Tributário, como destacado linhas atrás. No Direito Tributário, e é novamente Humberto Ávila quem explica, “ (...) espera-se algum grau de objetividade. (...) no Direito, nós procuramos evitar o capricho e a arbitrariedade (...)”34.

Nessas condições, o patrimônio contábil atende tão somente ao

objetivo da contabilidade, consistente emprestar informações a “stakeholders” sobre a situação econômica da empresa. No campo do direito, inclusive do Tributário, o patrimônio é aquele definido pelo Direito Privado. Portanto, em

33 ÁVILA, Humberto. Palestra Inaugural do XXXIX Simpósio de Direito Tributário do CEU/IICS – Aspectos polêmicos do imposto de renda e proventos de qualquer natureza. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.) Aspectos polêmicos do imposto de Renda e proventos de qualquer natureza. Porto Alegre: Coedição Pesquisas Tributárias - Série CEU – Lex Magister, n. 2, 2014, p. 22. 34 Idem, ibidem, p. 21.

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que pese a contabilidade, por questões de praticabilidade tributária, seja ponto de partida da tributação, ela não é, necessariamente, ponto de chegada.

Some-se a isso que não é verdadeira a afirmação de Luís Eduardo

Schoueri no sentido de que o art. 43 do Código Tributário Nacional autorizaria a tributação, ao menos do imposto de renda, sobre patrimônio contábil. É que a disponibilidade econômica a que alude o referido dispositivo legal, assim como a jurídica, requerem a realização da renda, o que muitas vezes não se verifica contabilmente nas mensurações baseadas em critérios subjetivos e econômicos. Nas avaliações a valor justo, por exemplo, o ganho é meramente potencial, sendo aferido, com a objetividade, certeza e segurança requeridas pelo direito, apenas na alienação ou baixa, inclusive por depreciação ou amortização, do ativo, como, de resto, atesta o art. 13, parágrafo 1º, da Lei n. 12973.

Quer dizer, então, diante dessas ponderações, que há total

independência entre os ramos contábil e fiscal35? Não. Essas ciências se interpenetram, se interligam e se conectam;

há, pois, entre elas, interdisciplinaridade. Ou, nas palavras de Casalta Nabais, “dependência parcial do direito fiscal face ao direito contabilístico”, já que o lucro tributável leva em consideração certas mutações patrimoniais não refletidas no resultado contábil. Daí que não há dependência total do Direito Tributário à Contabilidade, e vice-versa, tampouco autonomia plena entre ambos. A não coincidência destas ciências é explicada pelos propósitos distintos a que cada uma se destina, conforme aponta o autor português:

35 No passado, Fábio Konder Comparato manifestou-se no sentido de que a normatividade da Contabilidade seria de segundo grau, pois, a seu ver, o contador não poderia, “de forma nenhuma, afastar a qualificação jurídica que resulta da própria lei, sob o arrogante pretexto de que as exigências da ciência contábil são independentes do ditado legislativo” (COMPARATO, Fábio Konder. “O irredentismo da ‘nova contabilidade’ e as operações de ‘leasing’”. Revista de Direito Mercantil, n. 68. São Paulo: RT, out/dez 1987, p. 51). A visão do autor, conforme demonstrado neste estudo, não condiz com a realidade atual, eis que a Contabilidade, nos dias de hoje, pode, sim, ser considerada uma ciência com regramentos próprios, algumas vezes distintos daqueles do Direito.

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“(...) bem se compreende, pois, enquanto o lucro contabilístico é determinado com base em princípios, normas e regras do referido direito contabilístico e tem por destinatários os utentes das demonstrações financeiras das empresas (isto é, os investidores, os trabalhadores, os financiadores, os fornecedores e outros credores comerciais, os clientes, o Governo e seus departamentos e o público em geral), o lucro fiscal guia-se pelos princípios e normas do direito fiscal e tem por destinatário sobretudo o Estado, mais precisamente a administração tributária36”.

Nesse modelo de dependência parcial, pode haver: (i) convergência

de conceitos, a qual se verifica, por exemplo, quando Direito Tributário e Contabilidade adotam conceitos jurídicos; (ii) divergência, porém convivência, entre o conceito contábil e o conceito fiscal, como sucede com a depreciação de bens do ativo da pessoa jurídica (a depreciação contábil considera a perspectiva de geração de benefícios econômicos do ativo, ao passo que a depreciação fiscal leva em conta o desgaste físico do bem, pelo uso, ação da natureza ou obsolescência normal, nos termos do art. 57 da Lei n. 4506, de 30.11.1964. Havendo divergência entre tais critérios, a diferença deve ser controlada pela pessoa jurídica extracontabilmente, nos termos do art. 57, parágrafo 15, da Lei n. 4506); e (iii) adoção do conceito ou critério contábil para fins fiscais, como se dá, atualmente, em relação à amortização fiscal do chamado “goodwill”, autorizado pelo art. 22 da Lei n. 12973, o qual é apurado nos limites e em conformidade com os critérios contábeis.

A adoção do critério contábil pela legislação fiscal, em hipótese

alguma, poderá resultar em tributação à margem das regras constitucionais de competência, dos princípios que norteiam a sistema tributário, ou das limitações ao poder de tributar.

Assim, a interseção entre essas ciências deve ser harmônica, de

modo a preservar as regras e os objetivos de cada uma delas. Não foi o que aconteceu quanto o Supremo Tribunal Federal

analisou a tributação dos lucros auferidos no exterior por controladas ou

36 NABAIS, José Casalta. “Direito Fiscal”. Coimbra: Almedina, 8ª edição, 2015, p. 521-522.

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coligadas da pessoa jurídica, refletidos no Brasil mediante registros meramente gráficos, decorrentes da aplicação do chamado método de equivalência patrimonial. Muito embora estes registros não impliquem efetiva disponibilização de lucros, jurídica ou econômica, muito menos realização da renda, o Supremo Tribunal Federal, influenciado por eles, concluiu na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2588-DF, de 10.4.2013, pela validade de sua tributação pelo imposto de renda em determinadas situações. Ou seja, o critério contábil acabou servindo de fundamento para a tributação, não obstante desobedeça ao disposto no art. 43 do Código Tributário Nacional.

Essa não é a intersecção almejada, tampouco permitida pelo

ordenamento jurídico, para as ciências contábil e fiscal. Antes, requer-se obediência às suas finalidades intrínsecas e às normas em que cada uma se assenta.

5. Conclusões As reflexões colocadas neste estudo demonstram que o mesmo fato

social pode ser interpretado de forma diversa pelo Direito e pela Contabilidade. Isso acontece porque o Direito Tributário e Contabilidade possuem

objetivos distintos: enquanto a última busca retratar a realidade econômica da forma a mais transparente, confiável e fidedigna possível, de modo a atender a interesses de “stakeholders”, aquele cuida e viabiliza a arrecadação tributária necessária à manutenção do Estado, sem olvidar das regras de competência e das limitações ao poder de tributar.

Em que pesem os propósitos distintos, essas ciências interagem,

criando um sistema de dependência parcial, na medida em que ora seus critérios coincidem, socorrendo-se uma ciência das normas da outra, ora os critérios de uma e outra divergem, embora convivam para atender aos desideratos de cada uma destas ciências.

Essa interação entre Direito Tributário e Contabilidade, conquanto

admitida, nunca poderá resultar em exigência de tributo que não atenda aos pressupostos da Constituição Federal.

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A adoção irrestrita do subjetivismo responsável, da essência econômica sobre a forma e da visão prospectiva no Direito Tributário, a rigor, pode conduzir à tributação com base na analogia, em ofensa à legalidade, à segurança jurídica e à capacidade contributiva, sem prejuízo de também contrariar as regras de competência e a norma do art. 110 do Código Tributário Nacional.

Em um ambiente cada vez mais preocupado com a fuga de capitais e

com a diminuição de arrecadação tributária, fruto, inclusive, de sofisticadas estruturas de planejamento tributário, é de se esperar a tentativa de uso, pelo fisco, de interpretações econômicas, desapegadas de conceitos jurídicos, com vistas a tributar a maior parte da riqueza possível.

Todavia, tentativas como essa não encontram fundamento em nosso

ordenamento jurídico, pelos motivos acima expostos, devendo, pois, ser repelidas. Realmente, o emprego, na seara fiscal, de critérios, métodos e padrões contábeis, criados para atender aos desideratos da ciência contábil, por vezes, acaba subvertendo não só as normas que assentam o Sistema Tributário Nacional, mas os próprios objetivos do Direito Tributário. Daí a repulsa ao emprego desmedido e desautorizado de normas de outra ciência, criadas com diferentes propósitos, não coincidentes com aqueles do Direito Tributário.

Os princípios da solidariedade, isonomia e capacidade contributiva,

todos de estatura constitucional, não alteram essa conclusão, na medida em que não são suficientes para afastar as regras de competência rigidamente estabelecidas no texto constitucional.

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