Rafael Cruz V Encontro de Assessores e animadores da JMV-BH Março/2010.
7.1 O maior reservatório de energia no mundo · Cifras como essas ajudam a estabelecer a ......
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Capítulo 7
Oriente Médio e Norte da África, região central no tabuleiro energético
29.427
7.1 O maior reservatório de energia no mundo
Em 2010, mais de um terço do petróleo consumido no mundo teve
sua origem em países do contexto geopolítico do Oriente Médio e
Norte da África (OMNA). Essas duas regiões, combinadas, produziram
29 milhões de barris diários, o equivalente a 35,3% do suprimento
global de petróleo1. A quase totalidade dessa produção se concentra
num restrito grupo de oito países: Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait,
Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Líbia e Argélia. Ainda mais
importante do que a participação dos países do OMNA no mercado
energético atual é o patrimônio que esses países possuem na forma de
reservas petrolíferas, armazenadas no subsolo. Quase seis em cada dez
barris de petróleo existentes – ou seja, 59% das reservas mundiais –
estão situados no Oriente Médio e no Norte da África. Com o tempo, a
importância estratégica dessas duas regiões aumentará cada vez mais,
pois responderão por uma parcela crescente da oferta petroleira global,
1 BP, 2011.
enquanto os atuais produtores no resto do mundo estarão em declínio
ou já terão esgotado as suas reservas.
Cifras como essas ajudam a estabelecer a dimensão estratégica
central do Oriente Médio no contexto mundial da energia. Ao longo da
maior parte do século 20, principalmente após o final da 2ª Guerra
Mundial, foi o petróleo barato extraído no Golfo Pérsico e no Norte da
África que alimentou o extraordinário crescimento da economia
capitalista, abastecendo, principalmente, a reconstrução e expansão das
economias da Europa Ocidental e do Japão. Sem esses insumos, a
atividade econômica entraria em colapso.
O acontecimento que lançou luz sobre o quanto a economia
capitalista global é dependente dos suprimentos da região foi o
Choque do Petróleo, em outubro de 1973. Nesse contexto, em que a
presença das maiores reservas do planeta se agrega a uma intrincada
rede de interesses geopolíticos e conflitos regionais, entende-se por que
o OMNA ingressou no século 21 como uma área de alta instabilidade
política, sujeita a frequentes invasões estrangeiras e à disseminação do
terrorismo. As potências ocidentais, especialmente os EUA, percebem a
região como vital para sua segurança energética, atribuindo a si
mesmas o direito de lá intervir quando julgam necessário. A estratégia
global estadunidense tem como elemento central o controle político e
militar do OMNA, o que leva os EUA a se envolverem naquela região
em constantes conflitos contra regimes e organizações políticas de
orientação anti-imperialista. O presente capítulo examinará, a seguir, a
posição de cada um dos principais atores no tabuleiro estratégico da
região: EUA, Arábia Saudita e Iraque.
7.2 EUA, potência hegemônica no Oriente Médio
O interesse estadunidense pelas riquezas do Golfo Pérsico evoluiu
de um âmbito puramente comercial, nas primeiras décadas do século
XX, para um terreno estratégico ligado à afirmação da hegemonia
mundial do país após a 2ª Guerra Mundial. Um marco da presença dos
EUA na região é o acordo firmado em 1945 entre o presidente Franklin
Roosevelt e o monarca saudita, Abdul Aziz Ibn Saud, pelo qual o
dispositivo militar dos EUA garantiria o poder da família Saud contra
rivais internos e externos e, em troca, a Arábia Saudita forneceria
petróleo em condições favoráveis ao funcionamento da economia
capitalista e apoiaria os interesses políticos de Washington no Oriente
Médio e no mundo2. Nos anos do pós-guerra, os EUA desafiaram o
antigo domínio colonial britânico e conquistaram o controle das
reservas de petróleo do Golfo Pérsico. Essa transição foi acompanhada
pelo surgimento de um novo desafio: o nacionalismo nos países
produtores. O primeiro episódio de nacionalização de concessões
petrolíferas ocidentais ocorreu no Irã, sob o governo de Mohammed
2 FUSER, 2008, p.104-106.
Mossadegh, em 1951, quando a empresa britânica Anglo-Iranian, atual
BP, foi expulsa do país. O desafio iraniano foi esmagado em 1953 com
um golpe de Estado, articulado pelos serviços secretos dos EUA e do
Reino Unido3. No lugar de Mossadegh, as potências ocidentais
instauraram uma ditadura sob o comando do xá Reza Pahlevi, um
estreito aliado de Washington. A ingerência dos EUA visava
claramente objetivos ligados ao petróleo, mas utilizava como
justificativa os motivos de segurança ligados ao confronto global
contra a União Soviética – que, por sua vez, tirava proveito do conflito
entre os países árabes e Israel para construir uma rede de aliados na
região. Até a derrubada do xá, na Revolução Iraniana de 1979, a maior
parte do petróleo permaneceu nas mãos da BP e de transnacionais
estadunidenses.
O golpe pró-ocidental de 1953 no Irã refreou temporariamente o
impulso nacionalista no OMNA, mas logo os países produtores de
petróleo da região voltaram a reivindicar maior participação nos lucros
do petróleo, em um movimento que culminou com a criação da Opep,
em 1960. Uma nova agenda marcou a presença dos EUA no Oriente
Médio dali em diante – uma agenda de menor cooperação e maior
conflito, em que sobressaíram a nacionalizações das concessões
petrolíferas, a elevação dos preços e a politização dos contratos. Esses
33
KINZER, Stephen. Todos os Homens do Xá – O golpe norte-americano no Irã e as raízes do terror no Oriente Médio.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
embates culminaram com embargo das exportações de petróleo pelos
países árabes integrantes da Opep, em outubro de 1973, em represália
pelo apoio dos EUA e da Europa Ocidental a Israel durante guerra
contra a Síria e o Egito. O embargo – ocasião única em que o petróleo
foi utilizado como arma política contra as potências imperialistas –
deflagrou o choque do petróleo, quando o aumento de 800% nos
preços do combustível em apenas quatro meses provocou uma
recessão econômica mundial. Foi nesse contexto que os EUA
ameaçaram, pela primeira vez, o uso das armas para garantir seu
acesso às fontes de combustível no Oriente Médio.
Em janeiro de 1980, o presidente Jimmy Carter anunciou que os EUA
consideravam o Golfo Pérsico como uma região do seu interesse vital e
que estariam dispostos a defendê-la por “todos os meios necess{rios,
inclusive a força militar”. Trata-as da orientação de política externa
conhecida como Doutrina Carter, que o historiador Douglas Little
definiu como “uma Doutrina Monroe para o Oriente Médio”4. Na
ocasião, os dirigentes de Washington se esforçavam para retomar a
iniciativa política no Oriente Médio após o duplo desafio da Revolução
Iraniana da intervenção soviética no Afeganistão. A partir do anúncio
da Doutrina Carter, os EUA passaram a buscar o controle militar direto
do Oriente Médio, com o objetivo de garantir o acesso aos suprimentos
de petróleo e de proteger os regimes aliados e os interesses de Israel. 4 LITTLE, Douglas. American Orientalism: The United States and the Middle East since 1945. Chapel Hill and London:
The University of North Carolina Press, 2004, p.154.
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SAIBA MAIS
A Doutrina Carter
A Doutrina Carter foi anunciada pelo presidente estadunidense,
Jimmy Carter, em 23 de janeiro de 1980, no discurso anual “O Estado
da União”, com o objetivo de assinalar a disposição dos EUA de
utilizar a força militar em apoio aos seus interesses no Oriente Médio
diante um duplo desafio: 1) assegurar o controle das reservas de
petróleo do Golfo Pérsico, e 2) reagir à intervenção da URSS no
Afeganistão, ocorrida em dezembro de 1979. No trecho mais
importante do discurso, Carter afirmou:
“Vamos deixar absolutamente clara a nossa posição:
qualquer tentativa de uma força externa de obter o controle
da região do Golfo Pérsico será considerada um ataque aos
interesses vitais dos Estados Unidos da América, e esse
ataque será repelido por todos os meios necessários,
inclusive a força militar5.”
A Doutrina Carter assinalou uma mudança na política de segurança
em relação ao Golfo Pérsico, que passou a ser encarado como uma
região prioritária, destinada a ficar sob o controle e a proteção direta
5 CARTER, Jimmy. State of the Union Address 1980, 23 de janeiro de 1980. Jimmy Carter Library.
dos EUA. As intenções dessa nova diretriz eram as seguintes: restaurar
plenamente a influência política norte-americana no Golfo; garantir a
cooperação dos governos da região com os EUA; conter a propagação
da Revolução Iraniana e aproximar os países árabes de Israel.
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Após o fim da Guerra Fria, as intervenções dos EUA na região, em
vez de diminuir, tornaram-se ainda mais frequentes, aumentando
também em intensidade. Em 1991, os EUA travaram a sua primeira
guerra total contra um país árabe – o Iraque, cujo governante, Saddam
Hussein, havia invadido o Kuwait, apoderando-se de suas ricas
reservas petrolíferas e ameaçando a segurança da Arábia Saudita. Uma
operação militar liderada pelos EUA expulsou facilmente as tropas
iraquianas do Kuwait e restabeleceu o poder da sua família real.
Durante toda a década de 1990, os EUA mantiveram uma presença
militar ostensiva no Golfo Pérsico, onde enfrentavam dois regimes
inimigos: o de Saddam Hussein, que se manteve no poder no Iraque
após a derrota no Kuwait, e a república islâmica do Irã. Esses dois
países constituíam os principais obstáculos à hegemonia estadunidense
no OMNA. Nos governos de George Bush (pai) (republicano) e de Bill
Clinton (democrata), a estratégia de Washington teve como
instrumento principal as sanções econômicas contra o Iraque
(acompanhadas, em algumas ocasiões, de bombardeios aéreos) e a
pressão política sobre o Irã, que também sofria restrições econômicas.
Nada disso funcionou. Saddam permaneceu no poder, apesar da
penúria e do sofrimento causado ao povo iraquiano pelas sanções
ocidentais, e o regime iraniano ampliou sua influência regional na
medida em que o Iraque se debilitava.
Os republicanos voltaram à Casa Branca com a eleição de George W.
Bush (republicano), que nomeou para o comando da sua política
externa integrantes de um grupo (os neoconservadores) favorável a
uma conduta mais agressiva para impor os interesses dos EUA no
mundo inteiro, especialmente no Oriente Médio. Os atentados
terroristas de 11 de setembro de 2001 propiciaram o pretexto que os
neoconservadores desejavam para o uso da força militar contra os
inimigos dos EUA, iniciando pela invasão do Afeganistão, cujo
governo abrigava bases do grupo terrorista Al Qaeda. Mas o alvo
principal estava em Bagdá.
Com apoio da mídia empresarial e de governantes aliados
(sobretudo, o primeiro-ministro britânico Tony Blair), Bush e seus
assessores difundiram a um público apavorado a versão de que o
regime iraquiano possuiria armas químicas e biológicas, em uma
suposta ameaça à segurança internacional, ao mesmo tempo em que
acusavam Saddam Hussein de manter vínculos com o terrorismo. Até
hoje, nenhuma evidência foi encontrada capaz de dar fundamento às
alegações de que o regime iraquiano teria ligações com a Al Qaeda ou
qualquer outra organização terrorista ou, ainda, que mantivesse em
seu poder ou estivesse desenvolvendo armas proibidas. Ao contrário:
as revelações desde então mostram, isso sim, um esforço deliberado
dos governos de Washington e de Londres para manipular
informações, ocultando dados relevantes ou veiculando versões falsas,
a fim de obter apoio político e diplomático à guerra e de influenciar a
opinião pública nesse sentido.
Em março de 2003, os EUA – com o apoio da forças militares de
alguns países aliados, em especial o Reino Unido – invadiram o Iraque
e substituíram o regime de Saddam Hussein por governantes
iraquianos dispostos a colaborar com as forças de ocupação. No
prolongado confronto que se seguiu, os insurgentes iraquianos
mataram mais de 4 mil soldados estadunidenses e britânicos, enquanto
as vítimas no Iraque se contam às centenas de milhares, em sua grande
maioria civis. Somente em 2011, no governo de Barack Obama
(democrata), os EUA anunciaram a retirada oficial das suas tropas de
combate, deixando atrás de si uma sociedade destruída.
Restam poucas dúvidas quanto ao motivo decisivo para a operação
militar estadunidense no Iraque: o controle político das reservas
petrolíferas do Golfo Pérsico, num contexto de dependência crescente
dos EUA e da economia mundial perante esse recurso energético sob
risco de escassez.O Iraque é um país com uma importância estratégica
especial – dono da segunda maior reserva petrolífera mundial e, além
disso, situado no centro geográfico e político do Golfo Pérsico, em cujo
subsolo repousam quase 2/3 do petróleo ainda existente no planeta. O
interesse “vital” pelo controle desses recursos energéticos tem sido
parte importante da política externa estadunidense ao longo de
sucessivos governos, sobretudo a partir da adoção da Doutrina Carter,
que continua em plena vigência.
7.3. Arábia Saudita, líder mundial no mercado petroleiro
O Reino da Arábia Saudita é o ator mais importante no conjunto dos
países exportadores de petróleo. O país é, ao mesmo tempo, o maior
produtor mundial, com uma participação na oferta petroleira que varia
entre 8,5 milhões e 10,5 milhões de barris diários, e o dono das maiores
reservas, estimadas em 264,5 bilhões de barris, o equivalente a 19% do
total mundial6. Graças a essa posição – e à aliança que mantêm com os
demais regimes monárquicos do Golfo Pérsico, em particular o
Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Catar e Bahrain –, os governantes
sauditas controlam as decisões da Opep sobre os preços globais do
petróleo.
Único país do mundo cujo nome é associado a uma família, o clã dos
Saud, a Arábia Saudita surgiu como Estado moderno já no contexto da
sua inserção no sistema internacional como uma fonte de suprimentos
6 BP, 2011.
petrolíferos. Antes da descoberta do petróleo no seu interior, a
Península Arábica era demasiadamente pobre, inóspita e distante para
atrair a cobiça do colonialismo europeu. A presença ocidental se
limitava aos pequenos protetorados britânicos no litoral do Golfo
Pérsico, utilizados como entrepostos comerciais e pontos de apoio
logístico na rota entre o Reino Unido e seus domínios imperiais na
Ásia, principalmente a Índia.
Desde 1902, o chefe da tradicional dinastia Al Saud, Abdul Aziz Ibn
Saud, reinava sobre o centro e o leste do país, a região do Nejd, com
um governo instalado em Riad, enquanto a porção ocidental – o Hijaz,
onde se situam as cidades sagradas de Meca e Medina – estava sob o
domínio da família Hussein. Durante I Guerra Mundial, os dois clãs
receberam armas dos britânicos para combater os turcos. Terminada a
guerra, com a dissolução do Império Otomano, as duas famílias
continuaram lutando entre si, até que em 1926 as forças de Ibn Saud
derrotaram os rivais e conquistaram Meca, unificando a maior parte da
península. Nasceu assim o Reino de Hejaz e Nejd, que em 1932 passou
a se chamar Arábia Saudita7.
A descoberta de grandes jazidas no Bahrain e no Kuwait despertou o
interesse das grandes companhias ocidentais pelo deserto saudita. Em
1933, a estadunidense SoCal (atual Chevron) obteve, em troca de uma
grande quantidade de dinheiro, um acordo que lhe permitia explorar o
7 HIRO, Dilip. The Essential Middle East – A Comprehensive Guide. New York: Carroll & Graff, 2003, p.469-473.
petróleo da Arábia Saudita durante 60 anos. Três anos depois, a SoCal
admitiu como sócia a Texaco, formando o que viria se tornar a
Arabian-American Oil Company (Aramco). O petróleo começou a
jorrar na região em 1938 e, em poucos anos, as prospecções revelaram
em toda sua extensão o fabuloso tesouro que se abrigava sob as areias
sauditas. Assim, em apenas uma década, as companhias petrolíferas
dos EUA passaram de uma rarefeita presença no Oriente Médio à
condição de donas de uma parcela significativa das reservas da região.
Em 1945, conforme já relatado, o vínculo entre a monarquia saudita e
os EUA se tornou uma aliança estratégica, por meio do histórico
acordo Roosevelt-Saud, que teve como consequência imediata a
instalação de uma base aérea estadunidense em Dahran, próxima a um
das principais regiões petrolíferas sauditas.
A aliança com os EUA se manteve apesar do choque de interesses
motivado pelas sucessivas revisões dos contratos petroleiros, por meio
dos quais a monarquia saudita ampliou gradativamente sua
participação na renda petroleira. Do mesmo modo, o princípio do
“amigos, amigos; negócios | parte” valeu durante o período turbulento
da ascensão da Opep e do Choque do Petróleo (1973), seguido pela
nacionalização – gradual e negociada – da Aramco, que culminou com
a sua transformação, em 1978, na estatal Saudi Aramco, a maior
empresa petrolífera do mundo em valor patrimonial.
A partir da década de 1980, a Arábia Saudita passou a exercer um
papel estratégico no mercado petroleiro mundial como um único país
com capacidade para ampliar significativamente sua produção em
uma hora para outra. Essa condição de swing producer (termo usado no
jargão petroleiro para se referir a países capazes alterar os níveis de
oferta global pela simples gestão do seu potencial produtivo ocioso)
confere à monarquia saudita um poder incomparável sobre os preços,
ao mesmo tempo em que valoriza sua posição geopolítica como aliado
dos EUA. Essa capacidade foi utilizada pela Arábia Saudita nas duas
guerras promovidas pelos EUA contra o Iraque, em 1990-1991 e em
2003, para compensar o corte ou redução dos volumes exportados por
outros produtores de modo a manter estáveis os preços do petróleo.
Em 2011, os sauditas ampliaram novamente sua produção para manter
o equilíbrio do mercado quando o conflito na Líbia interrompeu as
exportações daquele país. E, mais recentemente, manifestaram apoio
concreto à campanha estadunidense e europeia em favor de sanções
econômicas contra o Irã com o anúncio de que estão dispostos a
ampliar as exportações se isso for necessário para manter os níveis da
oferta internacional de petróleo na falta da produção iraniana. A
hostilidade entre os dois países se explica não só pela disputa regional
de hegemonia no Golfo Pérsico, mas também por motivos religiosos,
ligados aos conflitos entre as vertentes muçulmanas sunita (Arábia
Saudita) e xiita (Irã).
Mas seria arriscado supor que a Arábia Saudita conseguirá manter
esse padrão por muito tempo. As tendências atuais indicam que uma
parcela cada vez maior da produção saudita será direcionada ao
mercado consumidor interno para elevar os níveis de bem-estar da
população e abastecer a indústria petroquímica nacional, principal
aposta das autoridades do país para gerar os empregos de qualidade
indispensável para manter o apoio da população à monarquia. Entre
2005 e 2008, os 22 milhões de sauditas consumiram uma média diária
de 2,3 milhões de barris de petróleo, o que permitiu a exportação dos
restantes 8,3 milhões de barris. Com o crescimento populacional e a
esperada elevação do padrão de vida dos sauditas, a parcela destinada
ao consumo dentro do próprio país deverá aumentar
exponencialmente. Em abril de 2010, o presidente da Saudi Aramco,
Khalil al-Falih, anunciou a previsão de que, até 2028, o consumo
doméstico saudita de petróleo alcançará o mesmo volume de 8,3
milhões de barris diários atualmente exportados8.
Para manter o mesmo nível de oferta no mercado global sem deixar
de atender à crescente demanda interna, a Arábia Saudita teria de
aumentar dramaticamente a sua produção. Mas a Saudi Aramco já
expressou claramente sua relutância em elevar a produção acima dos
11 milhões de barris diários, por receio de danificar os campos de
8“The Collapse of the Old Oil Order: How The Petroleum Age Will End”, Michael T. Klare,
Countercurrents, 3 de março de 2011, disponível em www.countercurrents.org.
petróleo remanescentes e, com isso, comprometer a renda das gerações
futuras.
7.4 Irã, a república rebelde dos aiatolás
A República Islâmica do Irã enfrenta pressões econômicas e políticas
dos EUA desde a revolução de 1979, quando os dois países romperam
relações. Uma lei adotada na gestão do presidente Clinton e renovada
pelo presidente Bush (filho) proíbe empresas estadunidenses de fazer
negócios no país9. A campanha contra o regime iraniano se intensificou
em 2005 a partir da primeira eleição de Mahmoud Ahmadinejad, tido
como um representante da “linha dura”, para a presidência do Irã. A
partir de então, intensificaram-se as denúncias dos EUA e seus aliados
de que o Irã estaria utilizando a tecnologia de enriquecimento do
urânio para fabricar a bomba atômica, embora o governo de Teerã
garanta que sua atividade no campo da energia nuclear tem fins
pacíficos.
A retórica anti-iraniana de Washington repete os mesmos temas da
campanha de acusações contra o governo do Iraque no período que
antecedeu a invasão e ocupação militar daquele país. Tal como nas
9 Trata-se da Executive Order 12.959, assinada pelo presidente Clinton em 1995 e renovada pelo
presidente Bush em março de 2004.
versões fraudulentas sobre as supostas “armas de destruição em
massa” do Iraque – que, conforme se comprovou, não existiam –, as
denúncias relativas ao programa nuclear iraniano carecem de provas
que as sustentem. Ainda assim, são utilizadas pelos EUA como
justificativa para a adoção de sanções econômicas internacionais contra
o Irã e podem, em qualquer momento, servir de pretexto para uma
agressão militar – estadunidense ou israelense – ao território iraniano.
O que a imprensa internacional raramente menciona é a dimensão
energética do conflito entre as autoridades de Washington e de Teerã.
Com 137 bilhões de barris de petróleo em seu subsolo, o Irã abriga a
segunda maior reserva mundial desse combustível, equivalente a 9,9%
do total. Só esses dados já seriam suficientes para tornar o Irã um ator
de primeira grandeza na geopolítica da energia, mas também é preciso
levar em conta o seu potencial produtivo futuro, conforme assinala o
especialista Michael T. Klare:
“Embora a Ar{bia Saudita possua reservas maiores, ela está
atualmente produzindo petróleo em um ritmo próximo da sua
capacidade (cerca de 10 milhões de barris diários. Assim, é pouco
provável que consiga aumentar sua produção significativamente
nos próximos vinte anos para acompanhar o aumento da
demanda global (...). Já o Irã apresenta um potencial considerável
de crescimento: produz atualmente 4 milhões de barris de
petróleo diários, mas acredita-se que seja capaz de ampliar sua
produção em algo em torno de mais 3 milhões. Poucos países no
mundo podem fazer isso10.”
Cerca da metade da produção iraniana é exportada para a Ásia,
principalmente para a China – país do qual o Irã é o segundo maior
fornecedor –, Japão, Coreia do Sul e Índia. Mas o Irã, devido ao seu
crescimento populacional, consome uma parcela cada vez maior da sua
produção petrolífera. Em 2005, essa parcela era calculada em 31%, ou
seja, cerca de 1,2 milhões de barris diários.
Além do petróleo abundante, o Irã se destaca como ator de primeira
linha no mercado do gás natural, com reservas estimadas em 940
trilhões de metros cúbicos (16% do total mundial), um volume inferior
apenas ao da Rússia. Dessas reservas, apenas uma pequena parte tem
sido explorada, o que contribui para estimular a cobiça das empresas
transnacionais que dominam o setor. Com uma produção anual em
torno de 2,7 trilhões de pés cúbicos, o Irã é um dos poucos países com
potencial para expandir em grande escala a oferta de gás. Essa
capacidade é especialmente valorizada no contexto atual do mercado
de energia, quando se presencia um boom na demanda global por gás
natural.
Atualmente, a grande aposta iraniana para ampliar sua produção é o
gigantesco campo gasífero off shore de South Pars. Como se costuma
10
Oil, Geopolitics, and the Coming War with Iran
fazer nesses casos, a reserva foi dividida em blocos, com a finalidade
de oferecê-los a parceiros externos interessados na sua exploração. O
acesso ao campo de South Pars interessa especialmente às empresas
dos países emergentes, uma vez que as sanções ocidentais ao Irã
impedem a participação das grandes companhias europeias e
estadunidenses. A primeira a entrar na parada foi a China National
Petroleum Corporation (CNPC), que iniciou em 2010 a exploração de
um dos blocos. A CNPC é a principal parceira do Irã em projetos de
energia, com investimentos também em refino e exploração de
petróleo, num valor que ultrapassa os US$ 10 bilhões.
Pela sua própria geografia, o Irã tem interesse estratégico na
instalação de uma rede internacional de gasodutos que atravesse a
Ásia Central para alcançar grandes consumidores de energia que
podem ser abastecidos por via terrestre, como Paquistão, Índia, China,
Coreia do Sul e países do Sudeste Asiático. Dessa maneira, uma
parcela importante da produção gasífera iraniana poderia ser
exportada em relativa segurança, sem os perigos inerentes ao
transporte de petróleo e gás natural liquefeito (GNL) por rotas
marítimas, sempre vulneráveis à ação de potências hostis11.
Durante a maior parte da década de 2000, o governo iraniano se
empenhou no projeto de um gasoduto para levar o gás natural de
11
“The Natural Gas Game – Iran Looks Toward an Energy Alliance with China, India and Pakistan”, Peter
Lee, Counterpunch, 19/21 de fevereiro de 2010.
South Pars para os mercados do Paquistão e da Índia. Mas a forte
oposição dos EUA acabou por levar a Índia a desistir do IPI, em 2008,
inviabilizando o empreendimento. Como alternativa, os EUA propõem
a construção do gasoduto Turcomenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia
(TAPI), que, no entanto, só poderá ser levado adiante caso se obtenha
uma solução duradoura para o conflito afegão.
7.5 O retorno das transnacionais petroleiras ao Iraque após a invasão
anglo-estadunidense
Quando as tropas estadunidenses entraram em Bagdá, em 15 de
abril de 2003, o primeiro edifício público que ocuparam foi o Ministério
do Petróleo, coração da indústria petrolífera do Iraque. Enquanto isso,
saqueadores assolavam a capital iraquiana, roubando inclusive os
tesouros arqueológicos dos museus. A expectativa do Departamento
de Energia dos EUA, anunciada no mês seguinte, era de que a
produção de petróleo iraquiana, sob o controle das forças de ocupação,
cresceria rapidamente, atingindo 3,4 milhões de barris diários em 2005
e 4,1 milhões em 2010. Nada disso ocorreu. Os engenheiros e técnicos
iraquianos sabotaram os planos de privatização da indústria do
petróleo. Para complicar o cenário, as instalações petroleiras se
tornaram um alvo prioritário dos insurgentes que até hoje resistem à
ocupação estrangeira. Resultado: a produção, que no último ano do
regime de Saddam Hussein se situava em torno dos 2,1 milhões de
barris diários, caiu para uma média de 1,8 milhões entre 2003 e 200712.
Somente em 2010, quando o governo iraquiano já conseguia impor
certo grau de ordem, a produção petroleira voltou ao patamar prévio à
invasão, com 2,4 milhões de barris diários – ainda assim, uma cifra
bem menor que os esperados 4,1 milhões e inferior, inclusive, aos 3,5
milhões que o Iraque produzia antes da Primeira Guerra do Golfo, em
1990-1991.
Com os sinais de estabilização política do país, ressurgem as
expectativas otimistas quanto à contribuição iraquiana ao mercado
global de energia. O Iraque abriga em seu subsolo 115 bilhões de barris
em reservas provadas de petróleo, o que o torna o terceiro país do
mundo em reservas, mas especula-se que esse volume é
provavelmente muito maior, já que as prospecções petrolíferas no
território iraquiano estão paralisadas há mais de duas décadas, devido
às sanções econômicas e às guerras. Estima-se que as regiões não
exploradas do Iraque poderão agregar até 100 bilhões de barris às
reservas já conhecidas, e os custos de produção no Iraque estão entre
os mais baixos do mundo.
12
BP, 2011.
O governo iraquiano conta com o ingresso maciço de empresas
estrangeiras para ampliar rapidamente a produção. A meta é produzir
5 milhões de barris diárias em 2014, ultrapassando os 8 milhões em
2017. Especialistas consultados pela agência de notícias árabe Al Jazira,
com sede no Catar, calculam que, para alcançar tamanha expansão,
serão necessários investimentos em torno de US$ 200 bilhões. Para
tornar o Iraque mais atraente ao capital estrangeiro, os governos
ocidentais e as grandes empresas petroleiras da Europa e dos EUA
pressionavam os parlamentares iraquianos, em 2012, a aprovar uma
nova Lei do Petróleo, que privatiza a maior parte da indústria de
energia no país.
Antes mesmo da adoção do novo marco regulatório, as companhias
internacionais de petróleo já competiam entre si para abocanhar os
direitos de exploração das reservas mais promissoras do Iraque. Nessa
corrida, os contratos mais vantajosos foram obtidos pela ExxonMobil,
Shell e BP – empresas que, no período anterior à guerra de 2003 se
mostraram particularmente agressivas em pressionar os respectivos
governos para intervir militarmente no Iraque, país do qual estavam
afastadas desde a nacionalização do petróleo, em 1973.
Agora todas elas estão de volta ao Iraque, graças à invasão. Entre as
empresas que se lançaram na corrida pelo petróleo iraquiano, a Shell
foi a que obteve os melhores contratos. No mais valioso deles, passará
a explorar, em parceria com a Petronas (empresa estatal da Malásia), o
campo super-gigante de Majnun, um dos maiores do mundo, com
reservas estimadas em até 25 bilhões de barris de petróleo. Em outra
licitação, a Shell se associou à ExxonMobil para explorar um trecho da
reserva de Qurna, com 8,7 bilhões de barris. Já o campo petrolífero
super-gigante de Rumaila, com 17 bilhões de barris, foi entregue a um
consórcio entre a BP e companhia chinesa CNPC. A empresa italiana
Eni arrematou o campo de Zubair, com 4,4 bilhões de barris, em
sociedade com a estadunidense Occidental (Oxy) e a Korea Gas, da
Coreia do Sul.
Uma particularidade desses contratos é que eles entraram em
vigência sem a aprovação do Parlamento iraquiano e, portanto, sem
debate público. Em entrevista à agência de notícias Al Jazira em
fevereiro de 2012, a especialista estadunidense Antonia Juhasz criticou
nos seguintes termos a entrega dos recursos energéticos do Iraque à
exploração pelas transnacionais:
“A população iraquiana est{ contra a privatização e esse é
um dos motivos pelos quais a Lei do Petróleo ainda não foi
aprovada. Os contratos estão promovendo uma forma de
privatização sem debate público e na base da ponta do
fuzil, pois foram firmados durante uma ocupação militar e
os mais importantes entre esses contratos foram parar nas
mãos das empresas dos países estrangeiros ocupantes.
Pode-se dizer que a democracia e a equidade são os
grandes perdedores nessa batalha pelo petróleo13.”
O futuro da indústria petrolífera iraquiana dependerá da capacidade
do governo de Bagdá em estabilizar o país após a retirada das forças de
ocupação e enfrentar os complicadores – políticos, étnicos, religiosos e
tribais – que, até agora, impediram o Iraque de explorar seu petróleo
de um modo tão eficiente quanto a Arábia Saudita.
13
“Las empresas petroleras occidentales se quedan en Iraq aunque las fuerzas estadounidenses se vayan”,
Dahr Jamail, Al-Jazeera