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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

GEORGES DUBY E A CONSTRUO DO SABER HISTRICO

LUIZ ALBERTO SCIAMARELLA SANT'ANNA

Trabalho apresentado ao Programa de PsGraduao em Histria, mantido pelo convnio entre a Universidade Federal da Paraba e a Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para a obteno do Ttulo de Mestre em Histria.

Dissertao de Mestrado Pernambuco 2001.

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GEORGES DUBY E A CONSTRUO DO SABER HISTRICO

Luiz Alberto Sciamarella Sant'Anna

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Raimundo Barroso Cordeiro Jr. (Orientador). Prof. Dra. Rosa Maria Godoy Silveira (membro). Prof. Dr. Lorival Holanda ( membro)

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Dedicatria Para Joseph Cleber um grande amigo: que a paz do divino mestre esteja conosco

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AGRADECIMENTO

Agradeo aos meus familiares pelo incentivo e fora espiritual que me levaram a concluir este trabalho; principalmente a pessoa de meu filho (Pedro Henrique) pela compreenso da causa de minha ausncia prolongada. Ao Prof. Dr. Raimundo Barroso, que com pacincia orientou este trabalho e ensinou-me a compreender as regras que se impem a um trabalho cientifico, bem como pela indicao de livros que foram necessrios execuo desta dissertao. A Prof. Dr Rosa Godoy, professora cimeira, pela disponibilidade e carinhoso estmulo que me deu ao longo de toda a pesquisa, realizando leituras crticas e sugerindo modificaes que enriqueceram o texto.Aos colegas da UFPB (Maria da Vitria, Cndida Magalhes e Ricardo Amaral) que tambm acreditaram na realizao dessa dissertao. Enfim, a todos o meu carinho e reconhecimento pela ajuda direta ou indireta. Agradeo a CAPES pelo incentivo financeiro, sem o qual no teria feito este trabalho.

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Resumo

O presente trabalho tem por objetivo constituir-se como reflexo sobre o conhecimento histrico. O trabalho tem como principal enfoque investigar os trs eixos terico-metodolgicos em que se assenta a obra de Georges Duby, medievalista francs, sendo estes: os annales, o estruturalismo e a escola marxista. Em sua obra, a Histria vista como uma construo, em seu interior existem elementos passveis de anlises que podem acrescentar e enriquecer o conhecimento, reorganizando o espao, elucidando e clareando regies em penumbra, sem com isto perder a determinao em se construir uma histria o mais possvel totalizante. Sua posio terica resulta de um profundo conhecimento das cincias humanas, em geral, e da antropologia social, em particular. Por fim, analisa-se a principal caracterstica do autor que a capacidade de sintetizar duas tradies historiogrficas; a dos Annales e a que nasce de Hegel e Marx.

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Abstract

The paper here presented has as objective to constitute itself as a reflection on the historical knowledge. The paper has as main focus to investigate the three theoretical-methodological axis in which the work of George Duby, French medievalist, is based on, which are: the annales, the structuralism and the Marxist School. In his work, History is seen as a construction, inside are elements passible of analyses which may add and enrich knowledge, reorganizing the space, elucidating and clearing obscure regions, but neve rtheless without missing the determination of building a history as close as possible to a complete one. His theoretical position results from a deep knowledge of the human science, in general, and the social anthropology, in particular. Finally, the authors main characteristic is being analyzed, which is the capability of synthesizing two historiographical traditions; the Annales and the one which is born from Hegel and Marx.

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E o historiado que quiser compreender deve esforar-se por desposar os movimentos desse pensamento, como deve forar-se s mesmas caminhadas, penetrando tambm ele no corao da noite, s apalpadelas, na igreja, espiando o Messias, as primeiras luzes da aurora

Guy Lardreau

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SUMRIO

Introduo ...............................................................................................................

1- Um Fazer Terico Metodolgico: em busca de uma nova positividade na histria ............................................................................................................... 12

2- Mentalidades: um caminho percorrido .......................................................... 32

3- Duby e o Marxismo Um dilogo e no uma adeso tcita ....................... 50

4- Para alm da Histria: um olhar antropolgico ............................................ 69

Concluso ............................................................................................................... 87

Bibliografia .............................................................................................................

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INTRODUO

O objetivo desta dissertao constituir-se como uma reflexo sobre o conhecimento histrico, tomando por base o fazer historiogrfico de Georges Duby medievalista francs, cuja caracterstica principal, e que se pretende ressaltar neste trabalho, sua capacidade de sintetizar duas tradies historiogrficas: a dos Annales e a que nasce de Hegel e Marx, possibilitando uma viso do homem e da sociedade de maneira rica e integral, tanto quanto foi rica a sua vida de fato. Georges Duby nasceu a 7 de Outubro de 1919, em Paris. Filho de uma famlia de artesos cursou seus estudos no Instituto de Macn. Desde cedo, Duby orientou-se para os estudos da Idade Mdia e da sociedade feudal na Europa, sofrendo influncias considerveis de pensadores como Michelet e Marx e de outros dos quais foi contemporneo ou pde conviver. Partidrio do mtodo

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micheletiano, que fundia lucidez e paixo. Serviu-se da obra de Marx para estudar a economia medieval, o que considerou uma projeo arbitrria (que) revelou-se extremamente eficaz. Foi amigo de Althusser, de quem tambm sofreu influncia no que concerne s formulaes sobre as superestruturas e, em especial, as ideologias e valores, utilizadas nos seus inmeros estudos sobre mentalidade medieval. Seu itinerrio profissional tem incio como agreg na Faculdade de Letras de Lyon, em 1942. Em 1953, passa a ocupar o cargo de professor titular de Histria da Idade Mdia na Faculdade de Letras em Aix-en- Provence, assumiu a ctedra de professor titular no Collge de France ( histria das sociedades medievais), em 1970 Entra para a Academie Franaise, em 1987, tambm membro da Academie des Inscriptions et Belles-Lettres, do Conseil National des Langues et Cultures Rgionales, e do Conseil Suprieur de la Langue Franaise. A trajetria profissional de Duby no se caracterizou to somente pela existncia de cargos honorficos e obras escritas. Essas sero citadas, e, as principais tero comentrios dentro do propsito deste trabalho, que de analisar o fazer historiogrfico do historiador; mas, tambm, torna-se necessrio para que se tenha uma viso mais abrangente da atuao do historiador, em reas outras, que as citadas neste trabalho, como as incurses do autor nas produces audiovisuais, onde obras suas foram traduzidas em imagens, imagens em movimento. Duby, como tantos intelectuais de sua idade, a principio, teve reservas quanto a utilizao da televiso, pois esta poderia ameaar, em sua intimidade, o vasto campo que este pretendia dedicar leitura, msica etc.. Vencidas as resistncias, acompanhado dos diretores Pierre Dumayet e Roland Dabois, tem incio a produo de seriados, documentrios e programas televisivos que adaptaram diversas obras do historiador, tais como: O tempo das catedrais, Domingo de Bouvines, O ano mil , So Bernardo e a arte cisterciense etc. Nestas trs ultimas obras, esboada uma espcie de sociologia da arte medieval, no dizer do historiador. A televiso ampliou indefinidamente o pblico da boa

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histria, sendo enfatizado o valor pedaggico do instrumento televisivo. Nesta fase de sua carreira, o historiador assume o cargo de Presidente do Conseil de Sueveillance de la SEPT ( Socit Europenne de Programmes de Tlvision). Georges Duby, em seu fazer historiogrfico, esboa, uma Histria que pode ser descrita como uma srie de nveis comunicantes, sem que haja nesses nveis perspectiva individual ou de classe por parte do autor. A Histria vista como uma construo, em seu interior existem elementos passveis de anlises que podem acrescentar e enriquecer o conhecimento, reorganizando o espao, elucidando e clareando regies em penumbra, sem com isto perder a determinao em se construir uma histria o mais possvel totalizante. O homem apresentado na obra de Duby com uma riqueza mxima de matizes, [onde este poderia ser visto como que naufragado sob o peso das estruturas, preso a determinaes rgidas e implacveis]. Entretanto, o homem tambm enfocado em sua capacidade de resistncia e superao dos obstculos e que, sendo superados, no cotidiano de sua existncia, transformam-se no enredo de sua vida. As possibilidades para este olhar outro sobre a histria, em grande parte, advm da postura de Duby em ser propositivo e crtico, tanto da tradio dos Annales, como das correntes historiogrficas ou tericas com as quais pontuou suas relaes intelectuais, tais como o estruturalismo, a antropologia estrutural, a psicanlise etc. Sua posio terica resulta de um profundo conhecimento das cincias humanas, em geral, e da antropologia social, em particular. Isto se deve ao fato do historiador freqentar as obras de Mauss, de Polanyi, de Lvi-Strauss, de Dumzil, de Foucault, de Bourdieu. Este conhecimento acumulado por Duby traduzido em sua obra pelo respeito hierarquia dos fenmenos histricos. A partir de uma profunda anlise do material histrico, evita confundir regras com excees, correntes dominantes com desvios e permanncias com mutaes, com o intuito de se certificar do efetivo significado das experincias histricas. Esta operao inclui os aspectos da produo material da vida, sem desprezar as manifestaes culturais mais representativas, tais como ritos, mitos, relaes de

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parentescos, em resumo, todas as concepes de mundo predominantes em uma poca. Dos Annales, vm as possibilidades de um trabalho histrico orientado de modo a afastar-se definitivamente das explicaes finalistas e franqueado contribuio de todas as cincias humanas. Deste exerccio de conhecimento, resulta o estreitamento, quase desaparecimento, das fronteiras entre a Histria e as demais cincias humanas, passando a ser interfaces submetidas a fluxos e refluxos da elaborao do conhecimento, tornando-as, dessa forma, permeveis elaborao e concretizao de uma verdadeira interdisciplinaridade. O territrio intelectual e cientfico de Georges Duby a Nova Histria, como se costuma identificar a produo historiogrfica, as orientaes tericas e os procedimentos metodolgicos presentes na terceira gerao dos Annales. Sua ambio produzir uma histria que englobe o conjunto da evoluo de uma sociedade segundo modelos globalizantes, procurando atingir este objetivo utilizando um positivo ecletismo terico e a coragem de lanar olhares sobre as fronteiras. Isto, sem perder de vista os valores que consolidaram a identidade inovadora do projeto historiogrfico dos Annales. As relaes interdisciplinares entre a Histria e as Cincias Sociais, a partir da iniciativa dos Annales, contriburam para a expanso do territrio do historiador cuja conseqncia foi a ampliao considervel do nmero de objetos que podem ser estudados. Em funo disso, abrem-se s possibilidades para a presena de vrios gneros histricos na obra de Duby: a narrativa, a biografia, a histria poltica e a surpreendente volta do acontecimento, embora este retorno se fundamente em uma problemtica profundamente renovada. Os progressos metodolgicos e tericos alcanados por Georges Duby vm, em grande parte, dos desafios promovidos pelas cincias sociais, obrigando os historiadores a reformularem seus questionrios. A antropologia estrutural, por exemplo, marca, sobremaneira, a sua obra, oferecendo-lhe novas concepes nos

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campos do poltico, do econmico e do religioso, com diferenas marcantes em relao quelas dos princpios do sculo XX. A preocupao em responder s necessidades terico-metodolgicas de uma histria do social leva Duby a defender uma psicologia do social que estuda o mental como resposta ou condio do social. Esta postura de Georges Duby o aproxima das questes prprias de uma Histria preocupada com os condicionamentos sociais e econmicos do sujeito histrico, o que poderia facilmente enquadr-lo como um autor marxista ou caracterizar uma adeso? Utilizando conceitos e argumentos marxistas, ao mesmo tempo procurando fazer histria das mentalidades, a partir da aproximao da histria com a psicologia social, permitiu-se assimilar as contribuies marxistas, notadamente aquelas originrias da produo intelectual do jovem Marx. Na obra de Duby, vemos entrecruzarem-se as contribuies de Marx e Lvi-Strauss, Mauss e Goldman, Dumzil e Braudel. Modo de produo com relaes de parentesco, sociedades dualistas com figuras trifuncionais, imaginrio e infra-estrutura, e outros tantos conceitos e categorias, sedimentando todo um arcabouo terico-metodolgico ecltico, visando uma melhor compreenso do homem em suas diversas dimenses, valorizando suas contradies, sua capacidade de criar diante das adversidades, suas foras e fragilidades. No primeiro captulo desta dissertao, enfocamos os fatores intelectuais e histricos que possibilitaram a pesquisa e a produo histrica empreendidas por Georges Duby. Buscamos enfatizar as condies histricas que justificaram o seu fazer historiogrfico e, para tanto, procurando traar a trajetria de sua formao acadmica, entender as posturas assumidas quanto s escolhas terico-metodolgicas em suas investigaes. Ressaltamos,

principalmente, as influncias que o movimento dos Annales exercem sobre sua obra bem como todas as outras que marcaram seu caminho intelectual, no deixando de fazer incurses nos prprios referenciais destas correntes historiogrficas.

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O segundo captulo tem por finalidade enfatizar um estudo da influncia de Marc Bloch e Lucien Febvre na obra de Duby, rumo apreenso da histria das mentalidades a partir dos anos 50, procurando mostrar os pressupostos terico-metodolgicos que aliceram esse estudo na Escola dos Annales. Traamos, assim, o percurso de Duby como um historiador das mentalidades. Atenta-se, ainda neste captulo, para a validade do estudo sobre as mentalidades e as dificuldades do mesmo, apresentadas pelo historiador, com destaque para o retorno poltica e o renascimento da narrativa, assim como o estudo biogrfico. O terceiro captulo trata, primeiramente, das possibilidades de dilogo entre a escola Marxista e a escola dos Annales, analisando diferentes perspectivas para um reconhecimento do alcance e dos limites da diferena entre esses dois poderosos instrumentos tericos. Em um segundo momento, enfoca-se como a teoria Marxista utilizada por Duby, tendo por finalidade uma melhor compreenso da sociedade feudal e os contornos necessrios para sua aplicao, a partir dos conceitos e categorias, para uma histria social. No quarto captulo, empreendemos um estudo sobre a influncia estruturalista na obra de Georges Duby, tendo a preocupao de identificar qual ou quais correntes estruturalistas esto presentes. Com este procedimento,

espera-se que se possa avaliar e entender o seu estudo sobre as mentalidades, embora esta no seja obrigatoriamente uma histria estruturalista. Neste captulo, analisa-se, tambm, o conceito atravs do qual Duby define ideologia e a forma como esta representao que os homens tm da sociedade, pode ser transformada em objeto de estudo da histria. Para isso, fazemos uma incurso em sua obra As trs Ordens ou o Imaginrio do Feudalismo, com a finalidade de observar a prtica historiogrfica do autor. O captulo se finaliza com a percepo da aproximao que Duby empreende entre o estudo das mentalidades e o das ideologias, o fazer historiogrfico marxista e o dos Annales.

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1. UM FAZER TERICO-METODOLGICO: EM BUSCA DE UMA NOVA POSITIVIDADE NA HISTRIA

A escola dos Annales promoveu uma renovao terico-metodolgica na historiografia francesa e do mundo ocidental, ao incorporar a considerao da simultaneidade, que entendida pela dominao da assimetria entre o passado e o presente. Mudam seus objetivos e seus historiadores, mudam tambm seus problemas disciplinares, que aparecem a partir do momento em que a Histria no se deixa mais dominar por uma representao de um tempo histrico sucessivo e teleolgico. A Histria produzida pelos Annales se apresenta como oposta tradicional, trabalhando um mundo histrico mais durvel, mais estruturado, mais resistente s mudanas, revelado pela incluso da considerao da permanncia no olhar do historiador, que era impensvel em histria at o incio do sculo XX. A abordagem da repetio, da permanncia, a quantificao de movime ntos reversveis e regulares, a longa durao, tornam-se a direo principal dos historiadores, dessa forma, realizam uma novidade epistemolgica, pois o conhecimento histrico se via limitado irreversibilidade e mudana. No havendo o abandono do estudo da mudana, a incluso da permanncia, na

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sua abordagem, serviu para melhor conhecer e controlar as mudanas humanas no tempo. Os Annales enfatizaro os condicionamentos econmico-sociais das aes e decises individuais, a sociedade global, as massas, e as condies materiais da vida humana. Influenciada pelas Cincias Sociais, a Histria passa a visar, tambm, o que os homens no sabem que fazem e no apenas seus planos declarados,suas causas edificantes, suas crenas. Dessa forma, abrem um novo campo de pesquisa, mais amplo e diversificado. Com a proposta de enfocar novas realidades humanas, a histria teve que renovar as tcnicas utilizadas, mudando, assim, o conceito de fonte histrica. A documentao ser relativa ao campo econmico-social-mental, sendo massiva, serial, revelando o duradouro, a longa durao. Os Annales foram engenhosos para inventar, reinventar ou reciclar fontes histrica, utilizando documentos de todos os tipos: psicolgicos, orais, estatsticos, plsticos, musicais, literrios, poticos, religiosos. Os historiadores dos Annales tm perspectivas diferentes sobre a renovao historiogrfica, entretanto, o princpio em torno do qual se percebe uma certa unidade, a perspectiva da longa durao, a tentativa de superao do evento, a partir da influncia das Cincias Sociais, que possibilita a interdisciplinaridade. Nestes pontos, possvel reunir Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel e os representantes da 3 gerao, embora seja possvel detectar divergncias entre estes quanto concepo de longa durao no tocante sua relao com o evento. A 3 gerao vem sendo acusada de no manter o mesmo nvel intelectual da tradio e o rigor de anlise, procurando simplesmente se manter na moda, e, surgem, ento, as dificuldades para uma avaliao precisa do seu quadro intelectual. Segundo Peter Burke, O quadro intelectual da terceira gerao mais difcil de pintar do que da primeira e segunda. Ningum domina agora como Febvre e Braudel o fizeram antes. Na verdade, alguns falam em uma fragmentao intelectual. (Burke, 1990, p.65).

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Jacques Le Goff esclarece que a nova histria, na medida que no constitui um bloco, uma nebulosa cujo cerne a escola dos Annales, e que se mantm fiel aos objetivos desta ltima. Creio, alis, que o que aconteceu e o que acontece nos melhores casos que os historiadores dessa tendncia conservaram o mesmo objetivo, mas procuram atingi-lo por outros meios. (Le Goff, 1993, p.3). A Historia, afetada pela presena de novas exigncias e sensvel s interrogaes do presente, se associa a novas disciplinas: psicanlise, lingstica, literatura, semitica, climatologia, paleobotnica, antropologia etc. Esta ltima leva a histria a se interessar pelos aspectos simblicos e culturais da sociedade. A Histria acentua a desacelerao do tempo realizada por Braudel. Os gestos cotidianos, costumes, passam a ser estudados na perspectiva da longa durao, o itinerrio intelectual de alguns historiadores dos Annales transferiu-se da base econmica para a superestrutura cultural, no dizer de Vovelle, do poro ao sto. 1. A Histria passa a ser escrita no plural, as estruturas mentais se tornam o interesse central da pesquisa histrica e estas so plurais, mltiplas e heterogneas. Com estas novas orientaes, a historia que foi denominada de nova, no pensa mais o global, mas o geral, como definiu M. Foucault. importante atentar que no reside, nesta postura assumida por grande parte dos historiadores da terceira gerao, uma traio aos fundadores, como acusa Franois Dosse;2 e, em sua defesa, Le Goff esclarece: Lucien Febvre e Marc Bloch, proclamaram a ambio de uma histria total ou global3. E a histria nova conserva, essa proposta de uma cincia histrica que no mutile a

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Vovelle (1982) observa que a frase foi cunhada por Le Roy Ladurie, antes deste ter seguido roteiro semelhante. 2 Em seu livro A Histria em Migalhas, Franois Dosse apresenta uma tese a respeito do interesse de alguns historiadores da atualidade pelas descontinuidades entre as sries parciais de fragmentos de histria. 3 Essa histria global corresponde ao esforo de Febvre de apreenso do Zusammemhang (contextualizao) e revela sobre ele a influncia de Dilthey e Michelet. (Febvre, 1965, p.25-26)

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vida das sociedades e que no eleve, entre os diferentes pontos de vista sobre o devir dos homens, as barreiras de subdisciplinas. (Le Goff, 1989, p.18). Para Le Goff, a noo de uma histria global poderia ser contaminada por subentendidos tradicionais e paralizadores, que apontassem para uma coerncia e uma continuidade que no corresponde s descontinuidades, que so encontradas pelo historiador em seu ofcio. Concluindo, cita M. Foucault:

esse uso id eolgico da histria pelo qual se tenta restituir ao homem tudo o que, h mais de um sculo, no cessou de lhe escapar (...). Da velha cidadela dessa histria (...) os historiadores desertaram desde h muito e partiram para trabalhar em outro lugar. Miche l Foucault conclui: (...) O tema e a possibilidade de uma historia global comearam a dissiparse e vemos esboar-se, bastante diferente, o delineamento do que poderia ser chamado de histria geral. ( Foucault apud Le Goff, l969, p.17-24)

A Histria sofreu uma modificao profunda em seu campo de anlise. O historiador no mais um colecionador e empilhador de fatos, ele um construtor, recortador, leitor e intrprete de processos histricos. sob este prisma que este trabalho procura enfocar a produo historiogrfica de George Duby, um dos mestres da histria da Idade Mdia e um dos historiadores contemporneos de maior prestgio internacional, que fez sua reputao como historiador social e econmico da Frana Medieval, seguindo de perto a tradio estabelecida por Bloch. Neste sentido, Duby inspirou-se nas obras La societ fodal e Les caractres originaux de lhistoire rurale 220 franaise, em seus estudos sobre a regio de Mcon e em sua sntese sobre a economia rural do Ocidente medieval. Na dcada de 60, os interesses de Duby moveram-se em direo histria das mentalidades, colaborando com Mandrou em sua histria cultural da Frana. Posteriormente, indo alm de Bloch e do estilo original dos Annales, sendo observvel a inspirao neomarxista, demonstra sua preocupao com a histria das ideologias, da reproduo cultural e do imaginrio social. Neste

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campo, procura combinar estas categorias com a histria das mentalidades, cujo coroamento se d em seu livro As trs ordens, que ser utilizado no quarto captulo deste trabalho, com a finalidade de se perceber a concepo do autor sobre ideologia e as contribuies que este conceito, to caro aos marxistas, pode trazer de contribuio para a histria das mentalidades. Na construo de sua obra histrica, percebida uma atitude de fidelidade para com a tradio dos Annales, tornando-se uma necessidade constante, para que se possa compreender a construo de seu saber histrico, avaliar o peso da influncia dos fundadores da Escola no seu fazer historiogrfico, bem como a utilizao do instrumental terico marxista na anlise de uma sociedade fora da contemporaneidade. A partir de ento, compreender a legitimidade dessa apropriao, que ser analisada com maior apuro no terceiro captulo, assim como, estudaremos no quarto captulo as resistncias criadas pelo autor ao estruturalismo presente em sua obra, mas vendo neste, um grande poder de estmulo ao trabalho de Duby, embora no possamos qualificar sua obra de estruturalista. Duby um historiador que opera crticas ao antigo positivismo, tendo o firme propsito de no arruinar a pretenso da Histria ao saber positivo e procurando as condies de possibilidade de tal saber. Para confirmar essa preocupao cientfica, basta observar as construes de seus modelos tericos cuja finalidade desenhar um novo mtodo positivo . Na construo de seu saber histrico, seu objetivo revelar o homem em toda a sua diversidade. Sendo dominador ou dominado, no sendo santo, no s pecador, mas o centro da histria que existe, na qual se relacionam dimenses variadas da atividade humana. O historiador busca um quadro totalizante das sociedades, sem com isto impedir as possibilidades de um outro acabamento, consciente das impossibilidades de se atingir todas as nuanas do conjunto das atividades humanas. Investindo, assim, no aprofundamento de novos estudos, descobertas e compreenso dos complexos traumas, com os quais

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os homens respondem a desafios, saltam obstculos, se organizam, e se apercebem, lutam e desejam. Com o propsito de revelar toda a riqueza de uma sociedade, Duby promove um detalhamento deste conhecimento, obtendo um mais rico esclarecimento de uma poca, de uma realidade vivida, utilizando conceitos que no se restringem a determinados campos de conhecimentos. Transpe fronteira de novas reas de conhecimentos, abrindo possibilidade de conhecimentos com especialistas de correntes de estudos outros, que possam contribuir para um maior entendimento de uma realidade social histrica. O esforo para se obter um maior esclarecimento de uma realidade vivida, leva o historiador a interessar-se pelo oculto, pelo fugidio, pelo que silenciado, sem com isto se atrelar a uma prtica psicanaltica, pois o papel do instrumento psicanaltico, na investigao histrica do historiador, sofre reservas.Ora estou convencido de que no existe inconsciente coletivo. Este conceito parece- me levar a investigao histrica para uma via sem sada, na medida em que ele leva a transferir para a anlise de uma sociedade, e do que a faz evoluir deste ou daquele modo, processos de investigao, de despistagem, interrogaes que s podem ser operatrias quando se trata do devir de um indivduo. (Duby, 1980, p.88.).

A interdisciplinaridade, to apregoada pelos Annales e pelo prprio Duby, s tornou-se possvel a partir de uma nova temporalidade, muita bem definida por Bloch em sua obra sobre concepo de tempo histrico como durao. Embora reafirme que o propsito da histria ainda o estudo dos homens, das sociedades humanas no tempo,so os homens que a histria quer apreender. (Bloch,1974, p.34). O historiador define a perspectiva que se deve ter desse objeto comum das cincias sociais: a histria no pensa somente o humano, ela o pensa na durao. Bloch afirma que o tempo da Histria um plasma que banha os fenmenos, e o lugar de sua inteligibilidade uma realidade concreta e viva.

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O tempo da histria , ao mesmo, tempo de continuidade e descontinuidade, esta anttese gera os grandes problemas da pesquisa histrica. Se, por um lado, a Histria tradicional privilegia o tempo curto, a mudana, que a leva a fixar-se no Estado, na Igreja, nas instituies culturais etc., por outro, os Annales priorizaram o estudo dos fenmenos econmicos-sociais, pois so abordveis cientificamente, pois so mensurveis, seriveis, empiricamente verificveis. Os fenmenos scio-econmicos so pensveis em termos de ciclos, interciclos e tendncias. A inteligibilidade da Histria muda atravs de uma nova periodizao, implcita, lenta, estrutural. Esta abordagem, baseada numa nova representao do tempo da Histria, constitui-se a partir da aproximao que os Annales promovem com as Cincias Sociais.

Os Annales realizaram uma revoluo epistemolgica quanto ao conceito de tempo histrico, ou melhor, uma renovao profunda, uma mudana substancial na forma de sua compreenso, mas sem perder a sua ligao com o projeto inaugural de Herdoto: conhecer as mudanas humanas no tempo ( Reis, 2000, p.15 ).

Estas mudanas se deram, principalmente, a partir das crticas feitas pelos socilogos durkheimianos histria historizante, apontando para a precariedade de um conhecimento das mudanas humanas e contra a acelerao do tempo produzida pela modernidade. Os Annales das trs geraes se mostraram sensveis e se esforaram por tornar realizvel a

interdisciplinaridade com as cincias sociais. A longa durao dos Annales a traduo, para a linguagem temporal dos historiadores, da estrutura atemporal dos socilogos, antroplogos, lingistas etc. (Reis, 2000, p. 19.). Na produo historiogrfica de Duby, inegvel a influncia estruturalista, movimento intelectual proveniente das Cincias Sociais,

especialmente a antropologia. Os instrumentos da crtica histrica utilizados pelo historiador so forjados para serem aplicados nas fontes, principalmente nos

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textos, de modo a apreenderem as lentides e perceberem o no-exprimido, orientando a investigao com vistas a revelar as formas estruturais, as oscilaes de longa freqncia. Uma outra caracterstica que pode ser apontada, como sendo influncia dos embates entre a Histria e as Cincias Sociais, a postura de Duby, extremamente meticulosa, quanto a estabelecer pontos de ancoragem cronolgica em suas anlises, pois fazer histria uma referncia a uma durao. (Duby,1980, p.53.). A preocupao redobra quando as observaes so feitas na longa durao, onde apreende objetos de estudo, muitas das vezes, impalpveis e mal situveis, principalmente quando se prope a estudar as revelaes da arqueologia da vida quotidiana, as interrogaes a propsito das mentalidades, as tentativas de relacionar fenmenos culturais com folclricos, etc. O incio da carreira de Georges Duby, como foi indicada por este, em sua obra A Histria Continua, tem como marco a instalao de sua oficina de trabalho na Idade Mdia, um domnio imenso que tornava necessrio saber onde se situar. Ao situ-lo, nos permitido fazer uma avaliao dessa escolha e tornase possvel delinear os primeiros traos da postura historiogrfica que caracterizar sua atitude intelectual de historiador, a originalidade e a erudio que permearo sua obra. A escolha de Georges Duby recai sobre o estudo de uma estrutura social, a qual denominamos feudal, cuja sociedade se apresenta eminentemente rural, pois se forma em uma poca em que as cidades e os comerciantes no tinham ainda um peso significativo. Todas as esferas da vida social se encontravam envoltas na ruralidade, mais precisamente, pelos sculos em que a sociedade feudal estrutura as suas bases e cuja documentao , por vezes rara, por vezes, quase que inexistente. Para realizar esta reflexo historiogrfica, a partir de um lugar geogrfico-espacial, antes se devem observar as caractersticas de uma das tendncias apresentada na Frana, aps os abalos provocados pela crise

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econmica do incio dos anos 30 do sc. XX, que sacudiu as bases de produo e das trocas na Europa. Neste perodo, muitos historiadores voltaro sua ateno para os fenmenos econmicos: tais como o precursor Henri Pirenne 4, Jean Schneider, Philippe Wolff, Michel Mollat, etc. Inspirados pelos modelos constitudos pelos economistas, em torno das idias simples de crescimento e crise, e como o valor das coisas evolua no passado, esforavam-se para identificar as tendncias de longa durao e ciclos, esboando, ainda em grmen, o que, mais tarde, Braudel proporia sobre os trs estgios superpostos do desenrolar do tempo histrico; e revelavam tambm uma certa obsesso pelos nmeros e mdias, valendo dizer, por um tipo de histria que se firmaria na Frana depois dos anos 50, especialmente a propsito da demografia das pocas antigas, que pode ser denominada de histria serial. Certos perodos se prestam, mais que outros, a esse tipo de investigao, a poca moderna um destes. Sem a sobrecarga de uma documentao superabundante, o historiador consegue extrair dos textos sries contnuas de cifras. Era o propsito de Duby se unir a esta vanguarda intelectual e fato que, em seu itinerrio de historiador, o aspecto econmico tem uma importncia bem marcante, mas sua formao de gegrafo pesa em sua escolha do lugar geogrfico-espacial para iniciar seus estudos. Instalada pois, sua oficina de

trabalho nos sc. XI e XII, onde a documentao, embora em nmero suficientemente pequeno, fornece pontos de apoio necessrios sem riscos de se perder, podendo fazer praticamente o inventrio da informao, desde que se delimite um territrio no muito vasto. A concepo terico-metodolgica pela qual Duby iniciou suas investigaes sobre a Idade Mdia, est ligada aos avanos realizados por Bloch, em sua ampla concepo de civilizao agrria, que chama ateno para o fato de que (...) diante da existncia de diferentes sistemas agrrios no pode ser explicado apenas pelo meio fsico., (Bloch,1931.p.73.) e utiliza os mtodos4

Pirenne, Henri ( 1862-1935 ). Historiador francs, famoso por sua interpretao sobre o processo de transio da Idade Mdia para a Idade Moderna na Europa.

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globalizantes da antropogeografia, forjados por Ratzel5. Duby parte de bases de histria scio-econmica e amplia seus horizontes pela integrao dos sistemas de representao Sua escolha encontra-se um tanto quanto em oposio produo historiogrfica sobre a feudalidade, dos anos ps-segunda guerra, em que a histria econmica ocupava o primeiro plano e as investigaes histricas haviam voltado grande parte de sua ateno para os fenmenos econmicos norteados pelos modelos construdos por economistas. Era um perodo de hegemonia da histria quantitativa, serial, nas reas da economia e da demografia. A euforia com a possibilidade cientfica da quantificao, neste momento, era grande o bastante para o pronunciamento de Le Roy Ladurie: no limite, no h histria cientfica seno do que quantificvel. (Ladurie, 1973, p.22). Logo aps, Furet analisa os mritos e limites da histria quantificada, em seu artigo Le Quantitatif en Histoire, no qual considera a histria serial um grande salto qualitativo em direo a um conhecimento histrico, embora tambm mostre seus limites. A formao de gegrafo de Duby, antes de ser historiador, esclarecedora quanto ao lugar geogrfico-espacial escolhido para instalao da sua oficina de trabalho. Alm disso, queremos registrar, a importncia do lugar social, onde esta pesquisa historiogrfica se articula e as condies que possibilitaram o texto existir. Exatamente as condies histricas, aquilo que Foucault chama de apriori histrico, isto , todo um cho social, poltico, cultural, epistemolgico, que se encontra na prpria estruturao do texto, mas no est dito nele. O texto, de uma certa forma, mascara, no encena suas prprias condies.

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A influncia dos mtodos globalizantes forjados por Ratzel, presente na obra de Bloch, como na de Duby, no exclui a influncia sobre o ltimo, da geografia sob a inspirao de Vidal de La Blache bem como as obras de Febvre, Bloch e Braudel, que faro uma geo-histria, que produziu os frutos mais eminentes da nouvelle histoire. A geografia vidalina ajudou os historiadores dos Annales na sua inovao maior em relao produo histrica anterior: a sua concepo do tempo histrico. ( Reis, 2000, p.6163.)

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(...) Ela est, pois, submetida a imposies, ligadas a privilgios, enraizada em uma particularidade. em funo deste lugar que se instauram os mtodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questes, que lhes sero propostas, se organizam.(Certeau, 1975, p.67.).

Assim como Foucault, tambm Michel de Certeau chama ateno para a importncia do lugar social na produo historiogrfica, embora o lugar trabalhado por Certeau seja um lugar social e simblico e a escolha de Duby se faa em um lugar geogrfico-espacial, o que so noes diferenciadas, no excludentes mas congruentes e explicativas. A resistncia hegemonia da histria quantitativa, serial, econmica e demogrfica, pode ser vista como um fato indicativo da influncia das relaes sociais e intelectuais vividas pelo historiador que constri seu espao de pesquisa. Como se viu, este processo se inicia a partir do estudo de formao social extremamente rural, promovendo uma complementaridade entre histria econmica e social, que caracteriza o ponto inicial da produo do autor. A complementaridade entre histria econmica e histria social tambm observvel na postura da Escola dos Annales, no contexto em que Duby produz suas primeiras obras. Segundo L. Wallerstein:(...) a Escola dos Annales fornece um meio favorvel expresso desse equilbrio procurado. E uma escola que resiste hegemonia anglo-saxnica e tambm afastada do Partido Comunista Francs. Existe uma dose importante de nacionalismo no pensamento dos Annales, nacionalismo que o sustentou e o fez expandir-se.. (Wallerstein apud Reis. 1988, p.17-24).

A tese de doutorado de Duby foi construda segundo o modelo das monografias regionais que a Escola Francesa de Geografia produzia ento, tal como as teses de Demangeon ou de Andr Allix. Este ltimo foi seu primeiro orientador e colaborador, como Duby, nos Annales. A principal contribuio de Allix para o trabalho de tese de Duby pode ser sintetizada na firme proposio de que, para se explicar convenientemente uma paisagem de determinada regio na

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atualidade (regio de Oisans), era necessrio explicar o modo como foram ocupadas e exploradas as terras da Idade Mdia. Essa influncia marcou profundamente o Duby gegrafo, que contempla a natureza e procura explic-la, sabedor que esta o resultado de uma elaborao moldada ao longo das eras, pela ao dos grupos sociais que viveram e que vivem no espao, atento no s para a materialidade, os aspectos fsicos modeladores, mas tambm , as foras, os desejos, as grupos. Como historiador, Duby abandona a concepo superficialmente centrada em indivduos excepcionais, cujas decises pareciam governar a efervescncia dos fatos, e estuda o homem em sociedade, sendo este um homem comum ou singular. Apercebe-se da sociedade como uma paisagem que sistema, cuja evoluo determinadas por mltiplos fatores que se relacionam, no no sentido de causa e efeito, mas de correlao e de interferncia. Sendo assim, por uma questo de mtodo, considerava conveniente estudar cada um desses fatores, observando como evoluem, com seu ritmo prprio, mas imperativo consider-los na indissolvel coeso que os une, com a finalidade de compreenso do funcionamento do sistema. Esta postura de Duby reforada em uma entrevista:Tento abandonar a mecnica da causalidade. Falo de preferncia de correlao e no de causas e efeitos. Isso me leva a pensar que tudo determinado e que tudo determina tudo. Essa noo de totalidade indispensvel faz me pensar nisso (Duby, 1980, pg.75.)

configuraes destes

esclarecedor sabermos sobre o papel importante da Escola Francesa de Geografia que, na poca da formao do historiador, encontrava-se na vanguarda de todas as Cincias Sociais. Era nesta perspectiva que os contributos provenientes da sociologia e o suporte da geografia fsica promoviam importantes esclarecimento sobre o mundo rural francs. Os conhecimentos provenientes destas duas reas de saber eram um constante recurso aos

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historiadores em suas pesquisas. Os gegrafos deram importantes contribuies para o conhecimento da vida rural no tempo de Carlos Magno 6, destacando os alunos de Rauol Blanchar 7, que propunham uma geografia no simplesmente humana, mas humanstica. A Seco de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade de Lyon, estava atento ao que de mais novo se produzia nas cincias do homem., tinha uma ateno particular ao que vi ria se chamar Escola dos Annales, pois, desde o seu incio, atenta aos progressos realizados nas Cincias Sociais. Da Escola Francesa de Geografia; saram muitos dos colaboradores para essa escola, gente, como Andr Allix, Faucher, Dion , todos esses com participao na formao profissional de Georges Duby. A partir de 1951, antes de assumir a ctedra universitria da Faculdade de Letras de Aix-en- Provence, na Provena francesa, Duby convidado por Paul Lemerle a trabalhar em um projeto que ampliava em muito sua rea de estudo. Deveria produzir textos de snteses sobre a economia rural no Ocidente Medieval, do sc. VIII ao XV, de toda a Europa. Duby fora incitado a sair do acanhamento, a desdobrar-se, como gosta de declarar. Para isso, contaria apenas com recursos de sua prpria experincia intelectual, com aquilo que aprendera na produo de sua tese, na qual explorou uma rea bastante restrita (Mcon). Entretanto, contaria para este trabalho com o resultado dos trabalhos de seus antecessores e companheiros, sendo pertinente organiz-los, traar perspectivas e compor um panorama e dar sua contribuio. Por exigncia sua, esta empresa historiogrfica no ficaria limitada rea econmica, que considerava base necessria, mas tambm deveria estender-se s relaes sociais, que a economia parcialmente determinava.86

Na Frana, os gegrafos favoreceram o conhecimento da vida rural no perodo citado, um contributo talvez mais rico do que o dos historiadores stricto sensu. 7 Blanchard, Rauol. Gegrafo francs, diretor do L intitut de gographie alpine, foi colaborador na produoda obra La gographie universelle, com Vidal de La Blanche e Gallois. 8 Nesta etapa do itinerrio cientfico de Duby, temos a influncia do pensamento marxista agindo de maneira contundente sobre a maneira do autor refletir o passado, e comea a se esboar sua postura frente s distores que a prtica poltica enfaixava o marxismo, mantendo-se reticente ante o abuso do determinismo.No terceiro captulo trata-se precisamente da relao do autor com o pensamento marxista.

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Esta obra deveria ficar sem concluso, aberta, pois a considerava uma sntese imperfeita, mesmo lacunar, tendo conscincia de suas fraquezas, em certos pontos, e da fragilidade de algumas de suas dedues sobre a evoluo da produo na sociedade feudal. Para feitura deste trabalho, que sofreu crticas de um historiador ingls de Oxford, que atentou para a possibilidade do autor no ter lido tudo, [certamente a crtica seria devido aos comentrios elogiosos de Duby aos economistas de Cambridge], foram citadas seiscentas sessenta e seis publicaes, em cinco lnguas, no dizer de Duby, um trabalho de mouro. (Duby, 1993, p.72.) Subverter as relaes entre a histria econmica e a das sociedades teve um peso considervel na obra de Duby, pois esta postura servir de marco em toda sua obra. Desta forma, que se inicia a construo de um espao histrico, com a pretenso de ser apresentado, na medida do possvel, totalizante, esclarecedor das variadas dimenses das atividades humanas em uma estrutura social. A subverso tem o sentido de definir um espao prprio de pesquisa, traando a distino e a complementaridade entre histria econmica e social. A postura intelectual ousada de Duby, isto , de sempre ir alm no conhecimento do homem no seu meio social, no qual se sucedem dimenses variadas da atividade humana, abrindo novos espaos, influncia de Marc Bloch e Lucien Febvre, retomada a partir dos anos 60, quando Duby se

empenha em promover uma aliana entre a histria das mentalidades e a histria social. Esta ltima se enriqueceria, assimilando os objetos que a histria das mentalidades decide trabalhar. Em troca, as mentalidades atentariam com maior ateno analtica para o elemento social, que faltaria em suas abordagens puramente psicologizadas, dos comportamentos coletivos. Duby considera-se filho da Escola dos Annales ao acordar com os fundadores quanto ao carter sinttico da histria social. A histria social dos Annales, mais precisamente aquela feita pelos dos fundadores, Lucien Febvre e Marc Bloch, cuja principal caracterstica foi ter proposto um programa de colaborao entre as Cincias Sociais, para o estudo do

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objeto comum a todas, o homem em sociedade, foi por sua vez inspirada no esprito de sntese que alimentava as propostas intelectuais de Henri Berr e o Cento Internacional de Sntese,em Paris. A histria social vista por Duby como sntese, devendo integrar os resultados da histria demogrfica, da econmica, da histria do poder, da histria das mentalidades, etc. Temos, dessa maneira, a histria social lanada em rota de convergncia de uma histria da civilizao material e de uma histria das mentalidades coletivas. Duby esboa trs princpios metodolgicos para alcanar tal finalidade: O primeiro princpio: o homem em sociedade constitui objeto final da pesquisa histrica: somente por necessidade de anlise se dissociam os fatores econmicos, dos polticos ou dos mentais:(...) a historia das sociedades deve, sem dvida primeiro e por comodidade da pesquisa, considerar os fen menos a distintos nveis de anlise. Que ela deixe, entretanto, de se considerar a seguidora de uma histria da civilizao material, de uma histria de poder, ou de uma histria de mentalidades. Sua vocao prpria a da sntese. Cumpre- lhe recolher todos os resultados das pesquisas efetuadas, simultaneamente, em todos os domnios e reuni- los na unidade de uma viso global. (Duby apud Cardoso, 1971, p.4.).

O segundo princpio dedica-se a descobrir, no seio de uma globalidade, as verdadeiras articulaes, isto , as vinculaes importantes, as relaes significativas dentro da complexidade que apresenta a totalidade de uma sociedade:O historiador deve assumir como objetivo final de seu trabalho essa reunio e correlao dos fragmentos dispersos, para restabelecer a complexidade da realidade e evitar, assim, qualquer forma de mecanicismo causal. (...) preocupao constante de estar sempre ligando os novos continentes do saber histrico aos antigos, impedindo assim a deriva de objetos que, como isolados biolgicos, se apresentam destacados de qualquer conexo. (Dosse, 2001, p.102.)

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O terceiro princpio atenta para a irredutibilidade dos distintos nveis, no estudo das sociedades ,e para a problematizao da durao dos diferentes ritmos que afetam cada nvel da vida social. Duby esclarece:Porm a pesquisa das articulaes evidencia, desde o incio, que cada fora atuante, embora dependa do movimento de todas as demais, tem a anim-la, no entanto, um impulso que lhe peculiar. Ainda que no estejam de modo algum justapostas, mas intimamente vinculadas em um sistema de indissocivel coerncia, cada uma se desenvolve no interior de uma durao relativamente autnoma; esta ultima est animada, alm disto, nos distintos nveis de temporalidade, por uma efervescncia de acontecimentos, por amplos movimentos de conjuntura e por ondulaes ainda mais profundas, caracterizadas por ritmos muito mais lentos. (Duby apud Cardoso, 1971, p.4.).

A prtica metodolgica utilizada por Duby, na histria social, merece uma apreciao do contexto scio-poltico da dcada de sessenta na Frana, pois esta propicia importantes contribuies para o fazer historiogrfico do autor. Aquele momento histrico, na Frana dos anos 60, era favorvel ao estudo da Idade Mdia, pois ganhava gosto o estudo pelas coisas da terra, acelerava-se a demolio do que restava da civilizao tradicional francesa. A descolonizao marcava a volta para casa dos etnlogos. Esses intelectuais trouxeram propostas tericas desenvolvidas em estudos sobre sociedades aparentemente frias, sem histria, presas a uma durao redonda, cclica, exticas e distantes. Os etnlogos levavam em considerao conceitos como o de reciprocidade, ou de redistribuio, gratuidade etc., e mostravam a fora da resistncia dessas sociedades pela permanncia de suas estruturas sociais e de seus valores sociais, que pareciam irredutveis ao modelo ocidental de civilizao. Os etnlogos promoveram profundas modificaes nas anlises dos historiadores, principalmente dos que cuidavam de estudos de pocas distantes. A outra contribuio foi descoberta como uma verdade no espao, no mais somente temporal, relativizando o eurocentrismo. Os etnlogos, em casa,

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descobrem as colnias internas do mundo ocidental, verdadeiros quebra-mares de resistncias s mudanas. So criados na Frana os primeiros conservatrios de artes e tradies populares e a cultura material passa a ser estudada, pesquisada tanto quanto o monumental. Era momento de ir Polnia conhecer os mtodos de pesquisa desenvolvidos pelo Instituto de Histria da Cultura Material. Na Frana, o meio rural ganha campos de pesquisa, trata-se de encontrar os vestgios de um sistema de explorao e de um modo de vida cotidiano entre os escombros. Uma nova arqueologia comeava a se expandir, preocupando-se, antes de tudo, com a cultura material. A Idade Mdia campo privilegiado, principalmente quando a pretenso compreender as primeiras etapas da vida econmica europia. Desse modo, Duby mantem o fio condutor que tem origem na feitura de sua tese de doutoramento, que versa sobre o poderoso lan de crescimento que povoou a Europa e transformou sua paisagem; que se prosseguiu no trabalho de sntese, j referido, estimulado por Paul Lemerle. Em 1960, dirige com Daniel Faucher, a revista tudes rurales, criada por Fernand Braudel, implantada no laboratrio de antropologia social no Collge de France, dirigido por Claude Lvi-Strauss. A finalidade maior deste peridico era unir gegrafos e historiadores e tambm antroplogos, agrnomos, socilogos e economistas no imenso domnio que o dos campos e campesinatos do mundo. Nesta dcada, Duby trabalha para as colees de histria econmica na Frana e para a Wold Economic History, sob a direo de Charles Wilson, escrevendo sobre os camponeses na Idade Mdia, levando em conta a economia de trocas, que o leva a um perodo bastante espaoso do sc.VII, indo ao sc. XII, onde situa a grande inflexo, o verdadeiro incio do crescimento que povoou a Europa e transformou sua paisagens, porm as primeiros sinais retomada do crescimento economico esto no sc. VII. Era imperioso acompanhar e definir o papel da moeda, do comrcio e das cidades no contexto da economia rural medieval, que, no princpio, de uma

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subalterna, aps o ano mil,ganha uma vitalidade exuberante. Outro ponto estudado por Duby, deste perodo, foi a canalizao das riquezas produzidas para as residncias senhoriais, atravs do sistema fiscal senhorial e as conseqncias da advindas, tais como o gosto pelo luxo e pelo gasto, que prepara as grandes transformaes dos tempos dos mosteiros aos tempos das catedrais e ao fortalecimento do Estado monrquico. Em sntese, o trnsito do esprito de generosidade, da gratuidade ao esprito de lucro. Este trabalho de Duby na Frana tem o ttulo de Guerriers et Paysans (Guerreiros e Camponeses) data 1973, e sua arquitetura repousa quase que inteiramente nos conceitos de classes e de relaes de produo. Esta etapa da obra de Duby, que se segue imediatamente aps a realizao da tese sobre Mcon, pode ser identificada a partir de Lconomie rurale et la vie des campagnes dans lOccident Medieval, em 1958 e Guerries et Paysans, cuja produo cuida principalmente da histria econmica. nesta fase que a influncia marxista agiu fortemente sobre a maneira do autor refletir sobre o passado. O caminho percorrido por Duby, desde que faz a opo por subverter as relaes entre a histria econmica e a das sociedades, iniciando a construo de um espao histrico com a pretenso de ser o mais possvel totalizante, iniciase na histria social e vai at o estudo do imaginrio, ou seja, das estruturas sociais s atitudes e representaes coletivas, sem menosprezar as estruturas econmicas. O historiador Georges Duby se declarava um historiador das mentalidades e marxista, pelo menos nos compromissos. A postura do historiador pode ser analisada em face das muitas questes que se pem atualmente, por exemplo: a histria das mentalidades antimarxista? Se no o , quais as causas que possibilitaram este modo de pensar? E quais as possibilidades de uma congruncia entre os estudos de ideologia e das mentalidades? Para responder a estes questionamentos, necessrio, em primeiro lugar, um esclarecimento sobre ideologia e mentalidades, que no so a nica e

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mesma coisa. Michel Vovelle chama ateno para a coexistncia desses dois conceitos dentro de um mesmo campo: alm de serem conceitos rivais, so herdeiros de duas correntes de pensamento diferentes, da ser difcil um ajustamento, mas se tem uma rea real de superposio desses campos de estudo. O conceito de ideologia, entendido moda marxista, isto , na perspectiva de dominao de classe, foi longamente elaborado e amadurecido. herdeiro de um modo de pensar mais sistemtico, para tanto pode se ir de Marx a Althusser, embora a ltima palavra sobre este conceito se encontre longe de ser dita. O conceito de mentalidade, ou melhor dizendo, a noo de mentalidades, segundo Vovelle, reflexo conceitual de uma prtica ou de descoberta progressiva (Vovelle,1985, p. 17). Disto, temos o conceito mentalidade como herdeiro de um modo de pensar voluntariamente emprico, mais abrangente, que integra o que no est formulado, que permanece como no significante. Por estes aspectos, o conceito de mentalidades se apresenta mais amplo que o de ideologia e, se distingue dos outros registros da histria por se propagar em um tempo mais longo, remetendo-se, de modo privilegiado, lembrana, memria, s formas de resistncias. Aponta para o que se define como a fora de inrcia das estruturas mentais, embora esta definio seja passvel de levantar vrios tipos de interpretaes ou hipteses de trabalho. O conceito de ideologia, de um modo geral, aponta par a o estudo da relao imaginria dos homens com as condies reais de existncia, para o estudo de prticas e comportamentos conscientes ou inconscientes. A rea de superposio desses dois conceitos indiscutvel, mas no deixa de criar divergncias. Assim temos, por um lado, as mentalidades que se inserem sem muito esforo no campo do ideolgico e por outro lado, a ideologia, no sentido restrito do termo, que seria um nvel no campo das mentalidades. Entende-se que esse nvel seja o da tomada de conscincia ou de formatao do pensamento claro. As duas apreciaes so reducionistas e no so satisfatrios para um esclarecimento quanto aos questionamentos que se verifica. Surge um terceiro

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posicionamento em face do reducionismo das duas proposies iniciais, que contm mal-entendidos fundamentais, mas cuja aspirao primeira livrar a ideologia de ser um conceito restrito ao campo excessivamente marxista. Esta postura passa a ser observada claramente com o crescimento e importncia da historiografia que privilegia as estruturas ideolgicas nos pases liberais, particularmente a Frana, nos ltimos decnios, tendo como preocupao coletiva de pesquisa o terceiro nvel da estrutura social, para usar a expresso com que Vovelle se referia s mentalidades. Nesta nova postura historiogrfica, no h hierarquizao entre infra-estrutura econmica, estruturas polticas e superestruturas ideolgicas. Nestes termos, temos a noo de mentalidade mais flexvel, desembaraada da conotao ideolgica marxista, mas no se podendo afirmar categoricamente, por mais que se anuncie que esteja esta noo livre de conotao ideolgica. O problema aqui observado, quanto postura assumida por uma parte dos historiadores das mentalidades, principalmente quanto calibragem da autonomia do mental em uma sociedade, pode e deve ser explicado por uma perspectiva histrica. A postura assumida por uma parte dos primeiros Annales, neste caso, pode-se citar Lucien Febvre, procurava manter a nfase sobre a trilogia economia-sociedade-civilizao. Este ltimo termo abrindo-se para o

superestrutural, e a nfase de Braudel sobre a importncia da mediao social, em seu livro Civilizao material e Capitalismo, no comprometem a existncia de uma preocupao em diferenciar-se de uma histria marxista tida como fechada nos esquemas dogmticos de um reducionismo scio-econmico. Deve-se observar que, se Braudel no afirma a autonomia do mental, pelo menos chama a ateno para a originalidade dos ritmos ao quais o mesmo se subordina, segundo a anlise de Vovelle. O quadro atual nos mostra que muitos historiadores franceses que hoje trabalham com a histria das mentalidades, e vieram da histria social, no a repudiaram, mas grande o nmero de especialistas, nos dois lados do Atlntico,

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que procuram se desvencilhar de uma srie de amarras, de verificaes que se impem quando no se quer dar uma autonomia ao mental. Esses historiadores das mentalidades, embora estejam preparados para todas as tentaes da psicohistria, acentuam uma parte dos traos que se destacam, para sublinhar a autonomia do mental. Os esclarecimentos e as preocupaes apontadas pelos estudos de Michel Vovelle esto, em grande parte, em conformidade com a postura de Duby. Desta forma, conveniente traar a trajetria deste historiador que utiliza o aparato conceitual marxista e dos Annales, ao aproximar o estudo das ideologias do estudo das mentalidades, promovendo o estudo do imaginrio, no como mais um aspecto das representaes sociais, mas como um objeto da histria, que tem como base conceitual a historia das mentalidades, sendo um aprimoramento deste estudo. O conceito de ideologia utilizado por Duby, como foi citado neste trabalho, extrado de Althusser, sendo um dos conceitos fundamentais da leitura althusseriana de Marx. A partir desse conceito, Duby vincula o estudo das mentalidades ao das ideologias, promovendo uma sntese, amalgamando elementos conceitos da tradio ou do que vem a se chamar esprito dos Annales e da tradio marxista. Para o estudo da sociedade medieval, e importa dizer que no transporte desses conceitos para a Idade Mdia, estes sofreram uma reviso, um contorno. A tradio marxista que levada para pocas to longnquas, uma tradio que pode se dizer original, na medida que o historiador no leva ao limite uma leitura ou uma apreenso, digamos, ortodoxa dos conceitos e do pensamento de Marx. Duby um historiador que se enquadra na linha de sucesso do pensamento dos Annales e promove o encontro, a confluncia de uma forma prtica atesta isso o estudo realizado em seu livro As trs ordens,que exemplo desse encontro entre a histria das mentalidades que tem origem com Marc Bloch e Lucien Febvre, com o marxismo. Este movimento de aproximao entre o fazer historiogrfico dos Annales e o marxismo se estabelece atravs de

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Althusser, mas no se pode omitir que o xito somente foi possvel devido ao ecletismo terico e ousadia de Duby de lanar olhares por sobre as fronteiras. Duby, em suas ltimas obras, se mostra particularmente atento em manter unidas as duas pontas da cadeia, desde o social ao mental, mantendo-se aberto s confrontaes. Esta preocupao foi compartilhada com Mandrou. Duby inicia seus estudos tendo como objeto as mentalidades, sendo o arcabouo terico-metodolgico, sobre a maneira com qual deveria ser empreendido o estudo desse objeto, resultado de trabalho conjunto desses historiadores. No seu fazer historiogrfico, a ideologia ou ideologias no so um simples setor de traos de mentalidades. Para melhor ajustar uma conciliao entre os dois conceitos, pois o historiador das mentalidades constantemente encontra pelo seu caminho estruturas ideolgicas que resistem em permanecer e aparentam estar deslocadas de contextos, como que restos de formulaes ideolgicas anteriores, discrepantes da realidade de uma poca, por isto podem ser confundidas com estruturas ociosas. Duby atesta, em suas ltimas obras, principalmente na As trs ordens, a dinmica prpria das ideologias, quando estuda o seu carter estabilizador, suas resistncias s mudanas, devido, quase sempre, a estarem a servio de determinados interesses e propensas defesa do status quo de setores sociais. Mesmo quando se apresentam revolucionrias, tm seus sustentculos composto de tradies. A inrcia natural desses sistemas de representaes, sua diferente temporalidade com as condies reais de existncia, no permitem anlises que as qualifiquem de estruturas ociosas. As mentalidades, quando se norteiam por uma suposta autonomia do mental, tm encontrado em seus estudos o que erroneamente se qualifica de restos de ideologias mortas, que so, em verdade, lembranas que resistem, identidades preservadas quando se atenta para a relao especificamente do tempo das representaes mentais e o da Histria. A recusa de Duby de fazer uma histria onde fosse caracterstica um geistegeschichte sem amarras, o coloca fora do ponto onde se fixa a maior

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incompatibilidade entre o conceito de ideologia e de mentalidades, isto , quando se afirma uma autonomia do mental e de sua irredutibilidade ao econmico e ao social. Uma outra recusa do historiador, que fortalece esta postura, quanto sua no aceitao do conceito de inconsciente coletivo, que se impregna de extrapolaes do domnio da psicanlise, que pode ser operacional ao nvel de individualidade, mas se torna problemtico ao nvel de uma sociedade, quando se tem por objetivo verificar o que a faz evoluir. A utilizao do conceito de imaginrio coletivo, o deixa mais liberto da influncia psicanaltica, porm no a renegando, mas podendo operacionar tambm com a abordagem antropolgica. Temos, desse modo, a presena de Freud, principalmente a importncia do desejo, nas aes sociais e nas relaes com o poder, e de Levi-Strauss, como incio de uma influncia antropolgica marcante. A postura de Duby, como historiador das mentalidades, mantm a conscincia de uma continuidade que se faz presente no propsito de manter o controle das duas pontas da cadeia: a historia das estruturas e a histria das atitudes mais elaboradas. Com base neste procedimento, o estudo das mentalidades torna-se um alargamento no campo de pesquisa, um prolongamento natural, a ponta fina de toda a histria social, onde se desafia todas as redues mecanicistas, enfrentando o entrelaamento do tempo da Histria, onde se constata a fora da inrcia das estruturas mentais. As contradies entre o estudo das ideologias e mentalidades se diluem, quando esta ltima vista como o estudo das mediaes e da relao dialtica entre as condies objetivas da vida dos homens e a maneira com a qual a narram e mesmo a vivem.

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2- MENTALIDADES: DA HERANA DOS ANNALES A UMA NOVA CONTRIBUIO

A influncia exercida por Lucien Febvre e Marc Bloch abria o caminho a ser percorrido por Duby, rumo histria das mentalidades. Desde o final da dcada de 50, conjuntamente com Robert Mandrou, e sob os incitamentos de Claude Levi -Strauss, que na poca escrevia sobre os historiadores: O historiador sabe, cada vez mais, que deve se socorrer de todo o aparelho de elaborao inconsciente.(Levi-Strauss apud, Duby,1991.p.84), Duby lana-se a empreender a historia das mentalidades. Neste captulo, procurase verificar, principalmente, a herana acolhida por Duby da escola dos Annales e procura-se mostrar os pressupostos tericos-metodolgicos que aliceram o estudo das mentalidades nessa Escola . Quanto influncia antropolgica, ser verificado no ultimo capitulo desse estudo, de uma forma mais especfica. O contributo de Marc Bloch, atravs da estimulao de seus escritos, das suas recenses e notas crticas, que inundavam a revista Annales dhistoire conomique et sociale, de seus livros como La Socit fodale ou como Les Caractres originaux..., consiste na afirmao de que a histria social no simples apndice da histria econmica, sendo til se estudar uma sociedade antiga por si mesma. marcante para Duby a maneira de Bloch escrever, sua

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audcia em ir buscar uma compreenso do comportamento dos guerreiros do sc. XII, estudando a literatura que os divertia, as canes, os romances de cavalaria, que propunham, atravs da ideologia, os modelos de comportamentos. So pistas que levam a adentrar, a penetrar nas estruturas mais profundas de uma cultura. A audcia de Bloch a herana que Duby acolhe, e que mais tarde, influenciado pelo trabalho dos etnolgos e o conhecimento de outras reas de estudo, iro ser contributos para uma maior compreenso de uma sociedade. Da obra Os Reis Taumaturgos, de Bloch, sai um dos campos mais fecundos da obra de Duby, o estudo sobre as atitudes mentais, os sistemas de valores, que sero trilhas a serem percorridas. Enquanto Bloch exortava o autor a considerar a atmosfera ment al, Lucien Febvre exortava-o a escrever a histria das sensibilidades, dos odores, dos temores, dos sistemas de valores (...) ( Duby,1993,p.86). Duby passa a interessar-se por uma histria largamente receptiva aos fenmenos culturais, uma histria total, ou por uma histria compacta, que se afasta dos acidentes de superfcie, que so os acontecimentos, indo sondar a espessura, a profundidade, insinuando-se nos ritmos de longussima durao. O historiador deve olhar em direo s bases, em direo s camadas mais estveis da sociedade. No se far uma histria intensamente satisfatria, enquanto no se tiver feito a histria da honra, do po, do suicdio etc. e Duby justifica este posicionamento, consciente da impossibilidade de se atingir tantos objeto, pois muitos simplesmente no deixaram vestgios. Mas desejo do historiador, proporcional a sua frustrao. Para este, histria relacionao, deve -se entender o jogo das relaes possveis e pertinentes entre os objetos. Febvre, em seu livro A religio de Rabelais, demonstra magnificamente que cada poca tem sua prpria viso de mundo, e as maneiras de pensar e de sentir tm historicidade e, neste ponto, o historiador tem que se precaver, pois no deve cometer o erro de deixar que suas maneiras de pensar interfiram nesta apreenso, sob pena de nada compreender sobre a poca que pretende fazer seu objeto de estudo.

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O convite de Febvre era um novo objeto de estudo, as mentalidades. Tendo como um de seus objetivos criticar os anacronismos, pois as mentalidades estabelecem no uma proximidade, mas, uma distncia com o passado. S se podem estudar os homens do sc. XVI pelos homens do sc. XVI. No se pode estud-los a partir de ns mesmos, pois somos completamente diferentes deles. Esta observao de Febvre est no centro da crtica ao anacronismo. Na sua obra A religio de Rabelais, onde ele estuda o problema da descrena no sc. XVI, fazendo uma histria profunda, observando a longa durao das idias, dos sentimentos e das crenas, Febvre destri o mito anacrnico de um Rabelais livre pensador. Para Lucien Febvre, os homens do passado devem ser estranhados, percebidos distancia em relao a quem os observa, somente atravs de outros homens que viveram seu tempo que se pode defini-los, interpret-los, que se pode pens-los em sua especificidade. Esta postura tem uma certa proximidade com o romantismo do final do sc. XIX, com sua preocupao em estabelecer uma anlise do passado pelo passado e no a partir de valores do presente, embora s se estude o passado a partir das questes, dos problemas e interrogaes que se tem ou se fazem do presente. O estudo das mentalidades, desde os primrdios dos Annales, passa a ser verdadeiramente um legtimo objeto de investigao histrica, embora no fossem os primeiros a se dedicarem aos estudos de sentimentos, crenas e costumes na historiografia ocidental. Temos grandes autores anteriores, tais como Michelet, Georges Lefbvre, na Frana, e fora desta no se pode esquecer do grande historiador holands Johan Huizinga e de Nobert Elias, socilogo e historiador alemo que, ao publicar, em 1939, o seu O processo civilizador, antecipa-se a Foucault em dcadas, ao tratar sobre a sociedade de corte e o surgimento da etiqueta na Europa moderna. Os estudos dos pioneiros dos Annales estavam condicionados a uma perspectiva globalizante e sinttica de uma histria social.

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oportuno discorrer sobre a noo que se tinha de mentalidades, nesse primeiro momento, na escola dos Annales, tomando por referncia as obras de Bloch e de Lucien Febvre, que foram influenciadas por uma psicologia com um referencial coletivista, cujas pretenses eram identificar as emoes, as formas de pensamentos, as afetividades coletivas. A psicologia, neste momento, apresentava-se como uma nova e promissora rea de conhecimento, promovendo um debate e uma expectativa em relao s possibilidades de conhecimento das aes humanas. A tradio dos Annales est basicamente fundamentada nas possibilidades de conhecimento que a psicologia apontava, haja vista a orientao que as pesquisas nessa rea tomavam na Europa ocidental, e tambm na Rssia, dedicando-se ao estudo das individualidades, dos comportamentos e da vida afetiva. O avano nessa rea de conhecimento criou uma expectativa enorme nos historiadores, que viam nos estudos da psicologia um substrato das aes humanas, que possibilitavam explicaes dos atos humanos a partir do mapeamento promovido por tais estudos, quanto s razes afetivas, a subjetividade, as emoes. O estudo das mentalidades na escola dos Annales, at a atualidade, marcado pela herana da relao entre a psicologia e a Histria, e tem em Lucien Febvre o principal articulador, no s devido repercusso na linhagem de historiadores a que deu origem, mas tambm pela sua postura diante dos avanos alcanados pela psicologia. Esta postura de Febvre pode ser elucidada pelo fato deste ser bastante diltheyano 9: quer ainda reviver as pocas passadas, com o propsito de reconstituio de uma totalidade, dando grande importncia psicologia: se se quer encontrar antecedentes tericos para Febvre, no em Marx e nem Durkheim que se deve evocar, mas Dilthey, um dos fundadores da hermenutica moderna (...). ( Noiriel apud Reis, l989, p. 1442 1443). Quanto a Marc Bloch, por sua vez, pode ser considerado como um continuador do xito da

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sociologia durkheimiana. Embora seus trabalhos tragam a influncia dos estudos da psicologia, esta relao intelectual no foi amplamente desenvolvida, permanecendo mais prximo da teoria durkheimiana das representaes sociais. Considerando as obras desses dois historiadores, possvel estabelecer algumas distines entre seus pensamentos. Enquanto Febvre d lugar conscincia, Bloch progressivamente enfatiza a estrutura material dentro da qual a conscincia se exprime. Bloch ligado tradio metdica e durkheimiana10 e Febvre, tradio hermenutica e diltheyana. (Iggers, 1984, p.55.). A influncia e a proximidade da psicologia to forte em Febvre que Wallerstein chama a linhagem a que este deu origem, de subjetivista e a criada por Marc Bloch, de objetivista. Seguindo as lies de Lucien Febvre, sobre o caminho para se empreender a histria das mentalidades, e com o acompanhamento de Robert Mandrou, Duby lana-se, desde o final da dcada de 50, ao estudo do que se chamou histria das mentalidades. Este termo, segundo Duby, no d conta da abrangncia do que se pretende estudar. O conceito de mentalidade um conceito que tem sua origem na linguagem comum, sendo um termo da linguagem ordinria, se referindo a comportamentos, a sistemas de atitudes e vises de mundo. Em verdade expressa apenas aquilo que condiciona, que determina os comportamentos, as formas de compreenso do mundo, os sistemas de atitudes principalmente coletivos. No vocabulrio cientfico; pode-se estabelecer dois pontos de referncia no interior das cincias humanas: No primeiro campo das cincias humanas, o termo mentalidades foi utilizado pela etnologia como noo de uma realidade socio-histrica. A exemplo de Lucien Lvy-Bruhl, em sua obra Mentalidade primitiva, de 1922, sendo que sua principal contribuio diz9

Dilthey afirmava que no h hierarquia entre os nveis sociais. Toda poca teria seu horizonte vital, no haveria uma atividade determinante das outras. Febre tambm partir desse princpio, o da reconstituio de uma totalidade (zusammennhang). ( Reis, 2000, p.72). 10 A influncia do pensamento durkheiniano na historiografia francesa relevante. mile Durkhein, com sua rejeio das explicaes psicolgicas para a mudana social, em detrimento do estudo dos fatos

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respeito ao mapeamento ou identificao das representaes das sociedades primitivas, comparando-as com as sociedades complexas. Para este autor, a forma de comportamento das primeiras exclusivamente condicionada pelas representaes coletivas que eram pr-lgicas, e pelas emoes, enquanto as sociedades complexas possuem como horizonte das representaes sociais o pensamento lgico. Mentalidades, do ponto de vista da etnologia, se referem ao funcionamento dos comportamentos culturais dominados por pensamentos emocionais, ou seja, pr-lgicos. O segundo campo de conhecimento a utilizar este termo, a psicologia, tendo como seus principais representantes Charles Brondel, com sua obra Mentalidade Primitiva, de 1926, e Henri Wallon, com mentalidade A primitiva e a da criana, de 1928. A noo de mentalidades tem, pois, a sua insero nas cincias humanas atravs da etnologia e da psicologia e se transforma em uma idia que quer exprimir formas de pensamentos que so determinados por uma estrutura pr-lgica. Em sntese, a noo de mentalidades seria sinnimo de formas de sentir ou de sensibilidade, e, neste primeiro momento, j percebida uma preocupao em identificar os comportamentos coletivos e no individuais. Vai mais alm, para junto das foras que no se situam nas coisas, mas na idia que delas se tem, e que na realidade comandam, de uma forma imperativa, a organizao e o destino dos povos. O estudo desses sistemas de representaes, que no devem estar desassociados do estudo da materialidade, ou seja, dos demais nveis estruturais de uma formao social, deve ser conduzido de forma a no se estabelecer uma lgica de determinao das condies materiais nem se dar uma nfase excessiva ao imaterial, favo recendo um desvio para uma Geistesgeschischte sem amarras. Duby faz esta crtica principalmente a certas interpretaes economicistas lineares e mecnicas de certos historiadores, esclarecendo sua opinio quanto a essa conduta:sociais, e sua crena de que a objetividade era alcanvel atravs do tratamento destes como coisas. ( Bottomo re, 1996, p.363.).

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Foram levados a se afastar do concreto, s vezes, a atribuir s estruturas mentais uma autonomia demasiado ampla em relao s estruturas materiais que as determinam, assim fazendo desviar-se, insensivelmente, a histria das mentalidades para uma evoluo semelhante da Geitesgeschischte (Duby, 1993, p.113.).

A posio de G. Duby era buscar o que, efetivamente, se passava nas cabeas e que no podem ser separadas de um corpo. Para ele, a validade da historia das mentalidades, enquanto estudo dos traos deixados pelos homens do passado, atravs dos julgamentos, crenas, conceitos, embora pouco palpveis, mas reais, somente atinge um objetivo se encarnada no sentido primeiro e mais forte da linguagem. As mentalidades no so obviamente imveis. Para compreender o processo de transmisso dessas representaes mentais, deve -se levar em conta as formas de educao, dadas pela escola ou pela corte principesca. Para ajudar a descobrir o que as ajuda a se transformarem, as condutas que pretendiam justificar, o que tranqilizavam, em suma, tem-se que conhecer o concreto da existncia no qual essas representaes mentais se insinuam, se impem, promovem modificaes, distorcem a realidade. Nesse ponto, no se deve perder de vista o que se denomina de hegemonia no contexto dos estudos marxistas, observando o fato de que a ideologia da classe dominante de uma sociedade vem a ser a ideologia dominante da sociedade em seu conjunto. Este fato no tira a importncia da anlise das diferenas profundas de mentalidades, segundo as distintas classes e camadas sociais. Essa preocupao comanda a investigao de Duby, no seu livro As trs Ordens ou Imaginrio do feudalismo, onde estuda a trajetria dessas imagens construdas e sua transformao em ideologias. Quanto transmisso dessas representaes mentais em um determinado conjunto histrico-social, e nisso se pressupe o estudo das influncias, dos contatos, da propagao das idias e correntes de pensamentos

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Duby faz uma anlise levando em considerao os trs nveis de durao aludidos por Braudel. Na curta durao, tempo que compreende as agitaes, os tumultos, a efervescncia de uma proclamao revolucionria, as emoes do momento, etc., as relaes entre os indivduos e os grupos se delineiam nesse espao curto de tempo. Prestando-se ateno, algumas coisas so trazidas, revelam-se estruturas latentes nas relaes sociais, pois o acontecimento tem seu enraizamento no estrutural. Em uma durao mais ou menos longa, de uma gerao para outra, ou no curso de vrias geraes, temos estabelecidas mudanas de costumes, diferenas de educao, modificaes da linguagem, a evoluo dos comportamentos as crenas compartilhadas etc. Por ltimo, temos a longa durao, local privilegiado, pois tudo o que configura o quadro mental est contido nas formas de heranas culturais, sistemas de crenas e concepes de mundo, alguns modelos de comportamento. Para que se possa atingir a tnica mental de uma fase ampla e esboar sua peculiaridade mais caractersca, deve -se levar em considerao estes trs ritmos. Duby ainda acrescenta um ritmo ainda mais lento, sendo esse onde se processam as modificaes biolgicas, condicionante ltimo das estruturas mentais. Analisando a postura do historiador, Franois Dosse esclarece:A histria das mentalidades, para Georges Duby, no um meio de esquivar-se da histria social, mas, ao contrrio, um instrumento privilegiado para melhor constru- la, escrutando seu universo simblico, permeado pelos conflitos subjacentes, implcitos, que a urdem. Assim como o gegrafo diante de uma carta geolgica, o historiador deve ento detectar as discordncias, as lacunas, as discrepncias entre realidade social e representaes ideolgicas e mentais que no evoluem segundo um ritmo sincrnico. Tambm a se encontra a vontade de detectar incoerncias no interior de uma totalidade complexa que anima esse novo terreno de trabalho decisivo do historiador. ( Dosse, 2001, pg. 105.)

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O historiador das mentalidades, no raro, lana mo de estudar uma personagem, com o intuito de conhecimento de determinada fase histrica de uma sociedade. Para isso, tenta-se apartar de seus pensamentos individuais, pois no se interessa pelos indivduos, mas no se pode isolar este indivduo do corpo social em que est inserido, pois, por mentalidade entende-se o conjunto vago de imagens e certezas no conscientizadas, que se referem a todos os membros de um grupo. Procura-se reconhecer este magma confuso de presunes herdadas ao qual se refere a cada momento, sem prestar ateno nele, mas sem tampouco expuls-lo de seu esprito. (Duby, 1991, p.91) A biografia, na obra de Duby segue a tradio dos Annales11, pois esta no se baseia no critrio da excepcionalidade, mas no critrio da exemplaridade,cuja finalidade primeira desvendar mecanismos do contexto social. O indivduo um pretexto para entender o coletivo, para entender a cultura, sendo, ento, necessria a escolha de um personagem capaz de dar uma sntese, ou melhor, ser ele mesmo uma sntese do contexto social. Um exemplo de tipo clssico de fazer historiogrfico est na obra de Lucien Febvre quando faz uma biografia de Lutero. Este personagem a sntese de um momento de transio, de inflexo na cultura alem no sc. XVI, bastante forte para que seja possvel observar, atravs de sua vida, elementos concretos do contexto social alemo do sc. XVI. Este percurso tambm evidente na obra de Duby, Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo, que escrita tendo como fonte biogrfica principal um poema de vinte mil versos, onde o poeta interroga astuciosamente o escudeiro do marechal. Nesta obra, vemos o marechal lutar nos campos de torneios, beber com os amigos, chorar no infortnio, cortejar as damas. O marechal um personagem truculento, pretensioso, algo limitado, esperto, que passa na Frana grande parte de sua vida e regente da Inglaterra.

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Le Goff, esclarece que a biografia histrica nova estuda as grandes personagens, esclarecendo-as pelas estruturas e estuda-as atravs de suas funes e seus papis.(Le Goff, 1993, p.8 ).

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Nesta obra, no h desvio do percurso traado e proposto por Lucien Febvre, pois se trata de, atravs de um estudo biogrfico, sondar mais profundamente o que a sociedade feudal e saber mais sobre o cavaleiro comum e a cavalaria feudal. O tema verdadeiro desse estudo, portanto, no o marechal, mas a cavalaria, seu ideal, os valores que ela afirmava respeitar. Mas, mediante esse caso concreto, Duby observa o funcionamento das engrenagens sociais com muito maior clareza que nos tratados e cartas. A obra de Duby se mantm no propsito de ser epgono de Febvre e Bloch, salvo quanto forma, pois nesse estudo marcante o carter narrativo que Duby utiliza, caracterizando o seu estilo nos quadros da escrita micheletiana. O carter narrativo na produo historiogrfica de Duby, sua evocao ao estatuto literrio da histria, no pode ser entendido apenas como uma herana direta e contundente dos fundadores da escola dos Annales. Entretanto, segundo suas prprias palavras, inspirou-se na parte hesitante da obra dos fundadores, o que ficou mais livre, que permitia maiores reflexes e de onde retirou dois grandes ensinamentos que marcaro toda a sua obra. Primeiro: o historiador no pode isolar-se, deixar de estar atento ao que acontece em outras disciplinas, e o resultado das pesquisas, que devem ser realizadas com todo o rigor necessrio, no impe a obrigatoriedade de ser escrito de maneira fria, pois o estilo deve agradar a todos e conquistar pelo encanto seus leitores. A preocupao de Duby com os critrios literrios da escrita da Histria remete ao tema da narrativa e seu reaparecimento ou um retorno, se foi possvel Histria romper com o carter narrativo um dia. O certo que esta questo polmica, mas de fundamental importncia na medida em que pode avaliar a sua repercusso na formao e no estgio atual da chamada Escola dos Annales. Com a progressiva automizao da Histria, entre os sc. XVI e XVIII, impem-se pouco a pouco o conceito de Die Geschichte; a histria no singular, a histria em si, em contraposio histria cujo corolrio a concepo de Ccero, Magistrae Vitae ( mestra de vida ), muito mais tica que

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poltica, permanecendo a distino entre res gestae e histria rerum gestarum. Dentro deste contexto, evidenciam-se as aes humanas no tempo, as caractersticas e fases do historiador e as condies da narrativa histricas realizadas. A questo da narratividade no se colocava, o historiador se sobressaa, em relao aos seus predecessores, devido principalmente ao domnio da arte de exposio, o que no o eximia do compromisso com a verdade. A Histria se afirmava como lux veratatis ( luz de verdade) desde a poca helenstica at a poca moderna. Em tal regime de historicidade, a histria pertence claramente ao campo da retrica e tem por objetivo formar o cidado, temos a histria como exemplo, tema principal das lies de histria. A partir da segunda metade do sc. XVIII, inicia-se o abandono progressivo desses procedimentos. A Histria no mais diferencia o res gestae do rerum gestarum, passando a ser processo e principalmente progresso. Com esta nova moldura conceitual, a Histria definir-se- plenamente, segundo a frmula de Droysen12, como acontecimento em si mesma, a histria em si mesma , por hiptese, res gestae e histria rerum gestarum. Em um mesmo movimento, esto os acontecimentos e sua narrao, pois a histria fala por si mesma. Para manter a qualidade do trabalho historiogrfico, o historiador deveria se colocar diante da histria, fazendo com que os silncios do passado fossem quebrados atravs da narrativa. Como Michelet, o historiador no poderia desprezar o subjetivo, a individualidade, pois o homem, alm de um corpo, tem um esprito que cria e sente diferentemente, em situaes diferenciadas. O historiador deve escrever a histria daqueles que sofreram, trabalharam, definharam e morreram sem ter a possibilidade de descrever seus sofrimentos. ( Michelet, 1842, p.8.)

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Droysen, Johann Gustav (1808-1884). Historiador, professor e poltico alemo. Terico da cincia histrica, escreveu sobre histria antiga e histria moderna.

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Entre a concepo retrica da Histria e a posio do historicismo, existem lugares para estados intermedirios, como o caso de Fnelon, que prope em sua obra, Projet dun trait sur lhistoire (1716), uma produo historiogrfica esboada de acordo com sua prpria concepo da histria. Entretanto, inicia por ressaltar o tema ciceroniano, neste caso, mantendo o carter exemplar da histria e cita Horcio, passando rapidamente da retrica potica, quando compara a histria ao poema pico. Justifica o desvio pela potica pelo fato de levar em considerao o leitor, e para este que o historiador deve fazer com que a histria se aproxime do poema pico, desvelando as relaes existentes e fazendo-o chegar a um desfecho. Desta forma, o historiador afasta-se do erudito que no leva em considerao o pblico. Embora polmica, a narrativa no foi proibida pela esta histria-Geschichte, pois tinha a concepo que a Histria por si mesma pica. O conceito de pico foi tomado de Ranke, pois, segundo ele, a histria tem seu prprio telos, traz em si mesma comeo e fim, sua visada e seu sentido. O fato de ser pica no comporta levar em considerao o leitor. Ao tornar-se disciplina, pretendendo da para frente ser cincia positiva, objetiva, apoiada em fatos, desconfia da viso romntica e limita-se a dizer como as coisas acontecem (wie es eigentlich gewesen). Para isso, bastava consultar os arquivos. Nesta fase, a questo da narrativa no tinha que ser problematizada, esta se abrigava no wie (como), e a histria convertera-se em conhecimento de si prpria, segundo as teses de Ranke e de s ua escola. Paralelamente afirmao e nfase da histria-Geschichte com o marxismo, temos o endurecimento das ambies cientficas e o crescimento radical do questionamento aos seus princpios nos sculos XIX e XX. operosidade do historiador em acumul ar fatos e verificar as leis da histria, e isto se revela num esquema que permite mltiplas variantes e adaptaes, atravs das contribuies da sociologia e principalmente da economia. Esta ltima, principalmente atravs de Franois Simiand, em seu artigo Mtodo histrico e cincia social, denunciando os trs dolos da tribo dos historiadores: O dolo

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poltico, isto , o estudo dominante, ou pelo menos a preocupao com a histria poltica; O dolo individual, o hbito de conceber a Histria como uma histria dos indivduos e no como o estudo dos fatos; O dolo cronolgico, o costume de se perder em estudos de origem, em investigaes de diversidades particulares, em prejuzo do estudo do tipo normal, determinando-o na sociedade e na poca em que se encontra. As teses de Durkhein e Weber, embora divergentes, significam um rompimento e um novo olhar sobre o homem social. A repercusso das Cincias Sociais sobre a Histria no comeo do sculo, em uma Europa que realizava uma mudana de perspectiva sobre a realidade social e histrica, promove mudanas e reflexes para uma readequao nova realidade mundial. (Burguire, 1979). A historia social dos Annales representa uma destas variantes flexveis e dela que partiram crticas, que no foram as nicas neste perodo. A crtica que nos interessa, neste momento, a da recusa dos Annales quanto forma de histria-narrativa poltica, a histoire vnementielle, e podemos nos reportar aos sarcarmos de Lucien Febvre, nos anos de 1930. No se questionava era a questo narrativa. A crtica recaa sobre o historicismo de vis naturalista, com seu tipo de inteligibilidade discursiva e explicativa, que em tudo idntica que se aplicava s cincias naturais ou da matria, segundo Gusdorf, (1974, p.38) O tema da narrativa histrica torna-se alvo das atenes dos historiadores, a partir da dcada de 1960, quando o pensamento de orientao estruturalista investe contra o historicismo13 (Furet, s.d,p. 12), denunciando a apropriao pela tradio historiogrfica ocidental dos mecanismos de naturalizao, inerentes narrativa. Dos primeiros Annales, pode se depreender as crticas histria tradicional quanto obedincia causalidade cronolgica, quanto ao procedimento descritivo, em oposio ao elemento analtico, que no mais condiziam com os exerccios historiogrficos usuais propostos.

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O termo aqui especificado tem por intuito mostrar que neste contexto, tem um sentido depreciativo e polmico, que adquiriu com os representantes do estruturalismo tais como: Barthes, Levi-Strauss e outros.

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Esse tipo de crtica pode ser apreendida dos escritos de combate de Lucien Febvre e Marc Bloch e tambm dos textos metodolgicos de Braudel, datados da dcada de 50, que, em sua expresso, compara o tipo de historiografia tradicional espcie de crnica de novo estilo, (Braudel, 1978.p.46.) que adotava um empirismo ingnuo. Na Escola dos Annales, so vrias as maneiras e nuanas com que os historiadores, durante as geraes, se opuseram associao entre histria e narrativa. Neste sentido procuraremos focalizar as consideraes de Braudel e Franois Furet. Em Braudel, a preocupao com a longa durao, ou mais precisamente, o reconhecimento de mltiplas temporalidades da histria e as possibilidades de por em sua escrita todas as dimenses da espessura do tempo, sem abrir mo da descrio da concretude e do fenomnico. Sua obra O Mediterrneo e o Mundo Mediterrneo na poca de Felipe II um bom exemplo, dessa compreenso. Na anlise de Paul Ricouer, est-se diante de uma narrativa indireta, apontando para o papel das estruturas de transio estas construram a obra em termos de uma quase-narrativa: Por estruturas de transio, eu entendo todos os procedimentos de anlises e exposio que com que fazem a obra deva ser lida de frente para trs e de trs para frente14 (Ricouer,1983 1985, v.1, p.290). Por outro lado, Franois Furet acusa a histria narrativa de ser uma forma especfica da elaborao da ideologia ocidental da unidade de um sujeito coletivo -humanidade, estado ou civilizao, em processo de um destino. Essa afirmao proveniente de um processo crtico desenca