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11 CULPABILIDADE E SEUS FUNDAMENTOS EMPÍRICOS Dirk Fabricius 1 1. É A PSICANÁLISE RELEVANTE PARA AS CIÊNCIAS CRIMINAIS? Na primeira parte da conferência, procurarei demonstrar que o princípio da culpabilidade se encontra numa condição precária. Precária porque nós, penalistas e criminólogos, não sabemos o que é culpabilidade. Por outro lado, deve também ser demonstrado que um indivíduo só pode viver como cidadão num Estado democrático de direito, na medida em que tiver a capacidade de compreender o injusto e agir de acordo com essa compreensão. Se isso é certo, então não podemos prescindir da culpabilidade. Na segunda parte, que é central, tentarei mostrar que não só a psicanálise, como a psicologia cognitiva têm a dizer sobre o desenvolvimento da capacidade tanto de compreensão do injusto quanto de autodeterminação. Neste contexto, abordarei também o que por ora sabemos, em termos empíricos, acerca dos efeitos da pena sobre o desenvolvimento da capacidade de culpabilidade. Daí se retirará a consequência político-criminal, de que se ocupa a terceira e menor parte desta conferência. 1 Dirk Fabricius nasceu em 1949. Estudou Direito e Psicologia. No período de 1977 a 1980, trabalhou como advogado nas prisões de Berlim. Entre 1980 e 1995, concluiu o seu doutoramento (1985) e foi contratado como professor pela Faculdade de Direito da Universidade de Hanover. Desde 1996 tem trabalhado como professor de Direito Penal, Criminologia e Psicologia Jurídica. Actualmente é Professor Catedrático no Johann Wolfgang Goethe-Universitat (Frankfurt). A conferência que publicamos foi proferida nas III Jornadas do Núcleo de Direito e Psicanálise da Universidade Federal do Paraná, e primeiramente publicada, com um prefácio de Juarez Tavares (tradutor) e Helen Hartmann (organizadora), na Juruá Editora (Curitiba, 2006). Rectificamos a ortografia do Português e agradecemos o autor por ter aceite esta nova edição. Afreudite - Ano III, 2007 - n.º5/6 pp. 11-38

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Dirk Fabricius

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    CULPABILIDADE E SEUS FUNDAMENTOS EMPRICOS

    Dirk Fabricius1

    1. A PSICANLISE RELEVANTE PARA AS CINCIAS CRIMINAIS?

    Na primeira parte da conferncia, procurarei demonstrar que o

    princpio da culpabilidade se encontra numa condio precria. Precria

    porque ns, penalistas e criminlogos, no sabemos o que culpabilidade.

    Por outro lado, deve tambm ser demonstrado que um indivduo s pode

    viver como cidado num Estado democrtico de direito, na medida em que

    tiver a capacidade de compreender o injusto e agir de acordo com essa

    compreenso. Se isso certo, ento no podemos prescindir da

    culpabilidade.

    Na segunda parte, que central, tentarei mostrar que no s a

    psicanlise, como a psicologia cognitiva tm a dizer sobre o desenvolvimento

    da capacidade tanto de compreenso do injusto quanto de autodeterminao.

    Neste contexto, abordarei tambm o que por ora sabemos, em termos

    empricos, acerca dos efeitos da pena sobre o desenvolvimento da capacidade

    de culpabilidade. Da se retirar a consequncia poltico-criminal, de que

    se ocupa a terceira e menor parte desta conferncia.

    1 Dirk Fabricius nasceu em 1949. Estudou Direito e Psicologia. No perodo de 1977 a 1980,trabalhou como advogado nas prises de Berlim. Entre 1980 e 1995, concluiu o seu doutoramento(1985) e foi contratado como professor pela Faculdade de Direito da Universidade de Hanover.Desde 1996 tem trabalhado como professor de Direito Penal, Criminologia e Psicologia Jurdica.Actualmente Professor Catedrtico no Johann Wolfgang Goethe-Universitat (Frankfurt). A confernciaque publicamos foi proferida nas III Jornadas do Ncleo de Direito e Psicanlise da UniversidadeFederal do Paran, e primeiramente publicada, com um prefcio de Juarez Tavares (tradutor) e HelenHartmann (organizadora), na Juru Editora (Curitiba, 2006). Rectificamos a ortografia do Portuguse agradecemos o autor por ter aceite esta nova edio.

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6pp. 11-38

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    Dirk Fabricius

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6

    2. A SITUAO PRECRIA DO PRINCPIO DA CULPABILIDADE

    2.1 O esvaziamento do princpio daculpabilidade na dogmtica jurdico-penal

    Minha primeira tese que a culpabilidade um conceito cada vez

    mais vazio, pelo menos para os juristas; equiparvel, portanto, ao unicrnio:

    uma bela representao, mas sem existncia. As formas que esse

    esvaziamento tomou no surgiram simultaneamente. Elas persistem, porm,

    nos dias actuais sem que pese toda sua incongruncia.

    Pode-se falar com maior propriedade de um conceito substancial de

    culpabilidade em termos metafsicos. O problema est, contudo, na

    impossibilidade de separao entre culpados e no culpados: esta limitao

    depende de caractersticas diferenciadoras assentes no mundo sensvel.

    De todo o modo, ficariam excludos os certamente inimputveis, acerca dos

    quais no recai qualquer dvida sobre a incapacidade de culpa. Para os

    demais, que compem a grande maioria, permanece impossvel decidir se

    devem ser julgados culpados ou no culpados.

    A crtica a esse conceito metafsico, que vincula culpabilidade a uma

    liberdade de vontade empiricamente no verificvel2, estimulou a concepo

    do juzo de culpabilidade social-comparativo. Essa concepo postula que

    no se pode dizer sobre um indivduo se ele foi de facto capaz de culpabilidade

    e, por isso, culpado. Poder-se-ia, porm, constituir uma pessoa comparativa,

    que serviria de parmetro para o juzo. Esta soluo pragmtica afronta,

    contudo, a determinao legal, que se baseia na individualizao, nas

    relaes pessoais e, por conseguinte, no prprio indivduo.

    Uma outra concepo reconhece que a culpabilidade no pode ser

    apreendida a partir da metafsica. Ela afirma que a culpa somente pode ser

    atribuda. Os critrios de atribuio seriam diversos e muito variveis.

    Tampouco essa ideia se compatibiliza com a determinao legal. A lei exige

    para a comprovao da culpabilidade a interveno pericial3: os peritos devem

    contribuir para a determinao de facto da culpa.

    2 Aqui no se deve confundir a iluso com a experincia: aces desencadeadas experimentalmentepor estmulos cerebrais so interpretadas pelas cobaias, num momento posterior, como deciseslivres. Cf. Peter Singer.3 No caso da possvel imposio de uma medida de segurana, exigida pela lei: 246a StPO.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    Ainda mais adiante vo aqueles que querem reconhecer no princpio

    da culpabilidade uma mera exigncia decorrente do princpio da

    proporcionalidade, como faz Roxin.

    Em resumo, o que se constata que o objecto culpa no existe mais

    na representao dos juristas. Ao nome, j desprovido de qualquer contedo,

    so atribudos conceitos que devem preencher uma funo dentro do aparato

    da justia penal. A consequncia inevitvel que tambm os autores

    individuais sejam funcionalizados.

    2.2 O desprezo do princpio da culpabilidade na criminologiaBasta um ligeiro olhar sobre os manuais e dicionrios de criminologia

    para comprovar que este ramo das cincias criminais se ocupa igualmente

    pouco da culpabilidade.

    O primeiro e bvio motivo para tanto o facto da criminologia, como

    cincia emprica, no poder trabalhar com uma concepo metafsica.

    Alm do mais, a criminologia ainda est arraigada a uma tradio

    behaviorista e de relativismo cultural. Por esse motivo, ela no est em

    condies de abarcar a complicada vida interior humana, o mundo interior

    dos indivduos como tais, e, portanto, de descrever e explic-los

    adequadamente no seu funcionamento e estrutura. Um terceiro ponto

    que a criminologia padece do fascnio pelas grandes cifras; com isso

    dificilmente comporta em seu programa de pesquisa a reduo a poucos

    casos como requer a investigao de fenmenos internos nos seres

    humanos.

    A postura do relativismo cultural obriga assuno de uma posio

    legalista ou scio-positivista. O que quer dizer, por exemplo, que direito e

    lei no se podem mais diferenciar e, portanto, a ideia de leis injustas toma-

    se completamente estranha.

    2.3 Por que as cincias criminais no podemnem devem prescindir do princpio da culpabilidade?

    Poder-se-ia objectar, ento, que toda essa discusso inteiramente

    suprflua. Mesmo que no houvesse culpa, ainda assim deveramos conviver

    com o facto de que ela est mencionada na lei. Deveramos, pois, por meio

    de interpretaes e procedimentos prticos, satisfazer a exigncia legal,

    conquanto no pudssemos aproveitar efectivamente a culpabilidade.

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    O que pretendo demonstrar na sequncia que as capacidades

    nomeadas na lei por ocasio do juzo de culpabilidade so necessrias para

    que o indivduo possa ser considerado como cidado. Ou, formulado de

    maneira mais relativa: o bom funcionamento do Estado democrtico de

    direito varia de maneira directamente proporcional ao gozo destas

    capacidades pelos indivduos que nele vivem, isto , ao nvel mdio dessas

    capacidades nos seus indivduos.

    A desconsiderao desta relao vincula-se tradio de um conceito

    de criminalidade excessivamente simplrio. Esse conceito no guarda

    correspondncia com diversos tipos penais e acaba por exclu-los da ideia

    de criminalidade. O enfoque centrado nos autores oriundos das camadas

    sociais inferiores leva ao tratamento da criminalidade como mera expresso

    de uma obedincia falha, de um controle defeituoso dos instintos e impulsos

    ou, em sentido contrrio, como expresso de fortes impulsos instintivos.

    Nesses ltimos casos, descuida-se o facto que os autores adquirem essas

    caractersticas em virtude de seu crescimento num ambiente marcado por

    uma pobreza relativa, tanto material quanto cultural. Essa condio no

    lhes deixa alternativa seno a da sobrevivncia. Como as causas da

    criminalidade so causadas? Trata-se de uma questo social.

    O que tampouco se percebe neste contexto que muitos factos

    punveis so resultados de dilemas morais; de dilemas em face dos quais

    diferentes sistemas normativos respondem de maneira variada e

    parcialmente contraditria questo: o que devo fazer?.

    Um segundo aspecto o facto de que a maior parte das instituies

    sociais pretende produzir o comportamento adequado a partir da disciplina.

    Sabe-se, no entanto, que esses mtodos de incremento da predisposio

    para a obedincia estimulam antes a agresso, a crueldade e o sadismo.

    Por fim, ainda ficam de fora dos holofotes da ateno pblica os delitos

    que compem a chamada macro-criminalidade. Esses nem sequer so

    reconhecidos e nomeados como crimes.

    2.3.1 Conflitos normativos:exigncias contraditrias, dilemas e o crime como sada

    Os sistemas normativos dos quais se podem extrair exigncias

    contraditrias de aces e omisses so, essencialmente:

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    - A ordem de um superior hierrquico

    - A lealdade/confiana

    - Exigncias de adequao ao grupo

    - a honra

    - A lei

    - O direito (moral)

    Dentro destes sistemas podemos agora ordenar no s as aces

    tpicas que correspondem observncia ou ruptura dos respectivos

    imperativos normativos, como tambm os sentimentos comuns (de todos

    os participantes e, com frequncia, tambm dos espectadores) e as sanes

    e reaces caractersticas. A seguinte tabela provisria e meramente

    aproximada:

    Cada sistema normativo exige uma percepo e interpretao

    especfica da situao apresentada. Os sistemas normativos provocam, alm

    disso, sentimentos diferenciados, que, por sua vez, estimulam e conduzem

    a aces distintas. Da poder falar-se em procedimentos de regulao social.

    Comum a estes procedimentos de regulao social a sua funo de inibir

    uma necessidade, um desejo ou um impulso do indivduo, na medida em

    que eles antecipam o receio da vergonha, da culpa ou da perseguio. Eles

    ainda funcionam mesmo depois de cedidos aos impulsos e satisfeita a

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    necessidade: a partir da manifestao de facto dos sentimentos de vergonha

    e culpa, do medo da retribuio e da pena, e atravs do estmulo de aces

    de superao e reparao. A ruptura destes sentimentos obedece, portanto,

    a certas regularidades. Essas regularidades decorrem em parte de um

    conhecimento emprico evolutivo, em parte de um conhecimento emprico

    aprendido de modo implcito e ontogentico, e, provavelmente em sua menor

    parte, de regras, determinaes e proibies apreendidas explicitamente. A

    possibilidade de um conflito interno , por conseguinte, permanente. A

    capacidade de inibio e a representao da regularidade podem ser uma

    adaptao inata ou, a partir da, compostas: a socializao pode cri-las,

    fortalec-las, inibi-las ou at destru-las.

    Com base nisso, pode-se falar em crime quando, num indivduo, o

    peso relativo do comando jurdico demasiadamente fraco, frente a um

    simples ou a um conjunto de outros comandos.

    Eis, ento, alguns exemplos comuns para essas situaes de conflitos:

    Caso 1:Os polcias K e L perseguem um ladro de automveis, surpreendido

    em flagrante. O ladro encontrara no porta-luvas do carro uma pistola, com

    a qual atira contra os polcias. K grita-lhe para se desfazer da arma. E ele

    f-lo. K pra a perseguio para recolher a pistola. Enquanto isso, L persegue

    o ladro, atira-lhe nas costas, causando-lhe a morte.

    Caso 2:E, mulher de F, assiste passivamente forma como seu marido

    maltrata, ao menos uma vez por semana, a filha de 3 anos e o filho de 10.

    Embora reprove a atitude, ela permanece quieta. Foi educada para obedecer.

    O pior para a famlia a exposio dos factos internos. Alm disso, teme a

    violncia de F, mas tambm tem medo de seus prprios parentes, que lhe

    reprovariam qualquer comunicao polcia. Aps um ano, ela dirige-se a

    um posto de assistncia social. A assistente social assegura a E o silncio,

    mas, depois de dois meses, informa a polcia.

    Penso que estes casos correspondem mais s regras do que s

    excepes. Sendo assim, podemos concluir que devemos guardar distncia

    do modelo simplista de um conflito interno entre impulso e conscincia.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    2.3.2 A superao do conflito normativo atravsdo indivduo exige um sistema normativo interno

    O nosso sistema jurdico pressupe que os cidados j tragam consigo

    esse sistema normativo ou o tenham internalizado. Somente desse modo,

    eles se imporiam nas situaes de conflito em favor do direito e contra a

    ordem ilcita, contra os imperativos de uma gramtica da honra, ou contra

    uma presso de adequao ao grupo contrria ao direito. Comportar-se de

    acordo com a moral, a honra, a lealdade, o direito e/ou a ordem implica a

    possibilidade de se tomar a deciso a partir de um procedimento.

    Exige-se especialmente dos funcionrios pblicos uma especial

    capacidade de diferenciao: eles no s no podem obedecer a uma ordem

    antijurdica, como devem protestar contra a ordem que assim considerem.

    Mas eles s agiro dessa maneira se dispuserem no s do conhecimento

    sobre a regulamentao, como tambm de uma firme convico de que o

    comando legal possui, em regra, um grau mais alto de legitimidade do que a

    ordem de um superior hierrquico por exemplo, em face da deciso

    democrtica que o ampara.

    Como se pode observar, dos diversos sistemas normativos nos quais

    o homem se encontra retiram-se imperativos contraditrios que conduzem

    a situaes de conflito perceptveis subjectivamente. A partir da, deve-se

    admitir que os indivduos dispem, grosso modo, de um sistema normativo

    interno, no qual estes sistemas se fazem notar atravs de disposies,

    motivaes ou inibies de conduta.

    2.3.3 O desenvolvimento, a estrutura e o funcionamentodo sistema normativo interno so acessveis pesquisa emprica

    A biologia, a psicologia e a psicanlise j proporcionam conhecimentos

    formidveis acerca do desenvolvimento tanto filogentico quanto ontogentico

    de um tal sistema normativo interno. Elas tm pesquisado, igualmente, a

    estrutura e o funcionamento desse sistema em associao com condies

    externas de socializao, por exemplo.

    A biologia demonstrou, com base na pesquisa de primatas, que

    modelos de comportamento que em relao aos homens atribumos

    existncia da conscincia j se manifestam em primatas no-humanos.

    Um bom exemplo o comportamento conciliatrio.

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    Os neurologistas mostraram que deficits em regies especficas do

    crebro, por enfermidades ou acidentes, causam distrbios em pessoas

    anteriormente normais que condicionam a conduta criminosa4. A transio

    para um paradigma computacional nas neurocincias e na psicologia j d

    os primeiros passos em direco simulao, tambm autorizada pelas

    funes da conscincia.

    Conquanto se esteja muito distante de uma investigao definitiva e

    faltem modelos e concepes consensuais em diversos pontos, foroso

    que se reconhea, por outro lado, que a situao se alterou drasticamente

    desde os tempos de Kant. Seu deslocamento da questo da moralidade, da

    culpa e da conscincia para a metafsica mas j entre as categorias da

    percepo correspondia ao estgio das cincias empricas da poca, que

    eram essencialmente a fsica, e, em especial, a mecnica. Esse

    deslocamento improdutivo tanto para a prtica quotidiana quanto para a

    prtica jurdica pode ser desfeito pouco a pouco. o que podemos e devemos

    fazer.

    Desse vasto campo de pesquisa emprica esboado, pretendo trabalhar,

    na sequncia, principalmente os conhecimentos da psicanlise. No que

    toca a culpabilidade, os conhecimentos da psicanlise so os mais avanados

    e dispem de um material clnico rico como tambm de concepes tericas

    desenvolvidas.

    3. CULPABILIDADE NA PSICOLOGIA/PSICANLISE

    Proponho a seguinte compreenso de culpabilidade:

    Culpabilidade assinala a relao que, atravs da aco de um

    indivduo, perde seu equilbrio e passa a necessitar o contrabalano pelo

    causador do desequilbrio5.

    Na definio deve ser destacado pelo causador, que, por sua aco,

    reconhecida subjectivamente como sua, estabelece uma relao pessoal

    com o lesado ou a altera de modo bastante significativo. por isso que

    uma simples compensao do dano impessoal no bastante ou sequer

    necessria em todos os casos para a compensao da culpabilidade. Como

    4 Especialmente no crtex rbito-frontal. Essa regio competente para a imputao de valores abens, como pesquisado recentemente em macacos. Cf. Nature.5 Deixo aqui em aberto os critrios desta necessidade.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    ainda ser trabalhado, a funo de um procedimento de culpabilidade a

    reconciliao, o que quer dizer que ele se localiza num nvel pessoal. A

    referncia pessoal , portanto, central: trata-se de danos de relacionamento.

    O desequilbrio resulta da dor, do dano, do mal causado ao outro.

    Esse desequilbrio pode ser medido pelo autor, pelo lesado e, em

    princpio, tambm por um terceiro.

    Sentimentos de culpa so o sinal. A necessidade de uma aco de

    compensao causada por uma conscincia de culpa a assimilao cognitiva

    dos sentimentos de culpa: reviso da realidade sinaliza ao autor. Os seres

    humanos dispem de mdulos a partir dos quais podem planejar e executar

    uma aco adequada. Aces adequadas nesse contexto so especificamente

    reparao e/ou compensao; em todo caso, portanto, interaco social.

    3.1 Ponto de apoio: sentimentos de culpacomo instrumento de medio

    Medo sinaliza perigo; dor indica leso ou doena. Todos os sentimentos

    e sensaes servem orientao e tm um objecto de referncia. Os

    sentimentos podem errar: pode-se temer, sem que haja perigo; o medo

    pode cessar, ainda que perdure o perigo.6

    Quando os sentimentos se tomam excessivamente fortes, eles podem

    prejudicar a capacidade de aco, como ocorre no caso do pnico. Sentimentos

    cujo objecto de referncia se perdeu podem atormentar: os medos e os

    sentimentos de culpa, cujos motivos so nebulosos, ou mesmo inexistentes.

    Pense-se na chamada dor fantasma.

    O sentimento de culpa um sentimento complexo, no qual se

    misturam o medo da perda do relacionamento com o prximo, preocupao

    para com ele, afeio e boa vontade7. Sentimentos de culpa nos alertam

    para o facto de que magomos algum. Eles levam fuga, para fugir da

    vingana, mas tambm reparao8. No caso da culpabilidade, se a

    considermos como objecto dos sentimentos de culpa, trata-se de um mal

    que infligimos e de uma razo para a reparao.

    6 Distrbios neurolgicos nomeadamente o surgimento do medo sem que se conhea o motivo,decorrente de leso no hipocampo, e, por outro lado, devido leso na amgdala, a assimilao de umacontecimento assustador sem qualquer alterao emocional comprovam o descompasso entre cognioe emoo, entre memria declarativa e emocional como possibilidade e tambm como distrbio. Cf.Roth, 1997, p. 211.7 HIRSCH, 1997, p. 69, com apoio em Guntrip.8 Esta uma observao comum na psicanlise. Ela se coaduna, porm, com outras representaesde culpa (poder o discurso que produz a culpa, cf. SG).

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    Os sentimentos de culpa podem ser submetidos a uma reviso da

    realidade: em face da medida da culpabilidade, o sentimento excessivamente

    forte ou fraco? Neste processo, os motivos conscientes ou no , as

    intenes e as paixes, o desejo de destruio e de imposio de dor so de

    grande importncia o que remete ao carcter pessoal da relao de

    culpabilidade. Boa parte das psicanlises se dedica questo de se, nos

    casos de negligncia consciente ou no, no se perseguiu uma m inteno

    inconscientemente. Ou, pelo contrrio, uma suposta m inteno no se

    deixou traduzir na aco concreta.

    Mesmo que se carea de um instrumento que permita uma medio

    precisa, pode-se, por outro lado, a partir de discrepncias claras e de um

    processo de aproximao, concluir que uma tal verificao existe. Nessa

    reviso da realidade, os sentimentos de culpa podem se desenvolver em

    conscincia de culpa9. Caso haja um deslocamento eu me julgo culpado

    em face de X, enquanto Y de fato o afectado; um sentimento de culpa

    antigo, que buscou um novo objecto (uma aco lesiva a X); se eu herdei

    uma culpa e se eu deveria entrar na posse dessa herana? (uma pergunta

    que se imps aos alemes de minha gerao, cujos pais lutaram, trabalharam

    e educaram sob o regime nacional-socialista) - haveria, ento, ainda que eu

    no tivesse efectuado qualquer aco que me houvesse aproveitado,

    oportunidade de alguma compensao, uma vez que isso seria melhor para

    a minha vida social? Eu estou preso a algum que pode tocar o meu teclado

    de sentimento de culpa?

    A conscincia de culpa pode contribuir para a coeso social atravs

    da integrao do culpado na comunidade. Sem sentimentos de culpa, no

    se pode enxergar o mal causado. Se os seres humanos no tivessem

    sentimentos de culpa, no haveria freio para a escalada de violncia e da

    agresso. E caso a culpabilidade permanea no trabalhada, a ferida se

    cicatriza mal. Desejos de vingana, ressentimento e rancor no lesado, medo

    e agresso preventiva no autor levam facilmente a um ciclo entre autor,

    vtima e perseguidor, de consequncias destrutivas.

    Assim definida, a apreenso consciente da culpa seja pelo autor,

    pela vtima ou por terceiro no requisito de sua existncia. A leso no

    notada ou no lembrada10 pode, em princpio, fundar uma relao de

    10 Por exemplo, a exposio de algum a amianto ou a irradiao nuclear.

    9 Paramo-ortega, 1985.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    culpabilidade de acordo com a compreenso aqui apresentada. Do mesmo

    modo que existem doenas que no causam dor (e por isso mesmo podem

    se desenvolver fora de controle), pode haver culpa no apreendida. E isso

    tem tambm suas consequncias negativas: a relao entre autor e vtima

    permanece oblqua surgem desconfiana e retraco sem que os

    participantes saibam a razo. Em certas ocasies, um terceiro pode perceber

    o problema e reagir a ele (vais deixar que isso te acontea? versus no

    achas que deves fazer algo para compensar?).

    A apreenso da culpa, a sua ponderao realstica, o desenvolvimento

    de um programa de aco apropriado podem ser obstados tambm por defesa

    (denegao, projeco etc.). Estes mecanismos de defesa so fomentados

    social e institucionalmente, so especialmente eficazes e com consequncias

    gritantes, como mostram a condecorao de soldados bem-sucedidos em

    execues, a homenagem a promotores com muitas condenaes

    especialmente condenaes morte , a grupos de extermnio etc.

    O instrumento de medida da culpabilidade individual aponta, portanto,

    a diferena entre o relacionamento social apreendido e uma representao

    ideal de equilbrio, como tambm a produo daquele que se sente culpado.

    No se exclui que tal medidor de culpabilidade tambm funcione para

    relaes nas quais o operador no participe.

    3.2. O desenvolvimento da capacidade de culpabilidade do indivduoNa sequncia me valerei largamente da literatura mais recente de

    psicanlise. De modo complementar, tambm utilizo a da psicologia cognitiva

    e das teorias behavioristas da aprendizagem.

    3.2.1 O desenvolvimento do superego:compreenso do injusto e capacidade de determinao

    O ser humano educado para o comportamento moral uma ideia

    que ainda prevalece. Ela aparece em duas variantes. Primeiramente, no

    pano de fundo da antropologia, que identificou o estado da natureza com o

    sangue nos dentes e nas unhas, mesmo entre os homens. O recm-

    nascido, no educado, seria como uma destas feras, carente de educao

    repressiva, Dever-se-ia inculcar ordens para fazer dele um homem

    decente. A concepo de Freud, segundo a qual o superego surge,

    primordialmente, da identificao com o agressor, tambm se ampara numa

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    antropologia negativa, que assenta na rea da pedagogia negra11 . A variante

    moderna encontra-se na internalizao da norma. Esta est ligada a uma

    mudana para a ideia de que a criana seria um quadro em branco, no qual

    a sociedade se inscreveria. No se parte mais, portanto, da natureza como

    m. Trabalha-se antes com um modelo de aprendizado pelo exemplo: no

    processo de socializao, a criana incorpora as normas vividas e pregadas

    pelos seus pais. Os pais (seu prprio sistema normativo interno)

    transformam as normas da sociedade e as transmitem criana. O autor

    propriamente dito a sociedade12.

    No entanto, pesquisas na psicologia, inclusive na psicanlise, e na

    pedagogia nomeadamente pesquisas de lactantes, de crianas pequenas

    e de socializao mostram, cada vez mais, como ambas as variantes so

    inadequadas, mesmo a partir de uma perspectiva interna. Estas pesquisas

    baseiam-se em descobertas fruto da investigao em primatas Peacemaking

    among primates13 , e na antropologia/etnologia que projecta uma imagem

    completamente diferente do estado da natureza14. Caso se aceitem, com

    amparo nessas pesquisas, estes mdulos do sistema normativo interno

    condicionados geneticamente, pr-culturais, ento instala-se no indivduo

    humano um conflito no apenas entre natureza e cultura, mas, pode-se

    dizer, j no interior da natureza,

    Um avano adicional no conceito de um sistema normativo interno

    resulta da diferenciao entre a vergonha e a culpa, na descoberta do dilema

    vergonha-culpa15.

    Outra modificao decisiva na concepo original decorre do

    questionamento de quantas regras morais explcitas ns apreendemos em

    comparao com as regularidades implicitamente apreendidas16. Como

    mostra a investigao sobre Tacit Knowledge and Implicit Learning17, no se

    11 O Superego seria uma instncia psquica arcaica, brutal, estpida e corrupta, cujo vocabulriototal se constituiria numa s palavra: no e seria a manifestao das experincias que a criana nopde processar, como escreve DEVEREUX, 1967, p. 357. Sobre ditados do Superego, SPl1Z, 1958,p. 93; sobre o desenvolvimento histrico, HALBERSTADT-FREUD, 2000.12 O pai como servo da sociedade. DEVEREUX, 1972, p. 90.13 WAAL, 1989.14 A culpabilidade , portanto, mais antiga que a instituio. A instituio pde se apropriar daculpabilidade Cf. NIEHAUS, 2002, p. 566, com apoio em LEGENDRE.15 Isto compatibiliza-se com a psicologia cognitiva, bem como com a diferena entre normasconvencionais e ps-convencionais, mas tambm com a diferenciao jurdico-filosfica entre obom e o lcito.16 WILSON, 1994, p, 238.17 REBER,1993.

  • 23

    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    deve pressupor que a regularidade seja representada ou apreendida com

    uma regra. Tampouco se deve supor que a regularidade, que o conflito interno,

    necessariamente seja consciente certamente no o em todos os casos e

    em todos os procedimentos. Assim como aprendemos a falar com correco

    gramatical, mesmo sem o conhecimento das regras, ns tambm aprendemos

    muitas normas implicitamente e as carregamos como conhecimento

    silencioso o mesmo vale para a matemtica bsica18. Da mesma maneira,

    nas aces morais orientamo-nos, primeiramente, por prottipos19, aos quais

    ordenamos os casos actuais. E, possivelmente, apenas no caso de dilemas

    morais, as regras explcitas entram em jogo, Especialmente quando as leis

    so questionadas, o aspecto cognitivo est sempre presente a conscincia

    jurdica. Esse aprendizado predominantemente implcito e em grande

    velocidade no pode ser explicado sem adaptaes inatas.

    Ns devemos partir, portanto, de um sistema normativo interno

    autnomo e que se refere culpa e vergonha , em oposio a um

    sistema heternomo. Pode-se pensar tambm num sistema em que as

    partes isoladas so determinadas heteronomamente e, com isso, suporta

    perdas de autonomia. Mentzos cunhou o termo conscincia autnoma20.

    De todo o modo, a separao autnomo/heternomo tambm correcta

    para a regulao da vergonha, na qual um sistema de vergonha heternomo

    dificilmente tolera uma conscincia autnoma a heteronomia tem entrada

    para ambos atravs de imposio de obedincia.

    Na sequncia, primeiramente buscarei contrastar tendo em vista

    que o contraste dado por tons intermedirios em cor e brilho que todos

    ns podemos passar regulao heternoma, enquanto uma passagem

    autonomia s ocorre com um esforo especial.

    Na medida em que a regulao atravs de obedincia se torna

    dominante, o verdadeiro si mesmo (Selbst) empurrado para a

    clandestinidade, e a conscincia narcotizada e silenciada. Tanto o

    desenvolvimento e cultivo da prpria identidade podem ser prejudicados

    significativamente, quanto o estmulo da capacidade de no se culpar ou

    reparar o injusto cometido no funciona. Neste caso, as normas e

    expectativas externas se tornam medida dominante de toda a aco. O

    que isso representa, deve ser pelo menos mencionado:

    18 Cf. acima no captulo,19 CHURCHLAND, 1997, pp. 168 ss.20 MENTZOS, 1993, p 105.

  • 24

    Dirk Fabricius

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6

    Quando Eichmann ouviu a enumerao dos crimes terrveis que se

    lhe imputavam, ele sequer pestanejou; notadamente aquilo era para ele

    palavras vazias, sem contedo real. No momento, porm, em que o presidente

    do tribunal lembrou a ele de se levantar quando lhe dirigisse a palavra, ele

    se encheu cerimoniosamente de desculpas, comeou a gaguejar e se

    ruborizou de vergonha... (GRUNBERGER, 1972, p. 131)

    Wurrnser observa uma ciso do superego entre uma parte

    relativamente ajustada realidade, socialmente conforme e voltada para a

    culpa, e uma que principalmente narcisista, regressiva e voltada para a

    vergonha21.

    Novick e Novick22 diferenciam dois sistemas de auto-regulao: um

    sistema omnipotente, sadomasoquista e fechado, e um sistema-superego

    aberto. Primeiro, referem s relaes de poder sobre um objecto. Nestas

    relaes a omnipotncia fantasiosa s pode ser contida por um superego

    rgido, para evitar a destruio do objecto. O sistema-superego aberto , por

    sua vez, adaptado realidade e caracterizado pela alegria, pela competncia

    e pelo prazer na auto-regulao, e soluo de problemas e conflitos, como

    na descrio de Wurmser. Enquanto este o sistema autnomo, aquele

    representa o heternomo; um tratado no seu aspecto referido culpa, o

    outro, vergonha.

    3.2.2 O sistema normativo interno heternomoA literatura pedaggica se concentrou, durante sculos, na questo

    de como as crianas deveriam ser educadas para a obedincia. A problemtica

    da disposio obedincia, se eu estou certo, s foi reconhecida no sculo

    XX. Ela se insinua em Bernfeld, torna-se gritantemente mais clara com o

    fascismo e investigada por Adorno, Horkheimer et allii e, posteriormente,

    por Milgram. A educao para a obedincia legitimou a agresso de pais

    contra os filhos numa medida com um olhar retrospectivo de difcil

    compreenso, mesmo depois de superado o tempo pr-pedaggico, com

    mortes e abandonos de crianas. Esta violncia, comum e generalizada, fez

    da infncia, para boa parte das crianas, uma fase de experincias

    traumticas. Somente uma teoria da vinculao e as descobertas das

    neurocincias acerca dos efeitos do stress no desenvolvimento cerebral

    21 WURMSER, 1996, p. 184-185.22 NOVICK/NOVICK, 2004, p. 237-238.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    podem medir as consequncias desses traumas. Enquanto no se expe

    suficientemente a disposio para a obedincia, as classificaes

    psicopatolgicas no esto em condies de trat-la como distrbio primrio,

    mas tm como objecto sintomas concomitantes.

    De modo correlato, tambm se renega a agresso dos pais na literatura

    psicanaltica e na interpretao dos mitos. Que dipo foi enjeitado e

    deformado pelos pais, e s a foi conduzido ao seu destino trgico; que

    Deus sacrificou o seu filho, como mito fundador do Cristianismo (enquanto

    no Antigo Testamento Abrao ainda foi poupado do sacrifcio) tudo isso

    permanece sem ateno. A suposta inclinao destrutiva j em lactantes e

    crianas pequenas mostra-se, ao olhar mais atento, como projeco dos

    pais as aces desencadeadas a partir da produzem exactamente aquilo

    que, de acordo com o plano consciente, se quer evitar. A extraco forada

    de uma confisso, a um reconhecimento de arrependimento e a uma

    desculpa conduz dissociao a culpa confessada, mas no sentida. O

    educador fala com uma parte separada cuja negao inicial pode ser

    inteiramente sincera23.

    Os desejos de morte contra o pai, para os quais Freud chamou ateno,

    como contra a me, sublinhados por M. Klein, so em grande parte respostas

    agresso dos pais. Estes desejos podem ser facilmente explicados num

    contexto de uma educao ubqua obedincia e anulao da prpria

    vontade. E da mesma maneira se esclarecem tanto o sacrifcio desses

    desejos quanto o estabelecimento de um superego tirnico que recebe a

    herana daquele dio e se volta, a partir de ento, contra o si mesmo e/ou

    contra o prximo, de preferncia subordinados especialmente contra os

    prprios filhos. A correspondncia de uma educao punitiva, de maus-

    tratos e desrespeitosa com uma criminalidade violenta (ou depresso)

    posterior e com a capacidade de relacionamento e ligao j foi demonstrada

    de modo emprico exausto.

    O superego cruel e tirnico precisa ser repelido, mas, para tanto, no

    se dispe de uma instncia de conscincia aconselhadora24. Diante das

    agresses traumticas dos pais, tambm o si mesmo sacrificado na medida

    23 WINNICOTI, 1984, p. 328.24 Por isso se encontra, por detrs da fenomenal falta de conscincia de muitos delinquentes, um talsuperego arcaico e sdico: LAML-DE GROOT, 1962, p. 43; MOSER, Rauchfleisch. A antiga implantaodomesticadora de um sistema normativo heternomo impede tambm o desenvolvimento do simesmo, de modo que ele se toma demasiadamente dbil para se opor ao superego tirnico: CREMERIUS,1977, p. 148.

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    Dirk Fabricius

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6

    em que desterrado para uma regio imune tanto aos ataques quanto

    alocuo, e um falso si mesmo entra em seu lugar25. A identificao com o

    agressor condiciona at mesmo a imitao da agresso e das aces

    agressivas26. O que no se pode esquecer que tambm h uma identificao

    com modelos no agressivos e, por exemplo, considerao, compaixo,

    ateno, tratamento justo tambm so imitados. Acrescente-se que a prpria

    identificao j um fenmeno complexo e a capacidade para tanto j

    prejudicada quando sob condies traumticas: para que se possa identificar

    necessrio que se tenha construdo um modelo anmico do outro esse

    modelo tambm a base para o relacionamento e para a regulao do

    relacionamento com o outro27.

    Nesse ponto, de ser lembrado, com Grunberger, que a criana

    pequena, gritando, presa numa relao dominada por violncia, sente-se

    impotente diante da gigante - to assustadora, porque portadora da

    agressividade projectada da criana -, que impe a ela a sua (da gigante)

    vontade sem a menor possibilidade de defesa. (GRUNBERGER, 1972, p.

    125)

    Caso se extraia daqui a assuno, criticada no incio, de uma

    agressividade da criana projectada na me , no se alteram as relaes

    de grandeza e independncia, assim como as possibilidades de defesa, e

    elas podem facilmente dar lugar a uma adequao s expectativas maternas

    to ampla quanto possvel. Ao mesmo tempo, evidente que mesmo a melhor

    me no pode evitar de impor criana limitaes, de lhe dar negativas que

    suscitem a agresso28. Se a me, por sua vez, orientada para o exterior,

    teve que trair o seu si mesmo e trata da criana sempre com o pensamento

    o que os outros diro?; ento no de se estranhar o estabelecimento de

    um superego que persegue primordialmente o bom comportamento exterior,

    a conformidade e a adequao29. De modo oposto, uma me auto-confiante,

    consciente das relaes de grandeza e poder, se valer de seu handicap e,

    25 GROSTEIN, 2004, p. 264 ss., que fala de um pacto com o diabo original, em referncia ao sacrifciodo si mesmo.26 O que LINCKE, 1969, p. 261 explica como a essncia do superego, sua crueldade, s vale,portanto, para uma forma, ainda que difundida. Cf., em contraste, os Dogon: Parin/Morgenthaler/Parin, 1963.27 SANDLER, 1960, p. 66 ss.28 Pense-se aqui em acalmar, alimentar, pr a fralda, banhar, passar talco, aces corporais impostas,que deixam vestgios na lembrana com o carcter de mandamentos e porque anterior a linguagemfalada que so dificilmente alterveis posteriormente: SPITZ, 1958, p. 96.29 Se GRUNBERGER, 1972, p. 125 se refere ao carcter colectivo do superego, o faz acertadamente,mas no sob todas as circunstncias sociais.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    atentando para os prprios abusos, sinalizar criana de que ela, a me,

    percebeu a usurpao e, por isso, se desculpa, e deixe que os outros falem30,

    inclusive a sua me e a sua sogra.

    3.2.3 O sistema normativo interno autnomoPara alm da questo de se seria possvel descobrir uma tal

    organizao pura como subsistema integrado, o termo sistema normativo

    autnomo bastante adequado para caracterizar de maneira resumida os

    indcios ubquos de um sentimento de culpa que se desenvolve

    espontaneamente, que reage leso ao prximo e que motiva reconciliao.

    Tambm pode ser includa aqui a antiga possibilidade de diferenciao

    cognitiva que surge de modo igualmente natural entre normas morais

    e convencionais31. Claramente, estes sentimentos e juzos so aplicveis

    a todos seres humanos, e no apenas a um grupo prprio32.

    A assuno de uma tal conscincia autnoma ampara, ademais, as

    descobertas sobre o comportamento conciliatrio em primatas, a dispensa

    relativamente rpida de rituais cruis quando a presso por conformidade

    diminui e as reaces j mencionadas diante de aces que causam culpa

    num contexto institucional. Esses modos de comportamento tambm

    aparecem em todas as culturas33.

    As observaes sobre primatas no-humanos permitem a concluso

    de que, segundo o desenvolvimento histrico-natural, o sentimento de culpa

    precede a vergonha, o pudor que apenas os homens conhecem34. E, com o

    surgimento da vergonha, como que se aparecesse um adversrio poderoso

    para essa conscincia autnoma original: a vergonha estaria em condies

    de anul-la em boa parte, tom-la inconsciente e dificultar sua expresso

    30 Segui il tuo corso, e lascia dir le genti - lema de Dante, atribudo por Marx.31 LlCHTENBERG; LACHMANN; FOSSHAGE, 1996, p. 421.32 Com essa descoberta, seria preenchido o espao normativo vazio em Foucault cuja crtica concepo kantiana e freudiana indicava a autonomia e a conscincia como resultado da internalizaoda autoridade externa -, tambm assinalado por WHITEBOOKK, 1998, p. 518 (nota 8), com apoio emNorris.33 Acerca da habitualmente classificada como sociedade-vergonha, China, d. ROSNER, 1990, p. 88.34 W AAL, 1996, p. 174 ss. O primeiro conflito que exige a reconciliao o desmame (ibidem, p. 177).Nesse contexto interessante o experimento narrado por de Waal. Alguns macacos-rhesus agressivose no dispostos reconciliao, sequer capazes de tanto foram colocados juntos com macacos deoutra espcie (Smias Concolor). Aqueles adquiriram o comportamento pacfico e conciliador desses,mas no com o gestual tpico dessa espcie, mas por meio de seu prprio gestual. Posteriormente,eles mantiveram esse comportamento pacfico mesmo quando voltaram a conviver entre semelhantes(ibide111, p. 180). O espectro atinge desde os chimpanzs - no limiar mnimo do comportamentoconciliatrio - at os bonobos - no limite mximo do comportamento agressivo. Cf. WAAL, 1989, p.220-221.

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    Dirk Fabricius

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6

    cultural. Assim, abrir-se-ia caminho para a hiptese de que o homem

    desenvolve sua conscincia por fora da inscrio social.

    Se, em relao ao procedimento de culpabilidade, ns partimos,

    portanto, de uma disposio inata, isso no quer dizer de maneira alguma

    que o processo de amadurecimento por si s, sem um meio ambiente de

    apoio, leve a um bom desenvolvimento. Pelo contrrio, nunca de se estimar

    suficientemente a relevncia da vinculao, na qual se desenvolvem as

    capacidades complexas de compreenso, de auto-percepo e de compaixo.

    Se o lactante no tem ningum que se coloque especialmente para

    satisfazer as suas necessidades, ento ele no pode desenvolver uma relao

    de trabalho com o mundo exterior. Se ele no tem ningum que lhe

    intermedeie a satisfao dos impulsos suficientemente, ele no pode

    descobrir o seu corpo, nem desenvolver uma personalidade integrada. Se

    no h algum para que ele possa amar e odiar, ele no aprender que essa

    a mesma pessoa que ele ama e odeia, e no poder tomar contacto com o

    seu sentimento de culpa nem com a sua necessidade de reparao.

    (WINNICOTT, 1984, p. 81)35

    Os indcios do desenvolvimento da adaptao para a culpabilidade

    aparecem em torno do dcimo oitavo ms uma idade, na qual a necessidade

    do prximo percebida36: simpatia, capacidade de preocupao37, a integrao

    do objecto bom e mau posio depressiva segundo Melanie Klein

    assuno de responsabilidade por crianas pequenas com a consequncia

    de coibir a agresso hostil , tentativa de reparao e esforo pela harmonia

    social38.

    Segue-se, ento, a formao de teimosia e vontade de poder. As

    capacidades de respeito e de auto-limitao so, na fase edipiana, conduzidas

    em conjunto e a partir da triangulao da relao inicial estreita entre me

    e filho, com a incluso da figura paterna. A possibilidade da linguagem falada

    permite um armazenamento em memria explcita, uma reflexo e uma

    discusso. A identificao continua deveras significativa39, mas as figuras

    so distintas em relao ao modelo heternomo.

    35 Cf. tambm WINNICOTT, 1984, p. 137.36 LICHTENBERG; LACHMANN; FOSSHAGE, 1996, p. 428.37 WINNICOTT, 1984, p. 132 ss.38 LICHTENBERG; LACHMANN; FOSSHAGE, 1996. p. 412, com apoio em ZAHNW AXLER. Ibidem, p.430, com a afirmao de que, na culpa, trata-se de uma emoo prpria limitada.39 Para a relevncia das identificaes, cf. BRISTOL, 2004, p. 290.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    A observao do precursor do superego autnomo em desenvolvimento

    implica que essa formao pode ser no s estimulada, mas tambm

    perturbada por influncias scio-culturais: h um processo de descivilizao

    a partir das influncias culturais. A observao de que todo ser humano

    especialmente do sexo masculino40 apresenta a possibilidade de praticar

    aces brbaras, cruis e psicopatas, como demonstrado pelas guerras,

    tambm tem a concepo freudiana como fundamento. Entretanto, a

    concluso por um impulso assassino ou agressivo uma ideia difundida

    , como se percebe, falsa. Essa ideia justificou a educao para a obedincia

    e permitiu que fosse dado s crianas justamente o oposto do mimo. Com

    isso a me pr-edipiana incorporou o papel da gigante assustadora e deixou

    uma criana pequena, cheia de agresso e sadismo. Essa criana, agora em

    crescimento, poder tambm manifestar essa agressividade: justamente

    o que parecem exigir as aces punitivas dos pais. Uma vez que a regulao

    de culpa restou subdesenvolvida, as normas precisam ser marteladas por

    fora. E, s porque entre essas normas se encontram tambm aquelas que

    caracterizamos como de culpabilidade quer dizer, de leso ao prximo

    este modelo pde se tomar convincente. O programa de obedincia apresenta

    uma regio comum com a moral/regras justas que o que se salienta,

    enquanto que os mandamentos que autorizam as leses na forma de

    justificativas, permanecem latentes supra-legais. Alm disso, ainda

    pertencem ao programa de obedincia a represso da agresso contra os

    seus autores e a aceitao complacente da violncia e da limitao de

    liberdade quando a obedincia no a prpria causa da violncia e restrio

    de liberdade. Oferecem-se, ento, vlvulas a essa agresso a sndrome do

    ciclista: corcunda para cima e pedal para baixo.

    3.2.4 Liberdade de conscinciaComo pode se desenvolver um sistema normativo interno autnomo? Com

    outras palavras, como pode o processo de amadurecimento ser fomentado?

    O sistema inato , antes de tudo, o agrupamento de processos imprecisos,

    assentados numa capacidade de deciso rpida. Esses processos precisam

    se adaptar a cada ambiente social e cultural o que mexe com uma srie de

    variveis e valores limites41. As normas convencionais precisam ser,

    40Cf., para tanto, GEWALTKAP.41 Quantos minutos de tirada de liberdade so j uma privao? Quanta chantagem deve ser sustentada?Que perda de bens representa um dano? Quanta dor significa um mau-trato? Ainda mais crticas soas causas de justificao: de que ponto (agresso, perigo) eu posso partir e at onde ir?

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    Dirk Fabricius

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6

    entretanto, apreendidas em toda sua extenso. necessria, de todo modo,

    uma orientao cognitiva para ordenar um objecto aos processos de

    valorao. Os educadores, ainda que no devam ser simples criados da

    sociedade, devem ser mensageiros e mediadores. Os sentimentos

    normativos s podem ser ajustados na experincia conflituosa, seja ela

    com os educadores, com os irmos ou com os colegas de recreao42.

    3.2.4.1 Liberdade de opinio e liberdade de expressoAgresso, ira, aborrecimento e inveja so funcionais para o indivduo

    e para a comunidade/sociedade. Eles contribuem essencialmente para a

    manuteno ou formao da capacidade e disposio dos indivduos para a

    cooperao. Eles permitem aos indivduos assegurar a sua parte nos recursos

    e o seu mbito de liberdade, e a construir ligaes frutferas. Ademais, eles

    esto profundamente enraizados. A tentativa de suprimi-los no os elimina,

    mas to-s contm sua manifestao episdica e a curto prazo, e ainda

    ocasiona o seu recalcamento com a consequncia de que eles se

    manifestaro num momento inadequado e mal regulado.

    A psicanlise demonstra que a aceitao de sentimentos maus no

    pensamento contribui para que as aces ms da resultantes possam ser

    omitidas e encontrem formas socialmente assimilveis de regulao. Os

    sentimentos, como instrumentos de medio, ajudam a mapear a paisagem

    social e podem ser ajustados na sua expresso livre assim como os

    instrumentos de medio so aferidos tanto no dilogo interno como na

    comunicao com outros. Esses instrumentos, por sua vez, so informados

    acerca da situao do prximo; inicialmente sobre a condio sentimental.

    Mas, na verificao dessa situao subjectiva, eles recebem avisos

    essenciais acerca da condio objectiva inclusive a explicao de que e

    como o prximo foi tolhido e magoado. A passagem para o comportamento

    criminoso no est no afloramento desses sentimentos, mas na maneira

    em que eles determinam as aces43.

    42 BOUL TON/SMITH, 1992, p. 429 ss. alertam para o papel importante da brincadeira para odesenvolvimento da capacidade de compromisso, auto-handicapping e outras virtudes teis cooperao.43 sempre surpreendente que os psicanalistas, quanto se trata dos chamados criminosos, nosigam as consequncias esperadas das suas prprias pesquisas, mas repentinamente imaginamuma outra categoria de ser humano, que s poderia ser tratada com a pena: cf. agora KERNBERG,2001.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    3.2.4.2 Ningum pode me dizer o que o correcto aqui respeitopara com o outro

    O sistema normativo interno possui diversos subsistemas, cujos

    resultados precisam ser compatibilizados uns com os outros. Solues claras

    devem ser esperadas raramente. Preconizar conscincias morais, exigir

    confisses de arrependimento e encher o prximo com conselhos, tudo isso

    no estimula o desenvolvimento autnomo da conscincia, tampouco do

    verdadeiro si mesmo. De outro modo, aparecer como interlocutor que expe

    as suas objeces, articula seus interesses, necessidades e sentimentos,

    e com isso confronta sem se sobrepor, demonstra respeito e fomenta a

    disposio para responsabilidade e, por conseguinte, cresce a possibilidade

    de encontrar a soluo adequada para si mesmo e o prximo.

    Todas as competncias mencionadas anteriormente, necessrias para

    o agir responsvel e, portanto, para a capacidade de culpabilidade, podem

    ser interpretadas como ferramentas da auto-limitao. As incompetncias

    no conduzem apenas a perda de limites e sobreposio, mas tambm

    restrio das alternativas possveis. Sua percepo em duplo sentido tem

    por consequncia apenas fracassos, que levam ao rancor e ao ressentimento

    o comeo de um crculo vicioso.

    Um desenvolvimento bem-sucedido, como formula Gedo44, est

    presente quando a organizao do si mesmo capaz de incorporar contra-

    motivos sem causar, por defesa, uma ciso, e o indivduo se toma, com

    isso, menos dependente das pessoas educadoras.

    A psicanlise um caminho para incrementar a liberdade de deciso

    e permitir o aumento da autonomia.

    ... a nossa tarefa dar ao paciente a autorizao e o espao aberto

    para pensar, sentir e dizer tudo sem restrio, enquanto ele cada vez

    mais capaz de no faz-lo. O pensar em conceitos de conflito interno e

    motivos, em vez de lcito e ilcito, aprofunda todas as reflexes e discusses

    ticas e d a elas uma dimenso radicalmente nova, sem ter de abdicar,

    com isso, o conceito de responsabilidade: compreender tudo no desculpar

    tudo. O ganho principal de uma anlise feita com sucesso a paulatina

    passagem de um estado de coao para uma liberdade interior maior. Esse

    objectivo prtico, atingido pela soluo passo a passo dos conflitos, depende

    exclusivamente da integridade da tcnica. (WURMSER, 1989, p. 333-334).

    44 GEDO, 1996, p. 401.

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    Dirk Fabricius

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6

    A compreenso da culpabilidade pode possibilitar que, no futuro, no

    se venha a praticar novamente algo parecido. Ns temos a oportunidade de

    nos livrarmos de nossa imaturidade original e biologicamente condicionada:

    aprendendo, reflectindo e trabalhando experincias. Liberdade um produto

    da socializao. Pode-se esclarecer retrospectivamente o desenvolvimento;

    uma deciso indeterminada, contudo, contrariaria o que plausvel e

    conhecido cientificamente. Mas precisamente o esclarecimento que

    constri a base para se aprender para o futuro45.

    3.2.4.3 A organizao social: migrao e contradioQuando me pergunto como aparenta o meio ambiente estimulante

    para o desenvolvimento de um sistema normativo interno autnomo, tropeo

    no par conceptual de Hirschmann migrao e contradio que, no ttulo

    em lngua inglesa, precisou ser complementado pela lealdade numa

    compreenso ps-convencional. Para as crianas no h, em regra, a

    possibilidade da migrao46. Tampouco h o que Waal chama de igualdade

    (como requisito para a possibilidade de contradio), por causa de uma

    desigualdade de facto e no apenas artificialmente criada. Por conta disso,

    so ainda mais necessrios para a compensao a preparao e o cultivo da

    possibilidade de contradio. A grande dependncia conduz a uma enorme

    disposio de identificao, adaptao e obedincia: faltam s crianas muitos

    recursos e capacidades, de modo que elas dependem dos educadores. Esses,

    por sua vez, possuem todas as possibilidades de agir a partir de negaes e,

    com isso, de disciplinar. Tudo indica que isso ocorre mesmo com as melhores

    intenes. Ouvidores, supervisores e servios de apoio poderiam ajudar s

    crianas ao traduzirem efectivamente as boas intenes.

    Como mostra Hrischmann, uma lealdade que promove a sobrevivncia

    de uma organizao social to mais eficaz quanto mais o envolvido

    contradisser internamente, em conscincia, o facto de que ele tambm

    poderia seguir os acontecimentos. Os actos de lealdade forados ou coagidos

    permanecem exteriores e, por conseguinte, estreis. So, ademais,

    convencionais e contribuem para que a organizao influencie negativamente

    o seu meio ambiente e, com isso, numa perspectiva mais ampla, tambm

    prejudique a si prpria.

    45 Em face das bibliotecas j escritas sobre esta problemtica, soa a afirmao excessivamente curtae apodctica. Mas no se deve passar simplesmente por cima desse ponto.46 A que tambm se refere de W AAL, 1996, p. 127.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    O que na poltica se desenvolve com a democracia, como o cultivo da

    contradio, e na economia, com a liberdade de comrcio e concorrncia,

    como cultivo da possibilidade de migrao, s pode se tomar verdadeiro em

    sua extenso plena se a organizao social em todas as suas unidades

    parciais funcionar de modo recorrente e correspondente a si prpria. A

    insistncia de muitos subsistemas sociais nas estratgias de conformidade,

    de lealdade convencional e de obedincia um se no o principal obstculo

    rumo a um sistema normativo interno de melhor funcionamento nos

    indivduos para a situao normal47.

    3.2.4.4 ReconciliaoQuando j se chegou sobreposio, leso, ofensa ou mesmo ao

    crime, como ocorre a compensao de culpabilidade no contexto das reflexes

    que aqui apresentamos?

    Aquilo que se mostrou possvel e exequvel em casos extremos o

    trabalho da Comisso de Reconciliao e Verdade na frica do Sul no

    perfeito, mas fornece um belo modelo48 tambm deve funcionar nos casos

    pequenos. Primeiramente central a busca da verdade49, cujo sucesso

    depende da preparao de um espao livre de estratgias secundrias,

    uma vez que nenhum ganho secundrio est em jogo. Relatar a prpria

    lesividade e os prprios delitos bastante complicado50. O facto das vtimas

    poderem falar e tornar pblicas as suas feridas liberta-as da posio de

    vtima. E, na medida em que a isso no se vincula nenhuma reparao ou

    punio, elas esto livres da suspeita do exagero. Da mesma maneira, os

    autores podem confessar e reconhecer, sem que o medo da perseguio ou

    da pena lhes cause maior dificuldade. Assim, uma tal confisso no um

    relato que refora o aspecto pecaminoso e exige a penitncia, sem trabalhar

    o que aconteceu. exactamente esse trabalho que conduz ao reconhecimento

    da culpabilidade e estimula a capacidade de culpabilidade (em oposio ao

    pecado)51. O facto de poucos apresentarem a capacidade para tanto no

    47 WINKINSON,2005.48 O modelo Ubuntu, um sistema generalizado na frica do Sul, correspondente ao nvel tribal, serconhecido de Mandela e Tutu no deveria induzir a sua excluso. Certamente necessrio moderniz-lo em muitos aspectos como j ocorre na frica do Sul, mas sabe-se j que modelos semelhantesfuncionam com sucesso em diversas tribos (Cf. SPITTLER, 1980, p. 16). Isso permite pensar no seudesaparecimento como uma grande perda.49 Isso salientado por SOYINKA, 2002.50 TUTU, 1999,p.218.51 Para tanto, com uma viso psicanaltica, cf. WHITEBOOK, 1998, p. 538.

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    Dirk Fabricius

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6

    deveria causar espanto. Todos sabem o quo difcil o reconhecimento da

    culpa52; o quanto o homem inclinado a se apegar a todas as possibilidades

    de negao, diminuio e justificao, mesmo diante das infraces mais

    leves. difcil de se imaginar como possvel a confisso aps crimes

    graves e numerosos. Um primeiro passo pode ser ouvir as descries e

    reconhecer internamente a sua verdade. A confisso desencadear

    inicialmente a ira da vtima, a denncia e a acusao, que devero ser

    suportadas. Tambm se observa que as cicatrizes permanecem53. Desenvolver

    a dor, a tristeza sobre a perda causada por si mesmo provavelmente

    um requisito essencial para o reconhecimento da culpa. Isso requer tempo.

    E um parceiro que no negue compreenso nem ateno pelo simples facto

    de ter tomado conhecimento do crime54. As exigncias e os esforos para a

    reconstruo do relacionamento pessoal podem poupar pena, penitncia e

    coao pela satisfao. Trata-se de exigncias do amor, que so as maiores

    e exigem mais que a lei55.

    Reconhecimento do injusto e de sua produo d oportunidade a um

    contacto com o ofendido, ou com os seus parentes sobreviventes. Deste

    modo, uma reparao do dano pode ser negociada dentro do relacionamento

    pessoal: uma compensao justa - que no mais das vezes simblica56,

    talvez para repelir a falsa aparncia de que nada aconteceu. Nesse contexto,

    experincias em outros pases mostram que essas comisses concentradas

    em si mesmas no vo adiante o suficiente e nem poderiam , e que se faz

    necessria uma organizao internacional ou, que seja, uma sombra do

    Leviat57.

    A reconciliao que se esquiva da busca e reconhecimento da verdade

    e que no d vazo aos sentimentos de injustia busca uma paz social

    superficial que alcanada rapidamente e sem fortes erupes de

    sentimentos. Mas ela deixa para muitos indivduos uma insatisfao

    corrosiva58.

    52 Do mesmo modo, HIRSCH, 1997, p. 211.53 SOYINKA,2001.54 MOSER, 1992, p. 393.55 TUTU, 1999, p. 75, Seria muito mais fcil colocar-se do lado do Id e, para isso, acatar a pena. Entosurge um pndulo entre satisfao do instinto e da punio. O ego, entretanto, permanecesubdesenvolvido como instncia de avaliao, como escreve CREMERIUS, 1977, p. 153.56 SOYINKA, 2001.57 SOYINKA, 2001.58 De modo enftico em relao compensao autor-vtima: ELLSCHEID, 1997, p. 203. Todas assolues de negociao no processo penal, to em moda Deal , excluem essas dimenses. Elaspodem ser compreendidas essencialmente como motivadas por razes econmicas de trabalho e

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    O que apresentado aqui em grande dimenso e com grande destaque

    tambm o caminho correcto no mbito privado: a reconstruo de um

    sentimento positivo de vinculao59.

    3.3 O efeito da pena no desenvolvimento do sistema normativointerno

    Antes de me dedicar questo do que a psicologia e a psicanlise

    tm a dizer sobre o efeito da pena no funcionamento e desenvolvimento do

    sistema normativo interno, faz-se necessrio um pequeno esclarecimento

    sobre o conceito de pena.

    3.3.1 O conceito de penaNa sociologia, e em especial na sua corrente behaviorista, pena

    todo o estmulo aversivo e punio, a imposio de um estmulo aversivo. A

    criminologia tambm trabalha com este conceito de pena extremamente

    amplo.

    Conquanto se devesse entender a partir da leitura do enunciado nulla

    poena sine culpa que os penalistas tm um conceito de pena vinculado

    culpabilidade e compreendem pena apenas como pena de culpabilidade, este

    conceito de pena especificamente jurdico-penal completamente

    abandonado por todas as teorias dos fins da pena de orientao preventiva.

    Isso s vem a confirmar mais uma vez a tese apresentada no incio: o conceito

    de culpabilidade no direito penal est esvaziado.

    Porm, no apenas os penalistas, mas todos os juristas deveriam se

    opor ao conceito sociolgico ou amplo de pena. Pois dentro da ideia de

    estmulo aversivo entrariam tambm a reparao do dano, a entrega da

    propriedade, o enriquecimento sem causa e muito mais. Estas formas do

    direito civil e do direito administrativo tampouco so abarcadas pela

    compreenso quotidiana de pena. Alm disso, a perspectiva das cincias

    sociais de um conceito de pena no sentido de todo estmulo aversivo parece

    descuidar da situao social diferenciada daquele a quem foi atribuda pena

    em comparao, por exemplo, ao condenado civilmente reparao do

    dano , a posio de subordinao. Esse dado tambm apresentado

    custo mas tambm como defesa psquico-social contra o reconhecimento do facto de que tantaspessoas normais lesam outras no trnsito social habitual e contra o esclarecimento das causas emotivos.59 LICHTENBERG; LACHMANN; FOSSHAGE, 1996, p. 415.

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    Dirk Fabricius

    Afreudite - Ano III, 2007 - n.5/6

    tacitamente na psicologia pedaggica e do desenvolvimento: elas cuidam

    sempre dos efeitos do educador sobre as crianas e jovens, enquanto as

    declaraes agressivas de crianas contra adultos tambm constituem

    imposio de estmulos aversivos.

    3.3.2 As consequncias da imposio de estmulos aversivosDe acordo com a tradio da pesquisa behaviorista, pode-se dizer, em

    resumo, que se confirma reiteradamente, desde os experimentos de

    Thorndike em 1907, que a imposio de estmulos aversivos s atinge seus

    objectivos desejados oprimir o comportamento no desejado sob

    condies bastante limitadas, de quase impossvel implementao na vida

    normal. A pena especialmente ineficaz quando no se refora o

    comportamento alternativo o que pressupe, por bvio, que ele seja

    oferecido. As teorias sociais do aprendizado mostraram, alm do mais, que

    o comportamento punitivo imitado, quer dizer, que a educao violenta

    estimula o comportamento violento posterior.

    A psicanlise reconheceu desde cedo que o processo punitivo entre

    os seres humanos humilhante e degradante. Humilhao no direito

    penal comummente ligada a rebaixamento desencadeia o ciclo vergonha-

    ira. O risco de novos delitos aumenta. Caim, preterido por Deus-Pai, encheu-

    se de clera e matou o seu irmo Abel.

    As pesquisas das neurocincias sobre stress mostraram, de modo

    definitivo, que tais estmulos aversivos, quando impostos de modo incisivo,

    prejudicam o aprendizado e a sade.

    A psicanlise unnime inclusive as correntes que esboam uma

    imagem pessimista do ser humano ao afirmar que o tratamento humilhante-

    degradante no estimula de maneira alguma a fora do ego (Ich-Strke),

    mas que, pelo contrrio, a diminui.

    Fora do ego: Engloba tambm a autonomia moral. O superego s

    pode funcionar orientando aces e construindo motivaes se a fora do

    ego for suficiente para controlar a sua influncia, filtrar os seus imperativos,

    tomando-os potencialmente conscientes e relacionando-os tanto com os

    outros sistemas normativos como com os impulsos instintivos e as paixes.

    Em compasso com esses resultados, a psicologia cognitiva do juzo

    moral chega ao mesmo resultado: a pena vai de encontro melhoria da

    capacidade de juzo moral.

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    Culpabilidade e seus fundamentos empricos

    Fundamentos empricos e lgicos

    Ainda que em algumas reas da criminalidade possa haver efeitos de

    dissuaso por terror, isso no pode legitimar a pena como fenmeno em um

    Estado democrtico de direito se ele, como pretende, pressupe um cidado

    emancipado. A difuso do terror caminha em sentido contrrio ao do

    amadurecimento e aumenta a disposio para a obedincia.

    Essa, por sua vez, se apresenta com excessiva constncia como um

    factor essencial para levar os seres humanos ao crime, como os

    experimentos de Milgram demonstraram exemplarmente, assim como os

    crimes de guerra mas no s nessas ocasies excepcionais.

    4 A INCOMPATIBILIDADE DA CULPABILIDADE COM A PENA

    Pode-se afirmar, de modo resumido, que todas as teorias preventivas

    dos fins da pena que estabelecem uma relao emprica entre a punio e o

    comportamento futuro do apenado no encontraram qualquer confirmao

    atravs da cincia emprica.

    Para a aceitao de uma viso metafsica no h nem necessidade,

    nem fundamento, em face dos avanos da biologia, da psicologia e da

    pedagogia sobre o desenvolvimento da conscincia-superego e do sistema

    normativo interno.

    Por outro lado, a nossa representao de seres gregrios, cuja

    qualidade de vida depende da incluso da justia, requer cidados que, com

    seus potenciais psquicos, cognitivos e afectivos, estejam em condio de

    exercer juzos morais e de desenvolver a conscincia correspondente. Isso

    inclui poder distinguir o direito do injusto, as leis justas das leis injustas,

    e se comportar de acordo com essa compreenso.

    Conclui-se, portanto, que a pena no s apenas intil para o

    desenvolvimento destes cidados, mas precisamente destrutiva. Isso quer

    dizer que ns precisamos de culpabilidade, enquanto que a pena deve ser,

    pedao por pedao, excluda da nossa vida social como a prtica pedaggica

    j faz com avanos em muitos Estados.

    Ns no podemos esquecer que a transformao copernicana tambm

    precisou de duzentos anos at que se incorporasse ao conhecimento comum.