50 - DIGNIDADE DO HOMEM
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Cornelius a Lapide, sj (1597-1637)+
DIGNIDADE DO HOMEM
Tradução por Uyrajá Lucas Mota Diniz
O homem é criado à imagem de Deus
Deus tirou o universo do nada: um só sinal de sua vontade, aquela única
palavra fiat (“faça-se”) bastou. Para governar a este universo faltava um chefe, um
rei. Tudo já existia, menos aquele rei que devia reinar sobre todo a criação, posto
que tudo fora criado para ele.
Então, a Augusta Trindade entrou como em conselho, e pronunciou logo
solenemente a seguinte decisão: Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem
mostram - Façamos o homem à nossa imagem e semelhança (Gen. I, 26). Somente o
homem foi criado à imagem de Deus. Por isso, o homem é a finalidade, o objeto do
mundo criado.
Clemente de Alexandria chama ao homem de Planta Celestial: Planta
coelestis (Lib. Strom.); porque tem suas raízes no Céu. As plantas têm suas raízes na
terra; porém, o homem tem sua raiz em regiões superiores; a árvore nutre-se da
terra; porém, o homem não pode viver senão do Céu.
Que maior honra poderia apetecer ao homem, questiona Santo Ambrósio,
que o haver sido criado à imagem de seu Criador? Quis major honor homini potuit
esse, quam ut ad similitudinem sui factoris conderetur? (Lib. De Dignit. Humanae
Condit., c. III).
Se examinarmos fielmente e com prudência a origem de nossa criação, diz o
Papa São Leão, veremos que o homem foi feito à imagem de Deus, a fim de que
imite a seu divino Autor; pois a dignidade de nossa raça consiste em que a
semelhança da Divindade brilhe em nós como em um espelho1.
Homem animal, que te rebaixas até fazer-te semelhante aos animais
selvagens; e muitas vezes, até fazer-te inferior a eles, e invejas seu estado, é
necessário que hoje compreendas tua dignidade pelas admiráveis singularidades de
tua criação e pelas outras honras que te foram tributadas. Vós fostes criados, não
como as outras criaturas, por uma palavra de mandato: Fiat, Faça-se; mas por uma
palavra de conselho: Faciamus, Façamos.
Deus toma conselho Consigo mesmo, como quem pretende fazer uma obra
prima. Antes do homem, tudo o que Deus havia criado no universo era incapaz de
conhecer, amar, servir a seu Criador e de possuí-Lo. Deus deu ao homem todas
estas prerrogativas divinas, por cuja razão, para formá-lo, não Se propôs outro
modelo senão a Si mesmo.
Por meio destas palavras: “Façamos ao homem à nossa imagem e
semelhança”, Deus expressa todas as formosuras do homem e, ademais, todas as
riquezas que lhe deu com sua graça, entendimento, vontade, retidão, inocência,
conhecimento claro de Deus, amor infuso deste Primeiro Ser, e segurança de gozar
com Ele da mesma felicidade.
“Façamos o homem”... a estas palavras aparece a imagem da Augusta
Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo.
1 Se fideliter atque sapienter creationis nostra intelligamus exordium, inveniemus hominem ideo ad imaginem Dei conditum, ut imitator sui esset Auctoris; et, hanc esse naturalem nostri generis dignitatem, si in nobis, in quodam speculo, divinae benignitatis forma resplendeat (Serm. I, De Jejunio X mensis.)
Semelhante ao Pai, tem o ser; semelhante ao Filho, tem a inteligência;
semelhante ao Espírito Santo, tem o amor. Deus tem a inteligência, a vontade, o
amor. O homem, feito à imagem de Deus, possui também a inteligência, a vontade e
o amor. Eis aqui a imagem da Santíssima Trindade; é o cumprimento daquelas
palavras: Façamos ao homem à nossa imagem e semelhança - Faciamus hominem
ad imaginem et similitudinem nostram (Gen. I, 26).
O homem parece-se com Deus por três conceitos:
1º por natureza, porque somos de uma natureza racional e inteligente, assim
como Deus é também razoável e inteligente;
2º pela graça, que, diz São Bernardo, consiste nas virtudes; e
3º a semelhança perfeita e infinita com Deus terá lugar no céu, com a
Presença e a Glória beatífica.
Tributemos a honra que é devida, diz São Gregório Nazianzeno, à imagem de
Deus que está em nós; reconheçamos nossa dignidade: Imaginem Deus imagini
reddamus, dignitatem nostram agnoscamus (Serm. de Nativit.).
A imagem natural de Deus está na alma, que é espírito, que não é material,
que é ágil, imensa, inteligente, livre, imortal. Esta imagem de Deus é natural no
homem; não se pode ter perdido pelo pecado de Adão; porém, perdeu sua formosura
e perfeição.
É outra imagem de Deus no homem, uma imagem sobrenatural, que consiste
na graça e justificação do homem, pela qual o homem faz-se partícipe da natureza
divina; e esta imagem será cabal na glória e na vida eterna. Porque a graça, diz
Santo Agostinho, é a alma da alma: Gratia est anima animae (Trat. de Cogn. Verae
Vitae).
Adão foi criado nesta graça, que é uma verdadeira imagem de Deus. Esta
semelhança da alma com Deus pela graça depende da vontade do homem; pecando,
perde-a; porém, pela graça e pela justificação, volta a encontrá-la e reabilita-se.
Somente o homem foi criado à semelhança de Deus. O sol, que tão
resplandecente é e belo não está feito à imagem de Deus. A lua e a estrelas, que
adornam o firmamento, não foram feitas à imagem de Deus. A terra e suas variadas
produções não foram, tampouco, feitas à imagem de Deus. O vasto Oceano, apesar
de sua imensidade, não foi feito à imagem de Deus. Somente o homem e o Anjo
possuem essa prerrogativa infinitamente preciosa.
Ó homem, exclama São Pedro Crisólogo, por que, sendo tão honrado por
Deus, desonras a ti mesmo? Por que és tão vil a teus olhos, tu, tão grande e precioso
aos olhos de Deus? Não vês que, ao desonrar-te, desonras a Deus, cuja imagem és?
(Serm.).
Preço inestimável do homem
Esta natureza racional do homem, que constitui a imagem de Deus, encerra
seis qualidades principais, seis propriedades excelentes:
1ª a alma é espiritual e indivisível, como Deus também é espírito indivisível;
2ª a alma é imortal;
3ª está dotada de inteligência, vontade e memória;
4ª goza do livre arbítrio;
5ª é apta para a sabedoria, a virtude, a graça, a beatitude, a visão de Deus e
todo o bem;
6ª a alma preside e domina, com seu poder, tudo no homem e na criação; e
acrescente-se uma sétima propriedade:
7ª assim como todas as coisas estão eminentemente contidas e encerradas em
Deus, assim também se acham todas as coisas no homem. Com sua
inteligência, de tudo se apropria, porque representa em seu espírito uma
imagem ou semelhança de tudo o que há. As coisas mais preciosas, diz São
João Crisóstomo, não se podem comparar a alma, nem tampouco o mundo
inteiro: Nullius rei pretium est cum anima conferendum, ne totus quidem
numdus (Homil. III, in Epist. ad Cor.).
Jamais tivéssemos conhecido nossa grandeza, não haveríamos tampouco
compreendido jamais nosso alto destino, sem o auxílio da revelação da Sagrada
Escritura.
O Senhor Deus, diz o Gênesis, derramou sobre o rosto do homem um sopro
de vida, e este tornou-se o homem vivente com alma racional: Dominus Deus
inspiravit in faciem ejus spiraculum vitae, et factus est homo in animam viventem
(Gen. II, 7).
E não é que Deus tenha boca, como os homens, para dar um sopro; mas a
Escritura fala assim para dar-nos a entender que Deus estima a alma e a quer como
uma emanação de Sua própria vida. É bem verdade que tirou nossa alma do nada,
como o fez a todas as demais criaturas; porém, ao revelar-nos o Espírito Santo que
foi um sopro divino, quer nos dizer que Deus a produziu com um afeto tão
particular e tão terno, que é como se a houvesse tirado das regiões de Seu Coração.
Ademais, a Sagrada Escritura não nos diz que Deus fez nossa alma com suas
mãos, como nosso corpo, nem que a tenha criado falando, do modo como criou a
todos os demais seres; mas respirando, aspirando, para dar-nos a entender que é
como se houvesse dado nascimento a uma queridíssima concepção que lavara em
Suas entranhas durante toda a eternidade.
É como se a Sagrada Escritura dissesse que a alma procede do interior de
Deus, assim como a respiração ou o sopro não é mais do que uma saída ou entrada
contínua de ar que vai a visitar o coração,... não lhe deixa mais que um breve
momento, e logo volta a ele a ponto de refrescá-lo e conservar-lhe a vida. Da
mesma maneira, nossa alma não saiu de Deus senão para voltar a entrar Nele; Ele
não a expirou senão para voltar a aspirá-la novamente. Pois, se ela aliviou, de certo
modo, o Seu coração ao sair Dele, parece que O alivia e O consola, de certo modo,
quando ali mesmo volta por alguma amorosa inspiração. Ó se soubéssemos o que
significa a nossa alma para o coração de Deus! Não pode viver sem ela; o mesmo
Deus não está contente sem ela!
Vede o laço admirável que Deus quis fixar entre seu Espírito e o nosso.
O Espírito Santo é uma sagrada emanação do coração de Deus, emanação
que o cumula de uma maneira infinita em Si mesmo; e nossa alma é um sopro de
Deus, sopro que Lhe dá complacência até fora de Si mesmo. O Espírito Santo é a
última das inefáveis produções de Deus em Si mesmo; e nossa alma é a última de
todas as admiráveis produções de Deus fora de Si mesmo.
A alma está tão admiravelmente elevada acima do corpo, que se pode dizer
que se aproxima mais de Deus que Lhe criou, que ao corpo ao qual está unida. E,
para dizer a verdade, somente ela, entre todas as criaturas da terra, tem alguns
rasgos visíveis das perfeições de Deus; ela é mais elevada que o Céu, mais profunda
que o abismo, mais vasta que o universo, ela é tão duradoura como a eternidade.
- Deus é espírito, e a alma é espírito;
- Deus é simples e indivisível, e a alma é simples e indivisível;
- Deus é imóvel, tudo põe em movimento e vivifica, e a alma age igualmente
em relação ao corpo ao qual anima;
- Deus é inteligente, e a alma é inteligente;
- Deus quer, e a alma quer;
- Deus ama-se, e a alma, amando a Deus, ama-se verdadeiramente a si
mesma;
- Deus fez todas as coisas, e a alma opera, e os limites de sua ação não se
podem assinalar;
- Deus é livre e domina todas as coisas criadas, e a alma tem o livre arbítrio,
e segundo sua vontade, move os membros do corpo;
- Deus tudo tem presente em Sua memória, e a alma possui também esta
faculdade;
- Deus é onipotente, e o homem, se o quer, dispõe do poder divino, faz coisas
admiráveis e compreende outra multidão de coisas na extensão de seu
espírito;
- Deus é o fim de todas as coisas, e o homem é o fim de todas as criaturas;
- Deus está todo no mundo e todo em cada parte do mundo; e a alma também
rege o corpo, e está inteira no corpo, e inteira em cada um de suas partes.
- Além disso, o que é mais perfeito, como Deus Pai, conhecendo-se com sua
inteligência, produz o Verbo, seu Filho, e amando-O, produz ao Espírito
Santo; assim também o homem, conhecendo-se, produz em sua alma um
palavra inteligente, expressão de si mesmo, e dali procede o amor em sua
vontade, diz Santo Agostinho (Serm. XXIV, de Temp.).
A alma participa da nobreza, do domínio, da sabedoria, da grandeza de Deus
e de seu divino Espírito.
Não vos admireis, pois, que Santo Agostinho diga que salvar a uma alma é
coisa maior que criar o Céu e a terra (Serm. XXIV, de Temp.). De todas as
profissões, a mais divina é a de ser cooperador de Deus, dedicado a levar as almas a
seu Criador.
Se separais, diz o Senhor por meio de Jeremias, o que tem muito preço
daquilo que é depreciável, sereis, de certo modo, a minha boca: Si separaveris
pretiosum a vili, quase os meum oris. (Jer. XV, 19).
A alma é uma pedra preciosa que vale mais que o mundo inteiro; porque,
feita à imagem de Deus, participa do mesmo Deus; é como parte de sua aspiração
divina. Por este motivo, Santo Agostinho e Santo Tomás ensinam que a conversão e
a justificação do pecador é mais difícil, maior e mais admirável que a criação do
mundo.
São João Crisóstomo ensina que converter uma alma é um dom maior e mais
agradável a Deus que Lhe erigir um templo. Por mais considerável que sejam as
quantidades de dinheiro que se consagram a construir um templo magnífico, nada
são quando comparadas com a salvação de uma alma e com seu valor. Salvar a uma
alma é uma esmola maior que dar dez mil talentos, que dar o universo mesmo, se
isso fosse possível; porque uma alma é mais preciosa que tudo quanto existe; é de
um valor infinito, posto que custou o Sangue de um Deus; e tudo foi feito para o
homem, o Céu, a terra, os mares, o sol, as estrelas, os animais, as plantas, os
vegetais e os minerais.
Ainda quando toda a terra se transformasse em ouro puro, diz Fílon, ou ainda
quando se tornasse outra coisa, todavia, mais rica, e todos os arquitetos, todos os
joalheiros, empregassem todo esse rico material para levantar pórticos, vestíbulos e
palácios a Deus, nem sequer tudo isso seria digno de servir de escabelo a seus pés; e
uma alma em estado de graça é digna de receber-Lhe e hospedá-Lo (Lib. de
Cherub.).
Império do homem
Senhor, diz o Rei Profeta, colocastes ao homem quase ao pé de igualdade
com os Anjos; o e coroastes de glória e de honra; Vós lhe destes o império sobre
todas as obras de vossas mãos: Minuisti eum paulo minus eum supera b angelis,
gloria et honore coronasti eum, et constituisti eum super opera manuum tuarum
(Psalm. VIII, 6).
Tudo o pusestes a seus pés: os rebanhos, os animais do campo, as aves do
Céu, os peixes do mar que tem suas ondas: Omnia subjecisti sub pedibus ejus; oves
et boves universas, insuper et pecora campi, volucres coeli et pisces maris qui
perambulant semitas maris (Psalm. VIII, 8).
Tudo vos pertence, disse o grande Apóstolo aos Coríntios; vós, entretanto,
sois de Jesus Cristo, e Jesus Cristo é de Deus, seu Pai: Omnia vestra sunt, vos autem
Christi, Christum autem Dei (I Cor. I, 22-23).
A alma no homem é diretora e dona, reina sozinha, não somente sobre todos
os membros, senão ainda sobre todos os sentidos, as paixões, os pensamentos e os
desejos. Assim, pois, é preciso que refreie suas concupiscências e seus desregrados
apetites, e que não se deixe jamais governar e dominar por eles. Refreai vosso corpo
com a razão, como diz São Basílio, assim como o escudeiro refreia seu cavalo com
o freio (Homil. X).
Façamos o homem, disse o Senhor, à nossa imagem e semelhança, e domine
aos peixes do mar, e às aves do Céu, e às feras, e a toda a terra, e a todo réptil que se
mova sobre a terra (Gen. I, 26). Deus fez, portanto, o homem como rei de todas as
coisas; o palácio do universo foi construído e adornado para o homem-rei.
O mundo é o templo de Deus; o homem é seu sacerdote para orar e dar
graças a Deus em nome de todas as criaturas; pois, somente ele possui a razão e a
palavra. Todas as criaturas põem suas riquezas aos pés do homem-rei; elas mesmas
oferecem-se a seu serviço; porém, dizem: Estamos sob as tuas ordens; leva ao trono
de Deus tuas adorações por nós e por ti. Tudo é teu; usai-o por Deus, e também dá
graças por tudo a Deus, que nos criou para ti. Nosso fim é servir-te, e o teu, ó
homem, que és nosso rei, é o de servir a Deus.
O homem, diz Santo Ambrósio, foi criado por último por justíssimas razões:
havendo tudo sido feito para servir ao homem, tudo devia preceder-lhe para tributar-
lhe homenagem e oferecer-se às suas necessidades. Foi feito por último como para
reunir em si mesmo todo o universo, como sendo a causa do mundo para a qual tudo
foi feito, como tendo por propriedade todos os elementos e morando neles. Vive
entre as feras selvagens, nada com os peixes, voa sobre os pássaros, e trava
conversação com os Anjos; habita a terra e sobe ao Céu; atravessa os mares, e,
cultivador da terra, peregrino sobre as ondas, pescador nas águas e atravessando os
ares, é o herdeiro e o dono da terra e do Céu (Lib. VI, Epist. XXXVIII).
Não cabe dúvida que o homem foi feito para reinar. Por que, portanto, ó
homem-rei, exclama São Basílio, fazes-te escravo de tuas miseráveis inclinações?
Por que te fazes escravo do pecado? Por que te proclamas cativo do demônio? Deus
manda-te ocupar o primeiro lugar entre as criaturas [...] e tu destróis teu reino,
rompes teu domínio e teu cetro, e ocupas o último lugar? Foste feito para a tudo
dominar, e tudo te domina. Tudo deve te obedecer, e tu obedeces a tudo! Que caos
mais espantoso! (Homil. X).
Todos os cristãos probos e santos são reis, diz São Gregório; porque,
dominando toda as concupiscências, põem um freio à luxúria, ao orgulho, à gula, à
ira. São reis que, longe de sucumbir às tempestades das tentações, mandam e
obrigam aos ventos, às tempestades e aos mares furiosos e desencadeados que se
aquietem (Serm. de Nativ.).
Alegra-te, homem-rei, descendentes de Deus, diz Orígenes, ao ver as
insígnias de tua dignidade real. Chamam-te rei porque está escrito: És de uma raça
real. E, porque és rei com justo título, Jesus Cristo, teu Senhor e Rei, chama-se Rei
dos reis e Senhor dos senhores. Ele te faz rei de todas as coisas, reinando em ti.
Assim, pois, se a alma reina em ti, e a carne obedece, se sujeitas a
concupiscência ao jugo de teu império, se tens sob freios e cativos os teus vícios,
saberás que és rei e que o mereces ser. Quando fores assim, serás como um rei, por
Jesus Cristo, Rei dos reis, e serás chamado a ouvir seus divinos conselhos. Se reinas
sobre ti mesmo, reinarás até sobre Deus, pois poderás obter Dele tudo quanto
quiseres (In Evang.).
Que coisa há mais dotada de realeza, diz São Leão, que submeter o espírito a
Deus e a carne ao espírito? Que coisa mais sacerdotal que render homenagem a
Deus com a consciência pura, e oferecer-Lhe, no altar do coração, puros
holocaustos de piedade? Então, somos reis e sacerdotes, como diz o Apocalipse:
Fecit nos regnum et sacerdotes (Apoc. I, 6 in Serm. de Nativ.).
O verdadeiro e mais belo reino do homem, é que Jesus Cristo, Rei, reine nele
e o governe. Então, recebe de Jesus Cristo sua dignidade real e seu reino, e
converte-se em verdadeiro rei; porque, então, reina e governa por justo direito.
Reina:
1º sobre si mesmo, sobre todas as faculdades e movimentos;
2º reina sobre tudo quanto lhe rodeia, e tudo submete a seu império; e
3º reina sobre o próximo, a quem deve seu afeto e seu amor. Quando o
homem se une a Deus, ele mesmo se domina a si mesmo piedosa e
santamente, e modera suas ações: aprende facilmente a governar e mandar
aos demais.
Então, é um reino de paz, de ventura, a prenda do reino eterno. Então, tudo
pertence ao homem, o homem inteiro é de Jesus Cristo, e Jesus Cristo é de Deus:
Omnia vestra sunt, vos autem Christi, Christus autem Dei (I Cor III, 22-23).
- A extensão do reino do homem aqui na terra é a fé;
- sua largura, a esperança;
- sua altura, a caridade;
- sua profundidade, a humildade;
- sua duração será o Céu por toda a eternidade.
O homem, servidor de Deus
A primeira dignidade real do homem consiste em ser fiel servidor de Deus.
Derramarei meu espírito sobre meus servos e servas, diz o Senhor por meio
de Joel: Super servos meos et ancilas efundam spiritum meum (Ioel II, 29). E ali
onde reine o espírito de Deus, ali está a verdadeira dignidade real.
O título de servidor de Deus é muito ilustre, nobilíssimo e muito honroso. O
Chefe Supremo da Igreja, o Papa, enobrece-se com ele, e ainda toma outro mais
inferior que aumenta seu brilho: chama-se Servo dos Servos de Deus: Servus
servorum Dei. Servir a Deus é reinar. Por isso, diz o Rei Profeta: Ó Senhor, sou
vosso servo, vosso servo e filho de vossa serva; Vós me quebrastes meus grilhões:
O Domine, qui ego servus tuus, ego servus tuus et filius ancillae tuae. Dirupisti
vincula mea (Psalm. CXV, 16).
Abraão chamou-se servo de Deus (Gen. XXVI, 24); Moisés fez o mesmo
(Num. XII, 7); e também o próprio Jó (Job I, 8). Ainda mais: Jesus Cristo tomou
este nome em Isaías. E São Paulo, ao princípio de suas Epístolas, não se dá outro
título: Paulo, servidor de Jesus Cristo: Paulus servus Christi. A Bem-aventurada
Virgem, Mãe de Deus, chama-se também serva do Senhor: Ecce ancilla Domini
(Luc. I, 38).
Quando o Anjo Gabriel apresentou-se como enviado de Deus àquela augusta
Virgem; quando, pleno de respeito e de veneração perante a Ela, disse-lhe: “– Ave,
cheia de graça, o Senhor é contigo...”; quando aquele embaixador do Céu disse-lhe
que havia encontrado graça diante de Deus, acrescentando que Ela conceberia em
seu seio, e daria à luz um filho, cujo nome seria Jesus, o Qual seria grande, e
chamar-se-ia Filho do Altíssimo, e o Senhor Lhe haveria de dar o trono de Davi, seu
pai, e haveria de reinar eternamente; quando acrescentou, todavia, que o Espírito
Santo viria sobre Ela e a virtude do Altíssimo A cobriria com sua sombra, por cujo
motivo o sagrado fruto que nasceria Dela seria chamado Filho de Deus; e na
presença de tantas grandezas, de uma elevação, de uma dignidade única, celestial e
divina, que fizeram de Maria a Mãe de Deus, erigindo-a como Rainha do Céu e da
terra por toda a eternidade; então a humilde Virgem pronunciou aquelas palavras:
“– Eis aqui a escrava do Senhor” – Ecce ancilla Domini (Luc. I, 38).
O título de servidor de Deus é, pois, titulo de honra, um título que implica
uma dignidade real.
Santa Águeda respondeu ao rei pagão que lhe lançava em rosto a acusação de
que ela levava uma vida de escrava, vivendo como os cristãos, sendo nobre: “– A
humildade e a escravidão dos cristãos são muito superiores, em grandeza e honra,
à dos reis da terra” (In ejus vita) .
Assim, o título de servidor de Jesus Cristo prova a grandeza do homem,
prova que o homem é da natureza dos Anjos quanto à sua alma. Os mesmo Anjos
no Céu, reinando com Deus, não são mais que servidores seus. E somente este título
erige-os em reis.
O homem, filho de Deus
Se já é uma honra tão grande ser servidor de Deus; se este título manifesta a
grandeza do homem, que diremos da honra e da grandeza infinita do título de filho
de Deus?
Contemplai, diz o Apóstolo São João, que terno amor para conosco teve o
Pai, querendo que nos chamássemos filhos de Deus, e que o sejamos de fato: Videte
qualem charitatem dedit nobis Pater, ut filii Dei nominemur et simus (I Johann.
III,1).
Este augusto título de filhos de Deus permite-nos participar de seus divinos
atributos:
1º Como Deus é Santo por essência, assim o justo, gerado pela justiça por
Deus e feito filho de Deus, tem a santidade;
2º como filho de Deus, chega a ser poderoso e pode dizer com São Paulo:
Tudo posso por meio Daquele que me conforta: Omnia possum in eo qui me
confortat (Philipp. IV, 13);
3º chega a ser imutável, de modo que, unindo-se a Deus, não poderão
comover-lhe nem rogos nem ameaças;
4º chega a ser celestial, esquece e despreza a terra;
5º chega a ser como que impecável;
6º chega a ser bom para com seus semelhantes: como um sol benfeitor,
derrama seus benefícios sobre todos, e a todos abrasa com o ardor de sua
caridade;
7º chega a ser sábio na primeira das ciências, a Religião e da virtude, porque
Deus é seu Dono, e a unção de Deus o instrui em tudo;
8º É imperturbável, porque tendo sua alma fixa em Deus, despreza todas as
vicissitudes do mundo e do século;
9º é liberal, isento de inveja, devolve bem por mal; e, assim faz, de seus
inimigos, amigos constantes;
10º tem retidão tanto em seus objetivos quando em suas ações;
11º é paciente, equânime, constante, forte, prudente, sincero, à imitação de
Deus, que é seu Pai!
Os cristãos gloriam-se de serem filhos de Deus, e o são de fato. Sendo isto
assim, devem trabalhar com zelo e perseverança para sua perfeição, e exercitar-se
em obras heroicas e divinas.
Ouvi a São Cipriano que diz: Quando a carne vos solicita, respondei: Sou
filho de Deus, nasci para coisas maiores do que para satisfazer meus sentidos
corrompidos. Quando o mundo tenta-vos com seus prazeres, suas riquezas e honras,
respondei: Sou filho de Deus destinado às riquezas, aos prazeres e honras celestiais.
Quando o demônio trate de seduzir-vos, respondei: Retira-te para o teu Inferno,
Satanás; não quer Deus que eu, filho de Deus, chegue a ser filho do diabo! Nascido
para um reino eterno, desprezo como fumaça, como barro, tudo o que tu podes me
oferecer de mais lisonjeiro aqui na terra (Lib. de Spect.).
Sois filhos de Deus: imitai a Jesus Cristo; Ele vos chama a fazer a vontade de
Deus, a acercar-nos mais e mais a Ele,... apressai-vos, correi pelo Caminho que vos
conduzirá a vosso Pai celestial.
Deus é nosso Pai
Filho de Deus! Deus é, pois, nosso Pai! Meu Deus, quão grande é o homem!
Quando uma família encontra-se com títulos de nobreza, que contam séculos de
antiguidade, considera-se orgulhosa e feliz. Porém, o que significam todos os
títulos, honras e dignidades deste mundo, comparados com o título de cristão, que
nos faz filhos de Deus, e permite-nos chamar a Deus de Pai Nosso.
Vedes aquele pastor que cuida de um rebanho do campo? É nobre. Deus é
seu Pai. Vedes aquele mendigo diante de vossa porta, apoiado em seu bastão,
coberto de retalhos e mutilado? É nobre, e Deus é seu Pai! Todos os dias e a cada
instante do dia, ele pode dizer com toda a verdade: Pai nosso que estais nos Céus...
Que grande é, exclama São Cipriano, a indulgência de Deus! Que cúmulo de
dignidade e de bondade para nós, não somente nos permitindo que O chamemos de
nosso Pai, senão que o quer, e manda-o, sendo realmente assim!
Jesus Cristo é Filho de Deus, e também nós temos o título de filhos do
mesmo Pai! Jamais nós nos atreveríamos a chamá-Lo Pai Nosso se não o houvesse
Ele mesmo permitido e até ordenado. Devemos, pois, recordar caríssimos irmãos
meus, e devemos saber que quando dizemos que Deus é nosso Pai, devemos agir
como filhos de Deus; a fim de que, assim como nos alegramos de que Deus seja
nosso Pai, alegre-se Ele também de ter-nos por filhos2.
Sois filhos do Deus vivo, diz o profeta Oseias: Dicetur eis: Filii Dei viventis
(Hoseas I, 10).
Esta dignidade e elevação do homem de ter por Pai a Deus, e de ser seu filho,
é muito grande, é quase infinita. Que Deus, diz São Leão, chame ao homem seu
filho, e que o homem chame Pai a Deus é um favor superior a todos os favores:
Omnia dona excedit hoc donum, ut Deus hominem vocet filium, et homo Deum
nominet Patrem (Serm. VI de Nativ.).
Por esta mesma razão este Santo Doutor ensina que o homem deve imitar a
Deus, seu Pai, viver com sua vida, a fim de ter uma vida divina, e não terrestre, nem
carnal.
Reconhece tua dignidade, ó cristão, diz; e, feito participante da natureza
divina, cuida de não voltar à antiga vileza com uma degradada conduta: Agnosce, o
Christiane, dignidatem tuam; et divinae consors factus naturae, noli in veterem
vilitatem degenere conversatione redire (Serm. I de Nativ.).
2 Meminisse, itaque, fratres dilectissimi, et scire devemos, quia quando Patrem Deum dicimus, quase filii Dei agere devemos; ut, quomodo nos nobis placeinus de Deu Patre, sic sibi placceat et ille de nobis (Serm.).
Sendo de uma raça escolhida e real, continua São Leão, correspondei à vossa
vocação; amai aquilo que vosso Pai ama; que haja semelhança entre Ele e vós, a fim
de que vosso Pai não vos aplique aquelas palavras de Isaías quando diz: Criei filhos,
e engrandeci-os; e eles desprezaram-Me: Filios enutrivit, et exaltavi; ipsi autem
spreverunt me (Isai. I, 2). Ponde logo em prática aquelas palavras de Jesus Cristo:
Sede vos perfeitos, assim como perfeito é vosso Pai celestial: Estote vos perfecti,
sicut et Pater vester coelestis perfectus est (Matth. V, 48).
Observai aquilo que diz o Evangelho de São João: a todos que receberam o
Verbo, que são aqueles que creem em seu Nome, deu-Lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus; os quais não nascem do sangue, nem da vontade da carne, nem do
querer do homem, senão que nascem de Deus, a quem o Pai disse, desde toda a
eternidade: Sois filhos meus; eu hoje vos gerei: Filius meus es tu; ego hodie genui
te (Psalm. II, 7).
Os cristãos não são filhos dos deuses semimortos, filhos dos ídolos, mas
filhos do verdadeiro Deus, do Deus vivo, que é a própria Vida, a vida divina e
increada, vida que Ele lhes comunica.
Nesta geração e filiação, o Pai é Deus; a fecundidade é a graça preveniente; a
mãe é a vontade que consente, coopera com esta graça; a família que nasce dela, são
os justos; a alma desta família é a caridade.
O exemplo desta filiação é a filiação do Verbo de Deus, porque assim como
Deus Pai gera, desde toda a eternidade, a um Filho que lhe é substancial e igual em
tudo, da mesma maneira gera, no tempo, a filhos que o são, por graça, aquilo que é
o Filho de Deus, por natureza.
Assim o diz São Paulo aos Romanos: Aqueles que Deus previu de antemão,
também foram predestinados por ele, para que se fizessem conformes à imagem de
seu Filho, por maneira que seja o próprio Filho o Primogênito entre muitos irmãos:
Quos praescivit et predestinavit conformes fieri imaginis Filii sui, ut sit ipse
primogenitus in multis fratribus (Rom. VIII, 29).
Todos aqueles que se regem pelo espírito de Deus, esses são filhos de Deus,
continua o Apóstolo. Vós não recebestes o espírito de servidão no temor, para
operar, todavia, somente por temor, como escravos; mas recebestes o espírito de
adoção dos filhos, em virtude do qual clamamos: Ó Pai, Pai! E o Apóstolo o prova,
acrescentando: O mesmo Espírito Santo dá testemunho a nosso espírito que somos
filhos de Deus. E sendo filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus, e
coerdeiros de Jesus Cristo; contanto que, não obstante, padeçamos com Ele, a fim
de que sejamos com Ele glorificados (Rom. VIII, 14-17).
Para ver com maior exatidão, para examinar mais profundamente e
compreender também esta adoção do homem por parte de Deus, é preciso observar
que, nesta adoção, a graça, a caridade e outros dons do Espírito Santo não são os
únicos que nos são dados, pois, foi-nos dado o mesmo Espírito Santo, que é o
Primeiro e Incriado dos dons que Deus fez aos homens.
Deus teria podido, na justificação e por meio da graça e da caridade infusa,
fazer-nos justos e santos, o que teria sido uma graça e um benefício imenso de
Deus, ainda quando não nos tivesse adotado por filhos Seus; porém, não Se deteve
neste primeiro favor, mas quis nos fazer de tal maneira justos, que realmente nos
pudesse adotar como filhos. Logo, teria podido fazer esta adoção dando-nos
somente a caridade, a graça e seus dons criados, dons indubitavelmente imensos;
porém, a infinita bondade de Deus quis formar, ela também, parte de Seus dons, e
santificar-nos por Si mesmo ao adotar-nos.
Por esta razão, o Espírito Santo uniu a seus dons a Sua própria vontade, a fim
de que, dando a graça e a caridade, desse-Se também Ele mesmo pessoal e
substancialmente, segundo aquelas palavras do Apóstolo: Por meio do Espírito
Santo foi derramado em nossos corações a caridade de Deus, e Ele se nos entregou:
Charitas Dei difusa est in cordibus nostris per Spiritus Sanctum, qui datus est nobis
(Rom. V, 5).
Por isto, o Apóstolo O chama Espírito de Adoção: Spiritus adoptionis (Rom.
VIII, 15). Tal é a suprema estima que Deus tem por nós; e esta é também nossa
suprema grandeza e elevação, pois recebendo a graça e a caridade, recebemos, ao
mesmo tempo, a pessoa do Espírito Santo, que Se unindo por Si mesma à caridade e
à graça, habita em nós, vivifica-nos, adota-nos, deifica-nos e conduz-nos a toda
forma de bem.
Quereis que digamos ainda mais? Escutai: o Espírito Santo, descendo
pessoalmente na alma justa, traz Consigo as demais Pessoas Divinas, o Pai e o
Filho, das quais é inseparável. Assim é que a Santíssima Trindade inteira vem
pessoal e substancialmente na alma justificada e adotada, e permanece e habita
nesta alma como em seu próprio Templo, contanto que a alma persevere na justiça,
conforme o teor daquelas palavras da Primeira Epístola de São João: Deus é amor, e
aquele que permanece na caridade, em Deus permanece, e Deus nele: Deus charitas
est; qui manet in charitate, in Deo manet, et Deus in eo (I Johann. IV, 16); e
conforme o teor daquelas outras palavras do grande Apóstolo aos Coríntios: Aquele
que está unido a Deus, forma um mesmo espírito com Ele: Qui adhaeret Domino,
unus spiritus est (I Cor. VI, 17).
É o mesmo que Jesus Cristo pediu a seu Pai, na véspera de sua Morte,
naquele divino discurso durante o qual disse: A fim de que todos sejam uma mesma
coisa, e que, como Vós, ó Pai, estais em mim e eu em Vós, por identidade de
natureza, assim sejam eles uma mesma coisa em nós, por uma união de amor: Ut
omnes unum sint, sicut tu, Pater, in me, et ego in te, ut et ipsi in nobis unum sint
(Johann. XVII, 21), isto é, que participem todos do mesmo Espirito que é uno, que
estejam unidos a Ele; e, por Ele, às demais Pessoas Divinas; que não sejam todos
mais quem um Nele, e isto no Espírito Santo, como as três Pessoas Divinas não são
mais que Um, em uma só e mesma natureza divina. Assim é como o explicam São
Cirilo (Lib. II, in Johann., c. XXVI), Santo Atanásio (Orat. IX, Contra Arian.), e
Folet seguindo a mesma doutrina.
Assim, na justificação e adoção da alma, a graça e a caridade são-nos
comunicadas; e, com elas, comunicam-Se o Espírito Santo e toda a Divindade, a
Santíssima Trindade que Se une a Seus dons substancialmente, para unir-nos
também substancialmente a Ela, e para santificar-nos, adotar-nos e deificar-nos. E
com esta adoção:
1º recebemos a dignidade suprema da filiação divina, a fim de que sejamos,
com efeito, filhos de Deus não somente acidentalmente pela graça, senão
também substancialmente por natureza, e sejamos como deuses; pois Deus
comunica-nos e dá-nos realmente Sua natureza;
2º por meio desta adoção, adquirimos, como filhos, direito à herança
celestial, à beatitude e a todos os bens de Deus, nosso Pai; e
3º Com esta filiação, conseguimos uma admirável dignidade de obras e de
méritos, isto é, que nossas obras tenham uma dignidade, um valor e um preço
imensíssimos, e plenamente proporcionados e convenientes à sua
recompensa, à vida e à glória eternas, que foram feitas para aqueles que são
verdadeiramente filhos de Deus; e é indubitável que estas obras saem do
mesmo Deus, do Espírito Divino que habita em nós, e no-las inspira,
cooperando nelas.
Disso que acabamos de dizer, resulta:
1º que a justiça inerente ou a graça justificante, por meio da qual somos
justificados e adotados como filhos de Deus, não é simplesmente uma
qualidade, como o creem alguns, senão que abraça muitíssimas coisas; a
remissão dos pecados, a fé, a esperança, a caridade e outros dons, e o mesmo
Espírito Santo, Autor dos dons, e, por conseguinte, a Santíssima Trindade!
Porque o homem recebe tudo isto na justificação infusa, como diz o santo
Concílio de Trento (Sess. VI, c. VII);
2º resulta também que aqueles que pensam que na justificação e na adoção se
nos dá o Espírito Santo relativo a seus dons, e não enquanto Sua substancia e
Pessoa, estão em um erro; porque São Boaventura ensina que o Espírito
Santo acompanha pessoalmente a seus dons, e que se converte em possessão
perfeita das almas justificadas e adotadas (In I Sent., d. 14, art. 2, q. 1). O
Mestre das Sentenças ensina o mesmo (Lib. I, Dist. XIV e XV, segundo
Santo Agostinho e outros Doutores). Scotus, Gabriel e Marsílio falam da
mesma maneira. Santo Tomás ensina claramente esta mesma doutrina (S. Th.
I, 8. 43. Art. 3 et 6; et q. 38, art. 8). Este diz que o Espírito Santo dá-Se a
todos os justos, não somente quanto ao afeto, senão também quanto a Sua
Pessoa. O mesmo ensinam Vasquez, Valencia e Suarez (Lib. XII, De Deo
Trino et Uno, c. V). Suarez cita, em apoio a esta doutrina, que dá como certa,
a São Leão Magno, Santo Agostinho e Santo Ambrósio.
3º desta doutrina resulta ainda que nossa adoção, ainda que seja una em si
mesma, é, contudo, dupla em virtude. A primeira, pela qual somos adotados
como filhos de Deus por uma caridade criada e pela graça infusa na alma, o
que é uma imensa participação da natureza divina; e, pela segunda,
recebemos o Espírito Santo e a natureza divina pela graça, e, por isso, somos
deificados e adotados como filhos de Deus. Assim, pois, esta dupla adoção
começa aqui pela graça; porém, no Céu, terminará com a glória eterna, com a
visão beatífica e a perdurável posse de Deus.
4º Segue-se, portanto, desta doutrina que, da mesma maneira que Jesus Cristo
é Filho de Deus por natureza – como Deus, pela geração eterna, e como
homem, pela união hipostática – da mesma maneira somos filhos adotivos
dos homens. Porque estes nada recebem, fisicamente falando, de seu pai
adotivo; somente recebem uma denominação moral com a qual tem direito à
herança; porém, nós recebemos de Deus a graça, e com a graça a mesma
natureza de Deus; e como entre os homens chamamos propriamente de “pai”
aquele que comunica a outro sua natureza humana engendrando-o, assim a
Deus chamamos de Pai não somente de Jesus Cristo, senão de nós mesmos,
porque nos comunica Sua natureza, por meio da graça que comunica a Jesus
Cristo com a união hipostática, fazendo-nos assim irmãos de Jesus Cristo.
Daqui, portanto, devemos aprender quão grande é o benefício da filiação e da
adoção divinas. Poucas pessoas conhecem esta infinita dignidade, tal como ela
acaba de ser demonstrada. Poucas pessoas refletem sobre isto ou ponderam esta
grandeza do homem com a detida atenção que o assunto merece. Todos deveríamos
certamente admirar, plenos de respeito, tal grandeza; e os pregadores, os doutores,
deveriam explicar e expor esta sublime grandeza do cristão, a fim de que os fieis
compreendessem bem que são os templos vivos de Deus, que abrigam a Deus
mesmo em seus corações, e que, por conseguinte, devem caminhar com Deus,
conversar dignamente com tal Hóspede que, em todas as partes, acompanha-lhes,
em todas as partes está e a tudo vê.
Com muita razão, diz, pois, o grande Apóstolo: Não sabeis que vossos corpos
são o templo do Espírito Santo que está em vós, que vos foi dado por Deus; e que
não vos pertenceis, pois fostes comprados a um altíssimo preço? Glorificai a Deus e
levai-O em vosso corpo3.
Ó cristão, exclama São Leão, reconhece tua grandeza, e sendo partícipe da
natureza divina, não te degrades; recorda-te de quem é o Chefe e de que Corpo4 és
membro. Recorda-te de que, livre do poder das trevas, fostes transportado à luz e ao
reino de Deus. Com o Sacramento do Batismo, foste convertido em templo do
Espírito Santo, não afugentes de teu coração, com ações pecaminosas, um hóspede
tão ilustre, e livra-te de submeter-te novamente à escravidão do demônio; pois teu
preço é o Sangue de Jesus Cristo, que te julgará na verdade, porque a misericórdia
te resgatou5.
Ouvi a Santo Agostinho: O primeiro nascimento vem do homem e da
mulher; a segunda natividade procede de Deus e da Igreja. E eis aqui que nasceram
3 An nescitis quoniam membra ventra templum sunt Spiritus Sancti, qui in vobis est, quem habetis a Deo, et non estis vestis? Empti enim estis pretio magno. Glorificate et portate Deum in corpore vestro (I Cor VI, 19-20).4 Corpo Místico de Cristo (Nota do tradutor).5 Agnosce, o christiane, dignitatem tuam, et divinae consors factus naturae, noli in veterem vilitatem degenere conversatione redire. Memento cujus spiritus et cujus corporis sis membrum. Reminiscere quia, erectus de potestate tenebrarum, translatus es in Deu lumen et regnum. Per Baptismatis sacramentum Spiritus Sancti factus est templum. Noli tantum habitatorem pravis de te actibus effugare, et diaboli te iterum subjicere servituti; quia pretium tuum sanguis est Christi, qui in veritate te judicabit, quia misericórdia te redemit (Serm. I, de Nativ.).
de Deus, e resulta que um Deus habita em nós. Que grande mudança: Deus fez-se
homem, e o homem tornou-se espírito. Que maravilha é esta? Que honra é esta,
meus irmãos? Elevai vossa alma para esperar e tomar a única realidade digna de ser
desejada, e renunciai aos prazeres do século. Fostes comprados à custa de um alto
preço: por vós, o Verbo fez-se carne; por vós, Aquele que era filho de Deus fez-se
filho dos homens; vós vos convertestes em filhos de Deus: Propter vos Verbum
caro factum est: propter vos, qui era Filius Dei, factus est filius hominis; ut qui
eratis filii hominum, efficeremini filii Dei (Serm. XXIV, de Temp.).
O mesmo grande Doutor diz, em outra parte: Os homens são filhos dos
homens quando agem mal; porém, quando agem bem, são filhos de Deus. Deus, de
filhos dos homens faz filhos de Deus; porque do Filho de Deus fez o Filho do
Homem. Admirai quão grande é esta participação da Divindade! O Filho de Deus
fez-se partícipe de nossa mortalidade, a fim de que o homem mortal seja partícipe
de sua Divindade. O grande Deus que promete a divindade manifesta-vos uma
caridade infinita6.
Escutai o que diz São Cirilo de Jerusalém: conhecendo nossa grandeza,
conduzamo-nos espiritualmente para fazer-nos dignos da adoção de Deus; porque
aqueles que se conduzem segundo o espírito de Deus, são filhos de Deus.
Procedamos desta maneira, para que não aconteça que nos seja dito: “Se fôsseis
filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão”. Glorifiquemos a nosso Pai celestial
com obras santas, a fim de que, vendo os homens nossa boa conduta, louvem a
nosso Pai que está nos Céus (Catech. VII).
Aqueles nos quais Deus vê a imagem de seu Filho, diz Santo Ambrósio,
admite-os, por seu Filho, no número de seus filhos (Lib. V de Fide,. c. III).
Podemos admirar as obras dos homens, diz São Cipriano, sabendo que somos
filhos de Deus? Cai do cume de sua grandeza aquele que admira outra coisa que não
seja Deus: Nunquam humana opera mirabitur quisquis se cognoverit filium Dei? 6 Filii hominum sunt, quando male faciunt; quando bene, filii Dei. Hos enim facit Deus ex filis hominum filios Dei, quia ex Filio Dei fecit Deus filiam hominis. Videte quae sit illa participatio Divinitatis! Filius enim Dei particeps nostrae mortalitatis effectus est, ut mortalis homo fiat particeps Divinitatis suae. Qui tibi promissit Divinitatem, ostendit in te caritatem. (In Psalm. LII).
Dejicit se de culmine generositatis suae qui admirari aliquid post Deum potest (Lib.
de Spectaculis). Quando chamamos a Deus Pai nosso, prossegue o mesmo Santo,
devemos conduzir-nos como filhos de Deus, a fim de que, crendo-nos ditosos em ter
a Deus por Pai, sinta também Ele a satisfação em ter-nos por filhos. Conduzamo-
nos como temos de conduzir-nos, sendo templos de Deus, tendo a Deus dentro de
nós; a fim de que, tendo começado a ser celestiais e espirituais, não nos ocupemos
mais que das coisas do espírito e do Céu7.
O homem é cidadão da Casa de Deus e do Céu
Já não sois estrangeiros nem migrantes, diz São Paulo aos Efésios, mas
concidadãos dos Santos, e domésticos ou familiares da casa de Deus: Jam non estis
hospites, et advenae, sed estis cives Sanctorum et domestici Dei (Ephes. II, 19).
Concidadãos dos Anjos, dos Patriarcas, dos Profetas, dos Apóstolos, dos
Mártires, dos Santos e de todos os eleitos. Tendes o direito de cidadania na Igreja
de Jesus Cristo; sois da casa e da família de Deus, da Igreja de Deus; Deus é vosso
Pai, Maria e a Igreja são vossas mães, os eleitos são vossos irmãos. Sois da família
do Messias-Rei, Deus e homem, da república cristã, na qual tendes direito aos
Sacramentos da Igreja, a todos os dons de Jesus Cristo, e estais inscritos como
cidadãos e herdeiros da vida eterna. Foi-vos dado um Anjo para proteger-vos, e
levais o nome de um Santo. Nada vos falta! Quão grande e ditoso é o homem!
O homem é templo de Deus e casa de Jesus Cristo
Não sabeis vós que sois templo de Deus?, pergunta São Paulo aos Coríntios:
Nescitis quia templum Dei estis? (I Cor. III, 16). Sois o edifício, não do homem,
7 Quando Deum Patrem dicimus, quase filii Dei agere debemus; ut nobis placemus de Deo Patre, sic sibi placeat et ille de nobis. Conversemur quase Dei templa, et Deum in nobis constet habitare; ut qui coelestes et spiritales esse cepimus, non nisi spiritalia et coelestia cogitemos et agamus (Tract. de Orat.).
senão de Deus; e, por conseguinte, sois um templo, não profano, senão um templo
santo, no qual habita Deus mesmo pela fé, pela graça, pela caridade e por meio de
todos os seus dons. Vós sois o tabernáculo de Deus, os vasos consagrados a Deus.
Não sabeis, acrescenta o grande Apóstolo, que vossos corpos são templos do
Espírito Santo que habita em vós, o Qual recebestes de Deus? An nescitis quoniam a
vestra templum sunt Spiritus Sancti, qui in vobis est, quem habetis a Deo? (I Cor
VI, 19).
Não violemos jamais este templo. Se alguém profana o templo de Deus,
Deus lhe destruirá, diz São Paulo, porque o templo de Deus é Santo, e vós sois este
templo: Si quis templum Dei violaverit, disperdet illum Deus. Templum enim Dei
sanctum est, quod estis vos (I Cor. III, 17).
Jesus Cristo, diz São Paulo, deixou-Se ver como filho em sua própria casa,
cuja casa somos nós: Christus tamquam filius in domo sua, quae domus sumus nos
(Heb. III, 6).
Os cristãos são membros de Jesus Cristo, Seus herdeiros e coerdeiros
Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo?, diz São Paulo: Ne
scitis quoniam corpora vestra membra sunt Christi? (I Cor. VI, 15). Sois o Corpo
Místico de Cristo e membros unidos a outros membros: Vós estis corpus Christi, et
membra de membro (I Cor. XII, 27).
Assim, pois, se somos filhos, disse São Paulo aos Romanos, somos também
herdeiros; herdeiros de Deus e coerdeiros de Jesus Cristo: Si autem filii, et haeredes,
haeredes quidem Dei, cohaeredes autem Christi (Rom. VIII, 17).
O homem custou o Sangue de Jesus Cristo
Fostes comprados a alto preço, diz São Paulo, glorificai, pois, a Deus, e
levai-Lhe sempre em vosso corpo: Empti estis pretio magno. Glorificate et portate
Deum in corpore vestro (I Cor. VI, 20). Vós já não vos pertenceis: Non estis vestri
(I Cor. VI, 19).
Vós, Senhor, fostes entregue à morte, diz o Apocalipse; e, com o vosso
Sangue, vós nos resgatastes para Deus: Occisus es, et redimiste nos in sanguine tuo
(Apoc. V, 9).
Formoso é o sol, precioso; porém, não custou o Sangue de Jesus Cristo.
Ricas em esplendor são a lua e as estrelas; porém, não custaram o Sangue de Jesus
Cristo. A terra e os mares valem muitíssimo; porém, Jesus Cristo não deu seu
Sangue por eles. Somente o homem custou o Sangue de um Deus! Jesus Cristo
morreu somente pelo homem!
Tão grande é o homem e tão nobre, que todo o ouro, todo o dinheiro do
mundo e todo o universo não vale o que ele vale. Não se encontrou um preço digno
do homem nas criaturas, nem no mundo inteiro; a não ser no Sangue de um Deus!
Se puseres numa balança, portanto, de um lado o Sangue de Cristo, e do
outro o do homem, o preço do homem move o Sangue de Cristo. E se é impossível
avaliar o valor do Sangue de um Deus, é também impossível avaliar o valor do
homem. Se quereis que vos diga o quanto valeis, dizei-me, antes, quanto vale o
Sangue de Jesus Cristo.
Não fostes resgatados a preço de ouro nem de prata, diz o Apóstolo São
Pedro, mas com o Sangue precioso de Jesus Cristo, como de um Cordeiro
imaculado e sem mancha: Non corruptilibus auro vel argento redepti estis; sed
pretioso sanguine quase Agni immaculati Christi et incontamini (I Petr. I, 18-19).
O homem é tão grande que participa da natureza de Deus.
O homem é, de certo modo, Deus.
O homem, criado à imagem de Deus, é uma espécie de divindade, porém, é-
o, sobretudo, em sua geração por Jesus Cristo, quando se converte em Deus,
quando participa da natureza divina. O Verbo fez-se carne: Verbo caro factum est
(Johann. I, 14). Eis aqui o homem divinizado.
Temos de felicitar à natureza humana, diz Santo Agostinho, por tê-la tomado
o Verbo para Si, por tê-la transladado imortal no Céu, e por ter a argila sido elevada
tanto que se encontra hoje à direita do Pai. Quem não felicitaria sua natureza feita
imortal em Jesus Cristo, e quem não esperaria para si mesmo igual maravilha por
Jesus Cristo? Ut Dominus, induto corpore, factus est homo, ita et, nos homines ex
Verbo Dei deificamur, eo quod receptum sit in carne (Serm. de Nativ.).
Assim como o Senhor, diz Santo Atanásio, fez-se homem tomando um
corpo, os homens foram deificados pelo Verbo de Deus ao ser Ele recebido na carne
(Serm. IV contra Arian.).
Na Encarnação, o Verbo eterno une-se à humanidade como a uma esposa, a
fim de unir-se com todo o gênero humano, e, por este meio, fazer imortais aos
mortais, celestiais aos habitantes da terra, e transformar em deuses aos homens.
Jesus Cristo quis ser nosso irmão em sua Carne e em seu Sangue. Pois, como
escreve Santo Agostinho, aquele que chama a Deus Pai nosso, chama Irmão seu a
Jesus Cristo: Nam qui Dicit Deo Pater, Christo Dicit frater (In Psalm. XLVIII).
Jesus Cristo, diz São Gregório Nazianzeno, nasceu na carne para fazer-nos
nascer no Espírito; nasceu no tempo para fazer-nos nascer para a eternidade; nasceu
em um estábulo, para dar-nos nascimento para o Céu8.
Escutai a Santo Agostinho, Deus fez-se homem para que o homem se
convertesse em Deus; para que o homem comesse o pão dos Anjos, o Senhor dos
Anjos fez-se homem: Factus est Deus homoe, ut homo fierit Deus: ut panem
Angelorum manducaret homo, Deus Angelorum factus est homo (Serm. IX, de
Nativ.).
8 Natus est Christus in carne, ut nos nasceremur in Spiritu; natus est in tempore, ut tu nascceris in aeternitate; natus est in satabulo; tu nascereris in coelo (Serm. de Nativ.).
Escutai a São Gregório Nazianzeno: O Verbo do Pai torna-se homem, e um
homem que nos pertence, a fim de unir, por esta mescla, Deus com o homem. Em
ambos os casos, é um só Deus, um Deus feito homem, a fim de converter-me a
mim, um mero mortal, em um Deus9.
Foi pela mesma razão, diz Clemente de Alexandria, que Jesus Cristo, com
sua Encarnação, mudou a terra em Céu, e que fez anjos, ou melhor, deuses aos
homens (Adhortat ad Gentes).
O mesmo Clemente comenta aquilo que São João escreveu em seu
Evangelho: deu-lhe o poder de se tornarem filhos de Deus. E o Verbo fez-se carne:
Dedit eis potestatem filios Dei fieri. Ete Verbum caro factum est (Johann I, 12.14).
Chegaram a ser filhos de Deus; e, a partir daí, até deuses, havendo-se o Verbo feito
carne. O Verbo, com efeito, fez-se carne para converter aos homens em deuses.
Ouvi também a Orígenes: o Verbo fez-se carne, entretanto, para nós, que
sem a Encarnação não conseguiríamos ser transformados em filhos de Deus:
Verbum caro factum est, sed propter nos, qui non nisi per Verbi carnem
potuissemus in Dei filios transmutari.
A salvação desceu para voltar a subir nos redimidos. Os homens foram feitos
deuses por meio Daquele que de um Deus fez um Homem: De hominibus facit deos,
qui de Deus fecit hominem. E habitou entre nós; possui nossa natureza, para fazer-
nos partícipes da natureza divina: Et habitavit in nobis, is est, naturam mostram
possidet, ut suae naturae particeps faceret nos (Homil. II).
Jesus Cristo, diz São Leão, fez-se Filho do Homem, para que pudéssemos ser
filhos de Deus: Ideo Christus filius hominis factus est, ut nos filii Dei esse possimus
(Serm. VI de Nativ.).
9 Patris Verbum est homo noster, ut hujusmodi mixtione Deum hominibus misceat. Unus utrimque Deus est, hactenus homo effectus, ut me ex mortali Deum efficiat (In Distich.).
Satanás disse a nossos primeiros pais, para enganá-los: Se comeis desta fruta,
sereis como deuses: Eritis sicut dii (Gen. III, 5). Sem querê-lo, profetizou; e sua
profecia haveria de ter cumprimento com a Encarnação. Sua mentira, seu engano
haveria de converter-se em sua vergonha, para sua própria confusão e derrota; e
haveria de chegar a ser uma realidade, e a mais magnífica de todas as verdades.
Assim é como Deus, ao fazer-se Homem, quis que o homem que desejava chegar a
ser Deus, chegasse a sê-lo de fato, e o conseguisse sem cometer nenhum crime. E o
Rei Profeta, entrevendo com a luz do Espírito Santo ao homem deificado pela
Encarnação do Verbo, já anunciara esta deificação do homem: Ego dixi: Dii estis, et
filii excelsi omnes. Eu vos disse: Sois deuses, todos sois filhos do Altíssimo (Psalm.
LXXXI, 6).
Deus, diz São Bernardo, fez-se homem para fazer do homem um Deus: Ideo
Deus factus est homo, ut homo fieret Deus (Serm. in Cant.). Todos nós, com Jesus
Cristo, nosso Chefe, somos Jesus Cristo: Nos omnes cum capite nostro, Christo,
Christus sumus (Serm. de Nativ.).
A alma que se une a Deus, assume a sua forma, torna-se divina, converter-se
em Deus. Por meio da imagem de Deus impressa em minha alma, diz São Basílio,
obtive o uso da razão; porém, havendo chegado a ser cristão, sou semelhante a
Deus10.
Se Jesus Cristo saiu dos dias da eternidade aos dias do tempo, como disse
um profeta, foi para fazer-nos sair dos dias do tempo e fazer-nos entrar nos dias da
eternidade.
A Majestade omnipotente, diz São Bernardo, fez três coisas, verificou três
mesclas, ao tomar nossa carne; e estas três mesclas são todas tão admiráveis que
jamais se sucederam obras iguais, nem acontecerão novamente na terra. Pela
Encarnação, uniram-se intimamente Deus e o homem, uma Mãe e uma Virgem, a fé
e o coração humano. Admiráveis são tais misturas, e é o maior dos milagres que
10 Per imaginem animar impressão meae, obtinui rationis usum; verum Christianus effectus, utique similis efficior Deo (Homil. X, Hexaem.)
coisas tão diversas, tão heterogêneas, tão divididas entre si, tenham-se unido
perfeitamente (Serm. super Missus est).
Deus, diz São Cipriano, está mesclado com o homem; Jesus Cristo quis ser
aquilo que é o homem, a fim de que o homem pudesse ser aquilo que é Jesus Cristo:
Deus cum homine miescetur; quod homo est, esse Christus voluit, ut et homo possit
esse quod Christus est (Serm. de Nativ.).
Desceu para fazer-nos subir, diz Santo Agostinho, e participando da natureza
dos filhos dos homens, adotou aos filhos dos homens para fazer-lhes partícipes de
sua natureza: Descendit ille, ut nos ascenderemos; et, participata natura filiorum
hominum; ad participandam etiam suam naturam adoptaret filios hominum (Serm.
de Nativ.). Ó homens, exclama, não desconfieis de poder chegar a ser filhos de
Deus, porque o Filho de Deus, o Filho do próprio Deus, fez-se homem: O homines,
nolite desperare vos fieri posse filios Dei, quia et ipse Filius Dei caro factus est (Ut
supra).
Ao recordar aquelas palavras de Jesus Cristo a seus Apóstolos: Permanecei
em mim, que eu permanecerei em vós: Manete in me, et ego in vobis (Johann. XV,
4), exclama São Bernardo: Ó que sublimidade! Que autoridade tão sublime dispõe
que o homem habite com os Anjos, que a terra e o pó subam até o Céu, que o
homem saído do barro agregue-se à sociedade dos Anjos! E ainda mais, que a
criatura viva no Criador; a obra, em seu Executor; o resgatado, em seu Redentor; o
servo, em seu Dono; o pecador, no mesmo Justo; o lodo, Naquele que tudo tirou do
nada; o transitório, no Eterno; a miséria, no Bem Supremo. Viver Naquele que dá a
soberana felicidade, Naquele que santifica o que é Santo, que é a Verdade e a Vida,
e a glória eterna, a alegria do mundo, a beleza do Céu, a suavidade do Paraíso, a
venturosa Eternidade, e a Beatitude eterna, isto é, em nosso Senhor Jesus!
Sois partícipes da natureza divina, diz o apóstolo São Pedro: Divinae
consortes naturae (II Petr. I, 4). A alma adornada da graça de Deus é uma rainha
infinita preciosa, cuja beleza é superior à beleza natural dos Anjos e de todas as
criaturas. E a razão é que, por meio da graça, participamos da natureza de Deus, e,
por conseguinte, participamos superabundantemente e muito de perto da beleza
sobrenatural e suprema de Deus, infinitamente superior a toda beleza natural e
criada.
Citando aquelas palavras do profeta Baruc sobre Jesus Cristo: Depois de tais
coisas Ele foi visto sobre a terra e conversou com os homens: Post haec in terris
visus est, et cum hominibus conversatus est (Baruch I), profecia cujo cumprimento
manifesta São João com aquelas sublimes e surpreendentes palavras: Et Verbum
caro factum est, et habitavit in nobis – E o Verbo se fez carne e habitou entre nós
(Jo I, 14)., diz São Cipriano de uma maneira admirável: Que quereis, ó homens?
Em outro tempo, dizia-se a Deus: “O homem vos pertence”; e agora diz-se ao
homem: “Deus vos pertence”! Ó homem, bastas a Deus; baste-te Deus também: O
homo, sufficis tu Deo; sufficiat tibi Deus (Serm. de Ascens.).
Reconhece aqui, cristão, tua grandeza, teu nome e tua sabedoria. O
Cristianismo é a imitação da natureza divina. Se és cristão, imita a Jesus Cristo; não
carregues vã e inutilmente seu Nome; levai-O, pelo contrário, com fartura de
virtudes. Cumpre aquilo que Ele exige com obras dignas de tão grande Nome.
Corresponda tua vida a tal Nome, a fim de que este Nome não seja um Nome vão, e
teu pecado, enorme! (Santo Ambrósio, De Dignit. Sacerd.).
O cristão que obra de maneira diferente, leva um nome falso; não tem mais
que mera aparência de cristão; não tem de cristão nem o espírito, nem o coração,
nem o pensamento; não é um cristão! É necessário que o cristão diga: Sou da raça
divina, o Filho de Deus é meu irmão, meu doutor, meu dono; é necessário que eu
que viva divinamente, a fim de que eu seja outro Jesus Cristo. Porque, segundo diz
o Apóstolo São Pedro: Sois vós a linhagem escolhida, uma classe de sacerdotes,
reis, gente santa, povo de conquista: Vos genus electum, regale sacerdotium, gens
sancta, populus adquisitionis (I Petr. II, 9).
Jesus Cristo é necessário para abrigar nossa alma
Para vestir nosso corpo animal basta-nos a pele de uma fera; para abrigar
nossa alma, que é espiritual, necessitamos de Jesus Cristo. Revesti-vos de nosso
Senhor Jesus Cristo, diz São Paulo aos Romanos: Induimini Dominum Jesum
Christum (Rom. XIII, 14). Pois, todos vós que fostes batizados em Cristo, estais
revestidos de Cristo, diz aos Gálatas: Quicumque enim in Christo baptizati estis,
Christum induistis (Gal. III, 27).
Revesti-vos – escreve São Paulo aos Efésios – do homem novo que foi criado
conforme à imagem de Deus em justiça e santidade verdadeira: Induite novum
hominem, qui secundum Deum creatus est in justitia et sanctitate veritate (Ephes.
IV, 24). Outra veste que não seja Jesus Cristo seria indigna de nossa alma. Julgai,
portanto, qual seja nossa dignidade pela riqueza de tal veste.
Tão grande é o homem que somente pode viver de Jesus Cristo
Se morremos com Jesus Cristo, diz São Paulo aos Romanos, cremos
firmemente que viveremos também juntamente com Cristo. Considerai-vos também
como mortos para o pecado; porém, vivos para Deus em Jesus Cristo (Rom. VI,
8.11). Cristo, diz este Apóstolo aos Coríntios, morreu por todos, a fim de que
aqueles que vivem não vivam mais para si, senão para Aquele que por eles morreu e
ressuscitou: Pro omnibus mortuus est Christus; ut et qui vivunt juam non sibi
vivant, des ei qui pro ipsis mortuus est et resurrexit (II Cor. V, 15).
Vivo, porém não eu, mas é Cristo quem vive em mim, exclamava o grande
Apóstolo dirigindo-se aos Gálatas: Vivo, jam non ego, vivit vero in me Christus
(Gal. II, 20). Para mim, Cristo é a vida, dizia também aos Filipenses: Mihi vivere
Christus est (Philip. I, 21).
Escutai a Orígenes: Quando Jesus Cristo confiou São João à sua Mãe,
dizendo-Lhe: “Mulher, aqui tens a teu filho”, é como se houvesse dito: este é Jesus
que puseste no mundo, porque aquele que é perfeito não vive mais ele mesmo, é
Jesus Cristo quem vive nele; e vivendo em Jesus Cristo, podem aplicar-se aquelas
palavras ditas a Maria: “– Eis aqui a vosso filho Jesus Cristo” (In haec verba
Evang.).
De tal maneira é Jesus Cristo a vida do cristão, e o cristão deve de tal
maneira viver com Jesus Cristo, que se não goza de tal vida, pode dizer a si mesmo
que morreu.
Tão grande é o homem que necessita de um Deus inteiro por alimento
Para alimentar o corpo, a erva dos campos e uns quantos grãos bastam;
porém, para alimentar a alma, criada à imagem de Deus, é-lhe necessário a graça de
Deus. Esta alma necessita do Corpo, do Sangue, da Alma e da Divindade de Jesus
Cristo.
Em verdade, em verdade, Eu vos digo que se não comerdes a Carne do Filho
do homem, e não beberdes seu Sangue, não tereis a vida em vós, disse o mesmo
Jesus Cristo: Amen, amen dico vobis: Nisi manducaverit carnem Filii hominis, et
biberitis ejus sanguinem, non habebitis vitam in vobis (Johann. VI, 54).
Poderíeis vos formar uma ideia de vossa grandeza? És tão sublime, ó
homem, que necessitais de um Deus inteiro por alimento; sem este pão, sem o Pão
Eucarístico, não viveis.
Toda abundância que não seja meu Deus, é indigência, exclama Santo
Agostinho: Omnis copia quae Deus meus non est, egestas est (Lib. Confess.).
Somente Vós, ó Deus meu, saciais minha alma. Assim manifestais quão
grande é para vós a criatura racional, pois, tudo o que seja menos que Vós é
insuficiente para fazê-la feliz e alimentá-la; e tampouco ela se basta a si mesma.
O homem é tão grande que necessita por morada a Casa do próprio Deus
Um simples pedreiro é suficiente para fazer uma casa que livre nosso corpo
da intempérie. Uma mesquinha choça coberta de palha é tudo de quanto necessita;
e, logo, hão de lhe bastar, para a sepultura, um rincão de terra e um pobre ataúde.
Porém, a alma necessita de um Palácio, não edificado por mão do homem,
senão por mão do próprio Deus. Nem os mais hábeis arquitetos podem edificar uma
habitação digna para a alma. É preciso o Arquiteto Celestial e é necessário o Céu, a
mesma morada de Deus. Jesus Cristo encarregou-se de tão magnifica construção.
Vou, disse, preparar-vos um lugar: Vado parare vobis locum (Johann. XIV, 2).
Tão grande é a alma que necessita da imortalidade
O homem necessita da imortalidade, e a tem. Deus fez o homem imortal,
indestrutível: Deus creavit hominem inexterminável (Sap. II, 23). Irá para a
eternidade, que é a sua morada: Ibit homo in domo aeternitatis suae (Eccle. XII, 5).
Assim, pois, nada de transitório foi feito para o homem; o homem foi feito para
Deus, que nunca acaba.
O homem criado à imagem de Deus; o homem de um preço infinito; o
homem-rei, servidor de Deus, filho de Deus; o homem que tem a Deus por Pátria; o
homem concidadão dos Anjos; o homem templo de Deus e casa de Jesus Cristo,
membro de Jesus Cristo, herdeiro de Deus, coerdeiro de Jesus Cristo; o homem
participa da natureza de Deus, e foi feito por Deus para a Encarnação do Verbo; o
homem necessita de Jesus Cristo por veste, busca a Jesus por vida, a Jesus Cristo
por alimento, e ao Céu por morada; o homem que necessita da imortalidade; o
homem para quem é necessário tudo isso, e que é tudo o que temos dito, está
indubitavelmente dotado de uma dignidade, de certo modo, infinita.
Se tu soubesses, ó homem, ler teus títulos de dignidade e nobreza; se tu te
conhecesses, quanto te respeitarias, quão feliz te crerias, quanto trabalharias para
fazer-te digno de tua sublime vocação e de teu alto destino! Quando desprezarias a
tudo o que é tão inferior a ti e tão indigno de ti! Quanto te ocuparias de tua sublime
finalidade, que é conhecer a Deus, amá-Lo, servir-Lhe e obter a vida e a glória
eterna! Porém, desgraçadamente para ti, como diz o Salmista, és cego, surdo e
mudo; és como aquelas estátuas de que fala o Real Profeta: Tens boca, e não falas;
olhos, e não vês; ouvidos, e não ouves; nariz, e não sentes; mãos, e não tocas
nenhum objeto; pés, e não andas; garganta, e não produzes nenhum som11.
Homem desgraçado, e criminalmente desgraçado, a quem podem aplicar-se
aquelas terríveis palavras do Real Profeta: O homem, em meio de sua grandeza, não
compreendeu quem era; igualou-se aos animais, e fez como um deles: Homo, cum
in honore esset, non intelexit; comparatus est jumentus insipientibus, et similis
factus est illis (Psalm. XLVIII, 12).
O homem é grande somente por Deus. Assim é que deve unir-se a Deus
O homem somente é grande por Deus; assim é que deve unir-se a Ele, e tão
somente a Ele. Recorda-te, sim, que não existes senão para conhecer, amar e servir
a Deus, para obter a graça neste mundo, e a glória eterna no outro.
Ó homem, diz São Gregório de Nissa, não esqueças que vós foste criado para
ver a Deus e contemplá-Lo, e não para arrastar-te nesta terra miserável; não para
viver como os brutos, lisonjeando as tuas paixões; mas para levar uma vida
celestial, com o objetivo de subir ao Céu (Orat. II in Psalm. XXXIII).
Ó alma, exclama Santo Agostinho, ó alma feita à imagem de Deus, resgatada
com o Sangue de Jesus Cristo, esposa de Jesus Cristo pela fé, filha adotiva do
Espírito Santo, adornada de virtudes, destinada a viver com os Anjos, ama Aquele
que te amou tanto; ocupa-te Daquele que não pensa senão em ti; busca Aquele que
te busca; ama a Deus, teu Divino Amante; vela com teu Deus, que vela por ti;
trabalha com Ele, posto que Ele só trabalha por ti; e sê pura com Ele, que é Puro por
excelência, sê santo com o Santo dos Santos (Lib. Confess.)
11 Os habent, et non loquentur óculos habent, et non videbunt; aures habent, et non audient; nares habent, et non odorabunt; manus habent, et non palpabunt, pedes habent, et non ambulabunt; non clamabunt in gutture suo (Psalm. CXIII, 5-7).
Assim, diz São Paulo, posto que haveis recebido por Senhor a Jesus Cristo,
segui seus passos, unidos a Ele como a vossa raiz, e edificados sobre Ele como
sobre o vosso fundamento, e confirmados na Fé: Sicut accepistis Jesum Christum
Dominum, in ipso ambulate, radicati et superaedificati in ipso, et confirmati fide
(Col. II, 6-7).
Observai aqui que São Paulo dá três excelentes meios para ser de Deus,
meios que indica com três comparações. Compara Jesus Cristo e à fé que há de
inspirar-nos:
1º a uma via que nos está traçada e que temos de seguir: In ipso ambulate;
2º a uma raiz à qual devemos nos apegar, à qual nos devemos aderir:
Radicati; e
3º a um fundamento sobre o qual é preciso edificar: Superaedificati in ipso.
É preciso marchar segundo Jesus Cristo, arraigar-se Nele, e edificar sobre Ele
com a prática das virtudes. As virtudes, diz São Bernardo, são astros, e o homem
das virtudes é o firmamento: Virtus est sidus, et homo virtutum est coelum
(Manual., c. XXIV).