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253 CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL O censor do Tribunal do Desembargo do Paço, Lucas Tavares, com base na doutrina jansenista, deu parecer negativo à publicação do Catecismo do Bispado do Funchal. Perante a reacção do Bispo, a Corte solicitou ao Padre Lucas Tavares uma justificação da sua censura. Ao longo da sua longa resposta, o ex-oratoriano expõe a doutrina jansenista sobre a Graça, a natureza pura, a vontade salvífica universal de Deus (que nega), a predestinaçaõ gratuita ante praevisa merita, a necessidade do amor de Deus para a justificação do pecador, a obra de Quesnel e a bula Unigenitus, as indulgências, o primado de S. Pedro, as obras dos infiéis consideradas como pecado. Defende o richerismo, protestando contra o Bispo de Meliapor que não violou a autoridade episcopal, pois também aos Presbíteros entregou Jesus Cristo o ensino e governo da sua Igreja e defende as ideias regalistas, repudiando e combatendo fortemente a ímpia doutrina do curialismo, que no Papa concentra todos os poderes, ao mesmo tempo que exalta a soberania de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente, como Protector da Santa Igreja, especialmente da Igreja Lusitana. Censura do Catecismo do Bispado do Funchal Ano de 1813 Senhor O Catecismo do Bispado do Funchal não me parece digno da luz pública pelas razões seguintes: 1.ª No Cap. 2.º admite a Religião Natural, que é uma novidade do século 18, sem fundamento nas Escrituras, nem nos Santos Padres e que favorece aqueles Deistas que fazem consistir toda a Religião nos ofícios que devemos a Deus, a nós mesmos, e aos outros homens. A Santa Igreja ensina que não há senão uma Religião sobrenatural, formada da Lei Natural e da Revelação. 2.ª Afirma a pag. 232 que Deus a ninguém nega a Graça actual para a con- trição e a pag. 231 que todos tem Graça para observar a Lei; e que Cristo a todos da as Graças suficientes. Dois erros estes que a Igreja tolera, mas não ensina. 3.ª A respeito das indulgências admite o Tesouro da Igreja composto dos merecimentos de Cristo e dos Santos. Isto é uma novidade do século 12, a que deu ocasião Alexandre de Ales. A Igreja nunca conheceu outro Tesouro senão o dos merecimentos de Cristo.

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    O censor do Tribunal do Desembargo do Paço, Lucas Tavares, com base na doutrina jansenista, deu parecer negativo à publicação do Catecismo do Bispado do Funchal. Perante a reacção do Bispo, a Corte solicitou ao Padre Lucas Tavares uma justificação da sua censura. Ao longo da sua longa resposta, o ex-oratoriano expõe a doutrina jansenista sobre a Graça, a natureza pura, a vontade salvífica universal de Deus (que nega), a predestinaçaõ gratuita ante praevisa merita, a necessidade do amor de Deus para a justificação do pecador, a obra de Quesnel e a bula Unigenitus, as indulgências, o primado de S. Pedro, as obras dos infiéis consideradas como pecado. Defende o richerismo, protestando contra o Bispo de Meliapor que não violou a autoridade episcopal, pois também aos Presbíteros entregou Jesus Cristo o ensino e governo da sua Igreja e defende as ideias regalistas, repudiando e combatendo fortemente a ímpia doutrina do curialismo, que no Papa concentra todos os poderes, ao mesmo tempo que exalta a soberania de Sua Alteza Real, o Príncipe Regente, como Protector da Santa Igreja, especialmente da Igreja Lusitana.

    Censura do Catecismo do Bispado do FunchalAno de 1813

    Senhor

    O Catecismo do Bispado do Funchal não me parece digno da luz pública pelas razões seguintes:

    1.ª No Cap. 2.º admite a Religião Natural, que é uma novidade do século 18, sem fundamento nas Escrituras, nem nos Santos Padres e que favorece aqueles Deistas que fazem consistir toda a Religião nos ofícios que devemos a Deus, a nós mesmos, e aos outros homens. A Santa Igreja ensina que não há senão uma Religião sobrenatural, formada da Lei Natural e da Revelação.

    2.ª Afirma a pag. 232 que Deus a ninguém nega a Graça actual para a con-trição e a pag. 231 que todos tem Graça para observar a Lei; e que Cristo a todos da as Graças suficientes. Dois erros estes que a Igreja tolera, mas não ensina.

    3.ª A respeito das indulgências admite o Tesouro da Igreja composto dos merecimentos de Cristo e dos Santos. Isto é uma novidade do século 12, a que deu ocasião Alexandre de Ales. A Igreja nunca conheceu outro Tesouro senão o dos merecimentos de Cristo.

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    Diz mais o Autor que a aplicação deste Tesouro é feita pelo Sumo Pontífice, ou por aquele a quem o Papa dá comissão. Desejava saber se os Bispos na primitiva Igreja dispensavam as Indulgências por comissão do Papa, ou se o faziam pelo poder divino que recebiam imediatamente de Cristo, e se S. Paulo para perdoar ao incestuoso de Corinto pediu licença a S. Pedro. Admite a Indulgência pelos Defuntos, o que é erro; porque a Indulgencia é um acto de Jurisdição e a Igreja Militante já não tem poder sobre as Almas que saíram do seu território. Na pag. 270 tece um catálogo de Indulgencias para quem as quiser; tão profuso que não pode conciliar-se com a Disciplina da Igreja, nem com o Decreto do Tridentino, no qual manda o Concílio que em conceder as indulgencias, deve haver moderação, segundo o antigo costume e aprovado na Igreja para que pela nímia facilidade não venha a enervar-se a Disciplina Eclesiástica. Toda a doutrina das Indulgencias está transtornada neste Catecismo: e por não se ensinar o que a Igreja ensina e manda rompeu Lutero o cruel cisma que tanto tem afligido a Esposa de Jesus Cristo.

    4.ª No Symbolo Apostólico deve dizer-se Creio a Igreja Católica, a Comunica-ção dos Santos, etc. e não se diga Creio na Igreja Católica, porque desta expressão Credo in Ecclesiam abusaram osHereges Macedonianos, para provarem que o Espírito Santo era Creatura, porque lhe rendíamos o mesmo culto que rendemos à Igreja que era composta de creaturas.

    5.ª Diz a pag. 94 que o Concílio Geral de Niceia fora celebrado no 3.º século, quando sabemos todos que ele fora celebrado por Constantino Magno e celebrado em325 da Era de Cristo.

    6.ª Na pag. 54 diz o Autor que o Sumo Pontífice é o Pai e Mestre de todos os Cristãos, a quem Deus entregou o poder de reger e governar a sua Igreja. Se o Autor quer dizer que o Papa tem autoridade sobre cada uma das Igrejas particu-lares, diz uma verdade; se o Autor quer dizer que o Papa tem autoridade sobre a Igreja Universal ou sobre o Concílio Geral que a representa, então diz um erro, porque o Papa é discípulo da Igreja e não Mestre, é súbdito e sujeito à Igreja, e não superior a ela. O Autor tirou estas expressões do Concílio de Florença cele-brado em 1439, mas devia explicar que o Concílio falou in sensu distributivo e não in sensu colectivo nem devia omitir as restrições com que o Concílio limitou o poder do Papa, porque sim diz que o Sumo pontífice recebeu de Jesus Cristo o poder de apascentar e de reger a Igreja Universal, mas por aquele modo que está prescrito nas Actas dos Concílios Ecuménicos e nos Santos Cânones, e salvos os direitos e Previlegios dos Patriarcas. Eu não espero de dizer coisas melhores sobre este Decreto Florentino do que disse Bossuet na Defesa do Clero de França Livro 6.º cap. 11 e 12 e o nosso Pereira na Tentativa Theologica, Princípio 5.º.

    7.ª Na pag.77 a distinção que faz da Oração mental e vocal é pouco exacta, porque diz que a mental é quando oramos com um afecto e um desejo mais ínti-

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    mo da nossa alma; e a vocal quando usamos de palavras ou sinais que inflamam o nosso espírito. Mas uma oração vocal sem afecto e sem desejo da nossa alma seria uma árvore em que houvessem folhas sem tronco nem ramos. Eu penso que o Autor confunde a meditação das verdades eternas com a oração que são coisas mui diversas. Toda a oração vocal é mental ao mesmo tempo: esta é a oração que a Igreja nos prescreve e de ela usa no Ofício Divino; esta a Oração que S. Paulo recomenda aos de Éfeso, cap. 5, v. 19 cantando e salmeando do fundo dos vossos corações a gloria do Senhor.

    Julguei necessária esta reflexão por causa dos Casuístas do século passado, os quais não duvidaram de afirmar que para cumprir com o Ofício divino bastava rezar os Psalmos materialmente e sem algum pio movimento do coração.

    Um Catecismo, pois, que não ensina a doutrina da Igreja, ainda que esteja autorizado com a Pastoral de um Bispo, deverá correr neste Reino? De nenhuma sorte. O R.mo Bispo de Meliapor, dotado de tanta piedade, não deve levar a mal esta minha oposição; ele sabe melhor que eu, que não foi somente aos Bispos, senão também aos Presbíteros, debaixo da obediência dos Bispos, que Jesus Cristo confiou o ensino e o governo da sua Igreja; e que eu em razão de Censor devo ajudar a Regia Protecção, que V.A.R. deve à Religião de nossos Pais. Lisboa, 29 de Junho de 1813. Lucas Tavares.

    Senhor

    Manda-me V.A.R. responder à sentida queixa que contra mim presentou ao Trono o Bispo de Meliapor. Queixa-se este respeitável Prelado de que eu usurpei sua autoridade Episcopal censurando o seu Catecismo: queixa-se de que nele censurei de erros as verdades mais puras da Religião; queixa-se finalmente de que eu duvido do Primado de S. Pedro.

    Para dar mais peso à sua queixa acusa-me do horrendo crime de heresia e de impiedade: chama em seu socorro o Dr. Mimoso, que não duvida fazer-me suspeito de Ateísmo; e aceso no desejo de vencer a sua causa, procura de fazer-me odioso ao Trono, dizendo que eu não sou seguro nas minhas opiniões religiosas, e menos nas políticas, e que não diz isto sem alguma causa. Que farei eu vendo-me tão injustamente arguido! Direi que o Bispo procede de má fé! Direi que ele não ama a verdade. Não certamente. O Céu tem-me inspirado sentimentos mais justos, mais dignos de Religião, e mais convenientes ao respeito que se deve ao caracter Episcopal. Persuadido pois de que as calúnias são mais nocivas ao seu Autor do que àquele que as sofre, não cuidarei já senão em sustentar a causa da Religião. Mostrarei primeiro que eu tenho toda a autoridade para censurar um

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    Bispo, quando ele não ensina a verdade. Mostrarei depois que a doutrina que notei no Catecismo do Funchal não é doutrina da igreja.

    Primeiro Ponto

    Opor-me a um Bispo quando ele não ensina a doutrina da Igreja não é usur-par a jurisdição Episcopal; por isso ainda que eu fosse um simples leigo, podia e devia opor-me ao Bispo de Meliapor.

    A Religião é um bem público que importa a todos, como aquela que está intimamente ligada à felicidade própria de cada um; é do interesse do Estado e da Igreja, ainda considerada só como um corpo político, que o erro não desfigure a sua formosura; que ela apareça sempre aos nossos olhos com aquela augusta simplicidade com que desceu do Céu. Um leigo pois faltaria a um dever natural e religioso, se por temor ou por lisonja não arrostasse o erro e o combatesse. Leigo era Eusébio Dorileo quando se opôs a Nestório; S. Celestino louva os fiéis de Constantinopla por terem rejeitado a doutrina do seu Patriarca; Filipe de Valois, Rei de França, resistiu ao erro do Papa João 22; S. Paulo ordena a todos os fiéis indistintamente de anatematizarem um Anjo do Céu, se fosse possível que este lhe anunciasse outro Evangelho que não fosse o que lhe tinha anunciado.

    Mas nada, a meu ver, prova tanto a grande parte que os leigos têm nos ne-gocios da Religião, como a práctica da mesma Igreja. No Concílio de Jerusalém não só aparecem os Apóstolos e os Presbíteros, mas também os Seculares. Placuit Apostolis et Senioribus cum omni Ecclesia. O decreto do Concílio continha um ponto de doutrina, e outro de disciplina: o doutrinal era que a circuncisão já não obrigava; o de disciplina ordenava aos Gentios novamente convertidos, de se absterem do sangue, etc. Não obstante, este Decreto foi concebido em nome dos Apóstolos, dos Presbiteros, e dos Irmãos, como lemos no grego. O concílio da Tarragona em 516 manda que os Bispos tragam consigo não só o Clero, mas também alguns leigos: Aliquos de filiis Ecclesiae secularibus.

    O Concílio 4.º de Toledo em 633 ordena que depois dos Bispos, Presbíteros e Diáconos, sejam admitidos os Leigos que o Concílio julgar dignos.

    Deixo em silêncio a autoridade de S. Cipriano e outros monumentos da Antiguidade, pelos quais podia mostrar como os leigos segundo a disciplina dos primeiros séculos eram chamados para os negócios mais importantes da Igreja. Não quero todavia dizer com isto que os leigos, podendo ser testemunhas da Tra-diçaõ, e devendo ser consultados sobre o governo e polícia exterior, podem por isso ser Juízes da Fé; ajuntei estes testemunhos para provar somente, que sendo a Religião um bem público em que todos interessam a sua felicidade eterna podia

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    eu, ainda que fosse um simples leigo, opor-me a qualquer que houvesse de tocar no sacrossanto Depósito da Fé, o qual se fechou pela morte dos Apóstolos, e já não pode ser acrescentado, nem diminuído, sem horrendo sacrilégio.

    Se um leigo pois pode resistir a um Bispo, quanto mais eu que sou Presbítero! Resistiram os Presbíteros a Paulo, Bispo de Samosata; resistiram os Presbíteros ao Patrarca Nestório; resistiu o Presbítero Auxílio a Sérgio 3.º: o Papa errava em dar por nulas as Ordenações de Formoso; Auxilio ferido da luz celeste, conhece o erro, opõe-se ao Papa, escreve contra ele e morre em odor de santidade.

    Pode um Presbítero opor-se ao Primaz da Igreja, e não poderei eu opor-me ao bispo de Meliapor! Mas como os factos não provam o direito e porque nem tudo o que se faz é justo, vejamos se os Presbíteros têm este direito

    Disse eu na minha censura que não só aos Bispos, mas também aos Presbíteros entregou Jesus Cristo o ensino e governo da sua Igreja. Não é esta uma doutrina nova, que arvorasse agora na minha fantasia, é sim uma obrigação divina que o Espírito Santo impôs a todos os Presbíteros: Atendei a vós e a todo o Rebanho, em que o Espírito Santo vos constituiu Bispos (Inspectores ) para governardes a Igreja de Deus, que ele adquiriu pelo seu sangue. Não se me escondem as subtilezas a que têm recorrido os inimigos do Presbiterado; trabalham em persuadir-nos que a palavra Bispos no cap. 20 dos Actos dos Apóstolos não se entende dos Presbí-teros; trabalhos frustrados!. Toda a antiguidade, a tradiçaõ constante de todos os séculos auxiliam a proposição da minha censura; não refiro o testemunho dos Santos Padres Jerónimo, Gregório Magno, Isidoro, Origenes, Teodoreto, Primasio, Sedulio, Beda, e outros muitos.

    Deixo em silencio o Concílio de Aquisgrana celebrado em 816, o qual pela multidão dos Bispos da França, Itália, Baviera e Alemanha que a ele concorreram, foi chamado pelos Escritores daquele século um Concílio Geral. Outros monumen-tos de grande peso me oferece o tratado De Divina Institutione Pastorum secundi Ordinis, e o douto Guadagnini na sua excelente obra De Origine Paroeciarum, mas tudo deixo em silencio , só para não ser prolixo.

    É certo que se não amasse por extremo a brevidade ou se não temesse impor-tunar a V.A R. mostraria os Presbíteros juntos com os Apóstolos no Concílio de Jerusalém, decidindo as controvérsias que então se excitavam na Igreja: mostraria os Presbíteros de mistura com os Bispos nos Concílios Gerais, julgando da Fé e regulando a disciplina; mostraria o Cardeal Pedro d’Ailly e Gerson no Concílio de Constança, S. Luis Cardeal e Arcebispo de Arles no Concílio de Basileia, sustentando o direito dos Presbíteros; diria mais que os Bispos sem exceptuar os Romanos nos belos dias da Igreja, nada faziam de novo no governo de seus Bispados sem o consentimento dos presbíteros; diria, enfim, que ainda hoje um Bispo só por si, não pode representar a sua Igreja no Concílio Ecuménico se não

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    for munido com os votos do seu Clero. Mas a que fim tantos argumentos! Para provar que também aos Presbíteros encomendou Deus o governo e ensino da sua Igreja basta o lugar acima citado: Attendite vobis et Universo Gregi, etc. entendido, não como os Teólogos romanos o entendem, mas segundo os Santos Padres e a tradição de todos os séculos.

    Fora portanto estranha maravilha que podendo eu, em razão do meu Mi-nistério, opor-me ao furor da heresia e da impiedade, refutar as falsas ideias da superstição e do fanatismo; combater enfim, os absurdos e abusos que desfiguram a formosura da Religião, não pudesse agora mostrar os erros de um Catecismo, só porque estava autorizado por um Bispo! E que contas me pediria Deus! Aquele Deus que me está clamando: repreende-os com força para que conservem a pureza da Fé. Ad Titum, capit. 1.º, v.13.

    Mas é necessário responder a uma objecção do Bispo de Meliapor e é que eu excedi os limites da minha comissão, porque o Desembargo do Paço só mandou confrontar o impresso com o original, e que o Tribunal usurpou a sua jurisdição Episcopal, anuindo à minha censura. Responderei primeiro por mim, e depois pelos Senadores Palatinos. Eu confesso que ataquei os erros do Catecismo; mas como ninguém tem autoridade para dizer erros, não usurpei autoridade nenhu-ma, salvo se alguém pode usurpar uma cousa que não há. Sua Magestade na sua Lei de 30 de Julho de 1795 nada deseja tanto como a pureza da Religião; logo eu trabalhando por que esta não fosse corrompida, respondi em tudo aos piedosos votos da minha Soberana.

    Em quanto aos Senadores Palatinos, viram estes zelosos Magistrados que os Bispos, ainda os da Espanha, são como Félix Urgelitano e Elipando de Toledo sujeitos ao erro e à heresia: que o mesmo Pontífice a quem metaforicamente cha-mam Mestre da Igreja e Bispo dos Bispos, não pode eximir-se desta triste condição dos mortais: viram que um Catecismo, ainda que pouco volumoso oferece um vasto campo para nele se semearem com as virtudes da Religião, a impiedade o fanatismo e as preocupações dos Teólogos; viram enfim que segundo a sã políti-ca, aproveita mais ao Estado prevenir o mal antes que aconteça do que puni-lo depois de acontecido; e por isso os prudentes Magistrados cometeram a revisão do Catecismo não a um Professor das primeiras letras, que era o que bastava para conferir o impresso com o original, se este fosse o seu único desígnio, mas sim a um Censor régio, que V.A bem ou mal informado da sua capacidade tinha elegido, um censor Teólogo, porque não se tratava então de examinar os artifícios oratórios nem as belezas e encantos da poesia; a um censor, enfim, do qual por longa experiência estão certos que nem por temor nem por lisonja venderia nunca a sagrada Religião da sua Pátria. O Censor com efeito acusou os erros; o Tribunal suspendeu a publicação do Catecismo e recorreu a V. A. para que se dignasse de decidir se ele era ou não digno da luz pública. Este o facto.

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    Dizer-se agora que eu e os Senadores Palatinos obrando em nome de V.A. não tínhamos autoridade para tanto é supor que V.A. certamente a não tem; mas semelhante autoridade quem a disputará ao Magistrado Político! Seja-me lícito, Augusto Príncipe, falar hoje com aquela franqueza com que falei sempre aos pés do Trono. Os Reis, é verdade, não podem entrar no santuário; eles porém são os Anjos com a espada na mão à porta do Paraíso para defenderem a entrada aos pecadores. Quer isto dizer em sentido próprio e sem alegoria o que V.A. não ignora, isto é, que os Reis não podem definir os Mistérios da Religião; não podem alterar a santa Moral revelada; não podem ministrar os sacramentos, nem impedir os sagrados Ministros para não pregarem as verdades indispensáveis à salvação eterna; serão amaldiçoados até ao fim do mundo a Ecthese de Heráclio e o Typo de Constante, decretos estes com que os dois Imperadores queriam sufocar o grito da Fé e o justo clamor da Igreja contra a heresia dos Monotelitas; V.A. porém é o Inspector da Fé, o Protector da Igreja, o Bispo dos Bispos: mas estes Augustos títulos com que se coroaram os Constantinos e Valentinianos não são vãos nem ociosos; eles sim esmaltam a glória da púrpura, mas o Rei imortal punirá severa-mente os Reis mortais que foram omissos em vigiarem as verdades da Religião e que não zelaram a Igreja que Deus confiou ao seu cuidado.

    Para que alegarei agora o Papa S. Leão escrevendo a Leão Augusto? Para que a S. Gregório o Grande na sua Carta ao Imperador Maurício? Basta o Concílio de Paris em 829 citado por Graciano: Conheçam os Príncipes do século que hão de dar contas a Deus por causa da Igreja que receberam de Cristo para protegê-la por que ou a paz e disciplina da Igreja se aumente pelos Príncipes fiéis ou por eles se dissolva, aquele que a entregou ao seu poder lhes pedirá contas. Caus. 23, v. 9 c. 19.

    Bem persuadido estava desta verdade, diz Mr. Talon, o Imperador Leão, o qual em 463 ordena aos Bispos que lhe enviem a sua Profissão de Fé. O Imperador Justino, segundo refere Evagrio, mandou aos Bispos o Símbolo da Fé ortodoxa declarando anátema aos que defenderem uma fé contrária. O Papa Pelágio era suspeito de heresia, o Rei Childeberto quer que o Papa lhe envie a sua Profissão de Fé e o Primaz da Igreja obedece. É injusta pois a queixa do Bispo de Meliapor, porque se é inegável a autoridade dos Reis em zelarem a pureza da Fé e a Santa doutrina da Igreja, nem eu, nem o Desembargo do Paço, opondo-nos em nome de V A. à publicação do Catecismo, violamos a sagrada autoridade Episcopal. Mas quem sabe se são erros que a Censura acusa no Catecismo? Esta a questão mais importante e talvez a única que deveria ventilar-se. Devo pois mostrar que a doutrina censurada não é doutrina da Igreja.

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    Segundo Ponto

    O Catecismo admite a Religião natural. Nego eu, o Bispo clama: que es-cândalo! Chama em seu socorro o Dr. Mimoso, opositor às cadeiras, e Censor régio, e ambos se presentaram ao Trono e para quê? Para verem se podem iludir a verdade com paralogismos. O Bispo diz: A Teologia natural ensina a existência de Deus e o culto que lhe devemos prestar. Falso, porque a Teologia da razão sim, diz que devemos a Deus o culto do sumo amor e obsequio; mas de que modo devemos render este culto, não diz; ou por me servir da frase filosófica; a Teologia natural determina o culto in genere, mas não in specie. Diz mais o Bispo que V.A. proibindo as matérias opostas à Teologia natural, reconhece a Religião natural. Não sofro, porque sei que V.A é Católico, e não Deista.

    Que diz o Dr. Mimoso? Conformando-se em tudo com a opinião do Bispo, acrescenta que a Religião natural tem fundamento nas Escrituras, porque o livro da Sabedoria e S. Paulo atestam que pelas criaturas podemos subir ao conheci-mento do Criador. Ó argumento ponderoso! Podemos conhecer pela razão que Deus existe, logo conhecemos também o culto digno da sua infinita Majestade. Creio certamente que tão respeitáveis Teólogos não estão persuadidos do que dizem, nem eu prosseguiria a minha causa, se ela não fosse também a da Igreja.

    E que causa mais oposta à doutrina da Igreja do que uma Religião verdadeira mas insuficiente, como apregoa o Catecismo? A Religião é obra de Deus, e não dos homens; e as obras de Deus todas são perfeitas, disse Moisés, que não mente. Deuteron. cap. 32,v.4.

    A Religião deve ser um sistema completo que ensine não só as homenagens que a criatura racional deve a Deus, mas até o modo por que sua Divina Magestade quer ser adorada. Ora o Filósofo, por mais ilustrado que seja, depois de longos e complicados raciocínios de que mui pouca gente é capaz, nunca poderá conhecer pela sua razão finita o que deve ao ser infinito. Lancemos os olhos a essas Nações infelizes aonde não penetrou a luz do Evangelho; que falsa ideia se formam elas da Divindade! Que ridículo o culto que lhe tributam!

    Entremos em nós mesmos; que é o homem senão um monstro de ignorância e fraqueza? O espírito entenebrecido, a vontade lânguida para o bem, vil escravo, enfim, da concupiscência! Haverá na Religião natural esta Graça celeste, que ferindo as trevas do espírito, esforça ao mesmo tempo a vontade para adorar a Deus dignamente e praticar a virtude? Afirmá-lo é impiedade. Confessemos pois que não há senão uma Religião verdadeira que é a sobrenatural e revelada: revelada, digo, enquanto aos Mistérios e enquanto aos costumes; porquanto ain-da que algumas verdades da Religião sobrenatural se possam demonstrar pela

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    razão, nem por isso pode dizer-se que não foram reveladas. Bem ilustrada era a razão de nossos Pais, quando lá no Paraíso floreciam ainda na inocência; e não obstante foi necessário que Deus lhes mostrasse o bem e o mal; que lhes desse as regras de obrar; que os fizesse depositários da lei da vida; que lhes ensinasse os preceitos da sua justiça e outras verdades mais, como lemos no Eclesiástico, cap. 17, desde o v. 5 até 11.

    Mas se no estado de inocência foi necessária a Revelação, quanto mais o será no estado de natureza lapsa, em que a culpa original assombra sobremaneira a razão? Justamente a Assembleia do Clero Galicano em 1700 definiu que a Igreja esteve sempre persuadida de que a Religião foi toda revelada, e que as verdades assim teóricas como as práticas pertencem todas ao Depósito da Fé. É inegável pois que nunca houve senão uma Religião sobrenatural, a qual principiando em Adão no Paraíso durará sem interrupção alguma até à consumação dos séculos.

    Sendo assim, permita-se-me perguntar ao Bispo e ao Dr. Mimoso, se esta Religião sobrenatural é completa ou não; se é completa é supérflua a Religião natural; porque sendo a Religião obra de Deus, ele não é ocioso que faça coisas debalde; e se não é completa; Deus então não proviu suficientemente às suas criaturas e seria injusto em exigir delas um culto digno da sua Excelsa Majestade, sabendo que elas nunca saberiam render-lho dignamente.

    Mas suponhamos por um momento que existe uma Religião natural distin-ta da revelada; segue-se daqui que aquele que fizer um acto de amor de Deus criador faz um acto de Religião natural; e se fizer um acto de Fé em Jesus Cristo, faz um acto de Religião revelada. Temos pois o mesmo homem, ora Filósofo, ora Cristão, ou, para melhor dizer, vivendo ao mesmo tempo na Religião natural e na Revelada, e temos o mesmo homem com duas Religiões diversas para adorar um só Deus, o que é absurdo.

    Ainda pergunto mais, se esse acto de amor de Deus do Filósofo será agrada-vel ao Eterno sem a Fé em Jesus Cristo? O Bispo e o Opositor neste aperto não tem outro remédio senão ou negar a existência da sua Religião natural, ou dizer uma grande heresia; porque é um dogma fundamental da nossa Religião que nada podemos fazer agradavel a Deus e meritório da vida eterna, sem a Fé neste Divino Mediador.

    É logo verdade o que disse na minha Censura que a Religião natural é uma novidade a que deu ocasião a doutrina sobre o estado da natureza pura. Homens carnais apareceram no seio da Igreja, que, fechando os ouvidos à voz da Eterna Verdade, intentaram fazer uma Religião a seu modo e que se ajustasse às suas ideias e ao seu capricho, sonharam que Deus podia criar o homem sem Graça, e só ornado dos dotes naturais. Este é o estado de natureza pura, a qual ainda que repugnante à Providencia, à Santidade e a outros divinos atributos, os Molinis-

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    tas, não obstante, o julgaram possível, e a ímpia Filosofia, adiantando um passo, não só o creu possível, mas também existente. Esta crença foi então a fonte da impiedade que ainda agora inunda o nosso século; daqui o desprezo da Igreja e dos seus Ministros; daqui o ludíbrio das augustas cerimónias e do culto externo. Nem podiam obrar de outra sorte aqueles a quem bastava somente crer que há Deus; que a justiça difere da iniquidade e que prestando aos seus semelhantes os ofícios que a lei natural prescreve, tem cumprido em tudo a vontade do Ser su-premo. Mas o Céu não quis que a iniquidade campeasse; já os esclarecidos Atletas correm a fazer-lhe testa e a debelá-la. Combate a Religião natural António Soares Barbosa; combate-a Mr. Pelvert; combate-a Gazzaniga; combateram-na, enfim, os Teólogos de Leão. Chame-me pois herege o Bispo de Meliapor; clame que é ímpia e escandalosa a minha Censura; diga embora o P. Mimoso que sou Ateu, por que eu reprovando a sua Religião natural, em que não figura Jesus Cristo, nem a virtude da sua Cruz assaz tenho mostrado ao Trono a minha ortodoxia.

    Sobre a Graça

    O Catecismo diz que Deus a ninguém nega a Graça da contrição. Ó doce consolação para o Povo do Funchal! Pecai, homens à vossa vontade; não é neces-sário obrar a vossa salvação com temor e tremor; correi soltamente pelo caminho da impiedade; e quando estiverdes bem fartos de pecar, a Graça que custou o precioso Sangue de Jesus Cristo está pronta quando quiserdes, e ireis seguros ao Céu. Mas foi ao Céu o Rei Antíoco que orava ao Senhor de quem não havia de conseguir misericórdia? Macab. 11, capit. 9, v. 13. Não está no Inferno Judas, apesar de ter confessado publicamente de ter traído o Sangue do Justo? Por que motivo o bom ladrão voa ao Paraíso e o mau é precipitado no Abismo? Ah! Parece-me que o Espírito Santo me está clamando: E serás tu estátua muda? É para isto que eu te chamei ao Sacerdócio? Vai, dize ao Bispo, dize ao Dr. Mimoso, dize a todo o mundo que o Espírito Santo a ninguém deve a sua Graça; que ele não inspira a todos, mas só a quem ele quer: Spiritus, ubi vult, spirat. Dize-lhes com Moisés e o Apóstolo que Deus compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer; endurece sim, não inspirando-lhe a malícia, mas não lhe dando Graça para vencê-la e para abrandar a sua dureza. Dize-lhes o que tantas vezes repete Agostinho que a natureza é comum a todos os homens, mas não o é a Graça, que a uns a nega Deus por seus justos Juízos e a outros a concede pela sua misericórdia toda gratuita. Dize-lhes, enfim, com os Bispos desterrados pelos Vândalos na Sardenha, que não sente dignamente da Graça de Jesus Cristo aquele que julga que ela é dada a todos os homens.

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    Tal é a doutrina da Igreja, a qual podia corroborar com a autoridade de S. Fulgencio, S.Próspero, S.Bernardo, S.Tomás, e outros Doutores e Teólogos; porque com a Escritura e os Padres é que eu costumo provar as verdades da Religião, e não com subtilezas e sofismas, como vou mostrar.

    O Censor, diz o Bispo, declara ser erro o dizer-se que Jesus Cristo morreu por todos e que a todos preparou o remédio, que é o mesmo que Graça. Mas neguei eu alguma vez na minha vida que Cristo morreu por todos? O que nego e negarei sempre é que a todos seja dada a Graça medicinal do Redentor. O Bispo, empe-nhado em me fazer odioso ao Trono, não escrupuliza de levantar-me uma calúnia e para fazê-la mais plausível, sofisticamente confunde a causa com o efeito.

    Cristo pela sua Morte mereceu-nos a sua Graça; mas a Graça actual neces-sária para a Contrição não é a Morte de Cristo; a Morte é a causa; a Graça o efeito. Cristo como Médico Celeste preparou para todos a medicina, mas nem todos querem lançar mão dela; e o enfermo morre, não porque o remédio não seja eficaz, mas porque recusa tomá-lo. E porque recusa? Porque Deus, negando-lhe a sua Graça, não lhe mudou a má vontade. Nisto acode o Dr. Mimoso a socorrer o Bispo, ou antes a iludir a verdade católica, com sofismas novos, o que é fácil ver, se não perdermos de vista o estado da questão.

    Sofismas do Dr. Mimoso

    1.º sofisma. É o que já fica refutado, isto é, que Cristo morreu por todos, e para todos preparou o remédio, como se a Morte de Cristo fosse a Graça actual necessária para a Contrição; ou se preparar o remédio fosse o mesmo que aplicá-lo ao enfermo!

    2.º sofisma O Tridentino, diz ele, definiu que nem todas as obras que prece-dem a justificação são pecados. Concedo; mas daí não se segue que Deus a todos dá a Graça actual para se converterem.

    3.º sofisma. A proposição 25 de Baio- que todas as obras dos infiéis sãos pe-cados- foi condenada. Concedo por um instante enquanto formo o argumento. Nem todas as obras dos infiéis são pecados; logo a todos os fiéis dá Deus a sua Graça? Eis aqui como o P. Mimoso anda escondendo, embrulhando o estado da questão. Agora passo a mostrar os erros a respeito da Graça.

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    Erros do Dr. Mimoso

    1.º erro. O P. Mimoso, negando que todas as obras dos infiéis sejam pecados, ressuscita

    um erro que Santo Agostinho refutou em Juliano de Capua. Pergunta Juliano: se o Gentio vestir o nu, será isto pecado, porque não é ex fide? Santo Agostinho responde: In quantum non est ex fide, peccatum est. Desenvolvamos agora a doutrina de Santo Agostinho que é a doutrina da Igreja; porque, como disse um Papa: ubi Augustinus, ibi Ecclesia.

    As virtudes, diz o Santo Padre, não se devem medir officiis, sed finibus. É certo que em toda a virtude deve distinguir-se o ofício, isto é, o que se deve fazer, do fim por que se faz. Ora o Gentio pode dar uma esmola, e esta obra é boa enquanto ao ofício; mas esta obra boa enquanto ao ofício, é viciosa e pecado, porque ele nem actual nem virtualmente a refere a Deus como a seu último fim; não pode referi-la a Deus e elevá-la a este fim último e sobrenatural sem a Graça de Jesus Cristo; mas Deus não dá esta Graça àqueles a quem nega o dom da Fé em Jesus Cristo. Esta doutrina recebeu Santo Agostinho de S. Paulo. Quidquid non est ex fide, peccatum est. Sine fide impossibile est placere Deo. Non omnium est fides. É necessário pois que o Dr. Mimoso fique persuadido de que fora da santa Igreja não pode haver verdadeira virtude, verdadeira caridade, nem Graça Santificante, porque o Espírito Santo não reside fora da Igreja. É esta uma verdade em que conspiravam os dois partidos quando disputavam sobre a validade ou nulidade do Baptismo dado pelos hereges; atesta esta verdade Santo Agostinho na Epist. 185 Ad Bonifac. n.50; Santo Ireneu, Advers. Heres. L. 111 cap. 24. Gerson diz que ela é fundada no artigo do Símbolo: In Spiritum Sanctum Dominum et vivi-ficantem. A quem vivifica o Espírito Santo, diz ele, senão à sua Igreja ?. Confessa esta verdade o protestante Jurieu, como afirma Mr. Nicole De l´unité, L. 111.c. 8; é digna de se ler a Instrução Pastoral do Bispo de Sens, um dos primeiros Apelantes da Bula Unigenitus.

    Isto posto, pode o Espírito Santo pelas orações da Igreja, a que Santo Agos-tinho chama os gemidos da Pomba, e pela pregação dos seus Ministros chmar os Gentios à Fé; mas enquanto eles pela Fé não entram na cidade dos Santos; enquanto pela Fé não se naturalizam na Sagrada Jerusalém da terra, isto é, na Santa Igreja, eles não podem ter senão virtudes gentilicas e aparentes como foram as dos Fabios, dos Fabricios,e Cipiões; porque eles não referindo a Deus as suas obras, como a seu último fim, pecam contra o primeiro Mandamento, assim como peca o Cristão que actual ou virtualmente não refere a Deus todos os seus pensamentos, palavras e obras.

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    Até agora tenho mostrado que uma árvore má, como é o Gentio, não pode dar bons frutos; resta-me responder à Proposição 25 de Baio. O P.Me. afirma que fora condenada, e é verdade, mas foi condenada pela doutrina? Nego. Contenson, Soares, Vasques, o Cardeal Belarmino, estavam então em Roma quando se pro-mulgou a Bula e o cardeal de Toledo que a levou a Lovaina para ser recebida sem réplica, todas estas testemunhas sem suspeita afirmam que muitas das Proposições de Baio foram condenadas, não pela doutrina, mas pela dureza com que se expri-mia, pelo rigor com que censurava as opiniões contrárias, pela má interpretação que lhe davam os Teólogos; mas não é crível que S. Pio 5.º, nem que Gregório 13, seu sucessor, condenassem a Proposição 25 de Baio que continha doutrina da Igreja, porque não só Santo Agostinho no Liv. 4.º cap. 3.ºcontra Juliano, afirma que as obras dos infiéis são pecados; afirmam o mesmo Tertuliano, S. Cipriano, S Jerónimo, S. Próspero, S. Fulgencio, S. Leão, S Remígio; S. Bernardo, Juliano Pomerio, o Venerável Beda, e outros muitos, cujas autoridades coligiu Zola nas suas Preleções Teológicas- De ultimo fine, tomo 2.º, pag. 113. Sendo isto verdade como é, digo que o P. Me. sustentou um erro com outro erro, porque querendo sustentar o paradoxo; que Deus a ninguém nega a Graça actual negou contra a doutrina da Igreja que as obras feitas no estado da infidelidade fossem verdadeiros pecados.

    2.º erroDeus, diz o Dr. Mimoso, ama a todos extremosamente, e quanto é da sua parte

    não há motivo para dar as suas Graças actuais a uns e a outros não. Enganou-se este Teólogo, porque Deus ama os predestinados, e aborrece os réprobos. Aos predestinados chama a Escritura amados de Deus e escolhidos vasos de miseri-córdia, vasos de honra; aos réprobos chama malditos, aborrecidos, desprezados de Deus, filhos da perdição, vasos de cólera, vasos de ignomínia. Se estes epítetos não convencem o P.Me. do seu engano, que me diga que amor teve Deus ao menino que deixou morrer sem Baptismo e a quem não deu Graça para evitar a pena eterna, como ensina a Igreja?

    Mas, desenvolvamos um pouco mais esta verdade católica, que nos humilha ante o Trono de um Deus justo, e nos faz caminhar para ele entre o temor e a esperança. A verdade é a seguinte:

    “Todos pecamos em Adão; este pecado de nossos primeiros Pais foi como fermento que corrompeu toda a massa. Se todos pois éramos pecadores, todos também merecíamos ser vítimas da cólera celeste, mas foi tanta a bondade do nosso Deus, que não quis que fossemos todos desgraçados. Desta massa corrom-

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    pida, por um Decreto positivo da sua vontade, separa uns para a glória e todos os mais deixou na massa da perdição. Os primeiros são os predestinados; os outros são os réprobos”.

    Enquanto aos predestinados, Deus os amou tão extremosamente, que as mesmas culpas mortais em que caiem, o Senhor as permite para seu benefício, porquanto por elas se tornam mais humildes, mais desconfiados de si próprios, mais vigilantes aos assaltos da concupiscência, mais instruídos da sua fraqueza, mais advertidos, enfim, da necessidade e absoluta dependência que têm da Divina Graça, como aquela que só pode segurar os nossos passos no caminho da justiça Veja-se Santo Agostinho De Corrept. et Grat. caput.9 num. 24; De Civit. Dei capit. 13, num. 24; S. Gregório Magno, Liv 2.º De Moral. cap. 26; S. Bernardo, sermão 1.º De Divers. num. 6; e S. Paulo adverte que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles, sim, que segundo o seu Decreto chamou para serem Santos. Ad Rom. cap. 8.º v. 28. Enquanto aos réprobos, que Deus, por um acto positivo da sua Justiça, deixou na massa da perdição, uns são os gentios, que morrem na infidelidade; outros os cristãos, que, sendo elegidos para a Fé, não foram predestinados para a gloria. Pelo que pertence aos Gentios, é certo que Deus não e nunca os amou, mas sempre os aborreceu como filhos do diabo; os cristãos que foram santificados pelo Baptismo, Deus os ama enquanto conservam a Graça Santificante, mas não os ama extremosamente, porque lhes nega o dom da perseverança, por isso mesmo que não os predestinou para a gló-ria. Ora se muitos são os chamados, e poucos os escolhidos; se são inumeráveis os que trilham o caminho da perdição, e poucos os que entram no caminho do céu; se o rebanho de Cristo é pequeno, Pusillus grex, como pode dizer-se que Deus a todos ama extremosamente?

    Mas não é somente esta inadvertência que eu noto no Dr. Mimoso; noto também dizer: que Deus, quanto é da sua parte, não tem motivo para dar as suas graças actuais a uns e a outros não. Ele certamente não ignora que todos fomos inficionados pelo pecado de Adão; que este pecado não é a imputação da culpa de nossos primeiros Pais; não a privação da justiça original; não é uma substância má de que o demónio se serviu para corromper a natureza humana, como delira Mateus Illirico; é sim uma verdadeira iniquidade, um verdadeiro pecado, e uma gravíssima ofensa de Deus: da parte de Deus, a sua Justiça pede que se vingue a sua Gloria; saber por que razão o Senhor, temperando o rigor da sua justiça com a doçura da sua Misericórdia, quis dar a uns as suas Graças actuais para conseguir o céu, e negar a outros essas Graças para evitar a pena eterna, é segredo que Deus a ninguém quis revelar, nem a S. Paulo quando o arrebatou ao 3.º céu. Feliz o homem que sabe o que Deus disse; temerário o que pretende saber o que Deus

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    lhe não quis dizer. O verdadeiro cristão, à vista deste Mistério, cai prostrado ante o trono da Eterna Majestade, e, humilde, canta ao Senhor a sua Misericórdia e a sua Justiça. Misericordiam et Justitiam cantabo tibi, Ps. cap. 6

    3.º erroTodo o homem, gentio ou cristão, diz o P. M.e é punido, se não observar a

    lei de Deus, não é possivel observá-la sem Graça; mas Deus, não manda impos-síveis. Logo é claro que a todos há-de dar a Graça de seu Filho. Que diria Santo Agostinho? Que diria S. Próspero, e S. Fulgêncio ouvindo este discurso? Diriam que é digno de lágrimas o Teólogo que dá mais peso às suas conjecturas e racio-cínios, do que à voz da Eterna Verdade, e ao que a Santa Igreja tem ensinado em todos os séculos. A Igreja, aonde o Espírito Santo depositou toda a Verdade, tem ensinado sempre que a observância dos Mandamentos é possível a todos os homens, porque eles têm o poder físico e real para quererem ou não quererem observá-los; mas que nunca hão de querer, se Deus lhe não der a boa vontade. Todos têm a potência, mas reduzir a potência ao acto e ao efeito não podem sem a Graça. Todos têm o livre arbítrio, mas usar bem dele não podem sem o auxílio celeste. Mas a todos dá Deus essa Graça e auxílio celeste? O P.M.e responde que sim, porque segundo ele confessa todos têm auxílios que bastam para observar a Lei. Bem; mas por que vemos nós tantos pecadores habituados ao pecado e submergidos na luctulencia dos vícios? O P. M.e de três coisas necessariamente há-de responder uma: ou Deus não dá a todos os seus auxílios; ou, se os dá, eles não bastam; ou, se bastam, o fraco homem é mais forte que o Omnipotente”.

    O P. M.e Mimoso e o Bispo de Meliapor com os seus auxílios suficientes insul-tam a Divina Omnipotência, o dogma da Graça eficaz ab intrínseco e arruínam todo o fundamento da humildade cristã

    Com efeito, que entenderão estes Teólogos por Graça suficiente? Este vocábu-lo introduzido na Escola tem produzido três opiniões diferentes. Uns dizem que a Graça suficiente é aquela de que o homem pode usar, se quiser. Então a Soberana vontade de Deus está sujeita à vontade do homem? Outros afirmam que a Graça suficiente é aquela que Deus dá, mas como não a dá naquelas circunstâncias em que o homem havia de consentir e dar o seu assenso, por isso, não produziu o seu efeito. E temos também a vontade de Deus dependente da vontade do homem. Outros, finalmente, entendem por Graça suficiente aquela que dá somente o poder para obrar o bem. Mas uma Graça que dá somente a potencia é a Graça do Heresiarca Pelágio. A Graça de Jesus Cristo não vem somente do céu para nos dar a potencia para o bem, mas também para que queiramos praticá-lo e para que com efeito o pratiquemos, como diz S. Paulo- Deus est, qui operatur in vobis velle et perficere. E, como diz Santo Agostinho, Possibilitatem cum effectu.

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    Isto posto, qual destas três opiniões seguirá o Bispo e os seus Teólogos, sem combater o dogma da eficácia da Graça ab intriseco, sem insultar a divina Omnipotência que faz o que quer, na terra e no céu, e ninguém lhe resiste? sem combater o fundamento da humildade cristã, que confessa não ter nada de que gloriar-se? que não tem bem nenhum que não recebesse de Deus? que o homem de si não tem senão corrupção e iniquidade? que o livre arbítrio só pode pecar? que para o bem é necessário que a Graça o previna e acompanhe até ao fim da boa obra ?.

    O Bispo e os seus Teólogos não cairiam em tantos absurdos e erros execran-dos, se não se tivessem apartado da Escola Augustiniana e da doutrina da Igreja. E na verdade Santo Agostinho não conhece Graça alguma das suficientes acima mencionadas; distingue uma Graça pequena - Parva, outra grande - Magna. A primeira tem por fim excitar na alma pequenos desejos e alguns pios movimen-tos para o bem; a grande tem por fim vencer a dureza e triunfar da rebeldia da vontade. À primeira chamamos hoje Graça excitante, à segunda Graça Vitoriosa; mas assim uma como outra são eficazes, porque ambas produzem sempre o efeito que Deus quer que produzam. Pode a concupiscência lutar contra a Graça, mas a concupiscência não pode privar a Graça do seu efeito, nem frustrar-lhe o fim para que Deus a quis dar. A vontade de Deus é invencível. Deus quer que a Graça excitante excite pios desejos e há-de excitá-los. Deus quer que a Graça Vitoriosa renda a vontade e há-de rende-la.

    Eis aqui a doutrina de Santo Agostinho; e se esta fosse a doutrina do Catecis-mo, não seria necessário para sustentá-la, recorrer a tantos absurdos, como tenho mostrado e vou mostrar ainda.

    O Bispo e o Dr. Mimoso, não achando provas sólidas para estabelecerem a sua doutrina, aproveitaram o artifício dos Pelagianos. Estes hereges, não sabendo responder aos argumentos dos católicos a respeito do pecado original, diziam que a questão não passava de mera opinião.Santo Agostinho- De peccato orig., cap. 23, num.26. Semelhante artifício usaram os Molinistas: temendo que se publicasse a Bula de Paulo 5.ºcontra os seus erros, espalharam em seus escritos que as questões ventiladas nas Congregações De auxiliis não pertenciam à Fé. Deixo em silencio a história fatal do Bispo Ulfilas, que com o mesmo artifício, arrancou os Godos do seio da Igreja para as trevas do Arianismo; e sem mais demora, pergunto se são meras opiniões as matérias que tenho tratado, isto é, se Deus a ninguém nega a sua Graça; se as obras feitas no estado de infidelidade são virtudes; se existe uma Religião natural? etc, etc, etc.

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    Eu tenho negado, não com conjecturas, não com verosimilhanças e proba-bilidades, mas com as Escrituras e com a Tradição da Igreja. Ora o que se funda em conjecturas e probabilidades é opinião; mas o que se funda na Escritura e na Tradição é verdade certa e divina. Debalde o Dr. Mimoso clama que a autori-dade dos Teólogos é também um lugar teológico, porque se eles não derivam a sua doutrina das duas fontes puras, a Escritura e a Tradição, a sua autoridade é nenhuma. Vemos um sem número de Teólogos Curialistas, Molinistas, Atricio-nistas combatendo todos os dias as verdades soberanas da Igreja; mas se uma verdade da Igreja, porque é combatida, degenera em opinião, segue-se que toda a Religião se torna em um problema, as suas verdades serão todas problemáticas, e cada um será livre ou de suspender o seu juízo, ou de crer o que quiser; e tão irrepreensível será o Curialista que põe o Papa sobre a Igreja, como os Teólogos de Constança que põem a Igreja acima do Papa; tão católico será aquele que confessa a necessidade do amor de Deus para justificar o pecador, como outro que afirma ser bastante o temor servil

    Fique pois certo o P.e Mimoso que a respeito das verdades que devemos crer, a autoridade dos Teólogos, e ainda dos Sumos Pontífices falem ou não falem Ex cathedra, é nenhuma, se eles não a estabelecem com a Escritura e Tradição. Reconheceu esta necessidade o Papa Leão 10, porque, para estabelecer que o Sumo Pontífice é superior a todos os Concílios, disse na sua Bula que esta verdade funda-se na Escritura e Tradição; mas, como sabemos o contrário, não acredita-mos essa Bula, ainda que os Padres do Concílio 5.º Lateranense a subscrevessem. Por este mesmo motivo, 19 Bispos, e mais de duzentos Teólogos de Paris e outras Universidades apelaram da Bula Unigenitus para o futuro Concílio Geral, por se condenarem nela vários pontos de doutrina sem o provarem nem pela Escritura nem pela Tradição.

    Não dissimularei uma objecção do Dr. Mimoso, que à primeira vista parece ter muita força. A Igreja, diz ele, ainda não condenou esta doutrina e é temeridade argui-la logo de erro. Óptima Teologia! Erram contra a Fé os que dizem que os meninos que morrem sem Baptismo não serão condenados ao fogo eterno: mas como a Igreja ainda não condenou solenemente este erro, o Pe. Mimoso pode crer que é verdade. Erram crassamente os que negam a Graça eficaz por si mes-ma, a Predestinação dos Santos Ante praevisa merita, a necessidade do amor de Deus para a justificação do pecador, mas como a Igreja não condenou estes erros execrandos, o Pe. Mimoso pode crê-los como verdades divinas, que a Igreja por uma espécie de monopólio tem fechadas no Depósito da Fé. Mas é necessário que falemos sinceramente.

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    Nós não disputamos hoje aonde existiu o Paraíso Terreal e aonde vivem agora Henoch e Elias, saber isto ou ignorá-lo nada importa para a salvação eterna. A nossa questão é se Deus dá a todos os pecadores a Graça eficaz para a contrição. A questão não pode ser mais importante.

    O Pe. Mimoso e o Bispo de Meliapor afirmam, e pelo modo como me im-pugnam suspeito que não sentem no coração o que dizem nos seus escritos. É desgraçado certamente aquele que não conhece a verdade; mil vezes mais desgra-çado, se conhecendo-a, recusa confessá-la diante dos homens. Que importa que a Igreja não condene o erro, se ela tem ensinado sempre o contrário? É hóspede na Teologia aquele que não distingue o Magistério da Igreja do Tribunal da Igreja, enquanto ao Magistério, a Igreja sempre ensina a verdade; enquanto ao Tribunal, a Igreja sempre condena o erro. Ela sempre ensina a verdade ainda que a ensine por um número mui pequeno dos seus Ministros, porque Deus tem permitido algumas vezes que no seio da Igreja se escureçam certas verdades, que os cristãos não souberam respeitar, mas nunca permitiu que de todo se escurecessem; a sua Providencia para com a Igreja suscitou quando foi necessário Sacerdotes zelosos, os quais posto que perseguidos e aflitos foram sempre fiéis à sã doutrina.

    Enquanto ao Tribunal, a Igreja nem sempre define a verdade; umas vezes porque não é necessário, outras porque não pode. Não é necessário quando as verdades não são atacadas, ou se o erro não toma corpo e foge envergonhado: S. Jerónimo só bastou para dissipar o erro de Helvidio. Outras vezes a Igreja não pode condenar o erro, como aconteceu no Concílio de Constança e Tridentino. O Duque de Borgonha tinha assassinado o Duque de Orleães. João Petit compôs um Livro em que justifica o homicídio: dele são extraídas nove proposições e presentadas ao Concílio de Constança; mas os Padres pelas intrigas do Duque de Borgonha, de nove não puderam condenar senão uma. Outro Religioso Falkem-berg compôs outra obra que continha proposições tão ímpias e heréticas como as de João Petit. O Papa Martinho 5.º que as tinha condenado nas Assembleias particulares de Constança, a instancias dos Cavaleiros da Prússia, não quis con-dená-las solenemente. Mas vamos ao Concílio Tridentino.Tres vezes se agitou a questão, se era de direito divino a residência dos Bispos; se a Igreja definisse que era de Direito Divino, o Papa não podia dispensá-los. O Cardeal Del Monte disse com ar imperioso que não se falasse mais nisso; que esta era a vontade do Papa; e com efeito não é Sarpi, é sim Palavicini e Raynaldo que contam ter o Papa proi-bido que semelhante questão se agitasse no Concílio. Do que tenho dito, segue-se que nós temos obrigação de crer as verdades que a Igreja ensina, ainda que ela as não tenha definido. Mas chegamos enfim a uma questão gravíssima, que tem escandalizado sobremaneira o Dr. Mimoso e é ter eu dito na minha Censura que a Igreja tolera erros, posto que os não ensina. O P. M.e indignado contra mim

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    clama: é pouco decente à Igreja e Mestra, e Mestra zelosa da verdade, tolerar erros, como diz o ilustre Censor, sempre a vi em campo, quando desconfiou de algum erro.

    O P.e Dr. está vendo uma turba de Teólogos clamando que o Papa é superior à Igreja, que ele pode dispensar no Direito natural; que os Bispos recebem dele imediatamente o poder divino de pastorearem as suas ovelhas; mas ainda não viu a Igreja em campo contra estes erros gravíssimos.Um grande número de Teólogos apregoam que os meninos que morrem sem baptismo não são condenados ao fogo eterno; que para justificar o pecador no Sacramento da Penitencia, basta o temor servil; que a Graça de Jesus Cristo não é eficaz por si mesma; que Deus a ninguém nega a sua Graça; que existe uma Religião natural, além da revelada, mas ainda não vimos a Igreja em campo contra estes erros.

    Ainda hoje, não se distinguindo o poder sacramental do poder de jurisdição, como fez S.Tomás, se sustenta até em teses públicas o gravíssimo erro de que a Absolvição sacramental conferida por um legítimo Sacerdote sem a licença do Bispo, é nula. Ainda hoje se crê, que sendo o sacrifício instituído por Cristo para bem de todos os vivos e de todos os justos que morreram; contudo o que dá a esmola para a Missa pode dispor dele a seu arbítrio e aplicá-lo para o fim que lhe parecer; que o que dá a esmola recebe mais fruto celeste do que outro que não dando nada, assista todavia com fé mais viva, e com caridade mais ardente.

    Mas que direi eu já do Santo Padre Clemente 11, o que na sua Bula Unigenitus condenou 101 proposições do P.e Quesnel? Ainda hoje nos horrorizamos, quando vemos condenada pelo 1.º Pastor a verdade e doutrina mais pura de nossos Pais; mas não vimos em campo a Igreja contra a bula Unigenitus. Ora a Igreja não ensina os erros, que acabo de numerar; não os aprova; não os condena solene-mente; logo tolera. Se a palavra “tolerar” parece indecente ao P.M.e e indecorosa à Igreja não se queixe de mim, repreenda o seu Padre Santo Agostinho, o qual na Epist, 55, num. 35, diz: Ecclesia Dei inter multam paliam, multaque zizania constituta toleret; et tamen quae sunt contra fidem, vel bonam vitam non appro-bat, neque tacet, nec facit. Não aprova, porque é Mestra da Verdade; não se cala, porque sempre argue o erro, ainda que muitas vezes o faça por mui poucos dos seus Ministros, como acima disse; não o faz porque é Santa. Cuido que o P.M.e equivocou “tolerar” com “dissimular” que são coisas bem diversas. Quem sabe distinguir o Magistério da Igreja do Tribunal da Igreja, sabe que “tolerar” é não condenar solenemente.

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    A respeito das Indulgências

    O Tesouro da Igreja que compreende os merecimentos de Cristo com os merecimentos dos Santos é uma invenção dos Escolásticos e uma novidade do século 12, como disse na minha Censura. Nem o Bispo nem o Dr. Mimoso pude-ram nunca mostrar, ou na Escritura, ou nos Padres ou nos Concílios o mais leve vestígio deste Tesouro; e por isso com toda a segurança digo que o Catecismo, em lugar de doutrina da Igreja, ensina os sonhos e delírios dos séculos da ignorância. Este só argumento é mais que suficiente para fazer ver a falsidade do dito Tesouro; porque, segundo S. Jerónimo é refutar solidamente o erro mostrar o dia do seu infausto nascimento, mas agrada-me ajuntar as reflexões seguintes:

    1.ªO Tesouro da Igreja são os merecimentos de Cristo. Estes merecimentos ou são infinitos ou não; se são infinitos, ao infinito nada pode acrescentar-se; dizer que não são infinitos é dizer uma horrenda heresia.

    2.ªOs merecimentos dos Santos não são senão os merecimentos de Cristo aplicados aos Santos; porque Deus é tão bom que quis que os puros dons de sua Misericórdia fossem merecimentos nossos. Logo ajuntar os merecimentos dos Santos aos merecimentos de Cristo é o mesmo que ajuntar merecimentos de Cristo aos merecimentos de Cristo, ideia esta tão absurda como extravagante.

    3.ªEstou pronto para acreditar o dito Tesouro Escolástico, se o Bispo de Meliapor me provar que os Santos poderão satisfazer a Deus mais do que lhe deviam; mas eis aqui o que nem ele, nem o Dr. Mimoso, nem ninguém poderá nunca persuadir-me; porque eu sei que a caridade perfeita não é desta vida; que a fome e sede de Justiça não se há-de saciar senão no Céu; que nesta luta com a concupiscência quase sempre somos feridos; que, à excepção de Cristo Jesus e de Maria sua Mãe, aquele porque era Deus impecável por natureza; Maria porque foi privilegiada pela Graça, todos os mais filhos de Adão tiveram sempre que chorar ante o Trono daquele Deus infinitamente Santo: a mesma negligencia que em nós há de nos santificarmos cada vez mais, nos torna imperfeitos aos seus Divinos Olhos; todos os dias havemos dizer com verdade o que o Divino Mestre nos ensi-nou: Perdoai-nos as nossas dívidas, porque como diz S. João: se dissermos que em nós não há pecado, a nós mesmos nos enganamos, e em nós não há virtude.

    Só o Pelagiano pode dizer que o Santo Evangelista manda-nos confessar isto por humildade e não por que seja verdade, mas o concílio Arausicano 2.º fulminou anátema contra este erro execrando. Ora, se os Santos todos são devedores a Deus que merecimentos têm eles para nos deixar?

    Parece-me, pois, que se deve riscar do Catecismo o dito Tesouro inventado pelos Escolásticos, a que deu ocasião o Potest dici de Alexandre de Ales; e em seu lugar pôr estas duas verdades da Religião:

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    1.ª Que na Igreja há um verdadeiro Tesouro e de uma riqueza inexaurivel que são os merecimentos infinitos de Cristo e a satisfação superabundante que ofereceu por nós a seu Eterno Pai, pela qual nos mereceu o Céu e os meios de o conseguir, como são a Graça, os Sacramentos, o poder de ligar e desligar.

    2.ªQue uma obra feita em Graça por aquele que tinha pecado, satisfaz a Deus pela culpa, e merece o céu: uma obra feita por aquele que não tivesse pecado, não satisfaz a Deus pela culpa que não cometeu, mas merece o aumento de Gloria.

    Diz o Catecismo: A aplicação do Tesouro da Igreja é feita pelo Sumo Pontífice ou por aquele a quem o Papa dá comissão. Opus-me na minha Censura, porque não posso ver abatida aos pés do Papa e da Cúria a sagrada autoridade dos Bispos; autoridade tão grande na Igreja, que o mesmo Cristo enquanto Homem não a teve maior; autoridade necessária que S. João Crisóstomo não duvidou dizer que um Bispo deve perder a vida antes do que consentir que ela lhe seja diminuída.

    Mas ouçamos a voz da Igreja Católica: O Bispo que não conservar a sua dignidade, em toda a sua inteireza, seja suspenso. 8.º Concílio Geral, can 14.

    Ora eu cheio desta doutrina e penetrado do profundo respeito que se deve à Dignidade Episcopal, não podia consentir o ensinar-se num Catecismo que os Bispos concedem Indulgencias por comissão do Papa e a razão é bem clara. A Indulgencia é um acto de Jurisdição e o Papa não tem Jurisdição imediata sobre os súbditos alheios, nem como Bispo de Roma, nem como Primaz da Igreja: como Bispo é igual aos outros Bispos; como Primaz ou Irmão mais velho, não tem senão superintendência e inspecção sobre cada um do Bispos em particular, para vigiar se eles ensinam a sã doutrina; se observam os Cânones; adverti-los se são negligentes em observá-los; e puni-los, enfim, com as penas canónicas, se forem rebeldes e refractários; e para que diga tudo em poucas palavras, o Papa não tem Jurisdição sobre cada um dos Bispos, nem sobre os seus súbditos, senão em caso de abuso, como podia ser, por exemplo, se um penitente, tendo causa justa para ser absolvido da penitencia, o Bispo injustamente lhe negasse a indulgencia.

    Há outro caso em que o Papa pode conceder a Indulgencia validamente aos seus súbditos e é quando ele concede pelo consentimento dos Bispos; mas isto mesmo prova que ele não pode delegar uma Jurisdição que não tem; e que os Bispos, não por comissão, como diz o Catecismo, mas pelo poder divino que receberam imediatamente de Deus, podem por justas causas absolver os seus súbditos respectivos da penitência canónica, ou conceder-lhes a Indulgencia que é o mesmo.

    O Bispo de Meliapor, parecendo-lhe melhor os abusos presentes que a doutrina da Igreja, a qual se podia provar com muitos monumentos da venerável antiguidade, pretende impugnar-me, não com argumentos mas com declamações vagas, que não querem dizer nada. O Censor, diz ele, quer que os Bispos con-

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    cedam as mesmas Indulgencias que o Papa, e que aqueles sejam iguais a este: E não é esta uma acusação terrível! Respondo: se eu quero, como o ilustre Prelado supõe, que os Bispos concedam as mesmas Indulgencias que o Papa, não quero senão uma coisa muito justa; porque a concessão das Indulgencias não pertence à Primazia, pertence sim ao Bispado, e os Bispos têm todo o poder divino para ligarem e desligarem os seus súbditos sobre a Terra; e se o Bispo de Roma tem poder para conceder Indulgencias aos Portugueses, também os Bispos de Portugal podem conceder as mesmas Indulgencias aos Romanos; o que seria transtornar a disciplina, confundir as jurisdições, e meter a foice na seara alheia. Mas quando veremos os Sumos Pontífices contidos nos limites que a Igreja lhes prescreve? Quando veremos os Bispos padecerem os cárceres, o desterro, e a morte por não perderem um só apyse daquela divina autoridade, sem a qual não podem pastorear a Grei que Jesus Cristo confiou ao seu cuidado?

    O Catecismo admite a Indulgencia pelos defuntos; não consenti que se en-sinasse ao Povo semelhante falsidade pelas razões seguintes:

    A Indulgencia é a diminuição da pena canónica. A pena canónica é pena humana posta pela Igreja; a pena do Purgatório é pena divina posta por Deus.

    Os penitentes públicos sujeitam-se à pena canónica voluntariamente; os justos no Purgatório sujeitam-se à pena divina necessariamente.

    O fim da pena canónica era para fazer tornar em si o pecador, para dar tem-po à Igreja de segurar-se de sua conversão; para reparar também os escândalos que tinha dado; a pena do Purgatório não tem outro fim senão o de satisfazer à divina Justiça.

    A pena canónica é posta pela Igreja; a Igreja pode remiti-la; a pena do Pur-gatório é posta por Deus e só Deus pode perdoá-la. A Igreja não tem poder senão de ligar e desligar sobre a Terra, mas não tem poder para revogar os Decretos Divinos, nem para desligar o que ela não ligou. Ultimamente nenhum Concílio, nem o Tridentino, nenhum Santo Padre ensinou a Indulgencia pelos Defuntos; logo a doutrina do Catecismo do Funchal é não só uma novidade, mas uma fábula e uma quimera.

    Mas perguntará alguém: a Igreja não tem caridade com os defuntos? Tinha, respondo eu; eis aqui o que ela praticava: um penitente público era tratado como excomungado, e separado do comercio dos fiéis; se morria antes de ser reconciliado com a Igreja, não se lhe podia dar sepultura eclesiástica, nem fazer-lhe sufrágios, nem orar por ele publicamente, nem oferecer o Santo Sacrifício pela sua alma. A Igreja cheia de Caridade removia estes obstáculos e mandava que a sua memória fosse recomendada com orações e oblações por me servir das mesmas palavras do Concílio 6.º de Cartago, cânon 19.

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    Mas a Igreja removendo os obstáculos que impediam os Fiéis de orarem pelos penitentes defuntos nunca pensou que podia tirar as almas do Purgatório em certos dias do ano, nem ligar indulgencias plenárias aos altares privilegiados, nem perdoar-lhes tantos mil anos e outras tantas quarentenas de jejum.

    Refutam-se as objecções do P.M.e

    1.ª O Censor, diz ele, negará que a Igreja possa fazer o que cada um Fiel utilmente faz, aplicando os merecimentos de Cristo e dos Santos a bem dos De-funtos?

    Respondo: o P. M.e mostra não ter ideia justa da Indulgencia, porque a con-funde com o sufrágio. A Indulgencia é um acto de Jurisdição que só a Igreja pode exercitar sobre a terra pela autoridade que recebeu de Cristo; sufrágio é um acto de Caridade que qualquer criança pode fazer. A Igreja, concedendo Indulgencia, não dispensa o pecador de fazer penitência, a qual é de Direito Divino; supre sim pelos merecimentos de Cristo a que ele não pode fazer. As Indulgencias nos belos séculos do Cristianismo não estavam escritas em tabelas, com vemos hoje penduradas nas sacristias; a Igreja não as dispensava, senão com conhecimento de causa e à proporção da necessidade do penitente. E é esta noção exacta da Indulgencia aplicável às almas do Purgatório?

    2.ª O Censor, diz o Dr. Mimoso, parece negar a Comunicação dos Santos. Ó Céus, vós sabeis quão pura é a minha Fé! Creio firmemente que a Igreja é uma só, que principia a militar na terra, passa ao Purgatório a curar as feridas, que recebeu no campo de batalha, e sobe depois ao Céu a empunhar a palma do triunfo. Com todas estas tres porções da Igreja comunicamos nós. Mas como comunicamos nós com a Igreja Purgante? Eu digo: com as orações, jejuns, esmolas, e sobretudo com o Santo Sacrifício; mas orações, jejuns, esmolas, e Sacrifício, não são Indulgencias, ou um acto de Jurisdição, pelo qual a Igreja solte os que não tem ligado. Deus é quem liga com a pena as almas do Purgatório: a Igreja porém não é superior a Deus para embaraçar a execução dos seus Decretos; ela sim pode orar, e interceder, para que o Senhor mitigue o rigor da pena, ou enquanto à sua intenção, ou enquanto ao tempo; mas orar e interceder não é exercitar autoridade nem jurisdição nenhuma.

    3.ªO P. M.e argumenta com a Bula de Leão 10 Exsurge Domine, na qual o Papa excomunga os que não crerem que assim os vivos como os defuntos conseguem pelas Indulgencias tanta remissão da pena temporal quanta elas concedem. Eu porém, não devo temer a excomunhão injusta; porque ainda que

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    o Papa me separe da sua comunhão, não pode separar-me da comunhão interna da Igreja nem da sua Cabeça Jesus Cristo. Muito menos temo as excomunhões Latae sententiae; porque ainda que o Papa queira, a Igreja não quer que eu, sem contumácia, único caso para a excomunhão, seja separado do seu grémio. Mas é verdade dizer que o Santo Padre Leão 10 foi melhor político que teólogo:1.º, porque na sua Bula Pastor Aeternus que os Padres do Concílio Lateranense5.º, quase todos italianos, subscreveram sem exame, afirma que o Sumo Pontífice tem autoridade sobre os Concílios Gerais, e que isto é constante pela Escritura, Santos Padres e Concílios; o que tudo é falso; 2.º, porque aproveitando as circunstancias em que se achava Francisco 1.º, Rei de França, aboliu a Pragmática Sanção; e posto que ela era fundada nos Decretos do Sagrado Concílio de Basileia, ele Papa a tratou de corrupção, porque restituía as eleições canónicas e proibia as anatas; 3.º, porque renovou a Bula Unam Sanctam que atribui ao Sumo Pontífice o po-der de destronar os Reis e Príncipes Soberanos; 4.º, Porque mutilou o v.º 12 do capit. 17 do Deuteron. que ele por engano intitulou do Liv. dos Reis. O Verso é: Nolens obedire Sacerdotis imperio, et Decreto Judicis, moriatur. Segundo o Deu-teronómio, para ser réu de morte eram necessárias duas coisas; não obedecer ao império do Sacerdote e obedecer ao Decreto do Juiz. Leão 10 omitiu as palavras: Et Decreto Judicis.

    Terceiro Ponto

    O Bispo acusa-me, não sei com que fundamento, de ter eu duvidado do Primado de S. Pedro. Alguns que têm lido o contrário nos meus escritos pensam que ele, irritado de me ter oposto ao seu Catecismo, esquecido de que além dos Apóstolos, pôs Deus na sua Igreja Evangelistas, Profetas, Doutores e Pastores para a perfeição dos Santos, pretendeu fazer-me odioso com tão horrenda calúnia. Tamanho crime porém não pode presumir-se de um Bispo estremado em toda a sorte de virtudes: julgo antes que ele crê duvidar eu do Primado de S. Pedro, porque não creio o primado da Cúria.

    O Primado de S. Pedro creio eu firmemente; o Primado da cúria, qual os Curialistas o pintam; este Primado pelo qual os Reis são vassalos do Papa, os Bispos seus oficiais, e a Igreja sua escrava; este soberbo colosso que vai topetar com as nuvens e que não tem podido suster-se senão à custa de mil sacrifícios e impiedades; este Primado, digo, é o que eu não só tenho negado, mas que não poso deixar de combater, sem ser traidor à minha Pátria, à Igreja, e à mesma Santa Sé, como logo mostrarei. Agora detestando, como detestei sempre, os erros de Wiclef, de João Huss, de Lutero e de Calvino, detestando igualmente as lisonjas e ímpias máximas do curialismo, peço a V. A. R.se digne atender à segurança com que a minha Fé caminha, por entre a heresia e a impiedade.

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    Profissão de FéArtigo 1.º“Creio firmemente que Jesus Cristo instituiu um Primado na sua Igreja,

    para conservar a unidade e evitar o cisma. Que este Primado não foi ligado ao local de Roma, mas sim à Pessoa de Pedro e de seus legítimos superiores. Que a Igreja pode eleger em Primaz outro qualquer Bispo, sem ser o Romano; porque o Primado é de direito divino, mas a eleição da Pessoa é de Direito Eclesiástico, o que provarei com o cânon 28 do Concílio de Calcedónia, assinado por mais de duzentos Bispos, no qual se afirma que os Padres tem dado o Primado à Igreja de Roma: se forem necessárias mais provas, produzirei não só vários monumentos da antiguidade, mas Teólogos destes últimos séculos, e um deles será Domingos Sotto, Teólogo espanhol, que no Comentário sobre o 4.ºdas Sentenças diz que a Igreja pode mudar a Sé do primeiro dos Bispos, ou ordenar que o Primaz não tenha Sé nenhuma particular, mas que se empregue somente em vigiar a Igreja Universal.

    Artigo 2.ºCreio firmemente que este Primado divinamente instituído é não só de

    honra, mas de jurisdição também; que o Papa tem esta jurisdição sobre cada um dos Bispos, mas nunca sobre a Igreja Universal; que a jurisdição que o Primaz tem sobre cada um de seus colegas no Episcopado não é imediata, porque cada Bispo recebe imediatamente de Deus pelo Ministério da Igreja todo o poder para pastorear no seu rebanho, e por isso o Primaz, sem o consentimento dos Bispos não só não pode exercer função alguma episcopal na diocese alheia, mas nem ainda acto algum de jurisdição como Primaz, salvo se o Bispo for transgressor dos cânones, ou dos usos geralmente recebidos na Igreja, ou, enfim, noutro algum caso prescrito pela mesma Igreja Universal. O que provarei com S. Cipriano; Santo Epifânio; com os concílios de Constantinopla, Angers, Salegunstad, com o facto de Marcião, e outros de que abunda a Historia Eclesiástica.

    Artigo 3.ºCreio firmemente que o Primaz não tem jurisdição nenhuma sobre a Igreja

    universal, como aquele que é súbdito, e tanto súbdito, que a Santa Igreja pode julgá-lo, excomungá-lo, depô-lo e puni-lo canonicamente, se ele for tão infeliz que caia na heresia ou escandalize a Igreja com seus vícios. Alegarei para prova desta verdade o Papa Honório, excomungado depois de morto; João 12 e João 23 ainda que vivos. Se algum duvidar, produzirei o facto do Papa Dâmaso, e Xisto 3, a doutrina dos mais célebres Teólogos, entre eles o jesuíta e Cardeal Belarmino, o

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    qual diz: Fora desgraçada a condição da Igreja, se fosse obrigada a sofrer um lobo em lugar de um Pastor; e se isto não bastar, ajuntarei os decretos de três concílios Gerais, o 8.º, de Constança e o de Basileia.

    Artigo 4.ºCreio firmemente que a jurisdição do Primaz se emprega somente em dois

    objectos: em manter a pureza da Fé e a Santidade da disciplina. Eu entendo por Fé o complexo daquelas verdades divinas que a Igreja recebeu dos Apóstolos, os Apóstolos de Jesus Cristo e Jesus Cristo de Deus seu Pai; aquelas verdades so-beranas, que a Igreja assistida do Espírito Santo tem constantemente ensinado, aquilo, enfim, quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum fuit. Mas não tenho de Fé, antes nego e detesto de todo o meu coração a ímpia doutrina do Curialismo. Tal é: que o Papa pode fazer do branco preto; do quadrado redon-do; da injustiça justiça; que ele pode faltar à fé pública, porque os pactos, ainda solenizados com juramento, somente ligam o Imperador e os Reis; que ele pode dispensar do Direito natural; que pode tudo sobre o Direito, contra o Direito, e fora do Direito; que um Rei excomungado pelo Papa não dando em certo prazo de tempo satisfação à Sé Apostólica, fica por isso privado do Reino e os Vassalos desligados do juramento de fidelidade; que a plenitude do poder espiritual reside nele e que os Bispos não exercitam as funções episcopais, senão como seus delega-dos; que a primeira Sé não pode ser julgada por ninguém; que o Papa nas coisas que quer não tem outro motivo senão a sua vontade; máxima esta que os mesmos consultores de Paulo 3.º a compararam ao cavalo de Tróia donde têm saído todos os absurdos. E por não gastar mais tempo: o Papa, segundo os Curialistas, tem poder no céu, na terra, no purgatório e no inferno: no céu, porque pode canonizar qualquer defunto ainda que os Bispos e Cardeais não queiram; na terra, porque é Senhor de todas as Coroas; pode depor os Reis do Trono e dar o Reino a quem ele quiser; no purgatório, porque com as suas indulgências pode livrar quantas almas estão neste estado de pena; no Inferno, porque pode precipitar nele multidão de almas, e ninguém pode perguntar-lhe por que obra assim.

    Eis aqui não todos, mas os mais principais dogmas da Cúria. Negar algum é, segundo a sua Teologia, atacar o Primado de S. Pedro; é ser herege, é ser réu digno de morte. Lembra-me a este respeito o que aconteceu ao Bispo de Cádis no concílio de Trento: sustentava este digno Prelado que um Bispo, eleito segundo os antigos cânones, era um verdadeiro Bispo, ainda que não fosse eleito pelo Papa; os italianos, tendo à testa Simonetta, legado de Paulo 4.º, gritaram que era herege, e que devia ser lançado fora do Concílio, e até devia ser queimado.

    Mas continua a nossa Profissão de fé. Disse eu há pouco que um dos objectos da jurisdição do Primaz era manter

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    a disciplina: eu, porém, não entendo por disciplina as regras da chancelaria ro-mana, pelas quais os Papas desde o século 14 começaram a reservar a si todos os Bispados e Arcebispados da cristandade, com injúria não só dos Metropolitanos, Sínodos Provinciais e Cabidos, se não até dos padroeiros leigos e dos mesmos Reis: não sofreram tamanha injúria os nossos Soberanos, porque o senhor D. Afonso 5.º desnaturalizou a D. Álvaro de Chaves por ter aceitado de Pio 2.º o Bispado da Guarda; o Senhor D. Manuel não consentiu que fosse Arcebispo de Braga um Cardeal romano que Alexandre 6.º tinha nomeado; o Senhor D. João 3.º recusou para Bispo de Viseu o cardeal Farnesi, ainda que Paulo 3.º seu tio o tivesse eleito. Donde se vê que os nossos Reis conheciam os seus direitos, e não conheciam por disciplina eclesiástica as regras da chancelaria romana.

    Eu também não conheço por disciplina da Igreja Universal as decisões dos Cardeais intérpretes do Concílio Tridentino, tais como aquela do ano de 1594, em que se ordena que os decretos dos Concílios Provinciais não podem publicar--se, Inconsulto Romano Pontífice e não tenho também por disciplina da Igreja as decisões de outras Congregações de Roma, as quais o Santo Padre Sisto5.º achou tão úteis que só ele instituiu e aperfeiçoou 5. A sua autoridade, porém, é nenhuma em França, porque os franceses, assim como os sábios Teólogos e Canonistas de Portugal, estão intimamente persuadidos que só a Santa Igreja instituída por Cristo, e não os Tribunais de Roma de uma instituição puramente humana, pode fazer decretos de Fé ou de disciplina para toda a cristandade. Se eu me engano peço à Cúria romana queira para minha instrução mostrar-me donde lhe provem esse direito que, a meu ver, não é senão uma usurpação da soberana autoridade da Igreja.

    Do que tenho dito concluirá alguém que eu não quero alguma disciplina, mas engana-se; porque eu quero e profundamente respeito a disciplina geral da Igreja, qual no-la prescrevem os Santos Cânones, ditados pelo Espírito de Deus, e consagrados pelo respeito e observância de todo o orbe cristão. Cânones que os Papas nos belos dias da Igreja tremiam de infirmar; cânones que eles até ao século 12 juravam solenemente de observar, e que ainda hoje não podem ser violados sem se insultar a Igreja, sem se escandalizar a Cristandade, sem se ofender a Deus. Digo sem se ofender a Deus, porque ainda que os Santos Câno-nes, Augusto Príncipe, não fossem revelados, como não foram alguns Livros da Sagrada Escritura, contudo a Santa Igreja é assistida do Espírito Santo para não estabelecer uma disciplina contra a Fé, contra os bons costumes, ou contrária à boa ordem. Podem as suas leis disciplinares serem algumas vezes menos úteis, ou menos adequadas aos fins que ela se propõe, mas nunca podem ser opostas à Lei de Deus. Mr.L’Enfant, arguindo o concílio de Constança, não se lembrou de que os Apóstolos e Presbíteros no Concílio de Jerusalém, assim nos pontos de

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    doutrina, como nos de disciplina, disseram: Visum est Spiritui Sancto et nobis, e que Jesus Cristo, mandando-nos obedecer à Igreja, sob pena de sermos tidos por gentios e publicanos, por este mesmo preceito e ameaço, nos segura de que ela nunca mandaria coisas injustas. Poderá Mr. Jurieu opor-me vários decretos do Concílio Tridentino, como a resposta, porém, deve ser extensa, ficará para ocasião mais oportuna. Agora só direi com toda a segurança a V.A.R. que é Protector da Santa Igreja, e com especialidade da Igreja Lusitana, que ninguém, nem mesmo o Papa pode dispensar-se de obedecer aos Santos Cânones recebidos pela Igreja Universal, e muito menos aboli-los para lhes substituir as regras da chancelaria e as decisões das Congregações de Roma.

    Artigo 5.ºCreio firmemente que o direito de convocar o Concílio, ou Nacional ou Ge-

    ral, era do Imperador: não só os Concílios de Arles em 314, o de Sardica e o de Rimini, mas também os primeiros oito Concílios Ecuménicos são uma prova desta verdade. Dividido, porem, o Império em diversas soberanias, e sendo impossível que um só soberano pudesse ajuntar num só lugar todos os Bispos da cristandade, esta é a razão por que o Direito de convocar um Concílio Geral foi devolvido ao Primaz da Igreja; mas se este recusar de convocar um Concílio necessário para abater a heresia, ou para reformar a Igreja na sua cabeça e nos seus membros, os Soberanos podem convocá-lo, como Protectores que são da Igreja Universal e cada um com especialidade da Igreja particular do seu Reino. Este Concílio convocado pelos Soberanos e celebrado segundo as regras canónicas será tão geral e verdadeiro como foram o de Niceia convocado por Constantino Magno, o de Constantinopla por Teodósio, o de Éfeso por Teodosio o Moço, o de Calcedónia por Marcião, o 2.º de Constantinopla por Justiniano, o 3.º de Constantinopla por Constantino Pogonato, o 2.º de Niceia pela Imperatriz Irene e seu filho Constan-tino, o 4.º de Constantinopla pelo Imperador Basílio.

    Isto posto, confesso que o Papa, como o primeiro dos Bispos, tem direito de presidir aos Concílios Gerais, ou estes sejam convocados por ele com o consen-timento dos Soberanos ou convocado pelos mesmos Soberanos, mas não têm direito para embaraçar nem iludir a reforma da Igreja, como fez Martinho 5.º, pois tendo os Padres de Constança na sessão 40 proposto dezoito artigos de re-forma, vendo-se eleito em Papa, e não querendo a reforma dos Cardeais nem da sua Corte, apesar das instancias dos Alemães, Franceses e Espanhóis, de dezoito artigos que eram, apenas pôs em prática seis.

    Confesso mais que o Papa, tendo direito de presidir ao Concílio, não tem direito para interrompê-lo, nem transferi-lo, nem dissolvê-lo sem o consentimen-to unânime do mesmo Concílio, que representa a Igreja Universal. Eugénio 4.º

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    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    quis dissolver o Concílio de Basileia, mas os Padres na sessão 32 estabeleceram como verdade de Fé católica que o Concílio Geral é superior ao Papa, e que não pode ser dissolvido nem transferido sem o consentimento do mesmo Concílio. Ignorava certamente esta verdade de fé católica o Santo Padre Paulo 3.º quando por seu próprio movimento, de ciência certa e pela plenitude do seu poder apos-tólico, autorizou os seus Legados para transferirem o Concílio para outra cidade que lhes parecesse mais cómoda e cessarem e dissolverem o que se celebrava em Trento. Raynaldo, ano de 1545. Ignorava esta verdade de fé católica o Santo Pa-dre Júlio 3.º quando na sua bula de convocação, datada em 14 de Novembro de 1550, declara que ele como Soberano Pontífice tem direito não só de indicar os Concílios Gerais, mas também de dirigi-los. Ignorava esta verdade de Fé católica o Santo Padre Leão 10.º, o qual na sua bula Pastor Aeternus diz expressamente que só o Romano Pontífice tem autoridade sobre todos os concílios para convocar, transferir e dissolver. O que me faz porem maior horror é dizer o Santo Padre que isto consta, não só da Sagrada Escritura, dos Santos Padres, dos Romanos Pontífices, mas até pela confissão dos mesmos Concílios. E que oitenta Bispos, quase todos italianos, vendo atacada tão falsa e injustamente a superioridade da Igreja, emudecessem: Pois emudeceram.

    Confesso também que os Legados do Papa tem direito a representarem a Sé particular de Roma, quando vêm munidos do voto do Clero romano. Victo e Vicente, legados de S. Silvestre, não presidiram ao Concílio Geral de Niceia. Ozio de Córdova presidiu ao Concílio de Sardica, posto que estivessem presentes os dois Legados do Papa Júlio. Os Legados todavia podem presidir e com efeito têm presidido, mas pelo consentimento dos Padres, que quiseram deste modo honrar a cadeira de S. Pedro. É bem para desejar que sendo necessário nestes dias tristes da Igreja um Concílio Geral para dar a paz à inocente Igreja de Utrecht, para restabelecer as eleições canónicas, para destruir de uma vez a escandalosa simonia das Anatas, abolir as dispensas e reservações de Roma; sujeitar os Monges aos Bispos, seus legítimos superiores, e fazer entrar os Bispos no exercício do poder que receberam imediatamente de Deus, e que só a Igreja Universal pode coarctar; é bem para desejar, sim, que os Legados do Papa não presidissem a este Concílio, para não iludirem a reforma, como iludiram no Concílio Tridentino.

    Que católico poderá conter as lágrimas quando recordar a triste historia desta respeitável Assembleia? Há mais de dois séculos que as suas Actas estão encarceradas no Castelo de Sant’Angelo. Ó atentado nunca lido na Historia! As Actas de um Concílio Geral não pertencem ao Papa; não à Cúria romana; são da Igreja, são da Cristandade, temos direito a elas, queremos vê-las. Mas Deus, que lá do seio da Luz inacessível, onde habita, está rindo da loucura dos mortais, não permite que de todo se nos escondessem as fraudes e violências de que usaram os

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    Legados para sacrificarem a causa da Igreja às pretensões iníquas da Cúria. Não é Paulo Sarpi, é Palavicino, Raynaldo e Visconti, Núncio secreto do Concílio, a quem Pio 4.º prometeu o barrete de Cardeal, para agradecer da sua parte aos Bispos que tinham favorecido os interesses da Cúria, e intimidar aos que se lhe opusessem; é o virtuoso Vargas, Embaixador de Carlos 5.º; Du Terrier, Embai-xador de França, cuja fidelidade quiseram corromper; é Lansac, é o Conde de Luna e outros, de quem sabemos as violências com que os Legados trataram os Padres Tridentinos.

    Os Legados arrogaram logo a si o direito de proposição: os Bispo, o Clero, os Embaixadores, ninguém enfim, podia propor as matérias pertencentes à reforma. Era esta uma injúria aos pastores da primeira e segunda ordem e aos mesmos Soberanos: clama contra ela o Bispo das Astúrias, mas logo é repreendido pelo Legado o Cardeal Del Monte. O mesmo Legado trabalhou quanto pôde por expulsar do Concílio o Bispo de Fiesole, por dizer que os bispos são Vigários de Cristo sobre a terra. O Cardeal Crescencio, Legado de Júlio 3.º, teve a ousadia de mandar calar e chamar insolente ao bispo de Alise, espanhol, por sustentar que os Bispos recebem o poder de Deus e não do Papa. O mesmo Legado chama estouvado, louco e criança ao Bispo de Verdun, porque disse com toda a verdade, que a reforma que propunham os Legados era uma aparente reforma. Com razão disse Vargas, escrevendo ao Bispo de Arrás: o Legado é sempre o mesmo; tem perdido toda a vergonha; trata os Bispos como escravos. Os Legados, enfim, de mãos dadas com os Papas, embaraçaram que se definissem as verdades soberanas da mesma Religião, como são: que a residência dos Bispos é de direito divino; que os Bispos recebem o poder espiritual imediatamente de Deus, chegando a tanto a maledicência que um Concílio que todo o Orbe Cristão supunha ecuménico não pôde dizer que representava a Igreja Universal.

    Esta é a minha Profissão de Fé a respeito do Primado de S. Pedro: talvez tenha parecido extensa; foi porem necessário separá-la das ímpias máximas do Curialismo; ajuntar-lhe algumas provas, e isto é o que a faz parecer grande, porque ela em si não contém senão três artigos: 1.º que Jesus Cristo instituiu na sua Igreja um Primado; 2.º que este Primado é não só de honra, mas também de jurisdição; 3.º que o exercício desta jurisdição divina está sujeito aos cânones e Leis da Igreja. Os primeiros dois artigos confessam todos os católicos; o terceiro irrita soberanamente a Cúria Romana, porque ainda o céu não lhe abriu o coração para crer que a Igreja Universal é superior ao Papa e o Papa sujeito à Igreja Universal: dogma este fundado no Evangelho, dic Ecclesiae; fundado na Tradição; definido, enfim, pelos Concílios de Constança e de Basileia.”

  • 283

    CENSURA DO CATECISMO DO BISPADO DO FUNCHAL

    Até aqui tenho mostrado o que creio firmemente; agora peço licença a V.A. para mostrar o que nego absolutamente.

    Nego que os Papas em razão do seu Primado tenham direito para governarem as Feiras que se fazem nos Reinos estrangeiros: Eugénio3.º mandou ao Arcebispo de Sens e outros Bispos de França que não consentissem os camponeses de Vézelay nas Feiras, que se faziam nos seus Bispados, e no caso de irem, seus diocesanos os prendessem e se apoderassem dos seus bens e mercadorias.

    Nego que os Papas possam proibir os Soberanos de se vestirem com os or-namentos próprios da sua dignidade. Clemente5.º proibiu ao Doge de Veneza de usar dos vestidos e insígnias que lhe convinham, enquanto os Venezianos não largassem Ferrara, que ele Papa queria para si.

    Nego que os Papas possam governar as Escolas dos Reinos estrangeiros. Honório3.º proibiu severamente em França o estudo do Direito Civil, e mandou aos Bispos excomungar aqueles que o ensinassem ou aprendessem. Gregório9.º achou esta resolução tão útil que a inseriu nas Decretais, para ser uma Lei da Igreja Universal. (Cap. 28 de Privilegiis).

    Nego que os papas em virtude do seu Primado possam obstar às leis que os Soberanos estabeleçam para o bem público dos seus Estados. Paulo 5.º não só fulminou toda a sorte de penas contra os Estados de Veneza, mas ameaçou de persegui-los com guerra, porque o Senado proibiu a introdução de novas Ordens religiosas sem sua licença.. Porque mandou que as Igrejas não pudessem adqui-rir bens de raiz sem o seu consentimento, e porque puniu dois clérigos, réus de enormes crimes.

    Nego que os Papas em virtude do seu Primado possam fazer a guerra a ninguém. Inocêncio3.º mandou pregar uma cruzada contra o Imperador Frederico 2.º; Alexandre 4.ºoutra contra os de Colónia, e Pascoal 2.º, não querendo o clero de Liege reconhecer por válida a deposição de Henrique 4.º, mandou a Roberto, Conde de Flandres, que devastasse a ferro e fogo a Igreja de Liege, assim como já por seu mandado tinha devastado a Igre-ja de Cambrai; segurando-lhe que este era o sacrifício mais grato, que ele e seus soldados podiam oferecer a Deus para remissão dos seus pecados e para segurarem a posse da Jerusalém Celeste.

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    CÂNDIDO DOS SANTOS

    Nego que os Papas possam pela autoridade do seu Primado embaraçar a paz dos Estados. Paulo 4.º fez todo o possível para que a França não fizesse a paz com a Casa de Áustria, ameaçou de amaldiçoar todo aquele que tivesse semelhante ideia; jurou aos Embaixadores de França pelo Deus Eterno que se eles tivessem parte neste negocio, lhes faria saltar a cabeça fora dos ombros, e que ao mesmo Delfim nunca lhe perdoaria.

    Nego que os Papas em virtude do seu Primad