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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A CIDADE NA PERSPECTIVA DA INFÂNCIA- A CIDADE QUE ACOLHE AS CRIANÇAS -

Euclides Redin (1) e Vital Didonet

A cidade é feita de lugares e pensamentos. De lugares e emoções. É feita de gente. Porque vendo bem, a cidade é o produto das atitudes da gente que a usufrui. Gente concreta, nas situações quotidianas que constroem o mistério de viver (Helder Pacheco, A Cidade é um Sentimento)

Existe um personagem muito especial vivendo nas cidades. Mas as cidades pouco sabem dele, pouca atenção lhe dão e muito mal se organizam para ser sua casa, seu ambiente, seu território. As cidades vão perdendo, cada vez mais, as características que as fazem amigas, próximas, acolhedoras desse personagem: as crianças.

Existem pelo menos três grandes iniciativas mundiais para fazer das cidades ambientes mais acolhedores, mais bonitos, mais saudáveis, mais inclusivos de todas as pessoas que nelas moram: Habitat, Cidades Amigas da Criança e Cidades Educadoras. Há uma consciência cada vez maior de que é preciso reordenar a cidade na perspectiva da qualidade de vida de seus cidadãos, de que é possível fazer aquilo que é essencial. E muita coisa já vem sendo feita.

Sua cidade também pode fazer parte das iniciativas inovadoras, que apontam para o futuro. E que já fazem um presente melhor. Nelas, as crianças crescem como cidadãs.

Partindo de umas perguntas...

É possível uma cidade na qual a infância tenha um papel importante na organização do espaço urbano? Mesmo se falarmos de crianças de zero a seis anos de idade? Em outras palavras, o fato de haver crianças na população urbana modifica em alguma coisa as leis, o planejamento, os programas do governo, as ações da administração pública?

Que importância tem esse tema, se as crianças são dependentes dos adultos e cuidados por eles? Se o governo implementar adequadas políticas para as famílias e para os “moradores em geral”, as crianças já não estarão suficientemente bem atendidas?

1 Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, São Leopoldo, RS. Doutor em Educação, pela PUC/SP.

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O que há de específico, na infância, que determinaria “uma política pública para a cidade na perspectiva da infância”? Em outras palavras, existe alguma coisa nessa fase da vida que a distingue da vida adulta e que precisa de atenção do administrador público?

As cidades, na forma como atualmente se apresentam, são ambientes favoráveis à vida e ao desenvolvimento das crianças?

Que as crianças teriam a dizer para reordenar o espaço urbano de tal sorte que atendesse às suas necessidades? Sendo tão pequenas e inexperientes, seriam capazes de sugerir alguma coisa para os legisladores e os administradores sobre como gostariam que fosse a sua cidade?

Sendo que as cidades crescem conduzidas e modeladas pelos fatores econômicos, é possível que sejam acolhedoras das crianças?

Uma política para a cidade, na perspectiva da infância, permite que se esqueça das crianças do campo?

A importância das cidades: lugar de vida da maioria das crianças

Mais de três bilhões de pessoas – metade da população do mundo – vivem em cidades. Na América Latina e Caribe, 75% da população moram em cidades. No Brasil, em 2001, já eram 83,9% do total. Nas regiões metropolitanas, esse percentual é ainda mais elevado, como demonstra a Tabela I

Proporção população urbana – rural – Algumas Regiões

Metropolitanas (RM) - 2001RM Rio de Janeiro 99,08%RM São Paulo 96,16%RM Salvador 98,40%RM Belo Horizonte 98,56%RM Fortaleza 96,86%RM Goiânia 98,38%Entorno de Brasília 93,35%RM Baixada Santista 99,59%

Fonte: IBGE, PNAD e Censo Demográfico 2000

Segundo a estimativa do IBGE para 2004, dos 178 milhões de habitantes de nosso País, 149 milhões fazem sua vida nas cidades, o que dá uma média de 84 pessoas em cada 100.

O Censo Demográfico de 2000 contou 23.041.413 crianças de zero a seis anos de idade. Dessas, 18.010.104 viviam na área urbana e 5.131.309, na zona rural. As cidades são, portanto, o espaço geográfico, social, econômico, educacional, cultural de oito em cada dez crianças brasileiras abaixo de 7 anos.

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É interessante observar que esses números não estão estacionados. A urbanização cresce aceleradamente. A tendência, ainda por algum tempo, é de que mais crianças passem a viver em cidades. No mundo, em 1960, apenas 1/3 da população morava em cidades. Hoje, metade. Em 2030, serão 60%. No Brasil, em 1950, 36,16% da população viviam na cidade; em 1970, já eram 56%. Vinte anos depois (1990), 77,13%. E agora, são mais de 80%. A tabela II confirma essa tendência, nas diferentes regiões:

Taxas de urbanização das Regiões

Região 1996 2001Estado com maior taxa

Sudeste 88,00 91,46 RJ: 96,50%Centro- Oeste 81,00 86,70 DF: 95,72%Sul 74,00 81,44 PR: 82,24%Nordeste 60,60 70,50 SE: 80,00%Norte 57,80 64,55 AP: 90,50%

Políticas para as cidades

Como mostram os dados, as cidades são o habitat da maior parte da população do globo terrestre. É compreensível, pois, que a ONU esteja tratando desse tema em conferências mundiais de habitação e tenha criado um centro para estudar, sugerir políticas e promover experiências de reordenamento dos espaços urbanos em vista de melhor qualidade de vida (2). As decisões e o programa Habitat II, aprovados por 171 governos na Conferência de Istambul, em 1996, representaram uma virada na direção das políticas para promover cidades sustentáveis do ponto de vista social e ecológico. Uma das diretrizes centrais para a melhoria das condições de vida nas cidades foi a de formular políticas de inclusão e participação de seus habitantes.

O governo brasileiro criou, em 2003, o Ministério das Cidades, que tem, entre outras, a atribuição de financiar ações integradas de habitação, saneamento e infra-estrutura e apoiar a modernização institucional dos municípios para que atuem na melhoria das condições de moradia das famílias de baixa renda. (Para saber mais: www.cidades.gov.br )

As cidades são acolhedoras e promotoras de uma vida alegre, segura, tranqüila e incentivadora do desenvolvimento das crianças?

Muitas pessoas dizem que não. E desfilam um rosário de maldades e feiúras da cidade, que contrastam radicalmente com aquele ambiente que desejamos para nossos filhos pequenos e para todas as crianças. Os quintais não existem mais. As árvores vão sumindo. Os jardins são raros e mal cuidados. As calçadas são tomadas por carros mal estacionados. E as crianças ficam confinadas em apartamentos e casas apertadas ou amontoadas em cômodos minúsculos de um barraco. A maioria delas é invisível, mas algumas aparecem nos semáforos e estacionamentos, ou nas filas do Centro de Saúde, da creche, de um programa de “cesta básica”. Nas periferias, favelas ou bairros populares, várias brincam nas ruas e terrenos

2 Centro para os Assentamentos Humanos – Habitat, com sede em Nairobi.

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baldios, muitas vezes desviando ou pisando no lixo e no esgoto. Há as que acompanham os pais aos lixões, em busca de coisas para comer, usar ou vender.

Em geral, as cidades não amam as crianças. Isso está demonstrado pelas várias estatísticas da exclusão social:

Em cada mil crianças nascidas vivas, 28,7 morrem no primeiro ano de vida. No Nordeste, são 43, sendo que em Alagoas, são 60.

100% das cidades com mais de 500 mil habitantes têm assentamentos irregulares, a maioria com moradias situadas em área de risco.

60 milhões de pessoas não dispõem de coleta de esgoto: são as que vivem nos bolsões de pobreza das grandes cidades e nas cidades de até 20 mil habitantes. Estas representam 76,96% dos municípios brasileiros.

75% do esgoto sanitário coletado nas cidades é despejado in natura, poluindo cursos d’água.

Dos 60 milhões sem esgoto, 15 milhões não têm acesso a água encanada.16 milhões de pessoas não são atendidas pelo serviço de coleta de lixo nos

municípios de grande e médio porte. Esse serviço é mais deficitário ou inexistente nas favelas e bairros populares.

Em 64% dos municípios, o lixo coletado é posto em lixões “a céu aberto”. Considerando que o grupo etário de 0 a 6 anos corresponde a 12,9% da população

total, dá para imaginar quantas crianças estão submetidas a essas condições.

A exclusão tem origem em diferentes razões: a criança requer atenção e cuidado e isso tem custo financeiro, custo emocional, exigência de tempo e dedicação; a criança não produz bens econômicos, embora o valor moral e psicológico que a infância produz na vida dos adultos seja de enorme importância. Para muitas pessoas, elas são consideradas incômodas, dão trabalho, são um peso econômico, atrapalham planos profissionais e de lazer.

Vários hotéis colocam em seus anúncios: “não se aceitam crianças...”.Há, atualmente, nos Estados Unidos, 13 milhões de casais sem filhos, contra 32

milhões de casais com filhos menores de 18 anos. Uma pesquisa recente na Austrália constatou que uma em quatro mulheres não quer ter filho.

Iniciou nos Estados Unidos e já se ramificou em vários países (Inglaterra, Canadá, Coréia do Sul, África do Sul, Austrália) o movimento Childfree, cujos adeptos se consideram livres-de-filhos e não sem-filhos. “Nós nos consideramos livres de filhos, livres de perder a liberdade pessoal, dinheiro, tempo e energia, que o ter filhos exige”, dizem eles. Conta com 1 milhão de adeptos. Há cerca de 40 sites na internet sobre organizações desse tipo. Entre eles, o No Kidding, um clube social internacional para solteiros e casados que querem distância de filhos.

É comum ver casais dando mais atenção aos cachorros de estimação do que aos filhos e é grande o número de famílias que prefere ter um cachorro (ou vários) a ter um filho.

A exclusão se dá também no orçamento público, no planejamento governamental, na mente de administradores: em muitos deles, as crianças não estão presentes como cidadãos, sujeitos de direitos; em outros, sua presença é tímida, ocasional, incompleta.

Há outro lado. Crianças esperadas, acolhidas, amadas, bem cuidadas. Em casa, na comunidade, na cidade. Legisladores, profissionais nas áreas de atenção à criança, governantes sensíveis, atentos e zelosos para que as crianças de seu município sejam bem

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atendidas. Há, até, prefeitos que falam com orgulho dos programas que desenvolvem em favor das crianças. Esse número, que é minoritário, vem crescendo. Programas bonitos, inteligentes, eficazes vêm sendo implementados em muitas cidades (3).

Um terceiro lado precisa ser destacado, nessa realidade multifacetada da criança na cidade: ela vem sendo usada como objeto: (a) de lucro, pois é vista e incentivada a ser cada vez mais como importante consumidora; (b) de vaidade dos pais, que a querem brilhando aos olhos dos amigos e vizinhos e lhe impõem a exigência cada vez mais pesada de aprendizagens precoces, que lhe roubam a infância. O stress infantil já constitui um problema sério. O excesso de coisas – brinquedos, videogames, jogos eletrônicos, academias, escolas, roupas... – também está fazendo suas vítimas infantis porque ser sufocado de coisas não substitui o amor e o carinho, ausentes ou negados.

É possível uma cidade, que cresce conduzida por forças econômicas, ajeitar-se para ser cidade também desse personagem de 0 a 6 anos que tem direitos e necessidades próprias da idade?

O UNICEF vem mostrando que sim. Em decorrência dos problemas debatidos na Conferência Mundial da ONU sobre Assentamentos Humanas – Habitat II, em Istambul, em 1996, lançou a iniciativa Cidades Amigas da Criança (4). Aquela Conferência declarou que o bem-estar das crianças é o melhor indicador de um ambiente de vida saudável, de uma sociedade democrática e de uma boa administração municipal.

Para dar seqüência a essa idéia, o UNICEF, a ONU-Habitat, o Comitê Italiano do UNICEF e o Instituto Innocenti criaram, em setembro de 2000, a Secretaria Internacional das Cidades Amigas da Criança. A sede está no Centro de Pesquisas Innocenti, na cidade de Florença, Itália (5). A Secretaria fornece dados e informações aos municípios interessados, com o objetivo de trocar experiências e fomentar o trabalho conjunto das cidades que se propõem a melhorar a qualidade de vida de suas crianças e tornar realidade os seus direitos.

Um número cada vez maior de municípios nos países em desenvolvimento, e também na Europa, vem decidindo fazer-se “amigos das crianças”. Para isso, colocam em prática programas voltados para as crianças, aumentam os recursos na área social e formulam planos municipais centrados na infância. Em muitas dessas cidades, as crianças começam a tomar parte nas decisões, ajudando, inclusive, os decisores e técnicos a projetar “a cidade que elas querem”. Já existem alguns indicadores de qualidade que captam as necessidades e desejos das crianças, para serem utilizados como critério na hora de medir os progressos alcançados em relação às metas relativas aos direitos da criança.

3 Ver, neste Guia, o Capítulo dirigido ao prefeito, na parte que trata do “Prefeito Amigo da Criança”, programa desenvolvido pela Fundação Abrinq.4 Child Friendly Cities. Ver no site: www.childriendlycities.org5 UNICEF Innocenti Research Centre. Piazza SS. Annunziata, 12, 50122 Florenza, Italia. Tel == 39 055 20330. Fax: ++ 39 055 244817. E-mail: [email protected]

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Formou-se uma rede de intercâmbio e colaboração entre as Cidades Amigas da Criança. Além dos prefeitos, outras autoridades municipais e ONGs, organizações comunitárias, empresas, meios de comunicação, organismos internacionais e nacionais e associações de crianças e jovens vêm se envolvendo nessa iniciativa.

Como deve ser a cidade para a criança?

Do que foi exposto neste capítulo, pode-se concluir que quando falamos na cidade para a criança, não estamos entendendo somente os espaços educacionais e de cuidado, como a creche e a pré-escola, os centros sociais, as brinquedotecas, os parques arborizados e os jardins floridos. As crianças participam de outros espaços de convivência e aprendizagem, nos quais sua personalidade se forma, sua visão de mundo se constrói, sua experiência da vida vai alicerçando valores e atitudes. O ambiente doméstico, o centro de saúde e o hospital, a rua, a praça, o parque infantil, a igreja, os lugares de reunião, enfim, todos os espaços de convivência onde a criança está inserida constituem o território, do qual fala Carbonel (6):...”O território assim concebido está repleto de linguagens múltiplas, de ruídos naturais e artificiais, de odores e sabores, de paisagens que vão se transformando, de realidades visíveis e subterrâneas, reais e simbólicas, de solidões e encontros, de sonhos e frustrações...”. A cidade é, com mais força para a criança, que vive o período da vida mais sensível para a formação da personalidade, uma comunidade educadora – nem sempre boa educadora...

Não se pode deixar que a expansão da cidade seja determinada apenas pelo modelo econômico; é preciso fazer esforços determinados para dotá-la de meios que atendam às várias dimensões da vida de seus habitantes e, em especial, que garantam uma infância feliz.

É possível projetar cidades mais habitáveis, como espaços e tempos para encontros e intercâmbios, com equipamentos e infra-estruturas culturais, lúdicas e formadoras que contribuam para a melhoria da qualidade social da vida das pessoas.

A iniciativa das Cidades Educadoras (7) parte do princípio de que são as pessoas que dão vida à cidade, que fazem sua alma. São as pessoas que a enchem de beleza ou feiúra. Delas depende que a cidade seja habitável ou insana, que provoque medo ou inspire segurança, que seja digna de um poema ou comentada por seus atos de violência. “A cidade é o mapa da interação social” (8). E essa é uma área da educação.

Mas a educação não é função exclusiva da creche, da pré-escola e da escola. Aprende-se em casa, na rua, no mercado, no centro de saúde, na igreja, na praça, na feira, nas lojas de

6 CARBONEL, Jaime. A aventura de inovar: mudança na escola. Porto Alegre : Artmed, 2002.7 No site da Rede de Cidades Educadoras www.edcities.bcn.es encontram-se informações sobre as cidades membro da Associação Internacional das Cidades Educadoras, com nome de interlocutores e experiências. Mais de 240 cidades, de quatro continentes, fazem parte dessa Rede. Em novembro de 2004 realiza-se o VIII Congresso Internacional das Cidades Educadoras, em Gênova, Itália, com o tema: “Uma outra cidade é possível – o futuro da cidade como projeto coletivo”.8 Joan Clos, Prefeito de Barcelona, na conferência de abertura do VI Congresso Internacional das Cidades Educadoras, Lisboa, 21-24 de novembro de 2000.

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comércio, nas reuniões, nos lugares de trabalho. Não se pode atribuir só à creche, à pré-escola e à escola a responsabilidade de cuidar e educar as pessoas. Os ensinamentos e apelos que lhes chegam de toda a parte transcendem os tempos e os espaços escolares.

Por isso, se quisermos fazer uma verdadeira educação é preciso considerar que todos os ambientes têm um potencial educativo e fazer com que eles sejam educadores. O propósito da Cidade Educadora é esse. Toma como referência central a escola (em nosso caso, a creche e a pré-escola), por ser ela o espaço privilegiado de formação humana. Mas a vê, também, como vetor de educação de toda a cidade. Ela interage e assume responsabilidades com outros atores sociais.

A creche e a pré-escola, por serem lugares em que as crianças passam grande parte do dia, podem ter repercussões sobre outros espaços, desde que “transbordem seus muros” e estejam abertas à participação das famílias. Elas precisam ter ligações fortes e constantes com a comunidade. Se estiverem abertas ao meio social da cidade, de seus bairros e vilas, às famílias, ao clube, à associação cultural e desportiva, aos locais de trabalho e lazer, elas podem influenciar no modo como a própria cidade vê a criança e fazer com que esta se sinta, também, educadora. Reciprocamente, a creche e a pré-escola vão perceber os apelos, as demandas, as expectativas e as necessidades que a cidade, as vilas, os bairros, a comunidade lhes apresentam.

Isabel Baptista explicita as relações entre as pessoas na cidade educadora como laços sociais de respeito, sensibilidade e solidariedade:

“Entre a escola, o bairro, a habitação, o clube desportivo, a associação cultural e recreativa, o local de trabalho ou de lazer, há que estabelecer uma corrente de interação humana capaz de dar sentido ao quotidiano das pessoas e, assim, influenciar positivamente as suas trajetórias de vida. Estaremos, então, a contribuir para a criação de espaços que, pela sua densidade antropológica, podem servir para ajudar a despertar a vocação humana para a transcendência e, nessa medida, funcionar como verdadeiros laboratórios de laços sociais onde a vinculação ética ao outro tenha a marca da solicitude mútua, do respeito e da sensibilidade. Potenciado em práticas de autêntica relação social, o reconhecimento intersubjetivo surge-nos como condição de convivência, de paz e solidariedade. Valores estes que, como sabemos, o mundo contemporâneo reclama, com urgência”(9 ).

José Maria Zonta, do Jornal “La Nación”, da Costa Rica, recomenda aos administradores da cidade:

“...incluam um poeta em seu grupo de assessores, ou um pintor, um coreógrafo, um ator, um dramaturgo, um romancista, um escultor, um ilustrador, um cenógrafo, um músico, enfim, um artista: pode ser homem ou mulher. Ou seja, alguém com sensibilidade, alguém acostumado a olhar a realidade e a emocionar-se, a ouvir as pessoas pobres e entristecer-se ao observar as desigualdades e ofender-se ao ver a fome rondar os estômagos das crianças e

9 BAPTISTA, Isabel, professora da Universidade Portucalense, no Jornal A Página nº 188, ano 12, novembro de 2003, pág. 33. Disponível também na internet http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?!ID=2766

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alarmar-se. Um artista, alguém habituado a sonhar e perseguir esse sonho por todo o universo. Alguém criativo, isto é, acostumado a enfrentar o vazio, o nada, o lenço branco, a folha vazia e, de repente, como um pequeno milagre, criar: um poema, uma pintura, uma música, enfim, alguém que vença a realidade não para matá-la, mas para modificá-la” (10).

Qual o ponto de partida, a referência, o guia para os administradores municipais dotarem a cidade de características que a tornem simpática, amiga, acolhedora, e que respeite os cidadãos menores de 7 anos?

Eles estão na Declaração dos Direitos da Criança e a Convenção dos Direitos da Criança, ambos da ONU; a Constituição Brasileira (principalmente o art. 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

A Constituição Federal determina que os direitos da criança sejam atendidos com absoluta prioridade. Isso significa que nenhuma outra necessidade pode ser mais urgente, nenhum outro objetivo da administração pública pode passar à frente desses. E quando há pressão social, política ou econômica para o prefeito atender outra demanda? Ele tem a Constituição Federal para reforçar sua decisão de atender primeiro a criança.

Esse caráter de total e absoluta precedência sobre qualquer outra necessidade não seria uma imposição autoritária, descabida ou, pelo menos, equivocada? A melhor ciência diz que há uma base ética e científica nessa decisão que a sociedade brasileira tomou durante a Assembléia Nacional Constituinte. A infância é o período da vida mais decisivo para toda a história da pessoa humana. Uma infância bem cuidada é base de sustentação de uma adolescência, juventude e idade adulta socialmente integrada, afetivamente equilibrada e intelectualmente bem desenvolvida.

Como seria uma Cidade Amiga da Criança?

Para merecer esse nome, a cidade deve garantir para suas crianças a possibilidade real de:

1. Influir nas decisões sobre sua cidade. Há diversas maneiras de exercer influência. Uma delas é pela

simples presença. O fato de existir crianças na cidade já determina obrigações para os planejadores e os administradores urbanos. Elas estão aí, precisam ser cuidadas. Enxergá-las no colo das mães, nos berços, nas ruas, nas reuniões, festas, assembléias, movimentos sociais, exerce uma pressão interna no sentimento dos adultos. Não dá para ficar indiferente diante de um rostinho suave e meigo, sorridente ou choroso, nem de uma criança violentada ou doente, suplicante ou surpresa, nem diante de uma fila de mulheres que aguardam uma vaga na creche, para

10 GUTIÉRREZ, Francisco e PRADO, Cruz. Ecopedagogia e Cidadania Planetária. São Paulo : Cortez, 1999, p. 104.

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poder trabalhar. Essa pressão interna tende a tornar-se exigência de políticas e ações de saúde, educação, assistência.

Imaginemos uma cidade sem criança: não precisa maternidade, creche, pré-escola, brinquedoteca, parque infantil, aulas de catequese; não há “dia da criança”, festinhas de aniversário, brinquedos, presentes, lojas de roupas infantis... Conseqüentemente, seria uma cidade sem juventude. Tudo sério, adulto, formal. Uma cidade sem criança seria como? E seria cidade por quanto tempo?

Inversamente, as crianças também podem influir nas decisões políticas pela ausência. A Alemanha está fazendo uma campanha para aumentar a natalidade, porque sua população está envelhecendo, está faltando infância nas ruas e nas instituições... Vão faltar jovens para o mercado de trabalho e trabalhadores para manter o sistema de previdência social. A taxa de fertilidade das mulheres alemãs no ano 2000 foi de apenas 1,36, uma das mais baixas da Europa. Para reverter essa situação, o governo alemão planeja gastar 1,5 bilhão de euros (R$ 6 bilhões) por ano em programas de educação e cuidado das crianças menores de 6 anos (11).

Outra forma de participar é por meio da demanda de seus pais, das famílias organizadas, das associações de bairro, das organizações não-governamentais que defendem os direitos da criança. Certas ONGs atuam como “a voz das crianças”. Este Guia cita várias dessas organizações (12).

Os dados estatísticos sobre qualidade de vida das crianças são uma terceira forma de verificar se elas estão sendo bem cuidadas, bem educadas. Os dados das secretarias de Saúde, de Educação, de Assistência Social, da Delegacia de Polícia, do Conselho Tutelar, da Pastoral da Criança, do Juizado da Infância e da Adolescência, de ONGs que atuam com populações empobrecidas dão o perfil da satisfação ou insatisfação das políticas e programas do município.

2. Expressar suas opiniões e desejos sobre a cidade que elas querem. Uma quarta forma de as crianças participarem das decisões sobre

a cidade que desejam é pedir-lhes que o digam por meio de desenhos ou outra forma de expressão. Crianças de 5 e 6 anos são capazes de expressar como vivem, como se sentem na família, no meio social, o que as alegra, o que lhes dá medo. Dá para perguntar-lhes como seria a cidade ideal para elas.

Talvez muitas queiram uma cidade como a que ia surgindo dos toques do Menino do Dedo Verde (13). Parece romântico, fácil, simplório, mas não deixa de ter muitas verdades “infantis” por baixo da

11 Conf. www.Economist.com de 6 de dezembro de 2003.12 Ver o capítulo INSTITUIÇÕES, neste Guia.

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magia de transformar estruturas asfixiantes, comportamentos inflexíveis e fisionomias carrancudas em alegria, liberdade e cores vivas.

Não é um despropósito sugerir que o prefeito, o juiz, o promotor, os vereadores, os secretários municipais de governo, enfim, todos os que têm responsabilidade pública perante os direitos da criança leiam, à noite, para seus filhos ou netos o livro de Maurice Druon – O Menino do Dedo Verde – a história de Tistu, que vai transformando organizações arcaicas e atitudes desumanas da sua cidade pela magia das flores. Quando chegarem em seus escritórios estarão, ainda, inspirados: eles sabem que, pelo cargo que ocupam, têm também um mágico dedo verde.

3. Participar da vida da família, da comunidade e da sociedade.A divisão social do trabalho e a organização da vida moderna

separaram as crianças dos ambientes dos adultos, do trabalho dos pais, da vida social. Cada grupo tem seu canto, seus territórios reservados. Poucos são os espaços comuns de convivência. Isso sublinhou as características da infância, mas privou crianças e adultos das vantagens da convivência, da aprendizagem conjunta e interativa.

As restrições que se impunham (ainda não totalmente retiradas) às crianças de falar, chorar, gritar, correr, quando no meio social ou diante de adultos, tinham o objetivo de dominar seus corpos, disciplinar suas mentes, submeter seus comportamentos às regras e à comodidade dos adultos. A maior liberdade de falar, opinar, expressar suas vontades e gostos, concedida às crianças de hoje, mostrou quanto elas são capazes de participar e contribuir para uma vida mais acertada. Várias pessoas dizem que as crianças de hoje são muito espertas, muito inteligentes, que “têm cada idéia”; dizem que ficam encantadas com a percepção que elas têm dos problemas dos adultos.

Participar da vida familiar, comunitária e social inclui o direito da criança de falar, dar opinião, pedir, recusar, de ter suas preferências e gostos, de ser curiosa, perguntar, experimentar. Inclui o direito de ser consultada sobre decisões que direta ou indiretamente têm a ver com ela.

4. Ter acesso aos serviços básicos de saúde, educação e assistência social, conforme sua necessidade.

A cidade sensível e cuidadosa com suas crianças tem políticas formuladas especificamente para atender às suas necessidades fundamentais na área da saúde, da educação, da assistência. É quase regra que as que mais precisam são as que menos recebem; as mais pobres recebem por último; as excluídas são menos vistas e menos atendidas. A Cidade Amiga da Criança não faz distinção, mas dá

13 DRUON, Maurice. O Menino do Dedo Verde. Trad. Dom Marcos Barbosa. 70ª edição. Rio de Janeiro : José Olympio Editora

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prioridade para as que mais precisam. Por isso, a Conferência Mundial sobre Assentamentos Humanos em Istambul recomendou a adoção de políticas de inclusão para dar um rosto mais humano e mais justo às cidades.

5. Consumir água limpa e ter acesso a saneamento básico.Segundo o UNICEF, o uso de água contaminada provoca

doenças responsáveis pela morte de 1,6 milhão de crianças pequenas todos os anos. Milhões de crianças sofrem de infecções intestinais produzidas por vermes e parasitas. No Fórum Infantil Mundial da Água (março de 2004, no Japão), 100 crianças de vários países debateram as mudanças necessárias nas políticas, nos programas e nas atitudes em relação à água e o saneamento. As conclusões foram entregues às pessoas encarregadas de tomar decisões.

Cada prefeito pode fazer as seguintes perguntas: Quantas crianças, em minha cidade, não têm água potável? No Brasil, são 4,5 milhões, só na faixa etária de 0 a 6 anos! Quantas crianças, em minha cidade, moram em casas sem esgoto? No Brasil, são 11,5 milhões.

A Campanha da Fraternidade 2004, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, sobre Água Fonte da Vida, está propondo uma séria reflexão e ação sobre a água e apresentando um projeto de lei para disciplinar o uso da água no Brasil. As crianças serão as maiores beneficiárias das medidas reguladoras daí decorrentes.

Cuidando das nascentes, do rio que banha a cidade, da coleta seletiva de lixo, da adequada canalização do esgoto e conscientizando a população quanto à racionalização do uso e reutilização de água, a cidade estará desenvolvendo uma consciência ecológica, ou seja, a percepção das ligações profundas do homem com a natureza, da interdependência de todos os seres. E isso deve começar na família, na creche, na pré-escola e seguir até a terceira idade.

6. Ser protegida da exploração, da violência e do abuso.Agressões, maus tratos, violência física e psicológica contra as

crianças pequenas se dão, na maior parte, na própria família. Mas também ocorrem nas ruas da cidade e em instituições de atendimento infantil. O Conselho Tutelar, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Juizado e organizações da sociedade civil vêm atuando cada vez mais fortemente para coibir a violência contra a criança. (Identificar as causas e atender também aquele que agride a criança é fundamental () para reduzir a incidência desse crime. Além das ações dessas instituições, o rádio tem um papel importante nessa área.

A Cidade Amiga da Criança deveria ter como lema: nenhuma criança agredida, violentada e maltratada em nossa cidade.

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7. Caminhar, correr, passear com segurança pelas ruas de sua vizinhança.Disparos acidentais de armas de fogo, em casa e na rua, balas

perdidas, o trânsito agressivo, riscos de assaltos e seqüestros, a violência de toda ordem contrastam com a imagem de uma cidade onde as crianças têm direito de brincar, correr, jogar, passear... As cidades têm uma dívida enorme com a infância: retiraram delas o espaço do brinquedo, do movimento, da liberdade. A vida das crianças se recolheu para dentro das casas e apartamentos, mas estes restringem o movimento, a criatividade, o brinquedo. Alternativamente, a livre expressão do corpo foi confinada aos espaços geralmente minúsculos de uma creche ou pré-escola.

A Cidade Amiga da Criança quer devolver-lhes esse espaço e trazer para a vista de todos, nas ruas e praças, nas calçadas e parques, a alegria e a espontaneidade, o riso e as vozes, o movimento e o canto das crianças.

8. Encontrar amigos e brincarAs brinquedotecas, as praças, o parque infantil, os parques

arborizados, as ruas fechadas em determinados feriados para o jogo e a brincadeira são espaços que reúnem crianças e abrem oportunidades para brincar e fazer amigos. Ver, neste Guia, o Capítulo Brinquedotecas.

9. Desfrutar de espaços verdesArborizando a cidade, criando muitos jardins, reservando terreno

para (mais) um parque, conservando-o agradável e atrativo para visitas das famílias com seus filhos pequenos, a cidade estará levando a sério o direito de suas crianças a espaços verdes e contribuindo para sua saúde física e mental (14).

O poeta Thiago de Mello, ao escrever Os Estatutos do Homem, anunciou um tempo mais bonito:

“... Artigo III. Fica decretado que, a partir deste instante,haverá girassóis em todas as janelas,que os girassóis terão direitoa abrir-se dentro da sombra;e que as janelas devem permanecer,o dia inteiro,abertas para o verde onde cresce a esperança” (15).

14 Uma pesquisa, feita por Andrea Faber Taylor, num projeto habitacional, em bairro popular de Chicago, constatou que as crianças que viviam em apartamentos cujas janelas davam vista para um parque, com jardim e área verde, apresentavam menos stress, mais capacidade de concentração e de controlar comportamentos agressivos do que as crianças que viviam em apartamentos que se abriam para outros prédios, muros e paisagem de concreto. Para saber mais http://www.utne.com : How nature heals us. 15 MELLO, Thiago de. Faz escuro mas eu canto. 19ª ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2000.

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10. Ter ar puro para respirar e viver em ambiente não poluídoO problema do ar é mundial. Mas enquanto os países discutem

medidas para salvar a terra da poluição, da degradação do meio ambiente e preservar a qualidade de vida, cada cidade deve estar zelando pela pureza do ar que seus cidadãos respiram.

11. Participar de promoções culturais e eventos sociais.A cidade pode criar diversas oportunidades para as crianças

desfrutarem da cultura local e de outros grupos e povos, como exposições, visitas, projeção de filmes, excursões... E de elas mesmas serem as autoras de exposições. Uma visita às creches e pré-escolas que desenvolvem uma boa pedagogia pode inspirar artistas e promotores culturais a criar eventos e formas de mostrar à sociedade belas manifestações da criatividade infantil.

12. Ser igual a qualquer cidadão de sua cidade no acesso a qualquer serviço, independentemente da origem étnica, da religião, da renda familiar, do gênero ou de alguma condição física ou mental desfavorável.

A Cidade Amiga das Crianças é amiga de todas as crianças. Não aceita que algumas sejam excluídas, que fiquem de fora das coisas boas e bonitas que existem na vida. Quando se dá oportunidade às crianças de recontarem a história da “Festa no Céu” (16), muitas delas colocam todos os bichos no paraíso para se divertirem na festa, mostrando concretamente quanto não aceitam que só alguns animais sejam convidados.

O agudo senso de justiça e igualdade das crianças tem mostrado que a inclusão dos portadores de necessidades especiais nas escolas regulares é possível. Pelo menos não é traumático, como para alguns pais.

Na mensagem das crianças aos chefes de Estado na Seção Especial das Nações Unidas sobre a criança, em 8 de maio de 2002, elas disseram:

“Nós queremos um mundo para as crianças, porque um mundo ao nosso modo é um mundo para todas as pessoas.”

Concretamente...Uma cidade que acolhe, respeita e promove a criança tem:

16 Conto infantil que narra uma festa no céu para a qual foram convidados apenas os animais que voassem. O sapo, desejando também participar, entrou, escondido, na viola do músico urubu e, sem que esse soubesse, foi levado à festa. Tendo sido rejeitado no salão, pelos convidados, retirou-se atrás da porta e adormeceu. Quando acordou, o urubu já havia voltado. De manhã, na hora da limpeza, foi varrido para baixo, vindo a esborrachar-se numa pedra... (e por isso tem a forma achatada e tem os olhos saltados até hoje).

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Um Hospital Amigo da Criança ou procura introduzir nos hospitais que atendem crianças as características do HAC (ver o Cap. ...).

Postos de Registro Civil nos hospitais/maternidades, para que toda criança, ao deixar o hospital, leve consigo sua certidão de nascimento e saia da maternidade como cidadão.

Água tratada, saneamento, coleta de lixo, aterro sanitário.

Iluminação nos bairros e ruas da periferia, dos bairros populares.

Um programa de habitação que procure garantir os meios para que todas as famílias tenham uma casa com o necessário conforto e segurança.

Creches e pré-escolas para atender a toda a demanda na faixa de 0 a 6 anos. Essa pequena história, verdadeira sob muitos nomes, está presente em quase todas as cidades: Maria desce a rua com o bebê no colo, coberto por uma fralda branca. Sete e quinze da manhã. Ela é empregada doméstica e elogia muito a patroa, que a deixa trazer o bebê. Não tem com quem deixá-lo durante o dia. Tinha ficado meses sem ganho algum, porque não encontrava quem cuidasse do filho. Creche, não existe por perto. Para o trabalho, não podia levá-lo. Agora está muito contente: levanta às 6 horas, pega o bebê e toma a condução, protege-o dos apertos e empurrões, pois nesta hora muita gente do bairro vai para o trabalho. Desce na parada mais próxima da casa onde trabalha Depois de caminhar 15 minutos, chega à casa da patroa para mais um dia dividido entre os serviços domésticos e o cuidado de seu filho. Ela tem medo de perder o emprego, porque tem dias que a criança exige mais atenção e acaba não fazendo o serviço ...

Que cidade é esta que cria emprego, atrai mão-de-obra doméstica, mas não se preocupa com as crianças pequenas, que não podem ficar sozinhas enquanto sua mãe e seu pai estão no trabalho?

Brinquedotecas em vários lugares (ver neste Guia o capítulo sobre as Brinquedotecas).

Jardins, árvores, calçadas, praças e parques, para efeito estético, para que o ar seja puro e para que as crianças tenham onde andar, correr, brincar.

Mais importante que todas as formas materiais de atender aos direitos da criança é a atitude interior das pessoas e o comportamento dos adultos na relação com as crianças.

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Por meio de programas de rádio, de televisão, de debates e reuniões, nas escolas e centros de formação é possível desenvolver uma consciência de solidariedade para com todas as crianças e o compromisso político com a cidadania delas. Afinal,

“A cidade é feita de lugares e pensamentos. De lugares e emoções. É feita de gente. Porque, vendo bem, a cidade é o produto das atitudes da gente que a usufrui. Gente concreta, nas situações quotidianas que constroem o mistério de viver” (17).

Sendo assim, as pessoas podem fazer a cidade que querem.

A cidade que acolhe, ama e promove suas crianças diz muitos NÃO: não-violência, não-agressão, não-opressão, não-discriminação por motivo de ...

cor, religião, condição econômica, origem, gênero, manifestação de qualidades ou nível de habilidades ou inteligência,

não-exploração, não-utilização para a vaidade dos adultos,

E diz todos os SIM possíveis, para expressar acolhimento, alegria, respeito, amor...

Sua cidade está disposta a seguir os dez princípios da ONU, aprovados na Reunião de Cúpula sobre a Criança, em maio de 2002?

1. Pôr a criança sempre em primeiro lugar2. Erradicar a pobreza: investir na infância3. Não deixar nenhuma criança para trás: todas têm a mesma dignidade e o

mesmo direito; eliminar qualquer discriminação4. Cuidar de todas as crianças: devem começar a vida da melhor maneira

possível5. Educar todas as crianças, com educação básica de qualidade (que começa

desde o nascimento)6. Acabar com a violência e a exploração das crianças7. Proteger as crianças da guerra8. Lutar contra o HIV/AIDS9. Escutar as crianças e garantir sua participação

17 PACHECO, Helder. A Cidade é um Sentimento. 1996.

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10. Proteger a Terra para as crianças: a diversidade biológica, a beleza e os recursos, que melhoram a qualidade da vida para as gerações atuais e futuras.

Box 1

BRINCANDO NA RUA

Rogério Costa Würdig (18)

Uma fantástica experiência do Brincando na Rua vem sendo desenvolvida desde 2000, no município de Pelotas –(RS) , no extremo Sul do Brasil. Participaram das seis edições do Brincando na Rua aproximadamente: 500 crianças de escolas públicas, 200 universitários, 50 professoras de séries iniciais, 30 pais e dois professores universitários.

Como tudo começou...Um levantamento realizado pelas alunas do Curso de Pedagogia, da Faculdade de

Educação da Universidade Federal de Pelotas, identificou um número reduzido de crianças brincando nas ruas da cidade, tanto no centro como na periferia, bem como a precariedade de espaços públicos (praças, parques, campos) e equipamentos destinados às brincadeiras infantis.

Acrescido a isso , havia uma constante reclamação das alunas das turmas anteriores de não conseguirem ministrar as aulas de Educação Física nas séries iniciais por causa da “agitação” das crianças e das suas próprias dificuldades em brincar com elas. Alegavam que as crianças não sabiam brincar, revelavam uma certa indisponibilidade corporal para sentar no chão, jogar bola e correr pelo pátio e, ainda, que o espaço e o tempo para isso na escola era muito reduzido. Tendo isso como desafio, organizamos uma série de atividades que contribuíssem com a formação de professoras brincantes e viabilizassem o Brincando na Rua.

Hoje, após quase quatro anos, pudemos desdobrar essas atividades em três grandes etapas: 1. memórias da infância (resgate das brincadeiras e jogos da infância por meio de desenhos e/ou maquetes); 2. construção de brinquedos (artesanais e de material reciclável); 3. vivências dos jogos e brincadeiras (para experimentar e sentir de forma lúdica o prazer de brincar). Paralelamente a essas etapas, fomos construindo uma espécie de “livro das nossas brincadeiras” e desenvolvendo estudos sobre a infância e sobre o lugar do brincar e as suas transformações no mundo contemporâneo. Mas, afinal. o que é essa atividade, quais seus objetivos e como foi desenvolvida?

A cara e as pretensões do Brincando na Rua Brincando na Rua consiste numa atividade de caráter lúdico e não competitivo,

desenvolvida preferencialmente numa rua (mas também pode ser numa praça, num campo,

18 Prof. da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas – FaE/UFPel, Doutorando em Educação na Universidade do Vale do Rio do Sinos – UNISINOS e coordenador do Brincando na Rua.

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num terreno baldio, num estacionamento de supermercado, em frente ao Mercado Público...) fechada e sem a circulação de veículos, onde as crianças brincam com os jogos e brincadeiras populares de forma aleatória e alegre, até cansar.

Ao longo das seis edições do Brincando na Rua, procuramos: a)resgatar os jogos e brincadeiras de rua; b)ampliar o repertório de jogos e brincadeiras infantis; c)garantir espaços públicos na cidade para as atividades lúdicas das crianças; aproximar as crianças dos adultos (universitárias, professoras, pais, moradores do bairro...); d)desencadear debates, encontros e ações referentes aos limites e possibilidades de outros Brincando na Rua.

Estratégias para brincar: aproximando a escola da ruaFomos buscar as crianças no local onde passam uma grande parte das suas vidas: a

escola. Geralmente fazemos contato com direção, professoras ou estagiárias da escola com a qual universidade já tem algum vínculo anterior. Solicitamos que cada professora converse com sua turma e explique como é possível brincar e se divertir na rua. Estendemos o convite aos pais, aos funcionários da escola e à vizinhança.

Escolhendo a rua, cuidando da segurança e definindo brinquedos e brincadeiras. A rua escolhida é sempre em frente ou próxima à escola, para facilitar o deslocamento

das crianças, o transporte dos brinquedos, a segurança (19) e, principalmente, para sensibilizar os adultos da necessidade e garantia de espaços públicos para as atividades lúdicas infantis. A cada ano vamos acrescentando novos brinquedos e brincadeiras, sugeridas tanto pelas crianças quanto pelos adultos. Contudo, temos cuidado em preservar as brincadeiras de rua (20), muitas já desconhecidas das crianças. Todo o material é disposto ao longo da rua de forma que o ambiente seja acolhedor.

A chegada das crianças e a explosão de risadas e de alegria Ao chegarem, as crianças são divididas em grupos e convidadas a brincar com os brinquedos e participar das brincadeiras. Durante a primeira hora os grupos tendem a permanecer os mesmos, fazendo rodízio entre as brincadeiras. Posteriormente, novos grupos vão sendo formados e o tempo em cada brincadeira passa a depender da vontade, da curiosidade, da alegria, da imaginação, dos significados, sentimentos e sensações de cada uma das crianças. Os adultos acompanham as atividades e, sempre que se permitem, também brincam.

Brincar é bom e dá prazer!Durante todas as edições do Brincando na Rua nunca tivemos problemas, confusões

ou atitudes violentas entre as crianças. Como não existe preocupação e nem estímulo à competição, todas as crianças têm tido a oportunidade e o prazer de brincar pelo brincar.

19 O fechamento da rua é solicitado à Secretaria Municipal de Transportes que, após conceder o pedido, autoriza a Brigada Militar a interromper o trânsito, por um tempo determinado (em torno de 4 horas), e a manter a segurança do local. Além disso, todas as crianças são identificadas com um crachá, bem como têm autorização dos pais para participar da atividade.20 Constituem esses brinquedos e brincadeiras: amarelinha – pé de lata – perna de pau – bambolê – bilboquê – 5 marias – elástico – rodas cantadas – bolinhas de gude – boliche – pneus – câmara de pneu – vai-e-vem – cilindros de papelão – colchões – futebol de preguinhos - tênis de garrafa – bastões – carrinho de rolimã ou de lomba – corda – boliche – arquinho – jogo de taco –

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Box 2“Leitura na Calçada”

Em 1992, Edméia descia a rua numa de suas caminhadas diárias. A professora caminhava sem se importar com a pressa do mundo, que atropela os sentimentos, os sonhos, a imaginação; a razão, o homem, a vida. “Vou devagar e só, porque tenho um encontro marcado comigo mesma. Não posso me perder”, conta. Nesse jogo, “brincando de esconde-esconde com o sol se pondo e de ser múltipla com as nuvens que se transformam”, aconteceu o primeiro encontro com as crianças, que a observam e, agora, se aproximam da caminhante, pedindo dinheiro, bala, brinquedo. São crianças pequenas e pobres, entre 2 e 6 anos, que ficam brincando ou perambulando pelas ruas. “Dinheiro não tenho,” responde a professora,” mas tenho outra coisa que vocês vão gostar: sei contar histórias. Querem ouvir?” A professora conta uma história. E segue. No dia seguinte, voltam as crianças. Não mais pedem dinheiro. Pedem história. E a professora interrompe sua caminhada para sentar embaixo de uma árvore, com cinco ou seis crianças, para contar outra história. E escutar seus companheirinhos que também contam suas histórias de vida

Toda tarde, as crianças vêm trazendo outras crianças. Mães vêm com bebês no colo, vêm meninas de dez anos com irmãozinho nos braços e todos vão rodeando a professora que as vai encantando com fábulas, contos, histórias. Aos poucos, entram as canções, as brincadeiras de roda, a vontade de desenhar, a leitura. E assim surge o Leitura na Calçada*, projeto construído, dia a dia, coletivamente, com as crianças.

Essa atividade espontânea, aos poucos, foi-se ampliando sem perder suas características lúdicas e afetivas; privilegiando o espaço da rua na atenção à criança pequena, de baixa renda. A brincadeira atrai brincantes e passantes na rua, que vão chegando espontaneamente e tomando conta da calçada, juntamente com os livros, brinquedos e bichos de estimação.

Depois da sessão de história, as crianças levam livros para casa e pedem a suas mães que leiam para elas. Os pais, os irmãos mais velhos, os vizinhos, até o “rapaz do bar”, entram nesta ciranda. E vão construindo com o livro ponte de afeto entre o adulto, a criança e seus pares; aprendendo a convivência, o respeito, a solidariedade; construindo o sonho da criança cidadã, escrevendo uma história de amor com final feliz, além de alimentar a fantasia, despertar a criatividade e o gosto pela leitura e escrita.

Os livros são emprestados às crianças sem nenhum registro. Saem da calçada e entram em casa e nas salas de aula, envolvendo os adultos, que começaram a pedir livro para eles também lerem. Donde vem tanto livro? O acervo foi enriquecido com o prêmio recebido da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, doação de editoras e de pessoas da comunidade.

Hoje, o projeto é acontecimento do cotidiano da cidade. E a leitura, mais que um hábito, é um prazer para essas crianças pobres do interior de Minas, uma oportunidade de desenvolver a auto-estima, de lidar com os conflitos e, sobretudo, de acreditar na solidariedade humana. Por ano, cerca de 200 crianças e adolescentes, distribuídos em vários grupos, não-fixos, em diversas calçadas da cidade se envolvem nessas atividades. Cada criança lê, em média, 20 livros por ano. E as que não sabem ler, ouvem e vêem, na voz dos que lêem, as fábulas, os contos, as histórias.

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Edméia, com “Leitura na Calçada,” reinventa a esperança para elas.

* O projeto foi classificado em 1º lugar no concurso “Os Melhores Programas de Incentivo à Leitura, junto a crianças e jovens de todo o Brasil”, promovido pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil-FNLIJ e PROLER, em 1998.

Edméia Faria é mineira, escritora, especialista em Educação Infantil e membro efetivo da Comissão Mineira de Folclore – CMFL. ([email protected]).--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Box 3BIOCONSCIÊNCIAS

A preservação do meio ambiente tem muito a ver com os direitos da criança à vida, à saúde, a um ambiente saudável; com o direito a brincar em áreas seguras, limpas e bonitas.A consciência das pessoas e as práticas de preservação do ambiente – bioconsciência - , por sua vez, são objetivos importantes de uma cidade que se queira amiga das crianças.

O Programa Bioconsciência, da Fundação Banco do Brasil, dissemina práticas ambientais de racionalização do uso e reutilização de recursos naturais. Fundamentado na responsabilidade socioambiental, o programa vê os resíduos como insumos para novas cadeias produtivas. Com foco inicial nos resíduos sólidos, compartilha informações e práticas visando estimular os gestores públicos a implantar a coleta seletiva nos municípios brasileiros. O Cempre - Compromisso Empresarial para a Reciclagem – é o parceiro nesta fase.

A segunda etapa do programa focará os recursos hídricos. Fará a disseminação de tecnologias que evitem a contaminação de mananciais, rios, lagos e lençóis freáticos, e contribuam para a conscientização da população quanto ao consumo desordenado, mediante a indução de atitudes de redução, racionalização e reutilização de água.

Para saber mais: http:/www.bb.com.br/appbb/portal/bb/cdn/atc/Bconsciencia.jsp