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O papel da literatura na escola REGINA ZILBERMAN UFRGS – FAPA RESUMO: ESTE TEXTO PRETENDE DISCUTIR ALGUMAS QUESTÕES SOBRE A LEITURA LITERÁRIA E O PAPEL DA LITERATURA NA ESCOLA, SEUS PRESSUPOSTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS E O PRAGMATISMO DAS ATIVIDADES PEDAGÓGICAS ENVOLVIDOS NES- SA ESPECIFICIDADE DE LEITURA. ABSTRACT: THIS PAPER WILL DISCUSS SOME QUESTIONS ABOUT THE LITERARY REA- DING AND THE ROLE OF LITERATURE IN SCHOOL, THEIR HISTORICAL AND THEORE- TICAL ASSUMPTIONS AND PRAGMATISM OF THE ACTIVITIES INVOLVED IN SPECIFIC TEACHING OF READING. PALAVRAS-CHAVE: LEITURA – LITERATURA – ESCOLA – HISTÓRIA KEY-WORDS: READING – LITERATURE – SCHOOL – HISTORY Via Atlantica14.indd 11 29/6/2009 14:02:43

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  • O papel da literatura na escola

    Regina ZilbeRmanUFRGSFAPA

    RESUMO: EStE tExtO pREtEndE diScUtiR algUMaS qUEStES SObRE a lEitURa litERRia E O papEl da litERatURa na EScOla, SEUS pRESSUpOStOS hiStRicOS E tERicOS E O pRagMatiSMO daS atividadES pEdaggicaS EnvOlvidOS nES-Sa ESpEcificidadE dE lEitURa.

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    I .Pressupostos histricos e tericosPode-se situar na virada dos anos 70 para os anos 80 a data em que se inten-sificaram e expandiram as discusses relativas leitura na escola e ao papel da li-teratura no ensino. O perodo caracterizava-se pela descompreenso do regime militar, na esteira das manifestaes pblicas de insatisfao com o modelo au-toritrio de governo e da falncia do projeto desenvolvimentista abraado pelo Estado. Entre o final da vigncia do Ato Institucional nmero 5, o AI-5, em 1979, e as primeiras exigncias de eleies diretas para a presidncia da repbli-ca, em 1984, o pas d os primeiros passos na direo da redemocratizao.

    neste contexto que se verifica um movimento amplo, envolvendo so-bretudo pesquisadores das reas de Letras e Pedagogia, preocupados com os rumos da escola brasileira, a qualidade de ensino, a qualificao do professor e os resultados da aprendizagem, que, transcorrida uma dcada da reforma da educao brasileira, datada de 1970, se mostravam no apenas insuficientes, mas e principalmente alarmantes, j que o horizonte futuro prognosticava pioras, e no melhoramento ou superao dos problemas.

    So sintomas desse movimento iniciativas como a realizao do I Con-gresso de Leitura (COLE), em Campinas, em 1978, do I Encontro de Pro-fessores Universitrios de Literatura Infantil e Juvenil, no Rio de Janeiro, em 1980, e a Primeira Jornada Sul-Rio-Grandense de Literatura, em 1981, em Passo Fundo, eventos que se mostraram frutferos e duradouros. Por sua vez, vocacionada para a difuso e o fortalecimento da literatura infantil e juvenil brasileira, a Fundao Nacional do Livro Infantil e Juvenil patrocinava, desde 1974, aes comprometidas com a qualificao das obras dirigidas ao pblico infantil e com a interlocuo entre essa produo e o trabalho do professor, preparando-o crtica e pedagogicamente para lidar, em sala de aula, com tex-tos adequados aos alunos.

    A emergncia de associaes, como a de Professores de Lngua e Literatura (APLL) e de Leitura do Brasil (ALB), entre o final dos anos 70 e o comeo dos anos 80, tambm sinal do engajamento de educadores e pesquisadores na discusso tanto dos problemas de ensino e aprendizagem no mbito da escola, quanto das polticas pblicas que poderiam alavancar uma ao si-multaneamente democratizadora e competente que beneficiasse docentes e discentes. Uma agenda positiva mobilizava sobretudo intelectuais atuantes na

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    universidade, originrios, como se observou, dos campos da Pedagogia e das Letras, fecundando, por sua vez, pesquisas em reas adjacentes, como Hist-ria e Artes, ou no to prximas, como Cincias e Matemtica, em razo de sua presena, enquanto disciplinas, nos currculos de ensino fundamental.

    No mbito dessas discusses, que envolvia a aprendizagem e o uso da ln-gua portuguesa, recebeu a literatura uma valorizao especfica, pois era nela que se colocavam as esperanas de superao dos problemas experimentados na sala de aula. Com efeito, se os diagnsticos identificavam as dificuldades de leitura e expresso escrita por parte dos estudantes, era literatura, repre-sentada por obras de fico e de poesia, que se transferiam os crditos e as expectativas de mudana e de sucesso quando do exerccio da ao educativa por parte dos docentes.

    A literatura encarnava a utopia de uma escola renovada e eficiente, de que resultavam a aprendizagem do aluno e a gratificao profissional do professor.

    Quase trs dcadas depois, muita gua rolou por debaixo da ponte: o Brasil se redemocratizou, o surto inflacionrio, crescente na dcada de 80 do sculo XX, foi contido, uma nova Constituio passou a vigorar a partir de 1988, a economia globalizou-se, o ensino bsico passou por outras e sucessivas re-formas, algumas nominais (antes de chamar-se ensino bsico, foi designado sucessivamente ensino fundamental e secundrio, e ensino de primeiro e se-gundo graus, por exemplo) e outras estruturais, estabeleceram-se parmetros curriculares e, aps a virada do milnio, o sistema de cotas passou a vigorar em muitas universidades pblicas, tornando-se obrigatrio.

    A cultura experimentou igualmente alteraes substantivas: os meios de comunicao de massa expandiram-se de modo notvel do ponto de vista tecnolgico e instrumental, e introduziram-se novos suportes, como o eletr-nico e o digital, e dispositivos revolucionrios, como o computador pessoal e o telefone celular. Comparados os meios de veiculao de textos utilizados no comeo dos anos 1980 com os disponveis ao final da primeira dcada do nosso milnio, a distncia parece gigantesca, embora menos de trinta medeie um tempo e outro. Na passagem dos anos 70 para os 80, o livro apresentava-se como o receptculo soberano e insofismvel do texto, crena hoje descar-tada mesmo por aqueles que entendem o impresso como constituindo ainda o formato mais adequado para receber e perenizar a escrita, em decorrncia de seu baixo custo e facilidades de manuseio e de circulao.

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    Outras mudanas fizeram-se igualmente notar no Brasil do sculo XXI: a globalizao e o neoliberalismo impuseram novas formas de financiamento da cultura, visto que o Estado, em muitas ocasies, deixa-a ao desamparo. Por outro lado, obsolesceram crticas, como as emanadas dos pensadores associa-dos Escola de Frankfurt, condenando a indstria cultural e seus subprodu-tos, como os best-sellers, as histrias em quadrinho, a novela de televiso, ou as manifestaes populares, como o cordel, o funk, o rap e o hiphop, expresses muitas vezes annimas, como o causo, no meio rural, o grafite, no cenrio urbano, e a fanfiction, no ambiente digital.

    O aparecimento dos Estudos Culturais e a sua consolidao na universida-de sinalizam no apenas o novo olhar posto sobre a cultura, mas as modifi-caes por que essa passou no trnsito do sculo XX para o XXI. A ruptura das fronteiras entre o centro e a periferia, o erudito e o popular, entre a alta literatura e o pop, entre o clssico e o fashion, o rural e o urbano, determinou certa euforia que vigora nos meios tanto acadmicos, quanto artsticos. A constatao de que tudo cultura, e de que tudo vlido, alarga as potencia-lidades de criao e de investigao, de que resulta o bem-estar reinante nos segmentos focados nas expresses da arte e do pensamento.

    Tudo o que mudou parece ter mudado para melhor menos a escola, com suas conseqncias: a aprendizagem dos alunos, a situao do professor, as polticas pblicas dirigidas educao, para no se mencionarem as condies de trabalho, onde predomina a insegurana, e o espao fsico das salas de aula, degradado e degradante. Onde deveria reinar a mesma euforia, predominam a desolao, o desestmulo, os sentimentos de decepo e de fracasso.

    Com efeito, os problemas educacionais permanecem, tendo-se somado novas razes s antigas queixas. O empobrecimento da escola pblica vis-vel em todo o pas, ampliando-se a clivagem entre as instituies de ensino destinadas s classes pobres, localizadas na periferia urbana, e as que atendem as camadas superiores. A depauperao dos professores, submetidos a maus salrios e ao desdm por parte do poder pblico, se evidencia em ambas as circunstncias. Contudo, recaem sobre o professor e sobre o sistema escolar as maiores cobranas, seja por os velhos problemas persistirem, de que re-sultam performances negativas em avaliaes contnuas (PISA, SAEB, entre outros), seja por no saberem se posicionar perante os novos desafios, os que so colocados pelas mudanas tecnolgicas e cientficas, que seguidamente

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    monopolizam as preferncias dos jovens, e os que dizem respeito situao vivida, em nossos dias, pela mocidade, vtima e sujeito da violncia urbana, rotineira no cotidiano nacional.

    Os professores, na qualidade de profissionais da educao, poderiam apelar para os versos de Drummond: Teus ombros suportam o mundo (ANDRA-DE, 2002: 80). No entanto, seguidamente, se questionam sobre a natureza de seu ofcio, ao interrogarem a si e a seus colegas sobre o que deve a escola ofe-recer. Relativamente leitura, que ocupa a base do ensino e da qual se espera tanto, a pergunta talvez seja: que tipo de leitura caberia escola estimular?

    Por muito tempo a resposta foi facilmente enuncivel, j que, como a escola destinava-se sobretudo s elites, tratava-se de difundir a lngua padro e a litera-tura cannica, com a qual se identificavam os freqentadores das salas de aula. Quando se expandiu a escola brasileira, na esteira do processo de modernizao da sociedade, associada industrializao, migrao do campo para a cidade e ao crescimento da populao urbana, aquela resposta mostrou-se insuficiente. Os novos contingentes no se identificaram com a norma culta e desconhe-ciam a tradio literria, a quem cabia apresentar, talvez pela primeira vez.

    Da alfabetizao, tarefa que a escola desempenhou burocraticamente desde seus incios, passou-se necessidade de letramento, sobretudo de letramento literrio. A leitura de textos apresenta-se como prtica inusitada, e a literatura, em boa parte das escolas nacionais, como um aliengena, sobretudo nas que atendem os segmentos populares, mesmo em grandes centros urbanos.

    igualmente sob esse prisma que se pode entender porque os ombros do professor suportam o mundo, visto que so atribudas a ele vrias e dis-tintas misses: alfabetizar, facultar o domnio, pelo aluno, do cdigo escrito, formar leitores qualificados de textos literrios. Talvez por serem muitas as tarefas e as condies de trabalho provavelmente precrias, escola e profes-sores raras vezes alcanam qualquer um desses resultados, a se acreditar nos testes a que so submetidos os estudantes, quando se revelam pouco aptos aos tipos de leitura indicados.

    Diante disso, novas questes se evidenciam: como formar leitores compe-tentes de textos escritos informativos e, simultaneamente, bons apreciadores de literatura? Ou prefervel optar por preparar leitores em, ao menos, uma dessas modalidades, esperando que, por decorrncia, o resultado conduza o aluno a outros tipos de texto? Drummond tambm aqui d a letra, quando escreve:

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    Visito os fatos, no te encontro.Onde te ocultas, precria sntese,penhor de meu sono, luzdormindo acesa da varanda?(ANDRADE, 2002: 126)

    Como se observou, nos anos 80, as fichas eram colocadas na leitura da lite-ratura, aposta que ainda compartilhamos, embora tenhamos necessariamente de reconhecer as mudanas ocorridas e as novas necessidades apresentadas. Para tanto, no podemos deixar de ter presente o que a literatura oferece a seu leitor, includo nesse processo o que representa o ato de ler.

    Assim, no se trata de rejeitar o caminho percorrido, mas de ajust-lo aos novos tempos, pois a histria no pra. Trata-se, por outro lado, de reiterar premissas e pressupostos, para que se atinjam as metas desejadas, constando entre elas a melhoria das condies de ensino, por meio do alcance de resul-tados positivos em sala de aula, a valorizao do professor e a progressiva democratizao do saber na sociedade brasileira contempornea.

    2. A leitura da literatura

    A literatura introduziu-se na escola desde o comeo da histria dessa insti-tuio. Testemunhos do conta que, entre os sumrios, povo a que se atribui a inveno da escrita, j se estabelecera a prtica de transmisso de textos ca-nnicos por intermdio de uma entidade administrada, no caso daquela cole-tividade, por sacerdotes (Cf. EVEN-zOHAR, 1999: 29). Contudo, o modelo de escola que ainda subsiste herana dos gregos dos sculos V e IV a.C., que conferiram poesia e prosa a funo de transmitir um padro lingstico e um patrimnio cultural aos jovens atendidos pelo grammatistes, nome pelo qual eram conhecidos os professores (Cf. KENNEDY, 1994: 82-83).

    Atualmente no mais compete ao ensino da literatura a transmisso de um patrimnio j constitudo e consagrado, mas a responsabilidade pela forma-o do leitor. Por sua vez, a execuo dessa tarefa depende de se conceber a leitura no como o resultado satisfatrio do processo de letramento e deco-dificao de matria escrita, mas como atividade propiciadora de uma experi-

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    ncia nica com o texto literrio. A literatura se associa ento leitura, do que advm a validade dessa.

    A experincia da leitura decorre das propriedades da literatura enquanto for-ma de expresso, que, utilizando-se da linguagem verbal, incorpora a particula-ridade dessa de construir um mundo coerente e compreensvel, logo, racional. Esse universo, da sua parte, alimenta-se da fantasia do autor, que elabora suas imagens interiores para se comunicar com o leitor. Assim, o texto concilia a racionalidade da linguagem, de que testemunha sua estrutura gramatical, com a inveno nascida na intimidade de um indivduo; e pode lidar com a fico mais exacerbada, sem perder o contato com a realidade, pois precisa condicio-nar a imaginao ordem sinttica da lngua. Por isso, a literatura no deixa de ser realista, documentando seu tempo de modo lcido e crtico; mas revela-se sempre original, no esgotando as possibilidades de criar, pois o imaginrio empurra o artista gerao de formas e expresses inusitadas.

    Dbia, a literatura provoca no leitor um efeito duplo: aciona sua fantasia, colocando frente a frente dois imaginrios e dois tipos de vivncia interior; mas suscita um posicionamento intelectual, uma vez que o mundo representado no texto, mesmo afastado no tempo ou diferenciado enquanto inveno, produz uma modalidade de reconhecimento em quem l. Nesse sentido, o texto lite-rrio introduz um universo que, por mais distanciado da rotina, leva o leitor a refletir sobre seu cotidiano e a incorporar novas experincias (cf. ISER, 1993).

    A leitura do texto literrio constitui uma atividade sintetizadora, permi-tindo ao indivduo penetrar o mbito da alteridade sem perder de vista sua subjetividade e histria. O leitor no esquece suas prprias dimenses, mas expande as fronteiras do conhecido, que absorve atravs da imaginao e decifra por meio do intelecto. Por isso, trata-se tambm de uma atividade bastante completa, raramente substituda por outra, mesmo as de ordem exis-tencial. Essas tm seu sentido aumentado, quando contrapostas s vivncias transmitidas pelo texto, de modo que o leitor tende a se enriquecer graas ao seu consumo.

    Se esse o ngulo individual da leitura, o ngulo social decorre dos efeitos desencadeados. O leitor tende a socializar a experincia, cotejar as concluses com as de outros leitores, discutir preferncias. A leitura estimula o dilogo, por meio do qual se trocam resultados e confrontam-se gostos. Portanto, no se trata de uma atividade egocntrica ou narcisista, se bem que, no comeo,

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    exercida solitariamente; depois, aproxima as pessoas e coloca-as em situao de igualdade, pois todos esto capacitados a ela.

    Em certa medida, a leitura sugere outra faceta educativa da literatura: o texto artstico talvez no ensine nada, nem queira faz-lo; mas seu consumo induz a prticas socializantes, que, estimuladas, mostram-se democrticas, porque igualitrias.

    O exerccio da leitura o ponto de partida para a aproximao literatura. A escola dificilmente o promoveu, a no ser quando condicionado a outras tarefas, a maior parte de ordem pragmtica. Hoje, quando o ensino est em crise, apresenta-se como necessidade prioritria, pois faculta avizinhar-se a um objeto tornado estranho no meio escolar. Porm, talvez se constitua tam-bm no ponto de chegada, na medida em que oferece opes diversas daque-las recorrentes na histria da educao.

    Estas alternativas talvez possam ser transpostas prpria escola que, atual-mente, parece ter perdido a eficcia que um dia teve, substituda pela dos meios de comunicao de massa e da comunicao eletrnica. Sua sobrevivncia en-quanto instituio, portanto, depende de um posicionamento na vanguarda dos fatos histricos. Poder faz-lo, caso se solidarizar a seus usurios, servir-lhes de veculo para manifestao pessoal e colaborar para sua auto-afirmao. O exerccio da leitura do texto literrio em sala de aula pode preencher esses obje-tivos, conferindo literatura outro sentido educativo, auxiliando o estudante a ter mais segurana relativamente s suas prprias experincias.

    3. A fantasia e a utopia da educao

    A leitura acontece quando a imaginao convocada a trabalhar junto com o intelecto, responsvel pelas operaes de decodificao e entendimento de um texto ficcional. O resultado a fruio da obra, sentimento de prazer mo-tivado no apenas pelo arranjo convincente do mundo fictcio proposto pelo escritor, mas tambm pelo estmulo dado ao imaginrio do leitor, que assim navega em outras guas, diversas das familiares a que est habituado.

    Definida enquanto criao, a obra literria no produzida sem que outra imaginao seja ativada primeiro: a do escritor. Por isso, coincide com inveno, associa-se fantasia, parece irreal. De um lado, simula lidar com coisas e pessoas

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    conhecidas; de outro, porm, deixa claro que aquelas nunca tiveram existncia concreta, tangvel ou mensurvel. Reais so apenas as palavras que as enunciam; essas, no entanto, tambm so impalpveis. Onde ento situar a materialidade da literatura, localizada, supe-se, em algum lugar, j que nos atinge tanto?

    A resposta a essa questo talvez seja to imprecisa quanto o objeto a que ela se refere: tudo comea na fantasia, cuja existncia pode ser confirmada de modo emprico, j que diariamente experimentamos seus efeitos, mas cujo cerne no tem substncia, nem forma.

    O que a fantasia? Eis um tema negligenciado, quando a fantasia con-siderada uma forma de alheamento do universo imediato experimentado e conhecido pelos seres humanos; ou mesmo rejeitado, por ser a fantasia julga-da improdutiva pela sociedade capitalista, que no tolera uma atividade no rendosa e sem aplicao.

    Uma perspectiva mais doutrinria a exilou, expulsando-a de seu universo conceitual e denegrindo seus efeitos; outra, mais pragmtica, no a evitou, mas, ao adot-la, comprometeu sua finalidade. Esta foi encampada pela indstria cultural, que lhe conferiu sentido escapista, encarregando-a, por uma parte, de proporcionar a fuga, ainda que ilusria e momentnea, da vida cotidiana, rotineira e inspida, e, por outra, de facilitar a acomodao a uma situao que, assim, se torna suportvel (cf. ADORNO & HORKHEIMER, 1985). De certo modo, a crtica da cultura, capitaneada pela Escola de Frankfurt, mas tambm pelos Estudos Culturais, aceitou as regras impostas fantasia pelo capitalismo, confirmando-as por outra via; ambas as posies uniram-se nessa condenao a um fenmeno inerente vida humana.

    Nem todos, contudo, compartilham o preconceito, a comear por Sigmund Freud, talvez o principal responsvel pelo resgate da fantasia e pelo esclare-cimento de sua articulao s atividades artsticas de criao. Freud indica que a fantasia motivada por desejos insatisfeitos; ela acolhe-os e elabora-os, buscando satisfaz-los por intermdio de processos como o sonho, a imagi-nao, o devaneio.

    O escritor, por exemplo, canaliza esses desejos para sua obra criativa; essa, em certo sentido, permite-lhe externar lembranas insatisfatrias do passado, aliadas a experincias presentes, e, de algum modo, resolv-las ou super-las. Sob esse aspecto, a criao artstica assemelha-se ao sonho do adulto ou ao brinquedo da criana, pois, durante sua ocorrncia, evidenciam-se os proble-

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    mas que afetam o sujeito e as possibilidades de soluo para eles. No por acaso, acredita Freud, algumas lnguas usam a mesma palavra para designar o ato de brincar (play, em ingls; spiel, em alemo) e o de produzir peas liter-rias ou teatrais (FREUD, 1976a; 1976b).

    Alojada no corao dos problemas de um indivduo, a fantasia no pode levar evaso; nem as imagens que ela libera desligam-se do cotidiano ou da existncia dos homens com os quais o artista convive. Seu relacionamento com o mundo encontra acolhida no imaginrio, mas esse no meramente recep-tivo: trabalha essas sugestes exteriores, associa-as a recordaes do passado, articula-as aos insumos resultantes das informaes armazenadas pelo sujeito.

    O mais importante que a fantasia d forma compreensvel queles fen-menos, transparecendo por meio de aes e figuras, relaes entre elas, sadas para os problemas levantados. E porque a forma empregada compreensvel, pode ser adotada por outros indivduos, que, assim, tm condies de enten-der suas prprias dificuldades, refletir sobre elas, buscar um caminho para seus dramas pessoais ou sociais.

    A fantasia transfere essa forma para a literatura, e o leitor procura ali os elementos que expressam seu mundo interior. Pode ser que ele no opere como o escritor, que produz um texto literrio ao elaborar de modo criativo seus processos internos; mas ele passa por situao similar, na medida em que o mundo criado agita seu imaginrio e faz com que, de alguma maneira, esse se manifeste e transforme-se em linguagem. Eis por que leituras significativas confundem-se com nosso cotidiano, tornam-se lembranas perenes, expli-cam nossa prpria vida.

    Sendo assim, para ser valorizada, a fantasia no precisa recorrer a um pou-co provvel ngulo utilitrio ou aplicado. Ela no prtica, embora tenha sido aproveitada pela indstria cultural como maneira de aplacar a insatisfao interior resultante da diviso do trabalho e da mecanizao da existncia na capitalista ps-moderna.

    , contudo, condio bsica de relacionamento entre os homens, porque faculta a expresso de seus dramas e das solues possveis. A criao artsti-ca, nesse sentido, assume papel preponderante, porque, operando a partir das sugestes fornecidas pela fantasia, socializa formas que permitem a compre-enso dos problemas; logo, configura-se tambm como ponto de partida para o conhecimento do real e a adoo de uma atitude liberadora.

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    Regressiva na formao, pois remonta a lembranas de problemas, a fan-tasia prospectiva na formulao; e a literatura, sua herdeira, recebe como legado sua tnica utpica, acenando para as possibilidades de transformao do mundo e encaminhamento de uma vida melhor para todos que dependem dela para conhecer o ambiente que os rodeia.

    A educao compartilha com a fantasia e a literatura a perspectiva utpica a que essas apontam. Etimologicamente, educar extrair, levar avante, con-duzir para fora e para frente. Funda-se, pois, em um ideal, o de que possvel mudar a atitude individual e a configurao da sociedade por meio da ao humana. Porque ideal, esse objetivo seguidamente criticado e at rejeitado. A dificuldade maior, porm, no reside a, mas no fato de no se vir concreti-zando e de estar ameaado de desaparecimento por obsoleto.

    A dificuldade reside tambm na circunstncia de que, de ideal, esse objetivo converteu-se em um sistema: educao deixou de consistir em um processo, presente em vrias das atividades sociais e culturais, para se apresentar como instituio, com estrutura, organograma, agentes, calendrio e oramento. Originalmente to fluida como a fantasia, hoje evidencia sua substncia e onipresena; mas no pode negar sua incapacidade de preencher o ideal de que dependeu seu aparecimento e que legitima sua continuidade. Por que no funciona? Deve funcionar? Neste caso, como deveria funcionar?

    Essas questes no so irrelevantes; da resposta a elas depende a recupe-rao da utopia que, um dia, validou a implantao e organizao do ensino. A resposta a elas possibilita tambm articular a utopia da educao quela que est na base da fantasia e da literatura e move a vida humana, por mais atribulada que esteja a sociedade.

    4. Consideraes finais

    Um ensino da literatura que se fundamente na leitura e resulte em uma prti-ca dialgica talvez seja to utpico ou romntico quanto qualquer projeto que, hoje, se refira educao no Brasil. O sucateamento da escola reduziu-a ao grau zero de que j se falou; logo, no diz respeito exclusivamente ao problema da leitura e da literatura. As propostas que se apresentam so simultaneamente caras e baratas, realizveis a curto e a longo prazo, viveis e complexas. Barato e

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    rpido trabalhar com o aluno, seja ele criana ou adulto, a partir de sua prpria experincia de leitura, lidando com um universo previamente dominado, desde que o objetivo seja abrir novos horizontes de conhecimento; caro e demorado preparar o professor para levar a cabo essa tarefa, pois tambm ele foi afetado pelo progressivo desmonte da escola brasileira.

    Por outro lado, a concretizao de uma utopia para a educao no Pas se faz necessria, com suas nuances temporais e a conscincia de seus limites. Suas metas so reconhecveis: reportam-se emancipao dos indivduos que participam do sistema de ensino, sejam professores ou alunos, porque o pro-cesso da aprendizagem permanente e afeta a ambos. E, sendo essa pedago-gia de ndole emancipatria, no pode dissociar-se do processo de liberao das falas dos sujeitos visados por ela. Para chegar realizao desse objetivo, a literatura desempenha papel fundamental, e talvez at o lidere, como aconte-ceu nos seus incios, quando a poesia da epopia formava os cidados da plis grega. Talvez at tenha condies de desencade-lo, fazendo-o sem compro-meter sua histria, nem desmentir sua identidade ou alterar sua funo.

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