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5 Jardins Comunitários e Outros Espaços Públicos Em Nova York, a história dos jardins comunitários teve início nos anos 1970, quando havia mais de 10 mil lotes vagos na cidade, principalmente nos bairros onde os edifícios foram abandonados pelos senhorios e inquilinos, e passaram por incêndios ou demolições. A comunidade do entorno dessas áreas se organizou para trabalhar junto e transformar esses lotes em lugares para embelezar o bairro, cultivar alimentos e manter olhos e ouvidos "na rua", uma forma de combater o crime e as drogas. O termo "jardim comunitário" pode ser definido de várias maneiras. A American Community Garden Association (2014) descreve o jardim comunitário como "qualquer pedaço de terra onde existe um jardim, e que pode ser compartilhado por um grupo de pessoas”. Na cidade de Nova York, um terreno que satisfaça essa definição, e que tenha permissão do proprietário para registrá-lo no Greenthumb, programa da prefeitura, pode ser definido como tal. Na base de dados da instituição, encontramos jardins de escolas, igrejas e muito mais. Podemos definir os jardins comunitários como locais abertos para o público e onde, em teoria, qualquer um pode participar de suas atividades. Neste capítulo, serão discutidos o papel dos espaços públicos e, mais especificamente, dos jardins comunitários, em recuperar o tecido social e ambiental de uma cidade, fornecendo embasamento teórico para a adequação dessas áreas como contexto sociocultural da pesquisa de campo desta tese. 5.1. A revolução verde nova-iorquina O primeiro jardim comunitário da cidade de Nova York foi criado em 1973, com o grupo Green Guerrilla (figura 25), quando o Conselho de Meio Ambiente da cidade decidiu iniciar um programa municipal para jardinagem, conhecido como Operação Greenthumb. Essa organização foi fundada em 1978, inicialmente, como parte do Departamento de Serviços Gerais, a agência da cidade que administrava as propriedades da cidade. Usando recursos do Federal

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5 Jardins Comunitários e Outros Espaços Públicos

Em Nova York, a história dos jardins comunitários teve início nos anos

1970, quando havia mais de 10 mil lotes vagos na cidade, principalmente nos

bairros onde os edifícios foram abandonados pelos senhorios e inquilinos, e

passaram por incêndios ou demolições. A comunidade do entorno dessas áreas se

organizou para trabalhar junto e transformar esses lotes em lugares para embelezar

o bairro, cultivar alimentos e manter olhos e ouvidos "na rua", uma forma de

combater o crime e as drogas.

O termo "jardim comunitário" pode ser definido de várias maneiras. A

American Community Garden Association (2014) descreve o jardim comunitário

como "qualquer pedaço de terra onde existe um jardim, e que pode ser

compartilhado por um grupo de pessoas”. Na cidade de Nova York, um terreno

que satisfaça essa definição, e que tenha permissão do proprietário para registrá-lo

no Greenthumb, programa da prefeitura, pode ser definido como tal. Na base de

dados da instituição, encontramos jardins de escolas, igrejas e muito mais.

Podemos definir os jardins comunitários como locais abertos para o público e

onde, em teoria, qualquer um pode participar de suas atividades.

Neste capítulo, serão discutidos o papel dos espaços públicos e, mais

especificamente, dos jardins comunitários, em recuperar o tecido social e

ambiental de uma cidade, fornecendo embasamento teórico para a adequação

dessas áreas como contexto sociocultural da pesquisa de campo desta tese.

5.1. A revolução verde nova-iorquina

O primeiro jardim comunitário da cidade de Nova York foi criado em

1973, com o grupo Green Guerrilla (figura 25), quando o Conselho de Meio

Ambiente da cidade decidiu iniciar um programa municipal para jardinagem,

conhecido como Operação Greenthumb. Essa organização foi fundada em 1978,

inicialmente, como parte do Departamento de Serviços Gerais, a agência da

cidade que administrava as propriedades da cidade. Usando recursos do Federal

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Block, o Greenthumb forneceu materiais e serviços para grupos das comunidades,

que receberam concessões provisórias relativas aos lotes vagos.

Figura 25 – Liz Christy, fundadora do Green Guerrilla (Copyright: City of New York/1975).

Grupos de defesa dos jardins comunitários negociaram ainda com a

prefeitura a proteção de contratos de longo prazo para os jardins. No início, foram

emitidas concessões provisórias de cinco anos, a um pequeno número de jardins,

com valor avaliado em menos de 20 mil dólares. Essas concessões eram

renovadas e estendidas para um período de dez anos. Entre as décadas de 1980 e

1990, uma porcentagem muito pequena de jardins comunitários não tinha

qualquer tipo de proteção, que eram ainda considerados de utilização temporária.

Muitos lotes foram alugados por grupos, e não cultivados durante um período de

seis anos, portanto perdidos.

Quando a cidade saiu da crise fiscal e o investimento habitacional cresceu,

em meados na década de 1990, os jardins passaram a ser vistos como locais de

desenvolvimento. A prefeitura migrou então o programa Greenthumb, do

Departamento de Serviços Gerais, para o Departamento de Parques, e o

arrendamento a longo prazo já não era mais oferecido. Acordos de licença

substituíram as concessões provisórias. Vários jardins foram transferidos para a

jurisdição do Departamento de Parques, mas não foram mapeados como tal.

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Algumas licenças de jardim foram ainda canceladas, e os terrenos destinados a

habitações de baixa renda.

O jardim mais valorizado, que passou a ser ocupado por habitações, foi o

D.O.M.E. Garden, no Upper West Side. Apesar de protestos, pressão da imprensa

e audições na justiça, ele foi destruído, e acabou se transformando no catalisador

de um movimento para aumentar o apoio aos jardins comunitários.

Grupos sem fins lucrativos começaram também a se reunir para colaborar

em estratégias de preservação. Membros dos jardins formaram inicialmente as

coligações na cidade de Nova York, para preservação dessas áreas, e formar uma

frente para impedir a perda de outros lotes.

Houve um grande movimento a favor e contra os jardins, entre os anos de

1997 e 2000. A cidade cancelou um grande número de licenças e, em seguida,

cancelou todas elas, e começou a fazer planos para criá-los e prepará-los para

outro uso.

Um caso notável foi o PS76 Jardim do Amor, no Harlem, utilizado por

crianças de uma escola primária. O prefeito Giuliani fez seu famoso discurso "...

bem-vindos à época depois de comunismo", comentário em resposta a protestos

na cidade, e apresentou seu plano para leiloar mais de cem jardins comunitários,

independentemente de como a terra era usada.

Ativistas participaram de manifestações e protestos, e muitos foram

presos. Nessa época, uma grande quantidade de dinheiro foi destinada a fim de

adquirir os jardins. O GrowNYC’s Community Garden Mapping Project fez

mapas e forneceu outras informações, disponíveis no site do OASIS

(http://www.oasiscommunitygarden.com), para adeptos que poderiam utilizar os

recursos para preservar os jardins (OASIS, 2014).

Associados e ONGs providenciaram ainda ações judiciais para impedir a

destruição dos jardins comunitários. O então procurador-geral Eliot Spitzer entrou

com uma ação judicial, para cancelar o leilão. No dia seguinte, a cidade chegou a

um acordo em relação à proteção da terra pública, e ao projeto de restauração de

Nova York, ao comprar 114 jardins de 4,2 milhões de dólares.

Essa compra interrompeu a venda de um grande número de terrenos, mas a

cidade continuou a destinar jardins para serem ocupados por habitações de baixa

renda. Trinta e dois jardins foram ainda transferidos para o Departamento de

Parques para preservação. Em fevereiro de 2000, o procurador-geral Spitzer

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concedeu uma ordem de restrição temporária para impedir ocupações de jardins

comunitários, e evitar tentativas posteriores da administração Giuliani para

destruir essas áreas.

A ordem de restrição temporária permaneceu em vigor até setembro de

2002, quando o então prefeito Michael Bloomberg e o procurador-geral Spitzer

chegaram a um acordo, que preservou quase 400 jardins comunitários na cidade,

permitindo ainda a implantação de mais de cem jardins, já incluídos no plano de

desenvolvimento proposto.

Um novo acordo protegeu mais jardins comunitários em setembro de

2010, quando novas regras foram anunciadas com formulação semelhante e mais

proteções foram garantidas. As discussões em curso procuravam certificar-se de

que eles teriam a melhor proposta possível de preservação de longo prazo.

Hoje, existem mais de 600 jardins comunitários, nos cinco bairros na cidade

de Nova York, e muitos outros em quintais e em propriedades de habitação

pública. São espaços onde os moradores da cidade podem se unir para construir e

desfrutar de uma área verde, cultivar alimentos, aprender mais sobre jardinagem,

conhecer os vizinhos, passar tempo juntos, e que acumulam, assim, um enorme

valor ambiental, social e econômico. Na cidade de Nova York, os jardins

comunitários contribuem para a melhoria da qualidade do ar, a diminuição do

calor, o acesso às suas hortas e uma maior proximidade com a natureza, além de

ser um local para ações de educação ambiental (figura 26).

Figura 26– Registro do jardim La Plaza Cultural no Greenthumb.

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Embora muito poucos jardins comunitários novos tenham sido criados desde

1999, muito esforço tem sido feito desde então para assegurar a sua viabilidade,

com a promoção de práticas de jardinagem sustentáveis como compostagem e

aproveitamento de águas pluviais. Associados e outras organizações sem fins

lucrativos também trabalharam no sentido de alcançar a sustentabilidade social,

dando apoio aos grupos dos jardins comunitários. Os membros dos jardins criaram

uma história de trabalho conjunto, para promover um impacto positivo no

ambiente da cidade.

5.2. A desconstrução do espaço comum

Qualquer tipo de espaço, e seus elementos constitutivos, revela as relações

sociais, experiências cotidianas, valores materiais e lutas que o reproduzem. As

considerações a seguir permitem desconstruir o espaço de jardins comunitários,

expondo as suas potencialidades como áreas comuns.

De acordo com Lefebvre (1991), o espaço envolve uma tríade de elementos

convergentes: espaço material (aquele que é real, com suas formas e objetos),

representações de espaço (o conhecimento sobre o espaço e a sua produção) e o

“espaço vivido” (a experiência emocional de espaço e as práticas subjetivas que

estão anexadas ao espaço). Espaço, portanto, é ao mesmo tempo um ambiente

físico para ser percebido, uma abstração semiótica, que informa o conhecimento

comum e científico, e um meio, por meio do qual o corpo vive a sua vida na

interação com outros organismos (Lefebvre, 2003). A descompactação do espaço,

que não é apenas intelectual, mas também uma tarefa política, pode oferecer

suporte à mudança social (Lefebvre, 1991), que revela as relações sociais que o

produzem, e ajuda ainda a explicar os mecanismos pelos quais as pessoas se

organizam coletivamente a fim de produzir, gerir e sustentar os bens comuns. A

análise a seguir usa os momentos da tríade do espaço, para desvendar o

funcionamento dos jardins comunitários, tecendo a imagem dos bens urbanos

comuns.

A literatura sobre jardins comunitárias permite analisá-los de, pelo menos,

três maneiras diferentes: primeiro, como espaços de contestação, uma construção

espacial de reação às injustiças sociais e ambientais, atingidas pela progressão da

neoliberalização do espaço urbano; em segundo lugar, como espaço controlado,

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em que os jardins e a jardinagem em si são usados como um mecanismo de

controle pelos governos municipais e outras instituições que "produzem" cidadão-

temas (Pudup, 2008), e terceiro, como um espaço de neoliberalização, situado no

interior do paradigma da gentrificação ecológica, nessa abordagem, o jardim é

visto como uma ferramenta para ganhos financeiros, sob o disfarce de uma

“agenda ambiental” (Quastel, 2009). Enquanto no primeiro tipo, os jardins são

considerados uma plataforma para formalizar e expressar um pensamento crítico,

nesses últimos dois casos são vistos como um mecanismo para reprimir a crítica

sobre as injustiças sociais e ambientais, e para avançar na neoliberalização urbana.

Não obstante essa recente cooptação descendente da comunidade de jardins

comunitários, esse trabalho concebe os jardins comunitários da cidade de Nova

York como parte de um fenômeno mais amplo de contestação urbana, pelo qual o

espaço é utilizado para lutar por alternativas sociais e políticas.

Os jardins comunitários são espaços abertos, localizados em lotes urbanos,

uma vez ocupados por edifícios que foram abandonados e desmantelados, durante

a crise econômica da década de 1970. Lidando com um ambiente devastado por

problemas sociais e físicos, grupos residentes limparam esses lotes, e cultivaram

uma área verde.

5.3. Jardins como portadores da cultura: viver o es paço

Espaço vivido é aquele vivenciado por imagens e símbolos, que não estão

submetidos a regras quantificáveis. É a qualidade emocional que é exercida no

espaço — valores emocionais e significados que são imateriais, mas objetivos. É o

berço de memórias coletivas, símbolos culturais e história pessoal (Harvey, 2006;

Lefebvre, 1991). "Como um espaço de 'temas', em vez de cálculos, como um

espaço representacional, temos uma origem, e essa origem é a infância, com sua

dificuldades, suas conquistas e sua falta (Lefebvre, 1991:362).”

A face que é vivenciada dos jardins comunitários tem várias expressões,

imagens, memórias, emoções, identidade e práticas diárias. Como a maioria das

pessoas que cultivam jardins, os associados são imigrantes internos ou externos à

cidade de Nova York, os jardins são espaços de experiências, simbolizando as

paisagens da infância que deixaram para trás. As experiências atuais são também

práticas antigas, reencenadas nos jardins comunitários, um local onde se

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desenvolve um forte apego e identificação com o ambiente, bem como um

sentimento de propriedade e controle sobre esse espaço. O espaço dos jardins é

um importante recurso comum para fazer sentido à vida comunitária, realçando

uma experiência emocional positiva do ambiente vivido.

O aspecto mais fisicamente perceptível do significado simbólico dos jardins

é sua constituição como portadores de cultura dentro da cidade. A cultura

hegemônica se manifesta no espaço, implantando mecanismos que marginalizam

as expressões de outras culturas. Apesar disso, o espaço dos jardins é reapropriado

e usado para celebrar essas culturas silenciadas. A maioria dos associados em

Nova York são chamados de latinos (principalmente, de Puerto Rico) ou

afroamericanos (primeira ou segunda geração na cidade, originários do Sul do

país). Os jardins são, portanto, locais estabelecidos pelos membros dos prédios do

entorno, seguindo uma segregação étnica, o que explica por que muitos jardins

são agrupados como étnicos (latinos ou afroamericanos). Jardins comunitários

estão localizadas em bairros etnicamente diversos, mas que refletem essa

diversidade em sua composição.

Uma das características mais marcantes dos jardins comunitários é a sua

variedade. Cada jardim permite uma experiência excepcionalmente diferente do

espaço com seu próprio arranjo, estética, uso e cores. Essa diversidade é possível

porque os jardins são expressões espaciais de um grupo específico, que não foi

formalmente treinado em planejamento urbano ou arquitetura, e não tenta

implementar princípios já pré-estabelecidos. Isso permite que o associado

expresse e experimente sua cultura coletivamente (e não em particular, em suas

próprias casas). E, de fato, vários aspectos da cultura realizam-se nos jardins, por

meio de uma experiência rica, que envolve preferências estéticas e culinárias,

rituais, costumes, expressões artísticas e interações sociais. Embora apresentando

uma diversidade impressionante, jardins podem ser divididos em três tipos: os

jardins casita, os jardins com hortas e os jardins de cultura eclética.

Os jardins casita são predominantemente latinos e simbolizados por uma

"casa pequena" (tradução de casita, em espanhol) — que imita as tradicionais

casas rurais porto-riquenhas, pintadas para evocar as habitações da ilha (Martinez,

2002:67). As casitas são usadas para armazenar alimentos e equipamentos

musicais, para realizar celebrações, e servem ainda como local confortável para

abrigar os membros. Os latinos geralmente percebem o jardim como local para

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agricultura, espaço importante para o desenvolvimento da comunidade, e como

lugar de reunião social e cultural, que garante a preservação do espaço aberto e

cívico.

Em alguns jardins casita, membros perceberam a força do jardim como um

espaço para a transmissão cultural, e o transformaram oficialmente em um centro

cultural. Um exemplo bem-sucedido é o Rincon Criollo Cultural Center, no sul do

Bronx. O esforço é reviver a cultura, a música e a dança porto-riquenha da classe

trabalhadora, dentro do contexto do jardim. A criação dos jardins casita, como o

Rincon Criollo, permite tomar o controle do ambiente imediato e, nesse processo,

redescobrir e reconectar com o seu próprio patrimônio cultural.

O segundo tipo, os jardins com hortas, são predominantemente

afroamericanos, e o seu espaço é organizado principalmente para a produção de

alimentos. Jardins comunitários afroamericanos manifestam sua cultura na prática

da jardinagem, e no nível da autossuficiência. A história de seus associados os

conecta com seu contexto familiar, e a experiência contida no jardim. A maioria

deles são orientados para a comunidade, embora sejam um pouco diferentes dos

jardins casita. Muitos membros organizam a distribuição de alimentos, brindes e

abastecem a comunidade, durante várias estações do ano. Outra forma de

engajamento da comunidade é a doação de alimentos frescos para a comunidade

pobre. Alguns jardins com horta organizam também oficinas gratuitas de tricô,

papel machê e fabricação de chapéus.

O que mais se destaca nos jardins do tipo casita são as hortas, onde há o

cultivo de legumes e ervas, que são a parte da culinária étnica, porém indisponível

ou inacessível. Para a cozinha afromericana, os jardins com hortas produzem

vegetais, como o repolho e a couve, e uma variedade de milho e tomate. Os

jardins casita são conhecidos pelas suas pimentas doces e fortes, e várias ervas.

Já os jardins de cultura eclética estão localizados em áreas em fase de

gentrificação. A criação desses jardins é geralmente mais recente do que nos

outros dois tipos de jardins. Eles apresentam uma mistura de espaço social e de

jardinagem, com mais áreas de exposição de plantas. Essa diferença

provavelmente está relacionada com o extrato socioeconômico mais elevado dos

membros; ao contrário do que nos outros dois tipos de jardins, aqui a produção

alimentar é menos necessária.

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Os jardins de cultura eclética do Lower East Side, em Manhattan, estão

localizados numa área que enfrentou intensiva gentrificação desde meados de

1980, e estão melhor conectados a diversas organizações verdes e de bairro, que

dão um maior apoio a esses jardins do que aos do tipo casita. Portanto, eles têm

mais recursos para investir tanto na concepção do jardim, quanto na quantidade de

eventos que eles oferecem (Martinez, 2002). Como o nome sugere, os jardins de

cultura eclética apresentam uma variedade de culturas, do ambientalismo até ao

paganismo (Hassell, 2002). O festival anual do Dia da Terra e o evento bianual de

solstício, celebrados nesses jardins, estão entre as festividades que se manifestam

ao longo do ano. No calendário de eventos desses jardins, há espaço para ioga, e

aulas de tai-chi, palestras sobre a natureza, performances de música eclética e

sessões de cinema.

É interessante notar que a primeira fase histórica de jardins comunitários

nos EUA pertence a um programa iniciado pelo próprio governo (inaugurado em

1894, em Detroit). Em contraste, a fase contemporânea dos jardins comunitários

reflete uma tendência oposta à assimilação cultural. Enquanto o mecanismo de

melting pot visa, de fato, um achatamento das diferenças, e a assimilação de uma

cultura hegemônica, em seu estágio atual, jardins ajudam a comemorar

experiências passadas, em reviver as práticas culturais, ao invés de reprimi-las.

Jardins comunitários oferecem uma experiência diária e direta de uma

multiplicidade de culturas, expressa no ambiente físico e social, práticas que são

gravadas na paisagem da cidade, além de serem uma oportunidade de culturas

reprimidas realizarem uma vivência de espaço que enfatiza a diversidade, a

celebração, as expressões estéticas e a conexão com a história individual e

coletiva. Compreendido através da lente do espaço vivido, os jardins dão apoio à

produção contínua de uma comunidade de residentes, e permitem uma alternativa

de experiência dentro do ambiente urbano moderno, por meio da integração de

experiências históricas e culturais na vida cotidiana.

5.4. Nova estrutura, novo discurso: representações do espaço

Representações do espaço são dependentes do olhar, “do quadro de

referência do observador" (Harvey, 2006:122). São percepções abstratas do

espaço que são determinados por, ou em relação a ferramentas e frameworks

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usados para formulá-los. Representações neoliberais de espaço são produzidas

pelo olhar científico de planejadores, engenheiros e urbanistas. Essas

representações giram em torno do valor de troca do espaço, e suas qualidades

mensuráveis (Harvey, 2006; Lefebvre, 1991).

Representações do espaço são o resultado de atos cognitivos, esquemas,

ideias e entendimentos, formando um corpo de conhecimento que está

impregnado nos campos formal (na educação) e informal (ou seja, na cultura, na

mídia e no senso comum). A produção de conhecimento nos jardins comunitários

é uma atividade social que engloba tanto o aprender, quanto o comunicar ideias

sobre o mundo. Representações dos jardins não seguem a lógica neoliberal. Eles

se desenvolvem de acordo como os membros aprendem a ver juntos, trocar seus

sentimentos, valores, categorias, memórias, esperanças e observações, como eles

vão construir e formalizar assuntos todos os dias. Os jardins são lugares onde o

conhecimento local e o conhecimento de uma multiplicidade de grupos são

exclusivos, construídos no contexto cotidiano de suas vidas, e se tornam

conscientes e expressos.

Existem várias maneiras pelas quais a troca de memórias, valores,

sentimentos e práticas cotidianas permitem formar conhecimento para

desenvolver, infiltrar e aprofundar uma raiz, entre seus associados, nos jardins

comunitários. Alguns desses mecanismos são formais, enquanto outros são

informais e espontâneos. Esse conhecimento pode ser prático, baseado em

habilidades expostas de maneira discursiva e abstrata. Do rico e diversificado

âmbito de novas representações do espaço que se desenvolvem dentro dos jardins

comunitários, a próxima seção irá se concentrar em dois exemplos: o

desenvolvimento de habilidades práticas e a produção de representações

alternativas da comunidade e do olhar urbano. Os corpos de conhecimento

práticos e discursivos servem como importantes recursos coletivos para os

membros, e ambos, como veremos, são cruciais para a reprodução do espaço

comum.

5.5. Conhecimento prático: o know-how de produção d o espaço

Existem maneiras formais para a produção de conhecimento prático que são

orquestradas pelos membros dos jardins comunitários, o que inclui oficinas

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gratuitas, palestras, programas da tarde e acampamentos de verão. Uma pesquisa

realizada em 114 jardins em 2007, por exemplo, indica que 42 dos jardins estão

trabalhando com escolas do bairro, ensinando aos alunos sobre plantas, animais e

jardinagem. Alguns jardins estão envolvidos com programas de alimentação

sustentável, onde jovens são ensinados sobre como produzir frutas e vegetais

frescos. Outros jardins têm programas para mulheres e jovens, facilitando a

conscientização ambiental e a capacitação no bairro, e aprimoram algumas

habilidades para melhorar a competência em lidar com o ambiente urbano. Ao

mesmo tempo, esses programas oferecem um conjunto alternativo de

representações, que possibilitam questionar o processo para repensar o lugar e o

papel dos jardins dentro do ambiente urbano.

Além de oferecer programas de aprendizagem formal, os jardins também

constituem um recurso informal urbano para aprender; eles servem como um

fórum para uma aprendizagem espontânea, facilitada pela contínua interação com

a natureza e as pessoas que se relacionam com ela. Um exemplo é a utilização dos

jardins para brincar, onde as crianças contam com elementos naturais (como areia,

água, galhos) e interagem com pessoas de várias idades, uma alternativa para um

playground isolado, designado para cada idade (Hart, 2002). Sutilmente, uma

produção espontânea e um compartilhamento de conhecimento ocorrem naquelas

interações diárias não-planejadas no jardim.

São três as potencialidades significativas dos espaços como jardins

comunitários: os diversos grupos coletivos, cooperando e comunicando-se para

produzir um recurso coletivo, uma configuração de todos os dias; a relativa

ausência de espaços que são seguros e abertos o suficiente para tal aprendizagem

espontânea; e a partilha de conhecimentos, que ressalta a contribuição única de

jardins comunitários.

Além do conhecimento prático, a produção coletiva do espaço impulsiona o

desenvolvimento social e espacial do olhar dos moradores, que equivale a um

quadro conceitual sobre o espaço e seus usuários. O espaço dos bens comuns

permite uma experiência alternativa do cotidiano, que se choca com a experiência

dominante. Como resultado, uma nova consciência é desenvolvida. De um âmbito

mais vasto de representações alternativas dos associados dos jardins comunitários

de Nova York, esse texto expõe uma visão das relações sociais desenvolvidas nos

jardins comunitários, e aquelas que poderiam ser reforçadas na vida urbana, além

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de alternativas de práticas espaciais, que são elementos construtivos dos bens

comuns.

5.6. Novas representações da comunidade e o olhar u rbano

Novos conhecimentos e entendimentos sobre o significado e os aspectos

práticos das comunidades são evidentes no discurso de associados Eles

reconhecem a contribuição dos jardins para a segurança e o embelezamento dos

bairros, e para a coesão social e o capital social das comunidades. Mas, além

disso, os associados desenvolvem novas representações de espaço, que dependem

de exames críticos das noções de bairros, comunidades, cidade, descobrindo seu

desenvolvimento desigual e injusto.

Os jardins oferecem uma certa experiência que tem sido corrompida na vida

urbana, uma experiência que foi dominada pela importância do hiperespaço, e é

assim bem orquestrada. Essa descrição não deve ser vista como um anseio

nostálgico, em vez disso, precisa descrever experiências que ocorrem nesses

locais. Os jardins negociam esse domínio de experiências, permitindo uma

alternativa de experiência diária, de uma comunidade forte e que recebe apoio. Os

jardins fazem isso naturalmente, permitindo o plantio, o posicionamento de

esculturas, apresentações de teatro e outras manifestações artísticas, as crianças

podem crescer nesses locais. É, por isso, que todas as pessoas compartilham sua

visão do que acreditam, e do que querem. Essa discussão apresenta uma

abordagem alternativa e uma crítica sobre a condição das comunidades na cidade

neoliberal contemporânea. De acordo com esse novo significado, eles constituem

uma comunidade não porque compartilham uma característica comum, como

ambiente de vida, crença ou profissão. Em vez disso, eles são uma comunidade

porque eles cooperam, colaboram e comunicam sobre o uso, a produção e a

manutenção de um recurso comum (De Angelis, 2003). Ao invés de aceitar a

modalidade predominante de competição e o desejo de ceder a interesses pessoais,

os associados facilitam novas modalidades que permitem a coesão social, algum

nível de autonomia e a intensidade dos laços sociais.

De acordo com essas novas representações do espaço, a produção de espaço

e a definição de uma comunidade estão fortemente interligados; a comunidade não

é um grupo de pessoas que ocupa um determinado ambiente e opera dentro dela,

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de acordo com sua finalidade estabelecida (por exemplo, clubes, instituições

religiosas, parques) ou mesmo um grupo que apresenta algumas práticas de

resistência no sentido do seu ambiente, pelo contrário, é um grupo que participa

da produção de seu próprio ambiente material, de acordo com sua própria cultura,

a história, o desejo e a visão e, portanto, é construída como uma comunidade.

Muito do conhecimento sobre a economia da cidade política é produzido e

divulgado como resultado da luta, que tem sido travada desde 1999, para

preservar os jardins. Novas representações do espaço foram produzidas por grupos

de jardim e coligações dos jardins que lutaram por seus lotes nas reuniões do

conselhos comunitários, mobilizando o apoio da comunidade e de políticos,

trabalhando com advogados para desafiar decisões nos tribunais, organizar

protestos, comícios e manifestações. Um novo corpo de conhecimento emerge

quando os associados percebem sua própria posição dentro da estrutura urbana do

poder e dos processos de desenvolvimento.

Associados perceberam que seus bairros são excessivamente densos, e há

pouco espaço aberto per capita na cidade, e poucas amenidades públicas. Eles

afirmam ainda que, apesar de sua contribuição para seus bairros, os jardins são

tidos como uma ameaça para a comunidade. Os associados também aprenderam

que os investimentos públicos ou privados não são destinados a melhorar as suas

condições mas, na verdade, para marginalizá-los. Os membros dos jardins

protestam a condição de gueto e o excesso de seus bairros, resultantes da

construção de prédios públicos e de habitação (que são abundantes em suas

proximidades), a falta de mantimentos, escolas e parques, e a gentrificação

alimentada pelo município, além da máquina de crescimento local que ameaça

seus jardins e a eles próprios com seus deslocamentos.

O conhecimento produzido coletivamente é traduzido em poder; é um

recurso para a comunidade proteger seus interesses, e transformar a posição do

associado na estrutura política local. Por anos eles eram vistos simplesmente

como associados, ao invés de ativistas, eles pertenciam a grupos sociais com

nenhum meio e pouca influência política. Desenvolver um olhar melhor para a

estrutura de poder urbano foi o primeiro passo necessário para serem

transformados em militantes e atores sociais mais significativos.

Percebendo a posição dos jardins no contexto mais amplo da política e da

economia urbana, eles tornaram-se um bem construído, uma parceria entre a

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prefeitura e o mercado privado. Membros aprenderam um novo conjunto de

conceitos e práticas, que lhes permitam lutar por seus jardins e desenvolver uma

visão alternativa para o desenvolvimento urbano.

A importância das coligações está relacionada com as mudanças políticas

que aconteceram na cidade na década de 1990, quando membros de jardins

comunitários foram isolados uns dos outros. Isso não estava os ajudando com a

preservação de seus jardins para o futuro. Trabalhando em coligações, eles

lutaram por seus ideais com seus pares, lado a lado. Foi a progressão do tempo e

da política de Nova York que permitiu que os grupos comunitários se tornassem

uma necessidade para os jardins interagirem uns com os outros, em alguns níveis,

nem todos. Eles são ainda independentes, diferentes entre si, com diversas formas

de executar seus programas. De alguma forma, as coligações, que começaram nos

diferentes bairros, foram um ato político para endireitar a voz dos jardins, em um

tempo em que foram atacados pela prefeitura.

Um processo dialético de ação e conhecimento, por meio do qual um

aumenta a produção do outro, e encerra seu espaço material. Associados tinham

que aprender os meandros da cidade a fim de enganá-la. Eles desenvolveram

habilidades e um conhecimento crítico, tornaram-se cidadãos conscientes, que

poderiam ler na máquina política local as reivindicações como justiça social e

processual. Associados desenvolveram uma compreensão ampla das

representações dominantes do espaço, bem como representações alternativas. Eles

também desenvolveram mecanismos que mantêm a produção de conhecimento, de

traduzir e proteger os jardins no futuro. Eles se organizaram em coligações de

bairro e em uma coalizão municipal de associados, o papel principal deles era

manter o diálogo sobre movimentos dos jardins comunitários, desenvolver um

sentimento coletivo forte e promover a educação, além de manter organizações

existentes que agiam de acordo com o interesse dos jardins.

Essas novas representações do espaço desafiam algumas noções bem

estabelecidas de desenvolvimento urbano (irregular) historicamente, e a injusta

distribuição dos recursos entre os bairros urbanos. Em vez disso, propõem um

conjunto alternativo de valores com base no valor de uso de espaço, ao invés de

seu valor de troca, tais como o alto valor que jardins oferecem para a subsistência

das pessoas, sua contribuição para a vida social e cultural, o seu papel na melhoria

de bairros, e na criação de espaços significativos para os residentes. Com isso,

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eles também carregam princípios de acumulação e valores da prática capitalista.

Este novo conhecimento é um recurso coletivo para proteger os bens comuns.

É, portanto, revista a noção de bens comuns, não apenas como uma utopia,

mas como um fato existente de espaço, em meio à cidade neoliberal. Os bens

comuns podem ser reproduzidos por três elementos interligados: espaço material,

conhecimento e significado. O espaço material dos bens comuns é produzido,

mantido e protegido coletivamente por seus usuários. O seu valor exercido no

espaço inclui suplementos necessários e recursos disponíveis. O conhecimento

prático permite a produção contínua dos bens comuns e a estrutura discursiva que

os define. O espaço vivido dos comuns, aqui exemplificado pela celebração de

várias culturas, também engloba a experiência estética alternativa, que desafia as

normas de estética, a experiência social que destoa da alienação predominante das

pessoas em seus ambientes físicos e sociais, e a experiência psicológica

alternativa, que prospera num maior senso de controle e de pertencimento. A

existência e a persistência dos bens comuns dependem desses três elementos

interrelacionados, cada elemento constitui e impulsiona os outros, juntos eles

permitem constituir uma experiência urbana alternativa.

A existência dos bens comuns acontece como algo "realmente existente

dentro neoliberalismo" (Brenner e Theodore, 2002), constitui a localidade como

uma arena impugnada de opostos, ambiguidades e como um sítio paradigmático

para o exame de lutas no espaço, e as potencialidades espacialmente incorporadas

que permitem a mudança social. Podemos compreender as práticas de produção

comuns em dois diferentes níveis. Primeiro, eles podem ser entendidos como

atores de uma ação coletiva, visando receber uma parte maior de bens, sem

desafiar os mecanismos sociais e instituições que produzem desigualdade. Bens e

direitos, tais como espaço aberto, bairros limpos, alimentos saudáveis e

apropriação, foram desigualmente distribuídos e privados do uso coletivo de

associados. Os bens comuns são, então, um mecanismo de redistribuição, por

meio dos quais os moradores compensam o desenvolvimento urbano desigual.

O segundo nível no qual se compreende a produção dos bens comuns é

como uma ação coletiva, que desafia a ordem social hegemônica e segue em vez

disso uma lógica de justiça alternativa (Aronowitz, 2003). Dessa forma,

produzindo o espaço dos jardins, os associados apresentam uma alternativa

provocadora e desafiadora ao espaço social dominante; uma alternativa que

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corrige o direito ao espaço público, não só no seu sentido concreto, mas no

sentido de "o direito à cidade". É uma alternativa para a lógica de organização e

do planejamento do espaço, para a distribuição do controle sobre ele e seu

significado e experiência. Com a introdução de valores e práticas alternativas do

capitalismo, os bens comuns são desempacotados, e o modo dominante de

produção é desafiador.

Como afirma De Angelis (2007), alternativas ao capitalismo, tais como os

bens comuns, estão constantemente sob ameaça de serem encerrados, de se

tornarem uma força de reprodução capitalista. Nas obras de Quastel (2009) e

Pudup (2008), há exemplos de como os jardins são despojados de seu potencial

crítico, e tornam-se mecanismos de reprodução social, ao invés de transformação.

No entanto, ambos De Angelis (2007) e Hardt e Negri (2009) argumentam que

estamos agora em um limiar de uma nova era. Cada vez mais, vemos modalidades

alternativas de reprodução social, que desafiam o modelo dos bens comuns.

Jardins comunitários, na verdade, oferecem um vislumbre do tipo de relações

sociais e práticas espaciais e valores que podem trazer de volta os bens comuns ao

nosso cotidiano urbano. Elas facilitam uma cooperação e a participação da

comunidade, reunida em torno de atividades, produzindo coletivamente o espaço

de acordo com suas necessidades e visões.

Os jardins comunitários não devem ser vistos como um "retorno" de um

ideal arcaico de área verde, mas como um trampolim para criticar as relações

sociais contemporâneas, e a produção de uma nova espacialidade, iniciando a

transformação de alguns aspectos fundamentais da vida cotidiana, e as práticas

sociais de organização e pensamento.

5.7. Cultivando a resiliência: preservação das área s verdes, saúde e bem-estar

A noção de que o espaço urbano aberto pode ser um catalisador para

melhorar a saúde humana e o bem-estar da sociedade é um conceito incorporado

ao longo da história dos assentamentos humanos. O espaço público é parte da

história da cidade dinâmica, como também é o lugar de coesão e protesto social,

de lazer e recreação, dos valores de troca e uso. No entanto, existem momentos

particulares, onde certas características da natureza devem ser seletivamente

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discutidas dentro do discurso público, desse modo, é preciso dar forma a

momentos distintos do contexto urbano e do desenvolvimento do espaço aberto.

Essas características frequentemente estão baseadas em propriedades da natureza

que são tranquilizadoras, restauradoras, ou que possuem características redentoras,

em oposição a aspectos selvagens, perigosos e interrupções inesperadas, que ela

também promove (Campbell e Wiesen, 2006).

A história dos parques e espaços abertos dentro das cidades americanas, por

exemplo, são episódicas, com períodos distintos, respondendo a certas crises, e

com uma percepção de risco ou perturbação da ordem social. Durante o século 19,

a sociedade juntou forças com autoridades de saúde pública para apoiar o uso dos

parques como uma forma de reduzir as consequências negativas da cidade

industrial, que crescia rapidamente. O crescimento industrial, sem precedentes,

criou as condições de vida insalubres, a degradação ambiental e os locais de

trabalho inseguro (Duffy 1968, Hall 1998). Na virada do século 19, os líderes do

movimento progressivo estavam ativamente chamando para um “retorno à

natureza” como solução à privação moral percebida dos pobres e, para melhor

integrá-los na sociedade civil. Mais tarde, planejadores urbanos, na década de

1960, utilizaram parques centrais e regionais, para recuperar espaços abertos de

bairros em áreas vulneráveis, como forma de promover a inclusão social e a

renovação urbana. Na década de 1970 e 1980, o movimento de justiça ambiental

argumentou que o acesso a bens conservados, ou seja, parques e espaços verdes,

foi sistematicamente negada a determinados grupos, e foi também um exemplo

visceral da desigualdade urbana (Francis et al., 1984, Fox et al. 1985). Refletindo

sobre essa história, quase todas as gerações de parques e espaços abertos têm sido

impulsionadas pela busca e manutenção da saúde e do bem-estar.

Hoje, planejadores urbanos, arquitetos e profissionais de saúde estão

transformando certas noções do século 19: a “cidade sanitária”, por exemplo,

passa a ser considerada a “cidade sustentável”, onde parques e arredores de

espaços abertos são entendidos como parte de um sistema maior, oferecendo uma

ampla gama de benefícios interdependentes, que incluem fatores socioeconômicos

e biofísicos.

Esses benefícios múltiplos são importantes enquanto tentamos compreender

ambientes urbanos, e podemos ainda contribuir para etapas variadas de bem-estar.

As lições sobre nossa saúde e o ambiente construído do século 19 são relevantes

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ainda hoje, já que populações, em muitas partes do mundo, continuam doentes de

febre tifóide e cólera, enquanto outros sofrem de uma série de novos problemas de

saúde relativos a obesidade e doenças cardiovasculares. Em última análise, o que

podemos descobrir é que não só precisamos de edifícios com projetos

arquitetônicos inovadores, como também de espaços abertos bem conservados,

para manter a conexão com a saúde pública, além da divulgação de informações

sobre como os diferentes projetos, programas e níveis de manejo contribuem para

a saúde e o bem-estar coletivo.

O aspecto restaurador dos bens comuns pode depender, em parte, das

características de um lugar e, em parte, de nós mesmos. O uso do espaço, de

acordo com pesquisas de longo prazo em psicologia ambiental, muitas vezes

dependem da idade e do estilo de vida dos pesquisados, tanto quanto do projeto

local e das espécies. Ou seja, diferentes tipos de espaços são necessários em

diferentes fases da vida, e o seu uso depende de preferência pessoal. Um dia, um

indivíduo pode preferir a experiência de um sereno passeio pela floresta e, no

outro, desejar uma experiência social animada em um jardim comunitário.

Howard Frumkin sugere que o sentido do lugar é uma construção da saúde

pública:

"As pessoas são heterogêneas, com resposta distintas para lugares diferentes. Alguns gostam de florestas, outros de desertos, alguns preferem quintais bem cuidados, e outros ruas movimentadas na cidade. O ‘lugar de uma pessoa no mundo’, incluindo fatores como status socioeconômico, senso de oportunidade e eficácia e cultura, afeta a experiência do local (Frumkin, 2003:1451).”

Resiliência, ao invés de “boa saúde”, é considerado um indicador mais

eficaz para medir o bem-estar comunitário, particularmente como nós percebemos

que a saúde do ecossistema global e humano não é estático, mas muda ao longo

das décadas. Ao mesmo tempo, comprometimento e a ativa fruição do espaço

urbano aberto podem produzir relações sociais e espaciais que nos ajudam a

suportar episódios e condições estressantes, na sociedade.

Palavra de origem latina, o significado de “resiliência” é literalmente “saltar

ou pular de volta” para um estado anterior do ser. Nós, frequentemente, nos

maravilhamos com a capacidade de recuperação da natureza, após danos causados

por incêndio, inundação ou vento. Ao mesmo tempo, também reconhecemos a

capacidade da nossa própria espécie em se recuperar de infortúnios, provocados

por transtornos de saúde, alterações no status social ou na segurança financeira.

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Porém, a capacidade de restaurar todo o sistema a um ponto prévio de existência,

depois de uma perturbação ou de uma experiência traumática, é enganosa. Em vez

disso, o nosso sistema é dinâmico, parte de um continuum dinâmico. Ecologistas

urbanos se referem a esse sistema como o “paradigma de não-equilíbrio”. Apesar

de todas as nossas conquistas tecnológicas, os seres humanos — juntamente com

todas as outras espécies na terra — em última análise, coexistem dentro de um

mundo obscuro de fartura e escassez, triunfos e fracassos, dias bons e ruins. No

entanto, há uma esperança em atenuar nossas desgraças com teorias, métodos e

ferramentas, desenvolvidas para aprofundar nossa compreensão da ligação

benéfica entre a saúde humana e o ambiente. Por exemplo, um componente chave

dessa nossa busca individual e coletiva, de uma vida saudável em sociedade e no

ecossistema, é o que muitos campos da ciência se referem como nossa

“capacidade adaptativa” (Olsson et al., 2004).

Ou, em outras palavras, como nos adaptamos em relação às mudanças?

Quanto mais resilientes formos, maior a nossa capacidade de sucesso, e de nos

adaptarmos a mudanças inerentes a um sistema dinâmico. No entanto, há uma

ampla gama de fatores sociais e biofísicos envolvidos nesse processo. Nossa

probabilidade de melhorar a saúde e o bem-estar depende de nossas histórias

passadas, mas também de nossas situações atuais e futuras. A recuperação de uma

doença, semelhante à recuperação de funções de um ecossistema, depende muitas

vezes do que os investigadores da saúde pública definem como “curso de vida”

(Ben-Shlomo e Kuh, 2002), e os que ecologistas urbanos têm denominado como

“efeitos humanos sutis” (McDonnell e Pickett, 1993). A abordagem do curso de

vida centra-se em efeitos a longo prazo da exposição física e social, por meio do

curso de vida, da gestação à terceira idade. Ela considera os caminhos biológicos,

comportamentais e psicossociais, que têm o potencial de afetar a saúde ao longo

do tempo. Da mesma forma, a abordagem ecológica considera efeitos históricos,

que são essencialmente legados biológicos de um determinado sistema, efeitos

acumulados, que são o resultado de eventos passados, e ações inesperadas à

distância, ou seja, impactos causados por uma ação distante (impactos de poluição

são um excelente exemplo). Juntos, se considerarmos o curso de vida e efeitos

humanos sutis, começamos a entender que a resiliência e a adaptação de nossa

espécie são importantes, não como eventos singulares, mas como ocorrências

multidimensionais, ao longo do tempo e do espaço.

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Sistemas urbanos são, naturalmente, muito complexos. Northridge et al

(2003) sugerem um modelo desse sistema complexo com quatro níveis de

interação: um fundamental, em nível macro, com o ambiente natural e fatores

sociais, como a estrutura econômica; um nível intermediário, que se refere ao

ambiente construído e ao contexto social; o nível interpessoal e, finalmente, a

escala de saúde e bem-estar. Urbanistas, muitas vezes, trabalham com fatores

intermediários dos sistemas sociais (ou seja, uso da terra, transporte, condições

ambientais), enquanto profissionais de saúde pública e ambiente construído

concentram seu trabalho em fatores que incluem características que produzem

estresse, como insegurança financeira, toxinas ambientais ou tratamento injusto,

bem como consideram comportamentos relativos à saúde (práticas alimentares e

atividade física).

Por meio desse modelo, podemos ver as relações entre espaço aberto e bem-

estar, como parte dessa abordagem de sistemas. Esse quadro interdisciplinar

enfatiza o domínio intermediário do planejador urbano (ou seja, o ambiente

construído) e o domínio interpessoal do profissional da saúde pública, aquele que

leva em conta os fatores que causam estresse, considerando componentes críticos,

diretamente relacionados à melhora do bem-estar e da saúde do indivíduo e da

coletividade. Visto dessa forma, podemos começar a entender como bens

públicos, tais como parques e espaços abertos, são recursos críticos que podem

afetar positivamente ou negativamente seu público, em níveis interpessoais,

habilitando ou desencorajando determinados comportamentos, e tornam-se locais

que afetam a integração social de mediação.

No entanto, provisão de espaço aberto é necessária, mas não suficiente, para

fornecer ambientes restauradores. Projeto, capacidade de comprometimento e

engajamento com espaços abertos podem potencializar elementos restauradores de

espaços abertos. Esse texto apresenta considerações que incidem sobre um aspecto

dessa experiência de lugar: engajamento ativo, o que inclui uma ampla gama de

interações humanas, de associações e tomadas de decisões direcionadas ao

trabalho participativo em um lugar. A diferença entre as formas mais passivas e

ativas de engajamento é que o último requer um nível maior de responsabilidade,

direitos e deveres, dentro de um sistema interdependente. O engajamento ativo é

uma forma de contribuir e encontrar significado individual e cívico dentro de um

sistema maior. Por exemplo, estudos sobre voluntários ambientais revelam que as

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atividades de manejo ativo ajudam a diminuir os sentimentos de isolamento e

impotência que podem levar à depressão e à ansiedade (Sommer et al 1994,

Svendsen e Campbell 2006, Townsend 2006). Muitos desses estudos são baseados

em dias de trabalho simples ou durante períodos específicos ou extremos de crise.

Muitas vezes um mesmo espaço pode oferecer diferentes qualidades

restauradoras para cada indivíduo. O engajamento ativo é uma experiência que

envolve todos os sentidos, e auxilia as pessoas a relaxar. O engajamento ajuda a

restabelecer a confiança, as redes sociais e a eficácia, entre parceiros, para reforçar

a coesão social, a resiliência, e mantendo ainda uma sensação de bem-estar na

comunidade: Baseado nesse entendimento, a reciprocidade que existe entre os

indivíduos e seus ambientes, por meio de atividade pública, é tangível, visível e

não abstrata. O engajamento é comumente desencadeado por uma necessidade ou

desejo, seu resultado muitas vezes beneficia tanto a pessoa como um grupo maior.

A satisfação e a realização de uma atividade coletiva, muitas vezes, leva a

uma perspectiva positiva sustentada, e a autoconfiança é essencial para a tomada

de decisões e medidas de cuidados com a saúde. Nas paisagens urbanas

devastadas da década de 1970 e 1980 da cidade de Nova York, comunidades

recuperaram um senso de controle por meio dos espaços abertos dos jardins

comunitários. Esse ato de engajamento está intimamente ligado à abordagem do

impacto psicossocial e biofísico das ruas abandonadas, bem como a uma

necessidade individual para controlar a própria vida e arredores. "Controlar" aqui

se refere à fundamental necessidade que os seres humanos têm para criar

mudanças no meio ambiente ou em suas vidas, ao invés de manter o controle

sobre eles. Jardins tornaram-se importantes expressões individuais e coletivas de

uma comunidade.

Portanto, a diversidade de funções dos projetos de jardins comunitários em

Nova York sugere que a jardinagem não é definida apenas pelo crescimento ativo

de frutas, legumes e flores, mas também está relacionada com questões de

identidade, economia e eficácia. Esse sentido de agência individual-coletiva tem

uma capacidade única para unir o ambiente construído e o contexto social mais

amplo, expressa em níveis interpessoais relativos a estresse humano,

comportamentos e integração social.

A natureza continua a definir a paisagem restauradora. Assim como em

nossas primeiras áreas públicas, por exemplo, campos centrais compartilhados

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para pastagens ou cultivo, nossa infraestrutura urbana é uma necessidade que tem

paralelo com o crescimento das cidades, e que carrega funções remanescentes

desses primeiros bens comuns. Em Nova York hoje, os bens comuns podem ser

uma memória pastoral de um campo, o Central Park, uma abertura pavimentada

entre edifícios, o Rockefeller Plaza, ou uma rua repleta de lojas e vendedores de

varejo. A infraestrutura não é, muitas vezes, pensada em termos de tecido vivo,

como um sistema vascular das nossas cidades.

Os bens comuns procuram utilizar certas qualidades restauradoras da

natureza na paisagem urbana, para melhorar o bem-estar e a saúde humana e

ecológica. Essa possibilidade deve muito aos jardins comunitários, que

reconstruíram as paisagens abandonadas da década de 1970, e a um grupo de

artistas ambientais que, na mesma época, criaram obras construídas em grande

escala, que tinham como tema a relação do homem com a terra e a natureza. Os

primeiros elementos de infraestrutura verde já existiam na rede celular dos

quadrados verdes de James Oglethorpe, projetados para Savannah, na Geórgia, e

no colar de esmeraldas do Frederick Law Olmstead, em Boston, e em muitos

outros parques urbanos, cujas paisagens não foram moldadas pela cultura de

cidades. Até que surgiram os primeiros jardins de grande escala, os jardins

comunitários, que ofereceram apoio a valores de vizinhança, coleta e produção de

alimentos, bem como lugares para a restauração humana e cura. A natureza era

para ser vista, fixa na aproximação de um ideal pastoral e ocupada de maneira

igual. Os membros dos jardins comunitários e artistas mudaram esse paradigma, e

elementos de uma infraestrutura mais descentralizada, interativa e restauradora

começaram a aparecer em nossas cidades.

Na base evolutiva do campo da biofilia, por exemplo, o contato com a

natureza é uma necessidade humana básica: não uma amenidade cultural, não uma

preferência individual, mas uma necessidade primária universal. Assim como

precisamos de uma alimentação saudável e exercício físico regular para florescer,

necessitamos de conexões com o mundo natural.

Felizmente, nossas conexões com a natureza podem ser fornecidas em uma

infinidade de maneiras: por meio da jardinagem, andando em um parque,

banhando-se na praia, observando os pássaros pela nossa janela, ou em um buquê

de flores. A experiência de vivenciar a natureza deixou sua marca em nossas

mentes, em nossos padrões comportamentais, em nosso funcionamento

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fisiológico. Vemos os fantasmas das experiências dos nossos antepassados no

ambiente, e o que elas significam para nós. A hipótese de biofilia é apoiar a

investigação de que, como espécie, somos ainda poderosamente sensíveis às

formas da natureza, aos seus processos e padrões (Kellert Wilson 1993, Kellert et

al 2008).

Usando o conhecimento de nossa afinidade com a natureza, adaptado e

refinado ao longo de milhões de anos, podemos gerar experiências de saúde e

bem-estar por meio dos ambientes que criamos. Ambientes de trabalho podem ser

transformados em espaços mais descontraídos e produtivos, as casas em locais

mais harmoniosos, e os espaços públicos podem se tornar mais inclusivos;

oferecendo um sentido de pertencimento e segurança, mesmo para uma variedade

maior de pessoas.

Para entender as bases profundas da biofilia e sua manifestação na paisagem

física e cultural de hoje, precisamos voltar no tempo para a nossa vida ancestral.

Para a maioria da existência humana, a paisagem natural forneceu os recursos

necessários para a sobrevivência humana, como água, luz solar, alimentos

vegetais e animais, materiais de construção, abrigo e fogo. O sol forneceu calor e

luz, bem como informações sobre a hora do dia. Grandes árvores permitiram

abrigo para o sol do meio-dia, e lugares para dormir à noite para evitar predadores

terrestres. Flores e vegetação sazonal possibilitaram acesso a alimentos, materiais

e tratamentos medicinais. Rios e poços forneceram a água para beber e tomar

banho, peixes e outros recursos animais para alimento. Vias navegáveis criaram

condições para navegação, e acesso a terras distantes.

A ideia de restaurar os bens comuns representa uma nova abordagem

significativa para o desenvolvimento dos espaços urbanos. O projeto restaurador

do jardim incorpora conclusões de pesquisas recentes e interdisciplinares sobre

experiências humanas com o ambiente natural. A abordagem restaurativa dos bens

comuns se baseia em melhores práticas na ecologia de restauração urbana, bem

como em preocupações persistentes para um acesso igual aos ambientes ricos em

natureza, nas áreas urbanas. Natureza é benéfica para todos, independentemente

da idade, sexo, raça ou etnia, e deve estar disponível para todos os moradores dos

centros urbanos, não apenas para aqueles que podem pagar para viver em áreas

próximas a parques e espaços abertos. Contato com a natureza diariamente reforça

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os valores de respeito e cuidado com o ambiente, que são indispensáveis para

comunidades sustentáveis.

No entanto, nem toda natureza é igualmente atraente ou benéfica. Espaços

com árvores e plantas mortas e moribundas são um sinal de destruição de um

habitat a ser evitado. Em contraste, lugares com vegetação abundante, flores,

árvores de grande porte, água e caminhos sinuosos, que se abrem de repente para

serem vistos, são procurados por muitos, como locais para relaxamento e

diversão. Esses recursos caracterizam os parques urbanos de maior sucesso. Mas

até mesmo em pequenas “amostras” de natureza — um vaso de flor, árvore, ou

um pequeno jardim — é possível também deliciar-se. É uma história real de nossa

ligação com a natureza — com muitas faces e muitas maneiras de criar

experiências positivas em nossas casas, escritórios, pátios ou espaços comuns.

A base da biofilia se expressa de acordo com a especificidade cultural ou

geográfica de um lugar. Na verdade, usar a inspiração do ambiente natural local e

das expressões culturais para a criação do sentido de um lugar é ponto crítico para

o sucesso de um projeto de biofilia.

As melhoras de autoestima e a redução do estresse são os benefícios mais

consistentes do contato com a natureza. Além disso, o contato com a natureza

pode ser puramente visual ou sensorial, com participação ativa (caminhada,

corrida, jardinagem) ou passiva (apenas de visualização). Benefícios são

encontrados em várias configurações, múltiplas culturas e em toda a extensão da

idade, da infância à idade adulta.

Todos os habitats naturais mostram ciclos de nascimento, morte e

regeneração. Alguns processos, como tempestades e o ciclo diurno da luz,

também podem mostrar sequências do desenvolvimento. Quando estressados,

espaços naturais mostram sinais notáveis de resiliência. Muitas vezes, em nossos

ambientes construídos, o estresse leva ao aparecimento de deterioração (por

exemplo, edifícios vazios e abandonados), que parecem incapazes de se renovar.

A resiliência é afetada pela teia de relacionamentos que se conectam na

composição de espécies dentro de uma comunidade ecológica.

Elementos naturais — árvores, flores, animais, conchas — mostram tanto

variação, quanto semelhança, em forma e aparência, devido a seus padrões de

crescimento. Nicholas Humphrey (1980) refere-se a esse fenômeno como "rimas"

e afirma que é a base para a apreciação estética — uma habilidade que evoluiu

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para permitir a compreensão sensorial. Ele afirma que “belas estruturas” na

natureza e na arte são aquelas que facilitam a tarefa de classificação, ao apresentar

provas das relações taxonômicas entre os elementos de uma forma, que é

informativa e fácil de apreender.

Todos os organismos vivos exibem projeto complexo, que pode não ser

aparente à primeira vista, mas é descoberto por meio da exploração sensorial. O

desejo de saber mais sobre um espaço ou objeto com maior exploração é

considerado por muitos o cerne do aprendizado: quanto mais você sabe, mais você

quer saber, e mais profundo o mistério se torna. Em contraste com os espaços e

formas de vida, a maioria de objetos e espaços construídos são prontamente

reconhecíveis, à primeira vista, e assim podem não motivar a aprendizagem e a

exploração. Embora a complexidade seja uma característica desejável, espaços e

objetos que são demasiadamente complexos são difíceis de serem compreendidos.

A chave pode ser a combinação de ordenação e complexidade, que permite a

compreensão em níveis mais gerais, e envolve ainda nossos sistemas sensoriais,

em um nível mais detalhado.

Os habitats naturais são ricos em aspectos sensoriais, e transmitem

informações para todos os sistemas sensoriais humanos, incluindo visão, audição,

tato, olfato e paladar. Muitos dos nossos ambientes construídos apresentam um

aspecto sensorial, embora a grande maioria das pesquisas em estética ambiental

considere apenas o aspecto visual.

Hoje há também um interesse crescente na compreensão de como o projeto

de áreas verdes apela aos sentidos múltiplos. Tanto a prática japonesa do Kansei,

assim como o design centrado na emoção, por exemplo, baseiam-se nas ligações

entre a percepção sensorial e a respostas emocionais às características do projeto

(McDonagh et al., 2004). A pesquisa de campo descrita no próximo capítulo

concentra-se justamente na interação do público com os jardins comunitários da

cidade de Nova York, recuperando informações da relação entre membros dos

jardins e esses espaços..

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