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    ÍndiceO autorCapítulo 1 — Polêmicas e paradoxosCapítulo 2 — A caminhada de um solitárioCapítulo 3 — Sociedade versus naturezaCapítulo 4 — As peripécias da desigualdadeCapítulo 5 — Liberdade e igualdadeCapítulo 6 — Repercussões

    O autor

    A reportagem que transcrevemos abaixo foi publicada pelo jornal Folha de S. Paulo do dia5 de agosto de 1987, com o título "Morre aos 50 anos o filósofo Salinas Fortes". Nela pode-se sentir a corrente de energia que Salinas captava e transmitia, e que está presente naspáginas deste livro.

    Morreu ontem aos 50 anos, pouco depois da zero hora, o professor Luiz Roberto Salinas Fortes,do Departamento de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Salinas, como era conhecidona universidade, onde lecionava Ética e História da Filosofia desde 1965, sofreu um enfartodo miocárdio. O corpo foi velado das 12 às 16h no salão nobre do prédio da Administração

    da Faculdade de Filosofia, de onde foi conduzido para Araraquara (273 km a noroeste deSão Paulo), sua cidade natal. O enterro está previsto para as 9h de hoje. "A grande descoberta doSalinas foi desmontar uma interpretação sobre Rousseau que durava três séculos", diziaMarilena Chauí, 45, professora de Filosofia da USP, visivelmente emocionada no velório."Ele mostrou que tanto o Rousseau político quanto o literato são uma única pessoa",explicava, referindo-se à tese de livre-docência de Salinas, batizada de "Paradoxo do

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    Espetáculo (Política e Poética em Rousseau)", defendida em 1983. Nos últimos meses, Salinas,que também trabalhou como jornalista, estava reescrevendo a tese para publicá-la em formade livro. Teatro e filosofiaAntes de derrubar um mito que perdurou por três séculos, na análise de Chaui, Salinasviveu alguns momentos importantes dos anos 60 e 70 — o existencialismo, o teatro Oficinae a experiência da repressão política (ver abaixo trecho da autobiografia "Retrato Calado"escrita no período 75/77 em Paris). Estudante da Faculdade de Direito da USP, onde sediplomou em 1960, Salinas foi ator da primeira montagem do Oficina, "A Ponte", de CarlosQueiroz Telles, em 1958. Longe do palco, acabou se tornando uma espécie de ideólogo doOficina, fermentando entre os atores discussões filosóficas que não costumavam freqüentaro meio teatral. "O Oficina, antes de ser um grupo de teatro, era um grupo de discussãofilosófica", lembra o jornalista e analista econômico Marco Antonio Rocha, 51, ator do Oficinanos anos 60. "E o principal formulador dos debates era o Salinas . "Como professor da USP, onde se tornou bacharel em Filosofia em 1964, Salinas iniciou em1965 uma série de três estágios que fez na França. De 65 a 67, estudou em Rennes, ondecomeçou a pesquisa que desembocaria em sua tese de doutorado —"Teoria e Prática na Obra de Jean-Jacques Rousseau", defendida em 1974, e que resultou no livro "Rousseau: da Teoria àPrática", editado pela Afica em 1976, ainda em catálogo. De 75 a 77, aproveitou-se de umabolsa na École de Hautes Études et Sciences Sociales, de Paris, para fugir de "veladasperseguições da repressão militar", como diz Rubens Rodrigues Torres Filho, 45, professor deFilosofia da USP. Em 78 ele voltaria à mesma escola para um semestre de estágio. Não era aprimeira vez que Salinas sentira a intolerância do regime militar — em 1970 foi preso duasvezes, uma no Dops e outra no DOI-Codi. "Numa das vezes ele ficou 24 horas em um 'pau-de-arara', passou a ter problemas vasculares e flebite, o que resultou na amputação de umdedo do pé", recorda Chauí. Nesse estágio na França, Salinas trabalhou com o filósofo ClaudeLefort, de quem traduziu para o português o livro "Formas da História", editado pelaBrasiliense em 1979 e fora de catálogo. Considerado um grande tradutor do francês,realizou, ainda, a versão de "A Imaginação", de Jean-Paul Sartre, publicada em 1964 eesgotada, e de "A Lógica dos Sentidos", de Giles Deleuze, editada em 1974 pela Perspectiva eesgotada.Ligado ao existencialismo quando o movimento estava em voga nos anos 60, Salinas, juntocom o professor Fausto Castilho, ciceroneou Sartre no Brasil em 1968. O livro "Sartre noBrasil — Conferência de Araraquara", editado pela Paz e Terra em 1981, que está em suasegunda edição, é um outro trabalho do Salinas como tradutor. "O Iluminismo e os ReisFilósofos", uma obra de iniciação publicada pela Brasiliense em 81 e esgotada, mostra outrafaceta do domínio que Salinas tinha da filosofia francesa. "Ele encontrou uma linguagempara o público leigo sem rifar o rigor", analisa Torres Filho.Rigor e invenção"Em seu trabalho filosófico ele sabia conjugar muito bem o rigor com a invenção", define

    Antonio Candido, 70, professor aposentado da USP e amigo de Salinas desde quando ele eragaroto. "Ele era um talento filosófico, um talento como escritor e tradutor", diz Gérard Lebrun,57, professor do departamento de Filosofia da USP. "O Brasil e a Universidade perdem um dosseus mais sérios investigadores em História da Filosofia", acredita Celso Favaretto, 46,professor da Faculdade de Educação da USP.O rigor que Salinas imprimia às suas pesquisas filosóficas, uma herança de professorescomo Bento Prado Jr., Gilda de Melo e Souza e Ruy Fausto, foi uma das vertentes que oconduziu à abordagem original sobre Rousseau. "Não era uma questão de reabilitarRousseau. Ele ia ao texto e encontrava material para reflexão", diz Torres Filho. A esse rigor,ainda segundo Torres Filho, Salinas unia frieza e emoção."Ele conseguia que a Filosofia fosse um instrumento de leitura do presente", afirma FranklinLeopoldo e Silva, 39, chefe do Departamento de Filosofia da USP. A partir da idéia de

    representação — um conceito comum no mundo poético e político —, Salinas organizou nesteano, junto com o professor Milton Meira do Nascimento, um colóquio sobre o Congressoconstituinte, que resultou no livro "A Constituinte em Debate", editado pela Sofia Editora. Nolivro, Salinas assina dois ensaios —"Democracia, Liberdade e Igualdade" e "Rosa deLuxemburgo e a Constituinte de 1917". Salinas deixou dois filhos — André, 21, do seucasamento com Ana Maria Cerqueira Leite, e Marina, 6, com Maria Alice Rufino."O magricela sorri dentro do elevador. Sorri o magricela, irônico, dentro do elevador. Osorriso irônico acompanha o pequeno grupo no qual, obviamente contrafeito, desempenhoo papel de paciente ao longo do trajeto tortuoso pelos corredores que ligam a sala darecepção da Ordem Social ao pequeno compartimento usado como câmara de tortura,alguns andares acima no velho edifício do largo General Osório. Antes de chegar ao destinoentão ignorado, iludo-me, embalo-me com a esperança de que o cortejo só vai me

    acompanhar até uma cela, onde, como pouco antes me assegurara um dentre os eficientesagentes de segurança, na pior das hipóteses, ficarei 'detido', como se diz, por alguns dias, talcomo — espero — ocorrera da outra vez, na OBAN, de onde há alguns meses fora liberadodepois de dez dias de detenção. Mas as coisas agora seriam bem diferentes e logo, logo seriadado ao protagonista que vos fala, a ocasião única, o privilégio imerecido de vir a conhecero famoso instrumento de tortura já há muitos anos corriqueiramente utilizado por nossas forças

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    policiais em toda a vastidão do território nacional.Só quando chegamos percebo, de repente, o que me espera e entendo o sorriso. É que o tal domagricela nervosinho e gozador me mandara carregar, envolto em jornais, para disfarçar,nada mais, nada menos do que o aparelho de choque a cujas iluminações, dali a pouco,paudiararizado, viria eu a ser submetido graciosamente. O grupo explode em gargalhadasquando o pacote é desembrulhado, deixando a descoberto aquela sorte de pequeno realejo,cubo de madeira com uma manivela pendurada de um dos lados. E eu, atônito, catatônico,arremessado de repente em meio ao inferno, transferido de súbito para esta dimensão novaonde tudo se passa velozmente, embora dure uma eternidade e embora se propague pelaeternidade afora.Cessados os efeitos da piada, o mesmo frenético funcionário ordena:—  Tira a roupa!!!— Como, por quê?...—  Tira a roupa! — vocifera. Fera.— Mas, por que, será mesmo preciso?...A insólita pergunta tem como efeito imediato irritar o tira que, redundante, exclama ainda:—  Tira a roupa, porra!"(Retrato Calado, São Paulo, ed. Marco Zero, 1988.)"Rousseau, o bom selvagem" é um livro póstumo. Foi escrito com a intenção original de apresentar ainiciantes o pensamento do filósofo suíço. Este propósito levou-nos a incluir a obra na coleção "Prazerem Conhecer", fato que a engrandece.(Nota do Editor)

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    Rousseau é, por excelência, o autor sobre o qual todo mundo se julga apto a

    discutir, sem se dar ao trabalho de er de fato sua obra. Quem fez essa observação, por volta de 1912, foi o filósofo francês Henri Bérgson (1859-1941). Ainda hojemuito se discute acerca de Rousseau, como ocorreu em 1750, data da

     publicação de seu primeiro livro — Discurso sobre as ciências e as artes

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    — e mais ainda depois que ele foi transformado no principal profeta dosrevolucionários franceses do século XVIII, a começar pelo próprioRobespierre (1758-1794), chamado " O incorruptível ", que foi o grande lí-der da Revolução Francesa. Desde então Rousseau não cessou de provocaruma acalorada controvérsia. Associado definitivamente ao destino daRevolução Francesa, o f ilósofo desperta o ódio de alguns e a veneração deoutros. Nessas condições, uma multidão de idéias preconcebidas dificultao trabalho daqueles que se dispõem a ir ao encontro de seus textos.Mas novas dificuldades nos esperam, numerosas dúvidas nos assaltam. Comoclassificar essa vasta obra? Estaríamos diante de um texto filosófico

     propriamente dito? Há quem duvide, já que, na sua aparência, ele não temmuito a ver com obras tradicionalmente classificadas como "filosóficas",

     pois Rousseau cult ivou os gêneros mais variados.Logo depois de seu primeiro livro, ele compôs uma ópera, intitulada O adivinhoda aldeia. Escreveu, mais tarde, dois dicionários: um de música e outro de

     botânica. Em sua juventude, aventurou-se pelo ter reno do tea tro,escrevendo a peça Narciso ou O amante de si mesmo. Bem mais tarde,escreveu um romance, J úlia ou A nova Heloísa, um diálogo à maneira de Platão,e o livro de Confissões à maneira de santo Agostinho. [Platão (428-348 a.C.):filósofo grego, discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, é autor de

    diálogos filosóficos, particularmente a República, o Fedro, o Fédon. SantoAgostinho (354-430), bispo de Hipona, teólogo e filósofo. Obras principais: Acidade de Deus, Confissões.]O próprio livro Emílio ou Da educação talvez a mais importante de suasobras, parece gozar de um estatuto híbrido, anfíbio: começa como umsisudo tratado de pedagogia e acaba como um romance de amor.Como se isso não bastasse, o recurso constante ao paradoxo e uma aparentevariação no pensamento não comprometeriam a unidade dessa obra ou suacoerência? Com efeito, são muito freqüentes as teses inusitadas e muitas

     parecem idéias opostas ou até cont raditór ia s. "P refir o ser homem de paradoxos a ser homem de preconceitos" — dizia Rousseau. De fato, todosos seus textos estão repletos de frases chocantes, de teses esdrúxulas, poucocomuns, que já no seu tempo indispunham contra ele o leitor impaciente.Um exemplo? Tal é a eloqüência com que Rousseau investe contra acivilização e suas conquistas, que ele ficou visto por boa parte de seusleitores — a começar pelo ilustre Voltaire, que contra ele logo se

     posicionou — como um intolerável detrator das Luzes e defensor da barbárie,querendo apenas escandalizar. O século XVIII é chamado de Século das Luzes

    graças ao notável movimento de idéias de que foi palco e que se costumadesignar por Iluminismo ou Ilustração, devido à sua entusiasmadavalorização dos poderes da razão humana.A grande Enciclopédia, editada por Diderot e d'Alembert em Paris e cuja

     publicação se estende por mais de vinte anos, é a imagem mais completa doespírito filosófico da época. Daí a designação "enciclopedistas" atribuída aosfilósofos do século XVIII.Ao ler o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entreos homens, depois de tê-lo recebido das mãos do próprio Rousseau,

    Voltaire escreveu com ironia ao autor: "Nunca se empregou tanto espíritoem querer nos tornar bichos. A gente fica com vontade de andar de quatroao ler vosso livro". Voltaire (1694-1778), cujo nome verdadeiro era FrançoisMarie Arouet, era filósofo, poeta, dramaturgo e um dos principais nomes doséculo XVIII. Dezoito anos mais velho do que Rousseau, era por este

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    considerado o grande mestre de sim geração Outros comentadores acreditaram ver uma contradição entre as teses desseDiscurso sobre a desigualdade e a obra intitulada Do contrato social.

     Na primeira, o autor parece defender um individualismo radical,fazendo da soc iedade a fonte dos males de que padece o homem.

     N a s e gu n da , a o cont rário, parece def ender um coletivis mo, à medidaque promove, por exemplo, a idéia da excelência da pátria e dointeresse coletivo, que deve prevalecer sobre o interesse individual.A dis tânc ia ent re ambos parece tão grande que Émi le Faguet ,

     p r of es s or e c r í t i c o francês do século XIX, se espantava: "OContrato social é um trata do do Estado déspota escrito por um anarquista".Se não temos necessidade, aqui, de aderir aos paradoxos de Rousseau,

     podemos, ao menos, acompanhá-lo no repúdio aos preconceitos. Emborareconhecendo as dificuldade dessa obra e a ambigüidade de um texto que nãotem a nitidez e 1: nearidade dos tratados filosóficos convencionais, nãofiquemos com a idéia superficial de que nos achamos diante de um simplescaluniador da cultura, de um defensor das trevas ou de um "profe ta darkantiiluminista". É mais correto considerá-lo como o crítico ou o pré-críticodas Luzes, muitas vezes até excessivo em su polêmica, mas tambémespecialmente clarividente.

    Se alguma autoridade nos é necessária, fiquemos com a d grande filósofoEmmanuel Kant, que era um admirador de Rousseau e o chamou de "Newtonda moral". Kant dizia ser necessário lê-lo várias vezes, pois só depois determos deixado de nos seduzi pela magia de seu belo estilo, é que podíamos defato apreciar profundidade de seus pensamentos. [Emmanuel Kant (1724-1804;filósofo alemão do século XVIII, autor da Crítica da razão pura Isaac

     Newton (1642-1727), matemático, físico, astrônomo e filósofo br itânico. Em1687, formulou a teoria da atração universal entre os corpos.]Quanto às contradições e incoerências, passemos a palavra Rousseau:

    Escrevi sobre diversos assuntos, mas sempre nos mesmos princípios:sempre a mesma moral, a mesma crença, as mesmas máximas e, sequiserem, as mesmas opiniões.

    (Carta a Beaumont)

    Por que não abrir para ele, logo de início, um crédito de confiança?

     Textos selecionados

    Os fundamentos

    Na Carta a Beaumont, Rousseau se defende das acusações de impiedade e irreligião, lançadaspelo arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont, ao censurar o livro Emílio através de umacondenação solene, um mandemento, datado de 20 de agosto de 1762. Nessa carta, Rousseautambém resume, em várias passagens, os princípios centrais de sua filosofia.O princípio fundamental de toda moral sobre o qual raciocinei em todos os meus escritos eque desenvolvi neste último com toda a clareza de que era capaz, é de que o homem éum sernaturalmente bom, amando a justiça e a ordem; que não há perversidade original no coraçãohumano e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos. Fiz ver que a única

    paixão que nasce com o homem, a saber, o amor de si, é uma paixão em si mesmaindiferente ao bem e ao mal, que não se torna boa ou má a não ser por acidente e segundoas circunstâncias nas quais se desenvolve. Mostrei que todos os vícios que se imputam aocoração humano não lhe são naturais; disse a maneira segundo a qual eles nascem; segui, porassim dizer, sua genealogia e fiz ver como, pela alteração sucessiva de sua bondade natural, oshomens se tornam afinal o que são.

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    Expliquei ainda o que entendia por essa bondade original, que não parece deduzir-se daindiferença ao bem e ao mal, natural ao amor de si. O homem não é um ser simples; ele écomposto de duas substâncias. Se nem todo mundo está de acordo com isso, nós dois, osenhor e eu, estamos e tentei prová-lo aos outros. Isso provado, o amor de si não é maisuma paixão simples, mas tem dois princípios, a saber: o ser inteligente e o ser sensitivo, cujobem-estar não é o mesmo. O apetite dos sentidos tende ao do corpo e o amor da ordem, aoda alma. Este último amor, desenvolvido e tornado ativo, traz o nome de consciência, masa consciência não se desenvolve e não age a não ser com as luzes do homem. É somente poressas luzes que ele chega a conhecer a ordem e é somente quando a conhece que aconsciência o leva a amá-la. A consciência é, pois, nula nohomem que nada comparou e quenão viu suas relações. Nesse estado, o homem só conhece a si mesmo; ele não vê seu bem-estar oposto nem conforme ao de ninguém; não odeia nem ama nada; limitado exclusivamenteao instinto físico, é nulo, é animal; foi o que fiz ver em meu Discurso sobre a desigualdade.[Ambição]Quando, por um desenvolvimento, de que mostrei o progresso, os homens começam a lançaros olhos sobre seus semelhantes, começam também a ver suas relações e as relações das coisas,a adquirir idéias de conveniência, de justiça e de ordem: o belo moral começa a tornar-se sen-sível, e a consciência age. Então eles têm virtudes, e se também têm vícios, é porque seusinteresses se cruzam e sua ambição desperta à medida que suas luzes se estendem. Masenquanto há menos oposição de interesses do que concurso de luzes, os homens sãoessencialmente bons. Eis o segundo estado.Quando, afinal, todos os interesses particulares agitados se entrechocam, quando o amor de siposto em fermentação se torna amor-próprio, tornando o universo inteiro necessário a cadahomem, torna-os todos inimigos natos uns dos outros e faz com que ninguém encontre seubem a não ser no mal de outrem. Então a consciência, mais fraca do que as paixõesexaltadas, é abafada por elas e não fica na boca dos homens mais do que uma palavra feitapara se enganarem mutuamente. Cada qual finge então sacrificar seus interesses aos dopúblico, e todos mentem. Ninguém quer o bem público a não ser quando concorda com o seu;assim, esse acordo é o objeto do verdadeiro político que busca tornar os povos felizes e bons.Mas é aqui que começo a falar uma língua estranha, tão pouco conhecida do leitor quanto devós.

    Eis, monsenhor, o terceiro e último termo, para além do qual nada resta a fazer, e eis como ohomem, sendo bom, os indivíduos tornam-se malvados. É a buscar como seria preciso fazerpara impedi-los de assim se tornar que consagrei meu livro. Não afirmei que na ordem atual acoisa fosse absolutamente possível, mas afirmei de fato e afirmo ainda que não há, parachegar ao fim buscado, outros meios além daqueles que propus.* * * * *

     Tenho grande vontade, senhor, de adotar aqui meu método ordinário e de dar a história deminhas idéias como resposta a meus acusadores. Acredito não poder melhor justificar tudoo que ousei dizer a não ser dizendo ainda tudo o que pensei.Assim que estive em condições de observar os homens, olhava-os fazer e os escutava falar;depois, vendo que suas ações não se pareciam com seus discursos, buscava a razão dessadissemelhança e encontrava que ser e parecer, sendo para eles duas coisas tão diferentesquanto agir e falar, esta última diferença era a causa da outra e tinha ela própria uma causaque me restava buscar.Encontrava essa causa na nossa ordem social, que, em todos os pontos contrária à naturezaque nada destrói, tiraniza-a sem cessar e a faz sem cessar reclamar seus direitos. Segui essacontradição em suas conseqüências e vi que ela explicava sozinha todos os vícios dos homense todos os males da sociedade. De onde concluí que não era necessário supor o homemmalvado por sua natureza, quando era possível marcar a origem e o progresso de suamaldade. Essas reflexões me conduziram a novas pesquisas sobre o espírito humanoconsiderado no estado civil e eu encontrava que então o desenvolvimento das luzes e dosvícios se fazia sempre na mesma proporção, não nos indivíduos, mas nos povos — distinçãoque sempre fiz cuidadosamente e que nenhum daqueles que me atacaram jamais foi capaz deconceber.

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    Nasci enfermiço e doente; custei a vida a minha mãe, e meu nascimentofoi a primeira das minhas infelicidades.

    É nesse tom melodramático, tão ao gosto de Rousseau, que ele serefere , em suas autobiográf icas Confissões, ao seu nascimento eà mor te da mãe como conseqüência do par to . Nasc ido a 28 de

     ju nh o de 17 12, em Gen eb r a , f ilho de Isaac Rousseau e d eSuzanne Bernard, Jean-Jacques, segundo filho do casal, ficará marcado

     pelo acontecimento trágico. O recém-nascido Jean-Jacques foi entregue aoscuidados de uma tia, Suzanne Rousseau, que, ajudada pelo pai dele, encar-regou-se de sua primeira educação. Seu irmão, François, sete anos maisvelho, depois de abandonar a casa paterna em 1721, nunca mais deu notíciasà família.Do pai, relojoeiro de profissão e cidadão orgulhoso, Jean-Jacques herdou aveneração pela mãe, o respeito pela cidade natal e a paixão pelos livros. Ainsuperável saudade da esposa fazia Isaac Rousseau pedir ao filho, deapenas seis anos de idade, que lesse em voz alta, antes de dormir, velhosromances da biblioteca da mãe, religiosamente conservados. Aos oitoanos, servindo-se da biblioteca paterna, Rousseau lê historiadores e moralistas,

     particularmente o escritor grego Plutarco (50-125 d.C.), autor de Homensilustres.

    Em 1722, em conseqüência de um violento desentendimento com um capitãoda reserva, Isaac Rousseau deixou Genebra e foi morar em Nyon, também naSuíça. Jean-Jacques, com dez anos, ficou sob a tutela do tio Bernard e,com o primo Abraham, foi enviado como pensionista em casa do pastorLambercier, em Bossey, nas cercanias de Genebra. Até sua saída definitivada cidade natal, em 1728, ele se entediava nos lugares em que era colocadocomo aprendiz, inclusive no ateliê de um mestre gravador com o qual,surpreendido lendo às escondidas durante o período de trabalho,desentendia-se freqüentemente. Num domingo, depois de ter saído a

     passeio com amigos pelos arredores da cidade, ao voltar encontrou fechadassuas portas e decidiu, então, tentar a vida mundo afora. Tinha apenasdezesseis anos de idade. Este foi o início de sua vida nômade.Tendo obtido uma carta de recomendação do padre de Confignon, dirigiu-se a Annecy, na França, onde pediu proteção e asilo a madame de Warens,

     personagem que teve influência decisiva sobre ele: "Esta época de minha vidadecidiu o meu caráter".Madame de Warens, protestante de origem, recentemente convertida aocatolicismo, matinha, graças ao auxílio de Vitor-Amadeu II, duque deSabóia e rei da Sardenha, uma espécie de pensão para jovensdesencaminhados, aos quais, além de catequizar, dava abrigo. Jean-Jacques, também protestante de origem, tornou-se logo o seu predileto, enão apenas se converteu ao catolicismo como passou a nutrir por ela uma

     paixão que, embora intensa, nunca deixou de ser platônica. Sob a proteçãode "Maman", como a apelidou, Jean-Jacques entregou-se aos estudos,complementando sua formação de autodidata. É nessa época que despontae se firma também a sua outra grande paixão e primeira vocação: a música.

     Nesse período, Jean-Jacques fez pequenas viagens, inclusive com umarápida passagem por Paris, mas sempre retornando a Annecy, para perto de"Maman", e depois para Chambéry, para onde ela se mudou.Aqui começa, desde minha chegada a Chambéry até minha partida paraParis em 1741, um intervalo de oito ou nove anos durante o qual minha vida

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    foi tão simples quanto doce.Confissões - Livro II

    Em 1734, por um curto período, foi a Besançon, onde estudou composiçãomusical com o abade Blanchar. De volta a Chambéry, onde se instalou commadame de Warens em uma casa de campo chamada Charmettes, sofreu umacidente quando se dedicava a experiências de Física, e quase ficou cego. Foi,então, a Montpellier para se submeter a um tratamento médico. Aoretornar, uma enorme desilusão o esperava: sua querida "Maman" estavavivendo maritalmente com um jovem suíço. Profundamente ferido,decidiu ir embora, apesar de madame de Warens insistir em que ficasse,garantindo-lhe que todos os seus direitos se conservavam. Jean-Jacquesdirigiu-se primeiro a Lyon, onde foi preceptor durante um ano. Depois,carregando consigo numerosas cartas de recomendação e um projeto deinovação da notação musical, foi tentar a sorte na capital.

    Em Paris, as primeiras obras (1741-1754)

     Não se passou muito tempo até qu e, graças às recomenda ções de quedispunha, Rousseau conseguisse que a Academia de Ciências tomasse

    conhecimento de seu projeto, em relação ao qual parecia nutrir grandeexpectativa. Mas a Academia não o julgou favoravelmente.Rousseau dava lições de música para sobreviver. Ao mesmo tempo travourelações com algumas das personalidades mais influentes do entãoefervescente mundo cultural parisiense. Freqüentou madame Dupin, oteatrólogo Marivaux e o escritor Fontenelle. Tornou-se amigo de Diderot,que já era um escritor conhecido embora ainda não se tivesse dedicado àgrande empreitada de sua vida: a organização e edição da Enciclopédiafrancesa. Essa obra é o monumento intelectual do Século das Luzes, no

    qual melhor se materializa a verdadeira revolução cultural, já em cursoantes da chegada de Rousseau.Paris era a grande metrópole européia, o epicentro das novas idéias. Era alique se forjavam os instrumentos ideológicos de que a burguesia, classe emascensão, se serviria na investida contra os privilégios feudais da aristocraciaem decadência. Ali se fixou o destino do escritor Rousseau. Antes disso,

     porém, ele permaneceu por mais de um ano em Veneza como secretário daembaixada francesa, voltando a Paris depois de um desentendimento com oembaixador.

    Em 1745, conheceu Thérèse Levasseur, com a qual, embora sem nutrirgrande paixão, viveu de 1749 até o fim da vida, chegando a ter cinco filhos.Rousseau os abandonou, um a um, em um orfanato parisiense, alegandonão ser capaz de educá-los por falta de condições econômicas. O fato nãoapenas foi fonte incessan  te de remorsos para ele, como também muitoexplorado mais tar de por seus inimigos. É também desse período sua

     primeira ópera: As musas galantes.Em 1749, o importante filósofo e matemático d 'Alembert, colaborador deDiderot na direção da Enciclopédia, convidou Rousseau — e ele aceitou — a

    escrever para essa obra os verbetes sobre música. Nesse mesmo ano, depois de provocar escândalo nos meios conservadores e devotos, com sua Carta sobreos cegos, Diderot ficou aprisionado durante três meses no castelo de Vincennes,nos arredores de Paris. Por ocasião de uma de suas visitas ao amigo,Rousseau leu no jornal Mercure de France o enunciado da questão proposta pela

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    Academia de Dijon para o prêmio de "Moral" do ano de 1750.Profundamente instigado pela questão — "Se o restabelecimento das ciências edas artes contribuiu para purificar os costumes" — ele compôsimediatamente um texto que ficou famoso, a Prosopopéia de Fabrício.Fabrício foi um cônsul romano entre 282 e 278 a.C. e ficou célebre por suasimplicidade de costumes. Em sua Prosopopéia (figura de retórica que significa"personificação"), Rousseau empresta a palavra a Fabrício e, por seu in-termédio, lamenta a corrupção de costumes que, a seu ver, é característica dacivilização. Mostrou-o a Diderot, que o encorajou a dar seqüência a suasidéias e a participar do concurso; nasceu assim o primeiro Discurso, queobteve o primeiro prêmio.

    Escritor da moda

    Logo publicado, o Discurso explodiu como uma bomba, transformando seu autorem escritor da moda. Fugindo do sucesso — sua incontornável timidez dificultavaa freqüência aos salões da aristocracia, onde triunfavam seus colegasenciclopedistas — Jean-Jacques entregou-se, solitário, a um ofício que, pelo restoda vida, assegurou sua sobrevivência copista de partituras musicais.Ao mesmo tempo em que polemizava com autores que se lançaram à

    refutação de seu Discurso, compôs outra ópera, O adivinho da aldeia.Representada em 1752 em Fontainebleau perante o próprio rei Luís XV, obtevesucesso total. Impressionado, o rei o convocou para uma audiência,

     prometendo-lhe uma pensão. Atacado por um acesso de inibição, Jean-Jacques não compareceu e, em conseqüência, perdeu a pensão. Seus amigos,especialmente Diderot, começaram a se impacientar diante de suasesquisitices e de sua desatenção às conveniências mundanas.Ainda em 1752, Rousseau provocou novamente uma polêmica enorme, aoescrever a Carta sobre a música francesa, em que exalta a música italiana

    e critica a francesa. Publicou ainda uma peça teatral escrita na juventude,Narciso ou O amante de si mesmo, acompanhada de um importante prefácio.A Academia de Dijon, em 1753, forneceu nova ocasião para a elaboraçãode outra obra de envergadura: o Discurso sobre a origem e osfundamentos da desigualdade entre os homens, com o qual concorretambém ao prêmio da Academia. Dessa vez, não obteve o primeiro lugar. Onovo Discurso,  porém, é incomparavelmente superior ao primeiro, emimportância.Em dezembro desse mesmo ano, ferida pelas críticas de Rousseau, a Ópera de

    Paris retira a permanente que lhe concedera.

    Cidadão de Genebra

    Acompanhado por Thérèse, nosso autor se distanciou de Paris: pela primeiravez, depois da sua "fuga", retornou a Genebra. Calorosamente recebido em 1754,abjurou o catolicismo e foi reintegrado solenemente tanto na religião

     protestante quanto em sua condição de cidadão genebrino. No ano seguinte,

    de retorno a Paris, entregou aos editores o manuscrito do Discurso sobre a desi-gualdade, ornamentado por uma inspirada Dedicatória a Genebra, redigidadurante a viagem e assinada: J.-J. Rousseau, cidadão de Genebra. Publicado,esse novo Discurso reacendeu as paixões polêmicas. Rousseau o enviou aVoltaire, pois o considerava o grande mestre de sua geração. Voltaire não

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    apreciou o livro e o comentou sarcasticamente. A resposta de Rousseau, porsua vez, foi bastante polida, mas a partir daí as relações entre ambos, atéentão amenas, embora distantes, converteram-se em hostilidade aberta. Noano seguinte retornou a Paris, protegido por uma das grandes estrelas dossalões, madame d'Epinay, instalou-se em uma residência chamadaL'Ermitage, situada em Montmorency, nos arredores de Paris. Uma série demal-entendidos contribuiu para opô-lo cada vez mais a seus ex-amigosfilósofos, também chegados a madame d'Epinay, com a qual ele acabou porse desentender, sendo obrigado a mudar de casa. Foi aí, em meio àsdificuldades crescentes de relacionamento com os antigos companheiros, que

     produziu outras de suas obras mais importantes. Em 1758 redigiu a Cartaa d'Alembert sobre os espetáculos, que contém uma crítica contundente aoteatro francês e marca propriamente sua ruptura definitiva com Diderot e osenciclopedistas. Aí também redigiu  J úlia ou A nova Heloísa, Do contratosocial e Emílio ou Da educação.

    Exílio e perseguição

    Logo depois de impresso na Holanda, em 1762, Emílio foi condenado pelo Parlamento de Paris à fogueira, e seu autor à prisão. Aconselhado e

    auxiliado por amigos que permaneceram fiéis, decidiu fugir. Foi para aSuíça, onde imaginou que seria bem acolhido. Mas estava muitoenganado. Da pequena aldeia de Môthiers-Travers, onde se instalou,também foi obrigado a fugir depois que camponeses enfurecidos ameaçaramdepredar a "morada do ímpio". Em 1766 refugiou-se na Inglaterra a convite dofilósofo e historiador escocês David Hume (1711-1776), autor dos Ensaios sobreo entendimento humano. Enquanto isso, no continente, suas obrascontinuavam sendo hostilizadas pelas autoridades civis e eclesiásticas, protestantese católicas. O Contrato social, também publicado em 1762, foi condenado em

    Genebra e Emílio foi queimado em praça pública, em Paris. Considerado ofensivoà religião católica, foi condenado também pelo arcebispo de Paris, Christophe deBeaumont. Voltaire escreveu contra Rousseau uma violenta sátira intitulada Cartado Sr. Voltaire ao Dr. J . -J . Pansofo. A partir de então, sob o ferrão da

     perseguição, começaram a acentuar-se seus sentimentos persecutór ios eele acabou por se indispor também com Hume, imaginando-se alvo deuma grande conspiração internacional comandada pelos filósofos.Em 1767 voltou à França, instalando-se provisoriamente em Trye.Desejoso de voltar a Paris, depois de acalmados os ânimos contra ele,

    escreveu ao ministro Choiseul, que lhe concedeu autorização para voltar.Instalado em um pequeno apartamento da rua Platrière, decidiu escreveras Confissões para defender-se de seus acusadores. Esse texto foi lido porele mesmo no salão de madame de Egmont, mas a reação do público foide indiferença.Dedicando-se sempre à cópia de partituras musicais, escreveu váriasobras, dentre elas os Diálogos, nos quais faz novamente sua defesa, eDevaneios de um caminhante solitário, texto em prosa poética quecontém algumas de suas mais belas páginas.

     Nos últ imos anos de vida, dedicou-se com intens idade crescente a outra pa ixão ant iga: a botânica. Desde o retorno a Par is, sua saúde e ainflamação da bexiga, de que sofreu por toda a vida, pioraramconsideravelmente. A 2 de julho de 1778 morreu subitamente, em

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    circunstâncias não inteiramente esclarecidas.Em 1793, depois da Revolução Francesa, a Convenção, órgãorevolucionário máximo, decidiu a solene transferência dos restos mortaisde Rousseau da ilha de Choupos, onde fora enterrado, para o Panteão deParis, monumento dedicado aos heróis da pátria.

    Obras

    Desta relação omitimos as peças de teatro — com exceção da principal —assim como as obras musicais.

    1750 — Discurso sobre as ciências e as artes. O autor rejeita a idéia de que o Renascimentodas artes e das ciências — que se costuma datar dos séculos XV e XVI — tenha contribuídopara o aperfeiçoamento moral dos homens. Defende a tese da influência perniciosa do cultivodas artes e das ciências sobre os costumes. Publicado no volume Rousseau da coleção Ospensadores, Nova Cultural.1755 — Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Adesigualdade de condições que se observa entre os homens em nossa sociedade não é naturalao homem, mas decorre da própria evolução social, especialmente a partir da instituição dapropriedade privada. Publicado no volume Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural.1756 — Cartas sobre a Providência. Polêmica de Rousseau com Voltaire a respeito dainterferência da Providência Divina nos assuntos humanos e a propósito do terremoto de

    Lisboa, ocorrido em 1755. Não há tradução para o português.1758 — Carta a d'Alembert sobre os espetáculos. Resposta de Rousseau ao verbete daEnciclopédia sobre Genebra, redigido por d'Alembert, que propõe a introdução naquelacidade de um teatro nos moldes franceses. Rousseau rejeita a idéia e critica o teatro francês,apontando os malefícios que sua introdução acarretaria para a República de Genebra. Obrascompletas, Ed. Globo.1761 — J úlia ou A nova Heloisa. Cartas trocadas entre dois personagens — Júlia e Saint-Preux — ligados por uma paixão poderosa, mas separados pelos preconceitos. Não há tradução.1762 — Do contrato social. Uma comunidade autêntica é aquela na qual a vontade geral,extensão da vontade dos cidadãos livres, é a autoridade soberana. Publicado no volumeRousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural.Emílio ou Da educação. Acompanhando desde a infância a formação de um personagem

    imaginário, Emílio, Rousseau reconstitui a imagem do homem natural, critica a instituiçãopedagógica vigente e assenta as bases de uma nova educação. Publicado em português pelaDifusão Européia do Livro.1763 — Carta a Christophe de Beaumont — Resposta ao arcebispo de Paris que condenou oEmílio. Não há tradução.1764 — Cartas escritas da montanha. Resposta de Rousseau às Cartas escritas do campo,do procurador-geral genebrino Tronchin, na qual ele se defende das acusações contra oContrato e o Emílio.1765 — Projeto de Constituição para a Córsega. A pedido de Buttafucco, personagemimportante na política da ilha de Córsega, Rousseau se faz de legislador.1768 — Dicionário de música.1772 — Considerações sobre o governo da Polônia. A convite de nobres poloneses surretos,

    Rousseau propõe um projeto de reforma do governo e das leis polonesas, aplicando osprincípios do Contrato. Publicado em edição bilíngüe pela Brasiliense.

    Obras publicadas postumamente:

    1782 e 1790 — Confissões. Penetrante estudo autobiográfico ou auto-analítico. 1782 —Devaneios de um caminhante solitário.1790 — Diálogos. Rousseau juiz de J ean-J acques.1805 — Cartas sobre a Botânica.1924 a 1937 — Correspondência geral. 20 volumes.

    Ensaio sobre a origem das línguas. Estudando a origem e a evolução das línguas,Rousseau investiga também a evolução da música. Escrito por volta de 1759. Publicado novolume Rousseau da coleção Os pensadores, Nova Cultural.Os textos selecionados deste livro foram retirados das edições brasileiras. Osnão editados em português são de responsabilidade do autor. (NE)

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    Cronologia

    28 de junho de 1712 — Nascimento de Rousseau, em Genebra, Suíça.1714-1727 — Na Inglaterra, reinado de Jorge I. Criação do parlamentarismo moderno,baseado no poder da maioria.1715 — Morte de Luís XIV, que representou o auge do absolutismo na França. 1719 —Publicação do Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, que ilustra algumas idéias que serãoretomadas por Rousseau.1722 — Jean-Jacques passa a estudar na casa do pastor Lambercier.1723 — Fim da regência do duque de Órleans e início do reinado de Luís XV na França.1728 — Rousseau foge de Genebra, encontra a madame de Warens em Annecy, França, econverte-se ao catolicismo.1741 — Rousseau chega a Paris.1745 — Jean-Jacques liga-se a Thérèse Levasseur, sua companheira de toda a vida e com

    quem teve cinco filhos.1749 — O filósofo redige o Discurso sobre as ciências e as artes, publicado no ano seguinte.1752 — Apresentação da ópera O adivinho da aldeia perante Luís XV, que convida Rousseaupara uma audiência, a que o filósofo não comparece. A Enciclopédia é condenada pelaprimeira vez.1754 — O filósofo visita Genebra e abraça de novo o protestantismo.Publica o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.1756 — Rousseau passa a morar nos arredores de Paris. Começa a escrever o romance Júliaou A nova Heloísa, publicado em 1761.Início da Guerra dos Sete Anos, entre França e Inglaterra.1760 — Inicia-se na Inglaterra a era do maquinismo e da grande indústria.1762 — Recém-publicados, o Emílio e o Contrato social são condenados pelas autoridades

    francesas e suíças. Rousseau busca refúgio em várias localidades européias e acabaestabelecendo-se, em 1766, na Inglaterra, com David Hume.1767 — Estabelece-se em Paris.1774 — Começa o governo de Luís XVI.1776 — Independência dos EUA.Rousseau escreve os Devaneios de um caminhante solitário, publicado em 1782.2 de julho de 1778 — morre Rousseau, e é enterrado na ilha de Choupos. Durante aRevolução Francesa, em 1793, seus restos mortais são colocados no Panteão de Paris,dedicado aos heróis da pátria.1789 — Começa a Revolução Francesa.Entrada em vigor da Constituição americana, que segue inspiração rousseauniana.Conjuração Mineira, no Brasil, cujos participantes utilizaram especificamente as obras de

    Rousseau.

     Textos selecionados

    Autoconhecimento

    Uma dimensão relevante da obra rousseauniana é o autoconhecimento, que se exprimeespecialmente nas Confissões, nos Diálogos e nos Devaneios. Nessas obras, Rous - seau volta-se a si mesmo e tenta compreender-se, buscando acompanhar, especialmente nas Confissões, agênese de sua carreira literária e de seus males. Nota-se como se reproduz na tentativa deauto-interpretação, de conhecimento de si, o mesmo esquema — um "natural" bomcorrompido pela vida em sociedade — que vimos atuando em outros planos.Os dois textos foram extraídos respectivamente dos livros I e VIII das Confissões.

    [Quem sou!]Lanço-me em uma empreitada que nunca teve nenhum exemplo e cuja execu ção não teráimitador algum. Quero mostrar a meus semelhantes um homem em toda a verdade danatureza; e esse homem serei eu mesmo. Apenas eu. Sin to meu coração e conheço oshomens. Não sou feito como nenhum daqueles que vi; ouso acreditar que não sou feito comonenhum daqueles que existem. Se não valho mais, ao menos sou outro. Se a natureza fez bemou mal em quebrar c molde no qual me lançou, é sobre o que não se pode julgar a não serdepois de eu ser lido.Que a trombeta do Juízo Final soe quando quiser; virei com este livro na mão apresentar-me diante do soberano juiz. Direi altivamente: eis o que fiz, c que pensei e o que fui. Disse obem e o mal com a mesma franqueza. Não cale nada de mal, nada acrescentei de bom, e se meocorreu empregar algum ornamento indiferente, foi apenas para preencher um vazio

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    ocasionado por minha falte de memória; eu pude supor verdadeiro o que eu sabia ter podidosê-lo, jamais c que sabia ser falso. Mostrei-me tal qual fui, desprezível e vil quando o fui, bomgeneroso, sublime, quando o fui: desvelei meu interior tal como tu próprio o vis. te. Sereterno, reúna à minha volta a inumerável multidão de meus semelhantes que escutem minhasconfissões, que gemam de minhas indignidades, que se ruborizem com minhas misérias. Quecada qual descubra, por sua vez, seu coração aos pés de teu trono com a mesma sinceridade;e, depois, que um só te diga, se ousar: fui melhor do que este homem (...)[O primeiro Discurso]Neste ano de 1749, o verão foi de um calor excessivo. Contam-se duas léguas de Paris aVincennes. Sem condições para pagar fiacres, às duas horas da tarde eu ia a pé quandoestava só e ia depressa para chegar mais cedo. As árvores da estrada, sempre desbastadas àmoda da região, não davam quase sombra alguma e freqüentemente, esmagado de calor e decansaço, eu me estendia no chão não podendo mais continuar. Eu procurava, paramoderar meus passos, ler algum livro. Um dia peguei o Mercure de France e, enquanto an-dava, percorrendo-o com os olhos, topei com a seguinte questão proposta pela Academia deDijon para o prêmio do ano seguinte: Se o progresso das ciências e das artes contribuiupara corromper ou purificar os costumes.No instante dessa leitura vi um outro universo e me tornei um outro homem. Embora eu tenhauma lembrança viva da impressão que recebi, os detalhes me escaparam desde que osdepositei em uma das minhas quatro cartas ao Sr. de Malesherbes.(...) O de que me lembro bem distintamente dessa ocasião é que, chegando a Vincennes, euestava numa agitação que era quase delírio. Diderot percebeu; eu disse a causa e li para elea Prosopopéia de Fabrício, escrita a lápis sob um carvalho. Ele me exortou a desenvolverminhas idéias e concorrer ao prêmio. Eu o fiz, e a partir desse instante eu me perdi. Todo oresto de minha vida e de minhas infelicidades foi o efeito inevitável desse instante de desvio.Meus sentimentos se alçaram com a mais inconcebível rapidez ao tom de minhas idéias. Todasas minhas pequenas paixões foram esmagadas pelo entusiasmo da verdade, da liberdade, davirtude, e o que há de mais espantoso é que essa efervescência se manteve em meu coraçãodurante mais de quatro ou cinco anos a um grau tão alto talvez quanto o tenha jamais estadono coração de um outro homem.

    Os Espetáculos

    No século XVIII a arte do teatro passa por uma extraordinária expansão e discute-se muitosobre as virtudes do teatro, se ele é ou não uma boa escola de moral e bons costumes e a eleos philosophes dão grande importância. Na sua famosa Carta a d'Alembert sobre osespetáculos, Rousseau toma partido em relação ao teatro e condena o teatro à francesa,examinando a questão dos espetáculos a partir de uma ótica eminentemente política. Os doistrechos seguintes são extraídos dessa longa Carta:

    Perguntar se os espetáculos são bons ou maus em si mesmos é formular uma questão muitovaga; é examinar uma relação antes de ter fixado os termos. Os espetáculos são feitos para opovo e é somente por seus efeitos sobre ele que se pode determinar suas qualidades absolutas.Pode haver espetáculos de uma infinidade de espécies; há de povo a povo uma prodigiosadiversidade de costumes, de temperamentos, de caracteres. O homem é uno, confesso-o; maso homem modificado pelas religiões, pelos governos, pelas leis, pelos costumes, pelospreconceitos, pelos climas torna-se tão diferente de si mesmo que não se deve mais procurarentre nós o que é bom aos homens em geral, mas o que é bom para eles em tal tempo ou emtal país. Assim, as peças de Menandro, feitas para o teatro de Atenas, estavam deslocadas node Roma; assim, os combates de gladiadores, que, sob a república, animavam a coragem e ovalor dos romanos, não inspiravam, sob os imperadores, ao populacho de Roma, mais doque o amor do sangue e a crueldade: com o mesmo objeto oferecido ao mesmo povo em

    diferentes tempos, ele aprendeu primeiro a desprezar sua vida e, depois, a brincar com a deoutrem. (...)[Festas públicas]Como! Não deve haver, então, nenhum espetáculo em uma república? Ao contrário, devehaver muitos. É nas repúblicas que eles nasceram, é em seu seio que os vimos brilhar comum verdadeiro ar de festa. A que povos convém melhor reunir-se freqüentemente e formarentre si os doces laços do prazer e da alegria do que àqueles que têm tantas razões para seamar e para permanecer para sempre unidos? Já temos várias dessas festas públicas;tenhamos mais ainda e só ficarei mais encantado. Mas não adotemos esses espetáculosexclusivos que encerram tristemente um pequeno número de pessoas em um antro obscuro;que os mantêm temerosos e imóveis no silêncio e na inação; que não oferecem aos olhos maisdo que clausuras, pontas de ferro, soldados, aflitivas imagens da servidão e da desigualdade.

    Não, povos felizes, não são estas as vossas festas! É em pleno ar puro, é sob os céus quedeveis vos reunir e vos entregar ao doce sentimento de vossa felicidade.(...) Mas quais serão, afinal, os objetos desses espetáculos? O que é que se mostrará neles?Nada, se quiserem. Com a liberdade em toda parte, onde reina a afluência o bem-estartambém reina. Plantai no meio de uma praça um mastro coroado de flores, reuni em torno opovo e tereis uma festa. Fazei ainda melhor: dai os espectadores em espetáculo; tornai-os eles

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    próprios atores; fazei com que cada um se veja e se ame nos outros, a fim de que todos sejammelhor unidos...

    O segundo Discurso, que trata da desigualdade, tão mal receb i d o p o rV o l t a i r e , é e n t u s i a s t i c a m e n t e s a uda do po r um dos g r a nde s

     p ens a dor es do s écu lo XX, C laude Lévi S t r au ss (nas c ido e mB r uxe l a s , 1908 ) , c om o o l i v r o que f undou a a n t r opo l og i ao c i d e n t a l . O q u e é e n t ã o o homem segundo o autor do Discurso?Tomemos a tese central. Segundo mostra nossa experiência cotidiana, os homens

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    são maus, inimigos uns dos outros, buscando o tempo todo a melhorforma de tirar partido, ou de fazer mal ao semelhante. Teria então razãoo filósofo inglês Thomas Hobbes, ao dizer que "o homem é o lobo dohomem" e vive em guerra permanente com seus semelhantes? [Hobbes(1588-1679), autor do Leviatã, conduziu a filosofia política a um momentoelevado de reflexão.]Rousseau concorda em certo sentido, mas se permite introduzir umacorreção no ensinamento de Hobbes. Os homens são maus, mas nãointrinsecamente, não enquanto portadores dos atributos da espécie homem. Aessência, a natureza do homem é essencialmente boa; o que vemos diante de nós éuma degradação, uma degenerescência dessa natureza originária, em si mesmalímpida e rica em potencialidades. Deformado, o homem de hoje pouco tema ver, a não ser talvez a mera aparência, com o homem selvagem ou com oshomens da Antigüidade clássica, os gregos e os romanos. Como explicar essaalteração? Em que consiste a corrupção?Para penetrar no conteúdo das teses de Rousseau sobre o homem, vamosantes recorrer ao Emílio, a última de suas "grandes obras".Segundo Rousseau, para melhor apreender a ordem entreseus escritos, énecessário começar pelos últimos, pois só nestes é que ele chega até os

     princípios fundamentais de seu "sistema". Referindo-se à própria obra, Rousseau

    escreveu:Eu tinha sentido desde minha primeira leitura que estes escritoscaminhavam em uma certa ordem que era preciso encontrar para seguir acadeia de seu conteúdo. Acreditei ver que esta ordem era inversa à de suapublicação e que o autor, elevando-se de princípio em princípio, não tinhaatingido os primeiros a não ser em seus últimos escritos. Era preciso, pois,para caminhar por síntese, começar pelo final. E foi o que fiz, atendo-meprimeiro ao Emílio.

    Uma profissão de fé

     No Emílio, inserido no corpo de seu livro IV (ao todo são cinco livros), háum opúsculo famoso: Profissão de fé do vigário de Sabóia. Texto notávele autônomo no interior do livro, ele pode ser lido assim como uma espéciede Discurso do método de Rousseau. [O Discurso do método foi escrito

     pelo filósofo francês René Descartes (1596-1650) que é considerado ofundador do nacionalismo moderno.] Na Profissão de fé, tomando posiçãocom relação a várias questões filosóficas tradicionais, o autor nos expõe

    os princípios mais gerais sobre os quais se fundamenta o conjunto dassuas proposições sobre o homem. O problema de que parte Rousseau é o mesmo de Descarte: sobre o que desólido é possível apoiar nossas certezas e nossa idéias sobre as coisas? Masele adotou um caminho totalmente d verso para resolvê-lo. Para Rousseau asevidências serão de ordem diferente daquelas em que se apóia seu colega doséculo anterior Para Descartes as bases são apenas intelectuais; o critério paraavaliar a certeza de uma idéia é a clareza e distinção. Rousseau reclama outrocritério de certeza: age como os empiristas, que valorizam as evidências e a

    experiência dos sentidos. [O principal representante do empirismo é o inglês JohnLocke (1632-1704).] Mas tomando um caminho diferente dos empiristas,Rousseau convoca uma dimensão do homem para além do intelecto e dossentidos é preciso levar em conta o homem em sua totalidade, comocoração, como sensibilidade moral:

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     Trazendo, pois, em mim o amor da verdade no lugar de toda filosofia, e pormétodo uma regra fácil e sim pies que me dispensa da vã sutileza dos

    argumentos, reto mo, pois, a partir dessa regra o exame dos conhecimentosque me interessam, resolvido a admitir como evidentes todos aqueles aos quaisna sinceridade de meu coração eu não poderia recusar o meu consentimento;co mo verdadeiras, todas aquelas que me parecerão ter um ligação necessáriacom estas primeiras e deixar todas a outras na incerteza, sem rejeitá-las nemadmiti-las e sem me atormentar em esclarecê-las quando não levam a na dade útil para a prática.

     Nesse texto, assistimos a um duplo deslocamento no modo tradicional de tratar as

    questões filosóficas.Em primeiro lugar, a atividade de conhecimento não é mai deixada comexclusividade ou ao puro intelecto ou às impressões sensíveis. Noconhecimento acha-se comprometido o homem na sua totalidade e,

     portanto, também o seu sent imento e suas "paixões". Trata-se, pois, de umarecusa do intelectualismo e do racionalismo...Em segundo lugar, também o âmbito da investigação sofre uma alteração.As questões sobre as quais podemos exercer nossa curiosidade dizem respeito àesfera da "prática", aos nossos deveres e à nossa conduta. Antecipando-se

    a Kant, Rousseau partiu da convicção de que é limitada a capacidadehumana de conhecimento. Orgulhoso, o homem quer "tudo penetrar, tudoconhecer" e se esquece de perguntar em primeiro lugar pela potência de suafaculdade de conhecer:Pequena parte de um grande todo, (..) somos bastante vãos para quererdecidir o que é este todo em si mesmo e o que somos em relação a ele.Então, o que é possível conhecer? Até onde podemos nos aventurar? Guia-nosuma bússola segura, fornecida por nossa própria natureza: trata-se do"interesse", palavra tomada no sentido mais amplo possível e que inclui a

    dimensão moral. Tudo aquilo que diz respeito à nossa sobrevivência, aonosso bem-estar e à nossa conduta em relação aos semelhantes, é suscetívelde ser conhecido com segurança. As questões que realmente interessam e sãodignas de nossa atenção não são, pois, questões puramente especulativas, semrelação com a prática da vida e que só alimentam um delirante orgulho ou uma

     pretensão descabida.

    Ordem e caos

    Com base nesse método, Rousseau chega a algumas verdades fundamentais. Em pr imeiro lugar, partindo da observação do universo que o circunda, chega àidéia de Deus, concebido como uma causa primeira que move o universo e animaa natureza:

    Quanto mais observo a ação e a reação das forças da natureza agindo umassobre as outras, mais acredito que de efeitos em efeitos é preciso sempreremontar a alguma vontade como primeira causa, pois supor um progressodas causas ao infinito é não supor nenhum.

    Existe, pois, uma causa primeira do universo, ao que se convencionou chamar deDeus, uma vontade criadora. Rousseau se utiliza aqui da tradicional provada existência de Deus percebida através dos efeitos de sua ação. Só que, nasua perspectiva, a prova vem reforçada pela aceitação do coração.

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    A partir daí, poderá ser estabelecida uma segunda verdade relativa ànatureza. Como o universo que nos circunda mostra-se harmonioso, comoum vasto conjunto de correspondências e simetrias, devemos concluir pelocaráter inteligente da causa que o produziu: "Se a matéria movida memostra uma vontade, a matéria movida segundo certas leis me mostra umainteligência".

    Ao contrário das pretensões da metafísica, não há como penetrar mais alémna natureza mais profunda dessa realidade primeira. Mas também não hámotivo para se inquietar com isso, uma vez que tal aprofundamento nadaacrescenta à nossa conduta na vida. O que importa reter a partir dessasverdades primeiras é a idéia do universo como uma ordem inteligente,como uma vasta cadeia de seres que se interligam e onde cada um ocupa umlugar bem preciso, que melhor se coaduna com os desígnios impenetráveis,da boa vontade inteligente, criadora do todo.Voltando-se, em seguida, para o próprio homem, Rousseau coloca o

     problema de saber qual a pos ição destinada a esse ser particular nestavasta cadeia da ordem universal. E aqui um primeiro choque ou um grandeespanto nos espera. O universo físico nos impressiona pela constanteregularidade, pela inalterável harmonia reinante entre as partes componentesdo todo. O exemplo mais notório disso são os coordenados movimentosastronômicos. Bem diferente, porém, é o espetáculo das coisas humanas,em que domina a mais completa desordem:

    O quadro da natureza não me oferecia senão harmonia e proporções, o dogênero humano não me oferece senão confusão e desordem! O concertoreina entre os elementos, e os homens estão no caos! Os animais sãofelizes, só o seu rei é miserável! Ó sabedoria, onde estão tuas leis? ÓProvidência, é assim que reges o mundo? Ser benfazejo, que foi feito doteu poder? Vejo o mal sobre a terra.

    Observe-se que Deus é também "bondade". Num trecho anterior, Rousseau junta ao nome de Deus as idéias de inteligência , de potência, de vontade, àsquais reuniu a bondade, sua conseqüência necessária.Como explicar a existência do mal, se o Criador é bondade? É nesse pontoque se estabelecerá a terceira verdade fundamental. Em termos bastantetradicionais e em contraste com o materialismo em voga no seu século,Rousseau afirma a liberdade do homem. [Os materialistas, que negam aexistência de Deus, afirmam a matéria como a única causa e única realidade

    substancial. No século XVIII, além de Diderot, os principais defensores domaterialismo foram Helvétius e o barão d'Holbach .]

     Não há verdadeira vontade nem verdadeira ação sem uma liberdade, que éseu princípio eficiente. E é esse atributo distintivo do homem que, se porum lado é motivo de orgulho, por outro responde pela própria existênciado mal sobre a Terra. Se há desordem, se há caos é porque os homens sãolivres e podem fazer um uso ou abuso da liberdade que os leva a exorbitar, air para fora ou para além da órbita normal que lhes é própria. Logo no pri-meiro parágrafo do Livro I do Emílio, Rousseau escreve: "Tudo é bem,

    saindo das mãos do autor das coisas; tudo degenera entre as mãos dohomem".O próprio homem, portanto, é o responsável último pelos seus males. Estes, poroutro lado, são definidos como um desregramento, como desordem ou caos,

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     por contraste com a ordem universal, que é essencialmente o bem ou osupremo valor. É nesse âmbito que se inscreve a tragicomédia humana. Masestamos ainda diante de uma resposta muito geral. Quais seriam, mais

     precisamente, os mecanismos responsáveis pelos desvios, os fatores que propiciamesse abuso que o homem faz de sua liberdade?

    A marcha da contradição

    Essa primeira incursão pelo universo dos textos rousseaunianos permite-nos perceber que o problema do homem ocupa um papel central em sua filosofia.Mas se nos limitássemos à leitura dessas idéias, ficaríamos em um plano

    abstrato e deixaríamos de levar em conta o elemento fundamental a partirdo qual a alteração da essência do homem será entendida como um processo ricoem contradições e cheio de dinamismo: trata-se da sociedade. É a contradiçãodinâmica entre natureza e sociedade que comanda o processo e asdificuldades do convívio forçoso com seus semelhantes, que levará o homem aentrar em contradição com suas disposições naturais.É na perspectiva dessa contradição primordial que veremos esse pensamentona plenitude do seu vigor. É a partir daí que perceberemos a novidade dosobjetos de estudo a que ele se propõe e dos novos terrenos de investigação

    que inaugura: a questão da sociedade e a questão da história. Ao lado deMontesquieu, Rousseau foi considerado precursor da Sociologia pelosociólogo francês Émile Durkhein (1858-1917). De fato, nosso filósofochama a atenção de modo inusitado para o problema das relações sociaisentre os homens, para a questão da sociabilidade e da complexidade da vidasocial ou para a lógica inscrita na sua trama de relações. Por outro lado, aquestão da história passa a adquirir um estatuto e uma dignidade filosófica,embora não tenha atingido ainda a clareza que teve mais tarde com Kant ecom Hegel (1770-1831) este filósofo alemão criou a moderna concepção de

    dialética e foi autor sobretudo da Grande Lógica, Fenomenologia do Espírito ePrincípios do Direito.Rousseau não procedeu a uma investigação abstrata sobre os atributosque constituem o homem. Ele interpretou a evolução desde os primórdiosda humanidade até os dias de hoje. O que interessa desvendar é a lógica

     própria ao desenvolvimento dos homens através de sua história. Trata-se deuma investigação "arqueológica", que buscará reconstituir estágios perdidosna evolução do homem para definir como era ele em seus primórdios ecomo teriam ocorrido as alterações. Teremos a reconstituição dinâmica e

    dramática que oporá um "esta do de natur eza" a um "estado de sociedade"e recriará imaginariamente os sucessivos cenários intermediários que conduziramde um termo a outro.Rousseau trabalhou segundo um esquema dicotômico — estado de naturezaou estado de sociedade — que o aproximou muito mais dos filósofos

     políticos do que dos metafísicos. Ele se aproximou de Hobbes e dos jurisconsultos da Escola do Direito Natural (Hugo Grot ius, SamuelPuffendorf, Barbeyrac, Burlamaqui, Wollf). O filósofo pretendeu imaginarcomo seria o homem antes da passagem para a vida em sociedade, para

    saber distinguir entre aquilo que ele deve a seu próprio fundo primitivo enatural, e aquilo que ele recebeu artificialmente ou deve ao livre — e,

     portanto, falível — uso das suas faculdades.Vejamos como se faz essa reconstituição do homem natural.

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    Os dois discursos

    A ocasião para o desenrolar pleno do novelo foi fornecida por umacircunstância bastante convencional.A Academia de Dijon formulou uma grave questão para o seu Concursode Moral do ano de 1753: "Qual é a fonte da desigualdade entre oshomens? Ela é autorizada pela lei natural?" Questão, como vemos, que

     parece ter sido feita sob medida para Rousseau, que alguns anos anteshavia ganho o primeiro prêmio em concurso promovido pela mesma academia.Provocado por essas questões, Rousseau desenvolveu suas teses em dois

    Discursos de dimensões e importância desiguais. A essas obras aplica-se ainversão entre a ordem lógica e a ordem cronológica: o primeiro Discurso,sobre a ciência e as artes, redigido e publicado alguns anos antes dosegundo, é apenas um desenvolvimento deste; as teses expostas no

     pr imeiro Discurso abordam apenas um aspecto derivado de uma questãomuito ampla que somente no segundo ganhou o aprofundamento devido.Aqui o autor refere-se aos dois textos:

    Se só o [primeiro] Discurso de Dijon excitou tantos murmúrios e causou

    escândalo, o que teria acontecido se eu tivesse desenvolvido desde oprimeiro instante toda a extensão de um sistema verdadeiro mas aflitivo,do qual a questão tratada neste [segundo] Discurso não é senão umcorolário?

    O curioso é que o primeiro Discurso, apesar do prêmio conquistado, é julgado severamente pelo próprio autor, que o considera carente de lógica ede ordem e, dentre as suas obras, "a mais fraca de raciocínio". Por que entãoela provocou tanto escândalo, despertando intermináveis polêmicas e

    celebrizando o seu autor logo no início da carreira?A explicação está em que a tese defendida foi pouco palatável nesse séculotão orgulhoso de seus progressos e do refinamento de seus costumes.Inesperadamente, eis que Rousseau investe com eloqüência e ousadia contraesse "preconceito favorável" que seus contemporâneos têm a respeito de simesmos. Para o filósofo, não foi positiva a influência das Luzes ou dos

     progressos nas artes e nas ciências a partir do Renascimento. Não é verdade,diz, que os homens mais cultivados ou as nações em que as artes e asciências mais se aprimoraram sejam necessariamente melhores do ponto de

    vista moral. Nesse segundo Discurso é feito um virulento ataque contra a civilização: oexcesso de ciência e arte acaba por corromper o homem, tornando-ohipócrita, acentuando e generalizando seu egoísmo, jogando uns indivíduoscontra os outros e, nessa corrida insaciável por mais comodidades, levando-os a se enredar em uma cadeia infernal de relações de submissão. Nascidas doorgulho humano e da humana ociosidade, as ciências e as artes acabam porconsolidar esses vícios, ensinando aos homens não o cumprimento de seusdeveres, mas a se enganarem mutuamente e melhor dissimularem suas

    intenções puramente egocêntricas.O principal resultado de todo o processo civilizatório consiste assim numacisão entre a região do ser e a do parecer. Os homens aparentarão, urbanae polidamente, todas as virtudes sociais para melhor perseguir, por debaixodo pano, seus objetivos puramente egoístas ou para melhor suplantar seus

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    rivais na eterna luta pela satisfação do seu amor próprio exclusivista.Questionando nesses termos o papel das ciências e das artes, Rousseauestabelece uma correlação necessária entre elas e a decadência dos costumes.

    A radicalização da questão

    Desafiado mais tarde por uma nova questão, Rousseau aprofundou essacrítica da civilização. Depois de se referir aos princípios expostos no primeiroDiscurso, prossegue:

    Logo tive ocasião de desenvolvê-los inteiramente numa obra de maior

    importância; pois foi, acredito, neste ano de 1753 que apareceu o programada Academia de Dijon sobre a origem da desigualdade entre os homens.Impressionado diante dessa grande questão, fiquei surpreso por ter essaAcademia ousado propô-la; mas, já que ela tivera essa coragem, podia eumuito bem ter a de tratá-la e foi o que fiz.

     Nessas condições — como diz um comentador , comparando as duasquestões e as duas respostas — "de um enunciado a outro o problema seaprofunda", pois a "colocação em questão atinge a sociedade como tal, orecurso à história se generaliza, o critério de juízo torna-se universal", detal maneira que o "segundo problema radicaliza o primeiro". O segundoDiscurso é considerado uma apresentação circunstanciada e raciocinada daconvicção que o primeiro Discurso  proclamava com mais calor do queclareza. Como se deu essa radicalização?É o fato da desigualdade existente entre os homens que se propõe entãocomo objeto de meditação. A desigualdade é, com certeza, uma marca tãosaliente em nossa civilização que não dá para escondê-la. Em primeirolugar, os homens são diferentes, vivendo sob condições variadas eformando povos distintos, com costumes e línguas próprios. Mas há, nointerior de cada sociedade, uma diferença muito mais notável, a que sedenomina desigualdade. Por exemplo: alguns são ricos e ostentam grandefortuna; outros são pobres e até miseráveis. Há os que gozam de muitos

     pr ivilégios, de direitos exclusivos — como os nobres — simplesmente emvirtude de terem nascido dentro de uma determinada família. Há, ainda,alguns que desempenham as mais altas funções de mando e pesam sobre asdecisões de interesse global, enquanto a outros — em geral a grande maioria

     — está reservado o papel passivo de "governados".Estamos pois, diante de um fato crucial em nossas sociedades. Um fato dotadode valor estratégico do qual dependem todos os outros. Como dizRousseau: "A primeira fonte do mal é a desigualdade". Trata-se de umfato "natural" ou, ao contrário, será a desigualdade algo historicamentecontingente, que poderia não ter existido? Seriam os homens desiguais pornatureza, como pretendia Aristóteles (para quem alguns nasciam paracomandar e outros para obedecer)?De acordo com Rousseau, a desigualdade não é um fato natural, ela não é"autorizada" pela lei natural. Considerado em sua condição natural, ohomem não mantém relações de desigualdade com seus semelhantes. Adesigualdade, portanto, é socialmente produzida no decorrer da evoluçãohistórica da humanidade. É até possível marcar o momento de sua apariçãoe determinar sua causa com precisão. O que Rousseau fez nesse Discurso foitraçar a gênese da desigualdade, mostrar como ela se formou pouco a

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     pouco através de diferentes etapas, qual sua origem e como tudo isso serelaciona com os demais fatos e fenômenos característicos da vida emsociedade.

    Objeto e método

    Precedido por três importantes escritos introdutórios — dedicatória, prefácioe exórdio — o "corpo" do Discurso divide-se em duas partes nitidamenteseparadas. Completando argumentações em alguns pontos cruciais, temosdezenove notas de rodapé, algumas bastante longas, nas quais são melhorexplicitadas algumas idéias principais.

    Os dois escritos introdutórios cumprem função similar: o prefácio, escritodepois de concluída a obra, funciona como uma avaliação geral; o exórdioanuncia os desenvolvimentos posteriores. Em ambos se fixa a questão,definindo-se o objeto do Discurso e se determina qual o método seguido.O objeto é o estudo do homem. Para Rousseau, é preciso ir até a essência dohomem para poder julgar sua condição atual.Em ambos os textos, conhecer o homem em sua natureza essencial é iralém do existente daquilo que está historicamente dado, e ir em busca deum estado inexistente. Seguindo os jurisconsultos da Escola do Direito

     Natural e de Hobbes, o filósofo fala em estado de natureza, concebido comouma condição pré-social, primitiva e originária.Mas nosso autor faz uma crítica importante aos seus predecessores quantoa seu método. De acordo com Rousseau, eles não foram suficientementeradicais, e se detiveram a meio caminho na tentativa de reconstituir acondição pré-social. Ao transportar para o homem primitivo atributos

     próprios do homem que vive em sociedade, embora pensando quedesenham o retrato do homem natural, estão construindo uma projeção desi mesmos. Sem perceber, pintam o seu auto-retrato. Quase todos, diz

    Rousseau,. "falando sem cessar em carecimento, avidez, opressão, desejos eorgulho, transportaram para o estado de natureza idéias que tiraram dasociedade" e, "falando do homem selvagem", estavam pintando "o homemcivil".Era necessário mudar o procedimento. Deixemos de lado, propõe o autor, oslivros pretensamente científicos ou os fatos pretensamente estabelecidos evoltemo-nos sobre nós mesmos. Guiados pelo princípio crítico daradicalidade que postula o primitivo como o Outro absoluto em relação aohomem civil, façamos um esforço para superar o fascínio narcísico pela

    imagem do próprio ego. Meditando sobre as "primeiras e mais simplesoperações da alma humana" — cujos vestígios ainda carregamos em nós —, busquemos reconstituir a imagem perdida do primeiro homem. Na primeira parte do Discurso, o autor se dedicou justamente à reconstruçãohipotética desse estado primitivo, enquanto na segunda buscou acompanhar o

     processo que conduz até o estado atual.

     Textos Selecionados

    Moral e Religião

    Os textos seguintes fazem parte da Profissão de fé do vigário de Sabóia.Depois de ter assim deduzido, da impressão dos objetos sensíveis e do sentimento interior queme induz a julgar as causas segundo minhas luzes naturais, as principais verdades que me

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    importava conhecer, resta-me procurar que máximas devo tirar disso para minha conduta eque regras devo prescrever me para realizar meu destino na terra, segundo a intenção de quemnela me colocou. Sempre seguindo meu método, não tiro essas regras dos princípios de umaalta filosofia, mas as encontro no fundo de meu coração escritas pela natureza em caracteresindeléveis. Basta consultar-me acerca do que quero fazer; tudo o que sinto ser bem é bem,tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é a consciência. E é somentequando negociamos com ela que recorremos às sutilezas do raciocínio. O primeiro de todosos cuidados é o de si mesmo; no entanto quantas vezes a voz interior nos diz que, fazendonosso bem a expensas de outrem, fazemos o mal! Acreditamos seguir o impulso da natureza elhe resistimos; ouvindo o que diz a nossos sentidos, desprezamos o que diz a nossos corações; oser ativo obedece, o passivo comanda. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz docorpo. Será de espantar que amiúde essas vozes se contradigam? E que linguagem cumpreentão ouvir? Vezes demais a razão nos engana, temos mais do que o direito de recusá-la; mas aconsciência não engana nunca; ela é o verdadeiro guia do homem: está para a alma como oinstinto pai a o corpo; quem a segue obedece à natureza e não receia perder-se. Este pontoimportante, continuou meu benfeitor, vendo que eu ia interrompê-lo: deixai que eu medetenha um pouco mais em esclarecê-lo. Toda a moralidade de nossas ações está no julgamento que temos de nós mesmos. Se éverdade que o bem seja bem, é preciso que se ache no fundo de nossos corações como emnossas obras, e a primeira recompensa da justiça é sentir que a praticamos. Se a bondademoral está de conformidade com a nossa natureza, o homem não pode ser são de espírito nembem constituído senão à medida que é bom. Se não o é, e o homem é naturalmente mau, nãoo pode deixar de ser sem se corromper, e a bondade não passa nele de um vício contra a natureza. Feito para prejudicar seus semelhantes, como o lobo para esganar sua presa um homemhumano seria um animal tão depravado quanto um lobo piedoso; somente a virtude nosdeixaria remorsos.Reflitamos, meu jovem amigo. Examinemos, pondo de lado qualquer interesse pessoal, a quenos levam nossas inclinações. Que espetáculo nos agrada mais, o dos tormentos ou o dafelicidade alheia? Que nos é mais agradável fazer e nos deixa uma impressão maisconfortadora por o ter feito, um benefício a um ato de maldade? Por quem vos interessaisem vossos teatros? São os crime que vos dão prazer? São os autores punidos que vosarrancam lágrimas? Tudo nos é indiferente, dizem, à exceção de nosso interesse; mas, aocontrário, as doçuras da amizade, da humanidade, consolam-nos em nossas penas: e mesmoen nossos prazeres, nós nos sentiríamos demasiado sós, demasiado miseráveis se não tivéssemoscom quem os partilhar. Se não há nada de moral no coração do homem, de onde lhe vêmesses transportes de admiração pelas ações heróicas, esse arroubos de amor pelas grandesalmas? Esse entusiasmo da virtude, que relação tem com nosso interesse particular? Por quedesejaria ser Catão rasgando as entranhas, de preferência a César triunfante? Tirai de nossoscorações esse amo ao belo e tirareis todo o encanto da vida. Aquele cujas vis paixõesabafaram em sua alma estreita esses sentimentos deliciosos; aquele que, à força de seconcentrar em si, chega a não amar senão a si mesmo, não tem mais transportes, seu co raçãogelado não palpita mais de alegria; uma doce ternura não umedece mais seus olhos; nãoaprecia mais nada; o infeliz não sente mais, não vive mais; já está morto.

    [Solidariedade]

    Mas, por grande que seja o número dos maus na terra, há poucas almas tornadas insensíveis,fora de seu interesse, a tudo o que é justo e bom. A iniqüidade só satisfaz à medida que nosaproveitamos dela; no restante, ela quer que c inocente seja protegido. Se vemos na rua ounum caminho qualquer um ato de violência e de injustiça, de imediato um movimento decólera e indignação se ergue do fundo de nosso coração e nos leva a tomar a defesa dooprimido: mas um dever mais forte nos retém, e as leis nos tiram o direito de proteger ainocência. Ao contrário, se presenciamos algum ato de clemência ou de generosidade, queadmiração, que amor nos inspira! Quem não se diz: gostaria de fazer o mesmo? Importa-noscertamente muito pouco que um homem tenha sido mau ou justo há dois mil anos; e, noentanto, o mesmo interesse nos afeta na história antiga, tal qual se tudo se passasse emnossos dias. Que me importam os crimes de Catilina? Tenho medo de ser sua vítima? Porque então tenho dele o mesmo horror que teria se fosse meu contemporâneo? Nós nãoodiamos os maus apenas porque nos prejudicam, odiamo-los porque são maus. Nãosomente queremos ser felizes, como queremos a felicidade alheia, e quando essa felicidadenão custa nada à nossa, ela a aumenta. Temos enfim, independentemente de nossa vontade,piedade dos desgraçados; quando somos testemunhas de seu mal, sofremos. Os maisperversos não podem perder inteiramente essa tendência que, amiúde, os põe em contradição

    consigo mesmos. O ladrão que despoja os transeuntes ainda é capaz de cobrir a nudez dopobre; e o mais feroz dos assassinos ampara um homem que desfalece.Fala-se do grito dos remorsos, que pune em segredo os crimes ocultos e os põe tantas vezesem evidência. Em verdade, quem dentre nós não ouviu nunca esta voz importuna? Falamos porexperiência; e desejaríamos abafar esse sentimento tirânico que nos dá tanto tormento.Obedeçamos à natureza, e veremos com que doçura ela reina, e que encanto encontramos,depois de a ter escusado, em darmos um bom testemunho de nós mesmos. O mau teme a si

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    próprio e de si foge; alivia-se jogando-se fora de si; deita em derredor olhares inquietos ebusca um objeto que o distraia; sem a sátira amarga, sem a zombaria insultante, estariasempre triste; o riso de escárnio é seu único prazer. Ao contrário, a serenidade do justo éinterior; seu riso não tem maldade e sim alegria; carrega-lhe a fonte em si mesmo; está tãoalegre sozinho como numa roda; não tira seu consentimento dos que se aproximam dele, esim lhos comunica.

    [J ustiça inata]

    Deitai os olhos em todas as nações do mundo, percorrei todas as histórias.Em meio a tantos cultos inumanos, e estranhos, em meio a essa prodigiosa diversidade decostumes e de caracteres, encontrareis por toda parte as mesmas idéias de justiça e dehonestidade, as mesmas noções do bem e do mal. O antigo paganismo engendrou deusesabomináveis, que teríamos punido aqui como celerados, e que só ofereciam para quadro dafelicidade supremos crimes a se cometerem e paixões a se satisfazerem. Mas o vício, armado

    de uma autoridade sagrada, descia em vão de seu ambiente eterno, o instinto moral rejeitava-o do coração dos humanos. Celebrando as orgias de Júpiter, admirava-se a continência deXenócrates; a casta Lucrécia adorava a impudica Vênus; o intrépido romano sacrificava aomedo; invocava o deus que mutilou seu pai e morria sem murmurar nas mãos do dele; as maisdesprezíveis divindades foram servidas pelos maiores homens.santa voz da natureza, mais forte que a dos deuses, fazia-se respeitar na terra, parecia relegarao céu o crime com os culpados.Há portanto no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude de acordo com oqual, apesar de nossas próprias máximas, julgamos boas ou más nossas ações e as alheiase é a esse princípio que chamo consciência.Encarando o ponto a que eu chegara como o ponto comum de que partiam rodos os crentespara chegar a um culto mais esclarecido, não encontrava nos dogmas da religião naturalsenão os elementos de qualquer religião. Eu considerava essa diversidade de seitas que reinamsobre a terra e que se acusam mutuamente de mentira e de erro; eu me perguntava: qual aboa? Cada qual me respondia: a minha. Cada qual dizia: só eu e meus partidários pensamoscerto; todos os outros erram. E como sabeis que vossa seita é a boa? Porque Deus o disse. Equem vos disse que Deus o disse? Meu pastor que o sabe muito bem. Meu pastor disse-me deacreditar assim e assim acredito: ele assegura-me que todos os que dizem de outra maneiramentem, e eu não os escuto.Como, eu pensava, não é a verdade uma só? E o que é verdade para mim pode ser falso paravós? Se o método de quem segue o bom caminho e o de quem se perde é o mesmo, que méritotem ou que erro comete um mais do que outro? Sua escolha é efeito do acaso; imputar-lha éiniqüidade, é recompensar ou punir por ter nascido em tal ou qual país. Ousar dizer que Deusnos julga assim é ultrajar sua justiça.

    [Religiões]

    Ou todas as religiões são boas e agradáveis a Deus, ou, se há alguma que ele prescreva aoshomens e os castigue por desconhecê-la, ele lhe deu sinais certos e manifestos para serdistinguida e conhecida como a única verdadeira. Esses sinais são de todos os tempos e detodos os lugares, igualmente sensíveis a todos os homens, grandes e pequenos, sábios eignorantes, europeus, índios, africanos, selvagens. Se houvesse uma religião na terra, fora daqual só houvesse pena eterna, e que em qualquer lugar do mundo um só mortal de boa-fé nãofosse impressionado por sua evidência, o deus dessa religião seria o mais iníquo e o maiscruel dos tiranos.Procuramos então sinceramente a verdade? Não concedamos nada ao direito do berço nem à

    autoridade dos pais e dos pastores, mas submetamos ao exame da consciência e da razãotudo o que nos ensinaram desde a infância. Podem gritar-me: submete tua razão; o mesmopode dizer-me quem me engana: preciso de razões para submeter minha razão. Toda a teologia que posso adquirir de mim mesmo pela inspeção do universo, e pelo bomemprego de minhas faculdades, limita-se ao que vos expliquei aqui. Para saber maiscumpre recorrer a meios extraordinários. Tais meios não podem ser a autoridade dos homens,porquanto nenhum homem sendo de espécie diferente da minha, tudo o que um homemconhece naturalmente eu também o posso conhecer, e outro homem pode enganar-se tantoquanto eu; quando acredito no que diz, não é porque o diz e sim porque o prova. Otestemunho dos homens não é portanto senão o de minha própria razão e nada acrescenta aosmeios naturais de conhecer a verdade, que Deus me deu.

    Crítica da Vida em Sociedade

    A política e a vida em sociedade ocupam um lugar central em todo o pensamento de Rousseau.Como diz o filósofo nas Confissões, tudo se prende "radicalmente à política". O modo como oshomens vivem em sociedade e se relacionam uns com os outros e o modo como eles governam

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    ou regulam seus negócios e assuntos comuns é decisivo sob todos os pontos de vista edetermina sua felicidade ou infelicidade.Os textos que seguem são extraídos do Discurso sobre a desigualdade, do Contrato social, doEmílio e da Carta a d'Alembert sobre os espetáculos.[Desigualdade]

    O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno,lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo.Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humanoaquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes:"Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são detodos e que a terra não pertence a ninguém!" Grande é a possibilidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto de não poder mais permanecer como eram, pois essa idéiade propriedade, dependendo de muitas idéias anteriores que só poderiam ter nascido sucessi-vamente, não se formou repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazerem-se muitosprogressos, adquirir-se muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de geração parageração, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, ascoisas de mais longe ainda e esforcemo-nos por ligar, de um único ponto de vista, em suaordem mais natural, essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos(...)

    [Acordos]

    Assim, os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças o de suasnecessidades uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, segundo eles, ao depropriedade, seguiu-se à rompida igualdade a pior desordem; assim as usurpações dos ricos,as extorsões dos pobres, as paixões desenfreadas de to dos, abafando a piedade natural e avoz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avaros, ambiciosos e maus. Ergueu-se entreo direito do mais forte e o d primeiro ocupante um conflito perpétuo que terminava em combates eassassinatosA sociedade nascente foi colocada no mais tremendo estado de guerra; o gênero humano,aviltado e desolado, não podendo mais voltar sobre seus passos nem renunciar às aquisiçõesinfelizes que realizara, ficou às portas da ruína por não trabalhar senão para sua vergonha,abusando das faculdades que o dignificam(..Não é possível que os homens não tenham, afinal, refletido sobre tão miserável situação e ascalamidades que os afligiam. Os ricos, sobretudo, com certeza logo perceberam quanto lhesera desvantajosa uma guerra perpétua cujos gasto só eles pagavam e na qual tanto o risco dasua vida como o dos bens partícula res eram comuns. Aliás, qualquer que fosse ainterpretação que pudessem da às suas usurpações, sabiam muito bem estarem estas

    apoiadas unicamente num direito precário e abusivo e que, tendo sido adquiridas apenas pelaforça, est. mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem que pudessem lamentar-se. Os enriquecido sópela indústria não podiam basear sua propriedade em melhores títulos. Por mais quedissessem: "Fui eu quem construiu este muro; ganhei este terreno com meu trabalho", outrospoderiam responder-lhes: "Quem vos deu as demarcações por que razão pretendeis ser pagosa nossas expensas, de um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão devossos irmãos perece e sofre a necessidade do que tendes a mais e que vos seria necessário umconsentimento ex prenso e unânime do gênero humano para que, da subsistência comum, vosapropriásseis de quanto ultrapassasse a vossa?" Destituído de razões legítimas para justificar-se e de forças suficientes para defender-se, esmagando com facilidade umparticular, mas sendo ele próprio esmagado por grupos de bandidos, sozinho contra todos enão podendo, dados os ciúmes mútuos, unir-se com seus iguais contra os inimigos unidos

    pela esp