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A SEDUCAO DO SAGRADO. 5(/,*,$2 ( 62&,(’$’(. VOZES-ISER, v.16, p.82 - 93, 1992. $6(’8d›2’26$*5$’2 Maria Clara Luchetti Bingemer Num momento de queda e troca de paradigmas e modelos, nota-se na sociedade de hoje uma compreensão do homem enquanto ser relacional e aberto a uma autonomia heterônoma, ou seja, uma autonomia regida pela alteridade. A isso chamamos “sedução do sagrado”, uma vez que essa alteridade da qual nos ocuparemos trata-se nada mais nada menos do que da “alteridade divina”, do totalmente Outro. Nesta comunicação, primeiramente examinaremos o fenomeno da explosão plurireligiosa que acontece na sociedade e na Igreja de hoje e à qual chamaremos “sedução do sagrado”. Em segundo lugar, examinaremos como esse processo de “sedução”que o sagrado e o divino exercem sobre as pessoas tem acontecido e sido analisado e elaborado por parte do cristianismo ou da mística cristã. Finalmente, veremos como algumas “histórias de vida”de homens e mulheres de hoje podem nos ajudar a redescobrir o caminho desta sedução que parece exercer um poder tão forte sobre nossos contemporâneos sob diferentes denominações, dentro de nossa própria tradição. 8PD‡QRYD‡UHOLJLRVLGDGH" No Brasil hoje, assim como em muitas outras partes do mundo ocidental moderno, que se considerava liberto da opressão e do "ópio" da religião, explode de novo, com intensa força, a sedução do Sagrado e do Divino, des-reprimido e incontrolável . É o fenômeno das chamadas "seitas" ou grupos religiosos alternativos, novos movimentos religiosos que povoam o campo religioso com novas e desconcertantes formas de expressão, assustando e intrigando as Igrejas históricas tradicionais, as Ciências Sociais e os bem-pensantes . É fato constatado que milhões de brasileiros entram em transe diariamente, ou seja, são arrebatados em seu potencial desejante e afetivo por alguma experiência do Transcendente, identificada com o Sagrado ou o Santo, seja Ele nomeado como Deus, Oxalá ou o Santo Daime . No fundo desta explosão religiosa complexa e plural, escondem-se várias questões de extrema importância, parece-nos, não só para a Teologia como para todas as ciências sociais e humanas que se propõem lidar seriamente com este problema mais que humano da experiência religiosa ou experiência do Sagrado.Por um lado, vai uma velada crítica às Igrejas históricas tradicionais, que teriam perdido boa parte de seu caráter iniciático, mistérico, permanecendo quase que somente caracterizadas por seu aspecto institucional - articulador da comunidade, ou ético-

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A SEDUCAO DO SAGRADO. 5(/,*,$2�(�62&,('$'(. VOZES-ISER, v.16, p.82 - 93, 1992.

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Maria Clara Luchetti Bingemer

� Num momento de queda e troca de paradigmas e modelos, nota-se na sociedade de hoje uma compreensão do homem enquanto ser relacional e aberto a uma autonomia heterônoma, ou seja, uma autonomia regida pela alteridade. A isso chamamos “sedução do sagrado”, uma vez que essa alteridade da qual nos ocuparemos trata-se nada mais nada menos do que da “alteridade divina”, do totalmente Outro.

Nesta comunicação, primeiramente examinaremos o fenomeno da explosão plurireligiosa que acontece na sociedade e na Igreja de hoje e à qual chamaremos “sedução do sagrado”. Em segundo lugar, examinaremos como esse processo de “sedução”que o sagrado e o divino exercem sobre as pessoas tem acontecido e sido analisado e elaborado por parte do cristianismo ou da mística cristã. Finalmente, veremos como algumas “histórias de vida”de homens e mulheres de hoje podem nos ajudar a redescobrir o caminho desta sedução que parece exercer um poder tão forte sobre nossos contemporâneos sob diferentes denominações, dentro de nossa própria tradição.

8PD�³QRYD�³UHOLJLRVLGDGH"���� No Brasil hoje, assim como em muitas outras partes do mundo ocidental moderno, que se considerava liberto da opressão e do "ópio" da religião, explode de novo, com intensa força, a sedução do Sagrado e do Divino, des-reprimido e incontrolável . É o fenômeno das chamadas "seitas" ou grupos religiosos alternativos, novos movimentos religiosos que povoam o campo religioso com novas e desconcertantes formas de expressão, assustando e intrigando as Igrejas históricas tradicionais, as Ciências Sociais e os bem-pensantes .

É fato constatado que milhões de brasileiros entram em transe diariamente, ou seja, são arrebatados em seu potencial desejante e afetivo por alguma experiência do Transcendente, identificada com o Sagrado ou o Santo, seja Ele nomeado como Deus, Oxalá ou o Santo Daime .

No fundo desta explosão religiosa complexa e plural, escondem-se várias questões de extrema importância, parece-nos, não só para a Teologia como para todas as ciências sociais e humanas que se propõem lidar seriamente com este problema mais que humano da experiência religiosa ou experiência do Sagrado.Por um lado, vai uma velada crítica às Igrejas históricas tradicionais, que teriam perdido boa parte de seu caráter iniciático, mistérico, permanecendo quase que somente caracterizadas por seu aspecto institucional - articulador da comunidade, ou ético-

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transformador da realidade. Neste sentido, a força que vem tomando no seio do próprio Cristianismo institucionalizado o uso de técnicas das tradições orientais, terapias de auto-ajuda, ou busca de recursos identificados nitidamente com a Nova Era como ajuda na vivência da espiritualidade, se traz preocupação por um lado, por outro pode ser encarada como uma sintoma de que está em curso uma nova maneira ou tentativa de recuperar o Cristianismo iniciático e mistagógico .

A resssacralização do mesmo mundo do qual a razão moderna apressou-se em proclamar o desencantamento e a secularidade complexifica as perguntas acima levantadas. O reaparecimento, o reemergir, - mais do que volta - do religioso, do sagrado, a sede pelo mistério e pela mística em distintas formas aparecendo após o “banimento”ensaiado pela secularização denota uma volra ( ou uma permanência) da necessidade contemplativa, m aparetemente novo emergir de valores como a gratuidade, o desejo, o sentimento e a re-descoberta, em nova dimensao, da natureza e da relação do homem com o planeta.

$�³VHGXomR´�GR�PLVWpULR��� O princípio de toda experiência religiosa encontra um denominador comum no desejo seduzido, a inclinação fascinada e irresistivelmente atraída pelo mistério do Outro, que envolve, seduz e apaixona com sua beleza e sua “diferença”, que provoca o impulso incontrolável de aproximação, abraço e união. 1

Este mistério que atrai e seduz, no entanto, não deixa de amedrontar e provocar distanciamento reverente e trêmulo, de humildade pobre e impotente (cf. Ex 3,6-7): “ E Moisés cobriu o rosto, porque não ousava olhar para Deus “). É a violência mesma da atração que submete e se parece a uma torrente volumosa e apavorante, ou a um “fogo devorador”que devora e consome, mas ao mesmo tempo embriaga e delicia, o que a faz ser sentida tão radicalmente ameaçadora e inexorável como a própria morte, apesar de que seu segredo seja a fonte da vida. É assim que a esposa do Cantico dos Canticos, ferida de amor pela visão do Amado, geme, “enlanguesce de amor”(CT 2,5) e exclama: “ o amor é forte como a morte e a paixão violenta como o abismo”(Ct 8,6). São João da Cruz, no ponto mais alto da união mística e da inefável experiência unitiva com Deus, joga com as palavras morte-vida para tentar descrever a experiência ao mesmo tempo gozosa e dolorosa que o amor de Deus faz viver.2

1 O Dicionário Petit Robert define respectivamente 1) sedução e 2) desejo como 1) ação para seduzir (desviar do caminho), corromper, arrastar, mas também, atrair, encantar, para fascinar; 2) leva consciência de uma tendência em direção para qualquer objeto conhecido ou imaginário. 2 Cf. o célebre poema do místico espanhol Juan de la Cruz, /ODPD�GH�DPRU�YLYD� Öh llama de amor viva/ que tiernamente hieres/ de mi alma el más profundo centro/ pues ya no eres esquiva/ acaba ya, si quieres/ rompe la tela de este dulce encuentro/ Oh cauterio suave!/ Oh regalada llaga!/ Oh mano blanda! Oh toque delicado/ Que a vida eterna sabe/ y toda deuda paga;/ PDWDQGR�PXHUWH�HQ�YLGD�OD�KDV�WURFDGR���”in 2EUDV�&RPSOHWDV��Madrid, BAC, 1974, pg 891. V. tb. G. BATAILLE, 2�HURWLVPR�Lisboa, Antígona, 1988, pg 11: “De erotismo se pode dizer a pessoa que ele é a aprovação da mesma vida na morte”Et, pp 19-21, quando se trata da experiência mística como ao mesmo tempo experiência negativa e positiva, como sofrimento de ausência e continuidade do ser.”

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É um fato, portanto, que o eros divino se apresenta sempre como mais forte que o ser humano, vencendo suas resistências e se impondo por sua majestade. Sob o toque ao mesmo tempo suave e violento de seu amor, o profeta inclina a nuca e se rende, exclamando: “Tu me seduziste, Senhor e eu me deixei seduzir. Foste mais forte que eu e me venceste!” (Jr 20,7). E, sob sua liderança, a esposa infiel retorna sobre seus passos, abandona seus amantes e se deixa docilmente conduzir ao deserto, à nudez e ao despojamento do primeiro amor da juventude. (cf. Os 2,16ss)

Ao mesmo tempo, no entanto, com seu irressistével poder de atração, e uma vez conquistado e “ferido”o coração humano, o Outro Bem-amado se esconde, retirando-se da capacidade de ser atingido por aquele ou aquela em quem ele acendeu uma chama inextinguível de desejo. Ele se revela, assim, como o Imanipulável, sobre o qual o ser humano não tem poder, mas ao aonctrário, deixa bem claro que é o próprio ser humano aquele que deve viver sob sua dependencia. O deus assim desejado e experimentqado não se rende às impaciências frenéticas do homem, nem a sua ansiedade apaixonada, mas, soberanamente livre, vai encher com sua plenitude quando e como desejará, a pobreza expectante e humilde que não deixa de desejá-lo e buscá-lo onde ele se deixa encontrar, para dele receber a salvação ( a saúde) e a santidade. 3

'HXV�FRPR�REMHWR�GH�GHVHMR�� Deus é, portanto, para o homem que Ele atrai a Si mesmo, objeto de desejo e não de necessidade; da ordem do gratuito e não do necessário, do inteligível, do controlável. Incomparável e não “comparável”com o que se convencionou chamar “as necessidades básicas”do ser humano: comer, beber e tudo aquilo sem o qual a vida biológica desfalece e morre. Do ponto de vista da vida, por assim dizer “animal”, Deus não entra como elemento “útil”e “necessário”.

Apesar de sua “inutilidade”, o eros divino tem sobre a totalidade do humano - corporeidade animada pelo espírito - um poder de atração e sedução que desperta o desejo até o paroxismo, podendo levar aos despojamentos mais radicais e às renúncias mais heróicas, em nome da possibilidade entrevista e pressentida de participar de sua vida divina e experimentar a união proposta por Ele, mesmo que apenas durante um minuto.4

3 Cf sobre isto 'LFWLRQQDLUH�GH�VSLULWXDOLWp��'6��, t. XCI, col. 38, verb Sacré. 4 Cf as vidas de santos, de místicos e especialmente de mártires. Para citações toda a imensa bibliografia que pesquisa este fenômeno na tradição cristã, v. DS t. X, col 727-728, 0DUW\UH do verbo que se refere à experiência do martírio como experiência de união profunda e identificação com o Cristo. Não só martir experimenta a presença de Cristo, mas há até mesmo uma transubstanciação” do martírio da pessoa na pessoa de Cristo que é o que suportam alguns em torturas que na verdade são para ele a continuação assim de sua paixão salvadora. Cf. como A.J.FESTRUGIÈRE, La sainteté, de Paris, PUF, 1949 nos quais o Autor faz uma pesquisa comparativa entre o herói grego e o santo Cristão.

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O sagrado é “inútil”, não acrescenta nada à vida biológica, não promete sucesso, longevidade nem prazer sensível. Ao contrário, exige, para entregar-se o despojamento dos bens mais sensíveis e palpáveis e mesmo das ligações mais legítimas do coração humano (familiares, de amizade, etc.) Ele não admite mesmo ser ultrapassado por nenhuma outra realidade, sob pena de não se deixar atingir enquanto Absoluto, que é o único que pode saciá-lo e responder à sede de amor do coração humano.

E apesar de suas terríveis exigências, hoje como sempre, mesmo após todo o processo de secularização da modernidade e das afirmações categóricas dos “mestres da suspeita”sobre a religião, nos encontramos ainda com pessoas capazes de passar horas e horas de seu tempo em cultos, celebrações e cerimonias de louvor; pessoas capazes de , em nome de sua fé nesse Deus “inútil”, entregar suas vidas num sacrifício que faz tremer nossos corpos e mentes modernizados e ávidos de conforto e consumo; pessoas capazes de ir ao encontro da morte em estado de feliz exaltação e considerar como uma graça imensa ser despojadas de tudo que faz a doçura, o conforto, o bem-estar da vida humana por amor a este “invisível”e “inútil”objeto de desejo.� Pessoas dispostas a canalizar todo o seu potencial afetivo e a quase totalidade de seu tempo, energias, criatividade e recursos pelos rituais religiosos cantando hinos de louvor, participando de assembléias onde a oração coletiva toma longas horas, buscada enquanto terapia e cura corporal e espiritual; ou prostranndo-se durante horas intermináveis, em contemplação diante do tabernáculo; diante da natureza; ou ruminando longamente algum versículo da Bíblia, uma pequena oração ou os cinco mistérios do rosário.

O que é certo é que homens e mulheres de hoje, como os de todo tempo, continuam a experimentar o drama de sentir-se limitados e fráveis e, no entanto, feitos para a união com o Sem-limites. E, no fundo mais profundo de si próprios, se percebem habitados pelo desejo ardente e incontrolável de entrar em comunhão com esta incompreensível realidade que se chama sagrado - a qual, devido ao fato de ser incompreensível não é sentida como menos real - de tocar e ser tocados pela Beleza Infinita; de tremer de amor sendo possuídos pela santidade divina, pelo Mistério Invisível que atrai e seduz e cuja vida chama a participar e se integrar. Este mistério de Alteridade que lhes propõe a profunda comunhão na gratuidade. O amor passa, então , a governar suas vidas e a transformá-las segundo a inexorabilidade e a radicalidade de Sua vontade.

$�H[SHULrQFLD�GR�RXWUR� Se algo se pode dizer da mística, certamente passa pelo caminho da experiência. Não se trata de uma teoria sobre o outro, nem muito menos de um discurso construído e rigoroso sobre o outro. Tudo que possa haver de discurso e

5 Cf. G. BATAILLE, op. cit., pp 20-21. Sobre o erotismo divino: “realmente, o que a experiência mística revela é uma ausência de objeto. O objeto se identifica com a descontinuidade, e a experiência mística, desde que se tenha a força de operar uma ruptura de nossa descontinuidade, introduz em nós o sentimento da continuidade. O erotismo sagrado, presente na experiência mística, só requer que nada perturbe o sujeito da experiência.” Nós nos permitimos estar em discordância com o autor no que se refere à experiência mísrica Cristã, uma vez que nós consideramos que lá existe uma presença “real, completamente presente” e “visível” do objeto do desejo: Jesus em sua humanidade.

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teoria neste particular emerge e se faz inteligível a partir de uma experiência . �Esta experiência é fundamentalmente experiência de relação. Neste sentido e somente à luz deste fato primeiro, é que se pode falar então de conhecer e conhecimento. �A mística é, sim, um conhecimento, porém um conhecimento que advém da experiência e onde a inteligência e o intelecto entram apenas no sentido de compreender não a experiência abstratamente falando, mas o sujeito concreto que faz essa experiência.��� No centro desta experiência, está não apenas o sujeito que conhece, ou seja, o eu, mas o outro,ou seja, o tu ou ainda o ele ou ela. Aquele ou aquela que por sua alteridade e diferença movem o eu em direção a uma jornada de conhecimento sem caminhos previamente traçados e sem seguranças outras do que a aventura da descoberta progressiva daquilo que algo ou alguém que QmR� VRX� HX pode trazer. Esse ou essa que não é eu, também não é isso (algo coisificado ou reificado)� e sim, alguém que a mim se dirige, que me fala e a quem respondo, um "outro"sujeito, cuja diferença a mim se impõe como uma epifania��, uma revelação.

No caso da mística, essa relacionalidade com a diferença do outro cobra dimensões diferenciadas na medida em que coloca no processo e movimento da relação um parceiro de dimensões absolutas, com o qual o ser humano não pode sequer cogitar em fazer número, manter relações simétricas ou relacionar-se em termos de necessidade, senão apenas de desejo.�� Trata-se de um Outro cujo perfil misterioso desenha-se sobretudo nas situações limite da existência e transforma radicalmente a vida daquele ou daquela que se vê implicado/a nesta experiência.��

A questão que nos fica após estas reflexões , é, no entanto, que não é nada claro que essa busca quase feroz de nossos contemporâneos por experiências místicas corresponda a uma real busca por um encontro em profundidade, por um dispor-se a ser afetado pela alteridade do outro. A busca por sensações mais ou menos religiosas ou “espirituais”não necessariamente implica desejo de abrir-se à experiência da alteridade, e pode não deixar brechas ou espaços para que a

6Entendemos por experiência , e concretamente por experiência religiosa, aquilo que se percebe de modo imediato e se vive antes de toda análise e de toda formulação conceitual. Trata-se da vivência concreta do homem que se encontra, graças a uma força que não controla ou manipula, frente a um mistério ou um poder misterioso. Cf. sobre isso 'LFFLRQDULR� GH� ODV� 5HOLJLRQHV, Barcelona, Herder, 1987, verb. H[SHULHQFLD�FULVWLDQD�H�H[SHULHQFLD�UHOLJLRVD�V. tb. J. MOLTMANN,.7KH�7ULQLW\�DQG�WKH�.LQJGRP�RI�*RG� London, SCM Press, 1981, pg 4, ; L BOFF (ORG) ([SHULPHQWDU�'HXV�KRMH��Petrópolis, Vozes, 1975, especialmente o capítulo escrito pelo Pe. H.L. VAZ. 7Cf. o sentido de FRQKHFHU bíblico, que é inseparável de DPDU. Cf.J.MOLTMANN, op. cit. pg 9 8 Cf. sobre isso o que diz Santo Tomás de Aquino:�1RQ�LQWHOOHFWXV�LQWHOOLJLW�VHG�KRPR�SHU�LQWHOOHFWXP�� Ou seja, é o homem concreto na sua polivalência intencional que é o sujeito do ato de abrir-se ao seu objeto, movimento que caracteriza a experiência. Abrindo-se, esse homem torna-se capaz de acolher o ser na riqueza analógica de sua absoluta universalidade. 6XPPD�7KHRORJLDH 1a., q. 72 ad 1m, cit. por H.L.VAZ, Mística e política. A experiência mística na tradição ocidental, in M.C.BINGEMER e R.S.BARTHOLO (org.) 0tVWLFD� H� 3ROtWLFD, Col. Seminários Especiais Centro João XXIII, SP, Loyola, 1994, pg 10. Cf. tb. H.L.VAZ, $QWURSRORJLD�)LORVyILFD�,,, Col. Filosofia, SP, Loyola,1992, pg 37, n. 8. 9Cf. M. BUBER, (X�H�7X, SP, Moraes, 1977, 2a. ed., pp XLV- LI 10 Cf. E. LEVINAS e todo o seu discurso sobre a alteridade. V. notadamente a obra $XWUHPHQW�TXrWUH�RX�DX�GHOj�GH�OHVVHQFH, Paris, Folio, 1996 11V. o que sobre isso digo em meu livro $OWHULGDGH� H� YXOQHUDELOLGDGH�� � ([SHULrQFLD� GH� 'HXV� H�SOXUDOLVPR�UHOLJLRVR�QR�PRGHUQR�HP�FULVH, Sp, Loyola, 1993 especialmente no capítulo IV: Experiência de Deus. Possibilidade de um perfil? 12Cf. H.L.VAZ, op. cit., pp 11-12

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alteridade e a diferença do outro, epifânicamente, se manifestem em toda a sua liberdade, inventando a relação a cada suspiro e a cada passo.

Parece-nos, portanto, que a mística cristã hoje se vê a braços com a questão por sua identidade, às vezes perdida e fragmentada no meio de um mar de experiências religiosas outras, que não necessariamente passam pela Alteridade a qual, em sua absoluta liberdade, revela-se como Santidade, ou seja, Alteridade absolutamente outra.��Se muito facilmente chamamos de experiência mística a toda e qualquer busca de sensação "espiritual" conseguida às vezes com recursos artificiais, outros que não a relação que se instaura e se aprofunda unicamente na gratuidade, na escuta e no desejo, estaremos traindo a concepção mesma de mística que até hoje tem marcado toda a tradição ocidental e que está no coração da identidade daquilo que por isto se tem entendido e se entende. Se muito facilmente legitimamos qualquer experiência de “sedução do Sagrado” corremos o risco de estar batizando com este nome muitas divindades e talvez não a Verdadeira, que não “entrega seu Santo nome em vão”.

O caminho da relação com o outro - e no caso da mística, do Outro que é Deus - é constitutivo mesmo da experiência mística. E no caso da mística cristã, esse outro, essa alteridade, tem o componente antropológico no centro de sua identidade, uma vez que o Deus experimentado se fez carne e mostrou um rosto humano. Tudo que releva da sedução do sagrado, da experiência mística, portanto, não pode desviar ou abstrair ou mesmo dis-trair daquilo que constitui a humanidade do ser humano. É paradoxalmente na similitude mais profunda com o humano que o Deus da revelação cristã vai desencadear seu poder de sedução e mostrar sua diferença e sua alteridade absolutamente transcendentes.

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Essa sedução do sagrado e do religioso que domina a vida contemporânea, implica, por sua vez, uma volta aos paradigmas pessoais e aos modelos individuais como inspiradores da religião e da ética. Nesse sentido, as religiões que cultuam santos como modelos de conduta e os sistemas ideológicos que preservam a memória de heróis e mártires encontram um caminho fecundo para seguir iluminando o caminho das novas gerações.

Falar de santidade não se compreende mais como visitar um museu de história religiosa, mas sim exercitar nossa capacidade de escuta: como pode a santidade falar a linguagem de nosso tempo de secularização e deslegitimação das verdades

13 Cf o significado bíblico de Santo atribuído a Deus: Santo é o separado, o diferente, aquele que não se soma com nada nem com ninguém, o totalmente outro.Cf. o que diz K. ARMSTRONG, 8PD�KLVWyULD�GH�'HXV� SP, Companhia das Letras, 1994, pg 52: ³2�KHEUDLFR�NDGGRVK�QDGD�WHP�D�YHU�FRP�D�PRUDOLGDGH�HQTXDQWR�WDO��PDV�VLJQLILFD�D�FRQGLomR�GH�³RXWUR´XPD�VHSDUDomR�UDGLFDO���$�DSDULomR�GH�-DYp�QR�PRQWH�6LQDLV�HQIDWL]DUD�R�LPHQVR�IRVVR�TXH�GH�UHSHQWH�VH�HVFDQFDUDYD�HQWUH�R�KRPHP��H�R�PXQGR�GLYLQR���$JRUD�RV�VHUDILQV�JULWDYDP��³-DYp�p�RXWUR�2XWUR��2XWUR!” (Isaías 6,3).

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metafísicas que são razão de ser das teologias? Como recuperar o sentido das hagiografias tradicionais em meio às crises da modernidade?

Os discursos das ciências de nosso tempo não podem saltar por sobre a sombra de suas próprias condições de formulação. São setorizadores, parcelares, redutores da complexa trama polifônica da "realidade natural".

Vivemos o desmoronar de utopismos totalitários. E também a caducidade dos modelos éticos e religiosos convencionais diante das urgências de se regular inéditos poderes de intervenção sobre a realidade, enquanto avança, triunfal, em nível planetário o domínio da razão cínica e potente por sobre as vidas de deserdados, marginais, miseráveis e doentes.

Por tudo isto é preciso perguntar-se qual a visão de ser humano que se tem e que vai influenciar a concepção igualmente havida de "authos", de "héterós", de "nomos". Por isto, é preciso perguntar-se sobre a possibilidade de critérios que identifiquem as diversas e diversificadas experiências religiosas que ocorrem diante de nossos olhos como experiências de Sentido. Em outras palavras, como experiências de Deus.

Nossa premissa é que as situações humildemente concretas, onde o Bem se encarna em pessoas vulneravelmente humanas, limitadas, frágeis, pecadoras e mortais é o lugar onde a resposta está, hoje, sendo dita. Ou seja, na intimidade com Deus, na santidade. E na origem dessa santidade está a história de uma sedução. Sedução que é para todos mas à qual alguns dão uma resposta mais visível e palpável, e também mais radical.

O caráter universal do chamado à santidade, tão agudamente expresso na primeira carta de Paulo de Tarso aos tessalonicenses: "... é esta a vontade de Deus: a vossa santificação" (1 Ts 4, 3), afirma a possibilidade de toda a humanidade, na vida do Espírito do Cristo de Deus, chegar à santidade. Nossa experiência de cristãos históricos aponta exemplos de alguns e algumas que realizaram essa possibilidade 14. A escolha destes exemplos não se preocupou em permanecer fixada na santidade "canônica", . Os exemplos querem mostrar o referencial "esculpido no humano" da possibilidade do HWKRV do amor/DJDSp ser vivido em sua radicalidade por homens e mulheres históricos e carnais como nós. Uma vivência cuja Porta nos continua aberta.

Se o ideal, a finalidade do ser humano , do indivíduo é o "eu " como o mesmo, a heteronomia e a alteridade que aparecem como norma, podem realmente ser experimentadas como escravidão, como alienação, diante do outro que me obriga, que me oprime ou que me aliena. Se o ideal e a finalidade são outros, são a construção da comunidade e o estabelecimento de relações de solidariedade, de liberdade vivida na realidade, então nesse caso a alteridade do outro passa a ser - com todos os riscos e perigos e conflitos pelo caminho - condição de possibilidade do "eu", algo que o institui, o funda, e lhe permite ser e existir.

14Ver G. Thils, ([LVWHQFLD�\�6DQWLGDG�HQ�-HVXV�&ULVWR, Sigueme, Salamanca, 1987, pp 363-374.

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O cristianismo coloca como caminho possível da identidade do "eu"o amor ao outro. Amar o outro como a si mesmo é, desde o Antigo Testamento, o maior mandamento, paralelo à grandeza de amar a Deus sobre todas as coisas. No Novo Testamento ambos são tomados, segundo Jesus, como resumo, síntese feliz da lei e dos profetas. No cristianismo , o ser humano é visto como alguém livre para amar. A liberdade não é concebida como uma heteronomia opressiva, no sentido de uma lei exterior que esmaga e destrói a subjetividade, mas é dom gratuito de Deus que coloca e recoloca sempre de novo o homem livremente no caminho do amor, no percurso em direção ao outro. E se Paulo afirma que não é a lei que salva, por outro lado é o mesmo Paulo que insiste em que na obediência amorosa é que está a verdadeira liberdade, desde que se entenda a obediência - o verbo RE�DXGLUH significa escutar - como escuta prática da Palavra instituinte, reveladora e fundadora de Deus. No entanto, o homem bíblico, o homem do Novo Testamento, ao perceber-se livre, percebe-se, mais do que nada, liberto; não se percebe como a fonte da sua própria liberdade. A fonte da sua autonomia, neste caso, estaria numa heteronomia; no outro que gratuitamente e continuamente o liberta, inscrevendo nas tábuas de carne que são o seu corpo - que Paulo coloca em paralelo com as tábuas de pedra em que foi inscrita a Antiga Lei - a lei do mandamento novo, que é a lei do amor.

Talvez o nó da questão - a partir da visão cristã - estivesse na compreensão da autonomia e da heteronomia como dois pólos irreconciliáveis, sem que houvesse saída possível para o impasse. A visão cristã tenta dar um passo adiante nesse sentido, ao dizer que a liberdade não vem puramente de fora, mas está dentro do homem, como inscrição feita dentro dele, da interpelação epifânica, manifestativa do rosto que institui para ele a única lei, que é a lei do amor.

E o amor aí entendido não só em termos de busca do prazer e de satisfação dos instintos e das necessidades, mas de liberdade seduzida, de entrega gratuita de si, de oblatividade, em que tudo é posto a serviço da construção de uma solidariedade fraterna, de novas relações, de um reino de liberdade em que mesmo a renúncia sexual pode ter o seu lugar, enquanto opção de liberdade em nome de um projeto maior.

O Cristianismo considera o homem como criado, redimido e santificado. Criado livre, criado em liberdade. Nesse sentido, o ser humano, enquanto criatura de Deus, busca seu caminho livremente pelo mundo, tendo diante de si, como o diz o livro do Deuteronômio, ;a vida e a morte. O homem é redimido, liberto para a liberdade. Paulo diz: "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou", uma liberdade recebida, mas uma liberdade chamada a ser atuada no mundo. E santificado no sentido de que a santidade é a vivência plena da liberdade responsável - "onde está o Espírito do Senhor ali está a liberdade"- uma liberdade que, em última análise, consiste em amar segundo o que Jesus coloca como o único mandamento que resume toda a lei e os profetas e que resume o seu próprio ensinamento: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei."

Para o cristianismo, o paradigma do sujeito humano e por conseguinte o paradigma da liberdade humana é o próprio Jesus Cristo. Nele, autonomia e heteronomia se tensionam dialética e fecundamente, pois não é só o homem livre diante das instituições do seu tempo, livre diante dos poderes constituídos. É também aquele que, quando lhe perguntam: "de onde vens?", "quem és?", para onde vais"? em nome de quem falas e fazes todas estas coisas?" responde: "não venho de mim mesmo, mas venho do Pai.. Não vou nem volto para mim mesmo, volto para aquele que me enviou; não falo nada por mim mesmo, mas só falo o que ouvi o Pai falar;

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nada faço por mim mesmo, mas só faço aquilo que o Pai me diz para fazer". Em termos cristãos, Jesus Cristo seria então a possibilidade real dada ao homem ,de viver aquilo que Paulo diz: :" Quem ama cumpriu toda a lei"e o que Agostinho posteriormente também vai dizer: "Ama e faze o que quiseres".

Nosso tempo histórico é, pois, comprometido com a difícil recuperação deste sentido espiritual da VDQWLGDGH��Em tempos tão zelosos da eficiência, produtividade e utilidade do agir, nossas “histórias de vida”falam de homens e mulheres que aparentemente “fracassaram”, pois não preocupados com eficiência, dão primazia em sua vida à contemplação da qual deriva a prática da caridade.

Essa comtemplação, por sua vez, não é um exercício de abstração generalista, mas sim um olhar sobre uma presença concreta. Em outras palavras: não há santos em abstrato, apenas santos concretos, singularmente empíricos. Pois não é a determinação conceitual que nos torna mais próximos de um santo, ou, nas palavras de W. Nigg "... nem os conceitos da sociologia ou da história da religião apreendem sua essência verdadeira" . 15 O reconhecimento da santidade pressupõe uma relação dialógica 16 com sua presença, o que exige, em certa medida, uma SDUWLFLSDomR, em sua forma de vida. O empenho por esta participação é certamente necessário para que uma cristandade secularizada possa re-significar um dogma de fé, mantido ultimamente em estado de certo estranhamento: D� FRPXQKmR� GRV�VDQWRV.

A presença de um santo ultrapassa nossa estatura. Algo de maior se levanta, seduzindo, atraindo, surpreendendo. Uma imagem-diretriz se apresenta à consciência das pessoas e comunidades nas cristalizações do caleidoscópio das formas do devir histórico. A percepção cristã da santidade vê nos santos misteriosas e heterogêneas formas de realização do mesmo Amor divino. Os santos cristãos são SHUVRQDJHQV�GH�OLPLDU, ou seja, pessoas ao alcance de nossa humana estatura, que indicam, como o fez exemplarmente João Batista, a Porta que a supera sempre: Jesus Cristo, Aquele que no Evangelho de João nos disse: " ... Eu sou a porta. Se alguém por mim entrar será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem" (Jo 10, 9). Pessoas - em última análise - seduzidas.

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As religiões monoteístas do tronco abraâmico (judaísmo, cristianismo, islã), têm no encontro humano com o Deus único, o Incondicional profeticamente revelado, o fundamento da normatividade universal do seu HWKRV 17. A fé cristã afirma ser o encontro com o Deus de Jesus Cristo a experiência de um sentido radical do existir, 15Ver W. Nigg, *URVVH�+HLOLJH, Diogenes Verlag, Zürich, 1986, p. 14. 16 Para um aprofundamento ver M. Buber, 'R�GLiORJR�H�GR�GLDOyJLFR, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1982. 17Ver H. Küng, 3UR\HFWR�GH�XQD�pWLFD�PXQGLDO, Trotta, Madrid, 1992, p. 75.

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uma teonomia fundante da liberdade e responsabilidade SHVVRDLV, um enraizamento experiencial da pessoa no Incondicionado que lhe assegura, a um só tempo, a liberdade e o limite 18.

Um termo da mais tradicional versão grega da 7RUDK judaica, a 6HSWXDJLQWD, designa o fundamento do HWKRV do cristianismo nascente. A palavra em questão é DJDSp, usualmente traduzida por amor. Aqui se intenta significar uma concepção de amor para a qual não parecem nem adequados nem idôneos os verbos e substantivos mais usuais na língua grega como HURV, ILOLD, VWRUJp... No amor/DJDSp se destacam a generosidade desinteressada e oblativa - sem outro interesse ou possibilidade de gozo e satisfação que não seja seu próprio exercício - e a disponibilidade para uma saída de si em direção ao outro. A não-profanável alteridade é o ponto de partida dessa doação de si, que tem sua raiz num Deus doador que é seu próprio dom. Esse Deus que se revela, e é percebido e adorado como sendo Ele mesmo amor. Tal como expressa, com ofuscante clareza, a primeira carta de João: "... quem não ama, não descobriu Deus, porque Deus é amor" (1 Jo 4, 8).

É verdade que os pensamentos, palavras e obras dos batizados freqüentemente não guardam qualquer traço de fidelidade para com a Revelação do Deus-DJDSp em Jesus de Nazaré. Mas nem SRU� LVVR se apaga a Luz que ilumina algumas constantes do Dever Ser do HWKRV cristão. A mesma Luz que o prólogo do Evangelho de João nos informa que brilha nas trevas sem que as trevas a apreendam (Jo 1, 5).

Uma primeira dessas constantes é a XQLYHUVDOLGDGH 19, que veta qualquer acepção de pessoas, no exercício da propriedade mais própria do cristianismo: a efetividade do amor. Dessa efetividade não pode estar excluído ninguém, nenhum dos ontologicamente carentes seres humanos, nem mesmo os inimigos e os criminosos. Todos são chamados a encontrar a cidadania do arrependimento e da reconciliação no amor incondicionado, que é a sempre aberta Porta do perdão: o Crucificado Ressuscitado. O Evangelho de Jesus Cristo tem o louco afã de impregnar de amor mesmo os recantos mais ensombrecidos da realidade, incluídos no abraço da Graça sempre maior que os pecados e a destruição da solidariedade. Rezar pelos inimigos, aos agressores oferecer a outra face, eis o desconcertante cerco que o Deus de Jesus Cristo fecha em torno daqueles que por Ele são "livremente agrilhoados".

Uma segunda constante é seu FRPSURPLVVR�SUHIHUHQFLDO, sua SDUFLDOLGDGH. O Deus/DJDSp veio ao mundo não para salvar "justos" mas "pecadores", comprometendo-se em primeira linha com o destino dos fracos, doentes, pobres, marginalizados, excluídos. O Verbo de Deus que tem em si a vida (Jo 1, 4), tem a parcialidade do compromisso com aqueles onde vê seu dom mais agredido e empenha-se ao lado das vítimas do desamor dos homens. Mas mantém, também aos

18Ver G. Mathon, Sainteté, LQ &DWKROLFLVPH�KLHU��DXMRXUGKXL�HW�GHPDLQ 61 (1992), p. 704. Ver também A.J. Festugière, /D�6DLQWHWp, PUF, Paris, 1949, obra estruturada em torno da comparação entre o herói grego e o santo cristão. 19Ver J.G. Caffarena, $SRUWDFLyQ�FULVWLDQD�D�XQ�QXHYR�KXPDQLVPR", in J. Mugueria, F. Quesada e R.R. Aramayo (Orgs.) eWLFD�GLD�WUDV�GLD, Trotta, Madrid, 1991, p. 188.

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agressores, sempre aberta a Porta do arrependimento e perdão. Isso significa: solidariedade amorosa, que traz consolação no sofrimento, partilha na carência. Experienciar na carne a alteridade dos sofredores, é misterioso processo de substituição 20 que a fé e o paradigma crístico revelam enraizado na potência libertadora do amor/DJDSp.

Outra constante é a UXSWXUD de todos os limites apenas humanos. Encarnado no criatural, o amor/DJDSp explode sempre, em dor e júbilo, os limites dessa sua morada. Paulo de Tarso soube expressar magistralmente essa tensa ruptura libertadora, a luta interior onde tantas vezes "... não faço o bem que quero mas o mal que não quero" (Rm 7, 19). A capacitação para esse "bem que quero" o cristão a encontra na participação no corpo místico do Senhor Ressuscitado, que vence a morte e o "mal que não quero". Vencer o mal com o bem (Rm 12, 21) é não se furtar a assumir em si toda a vulnerabilidade e mortalidade da condição humana até às últimas conseqüências: é fincar a &UX] no fundamento do HWKRV.

O descomunal desafio e dom que o cristianismo coloca diante de seus seguidores tem na Cruz referência obrigatória. Um desafio e dom que nos assusta na aproximação a vivê-lo, cientes da fragilidade de nossas opções, da pouca coerência de nossas vidas, da magra coragem que anima nossa intervenção no mundo e na história, da muita vaidade que habita em nossos corações. Viver o HWKRV� cristão�é�viver no epicentro de uma situação conflitiva: a fissão do humano, levando sua abertura para o divino a uma entrega total. Nessa fissão o Deus-DJDSp teve a primeira palavra: Sua louca aventura amorosa da Encarnação. Loucura que tem no velho adágio dos primeiros Padres da Igreja a expressão desconcertante: "Deus se fez homem para que o homem pudesse ser feito Deus". E diante da vertigem dessa absurda desproporção entre nossa estatura e o desafio e dom a ela colocados, nos ajudam as vidas exemplares dos homens e mulheres de Deus, Seus santos, onde o extraordinário se tece com os fios da fragilidade e vulnerabilidade inerentes à condição humana.

A tessitura desses fios está nas mãos do Espírito, que os estica além dos limites do autocentramento humano e os rompe. Essa ruptura é um movimento de heróica entrega da condução dos rumos da existência a um Outro. Os santos são pessoas de posicionalidade ex-cêntricaé sempre Outro quem os conduz. O heroísmo deles é deixarem-se conduzir, manifestando a força divina dessa alteridade ali onde é maior e mais evidente a fraqueza humana 21 Se definirmos todo agir moral como um agir autônomo e responsável, por conhecimento e consciência ncia22os santos parecem estilhaçar o recipiente conceitual dessa definição.

20Para um aprofundamento da questão da substituição ver E. Levinas, $XWUHPHQW�TXrWUH�RX�DX�GHOj�GH�OHVVHQFH, Martinus Nijhoff, La Haye, 1974, capítulo IV: La substitution. 21Ver G. Mathon, Sainteté, LQ &DWKROLFLVPH�KLHU��DXMRXUGKXL�HW�GHPDLQ 61 (1992), p. 704. Ver também A.J. Festugière, /D�6DLQWHWp, PUF, Paris, 1949, obra estruturada em torno da comparação entre o herói grego e o santo cristão. 22 Ver F. Böckle, Fé e ato, LQ &RQFLOLXP 47 (1976), p. 49.

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A santidade é surda aos critérios pragmáticos das causalidades eficientes do agir, ao cálculo utilitarista das conseqüências de cursos de ação alternativos. Seu conhecimento é subvertido pela entrega amorosa a esse Outro por cujas mãos se deixam, obedientemente levar. Seus frutos nascem em misteriosa imprevisibilidade: a certeza de que não sabem, nem podem saber, a razão de fazerem o que fazem e comportarem-se como se comportam. Mas sabem que GHYH fazê-lo, porque sentem, e VDERUHLDP� HVVH� VHQWLU, que nesse dever está presente o desejo e a vontade do Outro, que é o Senhor de suas vidas.

O santo cristão vive o amor/iJDSH até o nível do heroísmo. Até além dos imperativos passíveis de fixação jurídica: o mistério da loucura do amor, numa fidelidade perseverante e intensa que transforma a integralidade da pessoa, e ilumina a realidade que a rodeia. Seu heroísmo expressa capacidade ilimitada de SDL[mR, de ser "provado" até o fim, seja qual for a forma desse fim. Chegar a um tal nível de compromisso e fecundidade é longo e doloroso processo de vida, que se resume no combate espiritual: domínio progressivo do "santo" sobre o "não-santo", vitória do "Cristo que vive em mim", de que nos fala Paulo de Tarso (Gal 2, 19-20). Nesse processo o santo se converte em�WHyIRUR, alguém que tem sua natureza transformada na do Deus que o habita 23 . Seu comportamento no mundo é imagem fiel do comportamento do próprio Deus que é princípio e garantia da Verdade, do Bem, da Justiça.

Ainda que as hagiografias tradicionais acentuem um heroísmo admirável no exercício das virtudes éticas por parte dos santos, é necessário não perder de vista que a grandeza da santidade independe do reconhecimento social. Ela se situa em, e nos remete a, um horizonte mais amplo que o do exercício humano de virtudes éticas. Esse PDLV é o Mistério de Deus, vivido "... com uma exclusividade que é como um incêndio que a tudo consome" some24, o incêndio do inextinguível empenho por perfeição dos seguidores da Verbo que nos cobra: "... deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5, 48), sem que percamos o sentido de nossa própria carência, imperfeição, pecaminosidade.

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Falar da santidade implica não escapar da pergunta: que é um santo? Falar da santidade GHVGH�XPD�SHUWHQoD�FULVWm é referir essa resposta à verdade revelada do Evangelho de Jesus Cristo. E isso sem que a palavra evangélica exclua outras aproximações à santidade: a lógica evangélica é inclusiva. E por ser inclusiva fez sua a expressão do primeiro dos mandamentos do Antigo Testamento: "Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força" (Dt 6, 5). R. Guardini nos

23Ver A.J. Festugière, op. cit., p. 114; ver também O. Clément, L'Église, libre catholicité des consciences personnelles. Point de vue d'un theologien de l'Église orthodoxe, in /H�6XSSOpPHQW 155 (1985), pp 55-56. 24Ver W. Nigg, op. cit., p. 16.

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lembra a simples verdade: um santo é alguém a quem Deus concedeu a Graça de tomar esse mandamento com perfeita seriedade, e "... compreendê-lo em sua profundidade e tudo empenhar para sua realização" 25

Nos primórdios da vida comunitária cristã, Paulo de Tarso, não hesitou em dar uma resposta à nossa pergunta, que hoje dificilmente ouvimos sem estranhamento: santos são todos os cristãos. Suas cartas são inequívocas ao designar como santos "... todos os que em qualquer lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso" (1 Cor 1, 1). Essa identidade estabelecida entre cristão e santo aponta para o caráter extraordinário da vida daqueles que aceitam o chamado que o evangelista Marcos coloca na boca de Jesus: "arrependei-vos e crede no Evangelho" (Mc 1, 14). Uma aceitação que exige desprendimento e, quase sempre, dor.

Ser cristão é arriscar-se em Deus. É privar-se das nossas humanas certezas em nome da Sua verdade. É excluir-se das seguranças e estabilidades do culto aos deuses das cidades e, em particular, ao Império e ao Imperador. É cortar, sempre que necessário, com a "espada do Espírito, que é a Palavra de Deus" (Ef. 6, 17), vínculos familiares, sociais, políticos. É um empenho integral de vida, num combate que Paulo alerta não ser dirigido "... contra o sangue nem contra a carne, mas contra os Principados, contra as autoridades, contra os dominadores desse mundo de trevas, contra os Espíritos do Mal, que povoam as regiões celestiais" (Ef 6, 12). Ser santo/cristão é responder à convocação paulina: "... ponde-vos de pé e cingi vossos rins com a verdade e revesti-vos da couraça da justiça, e calçai vossos pés com a preparação do evangelho da paz, empunhando sempre o escudo da fé, com o qual podereis extinguir os dardos inflamados do Maligno" (Ef. 6, 14-16).

Mas logo novos tempos vão se apresentar. Transformado em religião de Estado, o cristianismo vai cristalizar uma nova imagem-diretriz do Dever Ser dos santos, que não mais se deixam identificar com o conjunto dos batizados. Os santos são agora vistos como pessoas raras e extraordinárias em meio aos cristãos comuns: eles são as pedras preciosas do Povo de Deus, esparsas em meio às pedras comuns da humanidade. São heróis do Evangelho. Florescem na multiplicidade dos carismas em todos os segmentos do corpo da sociedade: reis e camponeses, cavaleiros e artesãos, homens e mulheres, velhos e crianças, clérigos e leigos, combatentes e contemplativos, para dar testemunho da grandeza que se fez possível em Cristo, e romper os limites da mediocridade cotidiana. Suas vidas são sinais das potências que o humano pode abrigar em si porque Deus existe e nos ama, porque Cristo é a Encarnação desse Amor. Essa concepção tradicional realça o caráter sobrenatural da Graça, sem a qual a santidade cristã deixaria de ser um dom de Deus, para se resumir à aplicação da vontade humana a fins elevados.

O mundo moderno, emergente da desestruturação das sociedades medievais, trará consigo nova forma de santidade: a santidade da vida comum, da resposta à Providência Divina em meio às mediocridades do tempo: uma caridade tecida nos pequenos gestos cotidianos. Emerge a imagem-diretriz de um santo que é filho do momento e da situação, um santo "... cujo agir se processa no mundo, mas se sabe

25 Ver R. Guardini, 'HU�+HLOLJH�LQ�XQVHUHU�:HOW, LQ K.J. Kuschel (org.) /XVW�DQ�GHU�(UNHQQWQLV��'LH�7KHRORJLH�GHV�����-DKUKXQGHUWV, Piper Verlag, Zürich, 1986, p. 419.

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obrigado à Vontade d'Aquele que criou o mundo e lhe é soberano" 26Não é a trivialidade ou a excepcionalidade que distingue a santidade do ato: o que importa é sua correspondência à Vontade de Deus expressa na situação. O agente é , agindo sob o primado da escuta da Palavra de Deus GLWD�QD�H�SHOD�VLWXDomR. Seu agir se faz um acordo entre "... o homem que age e Deus que lhe entrega nas mãos, nesse momento, Sua criação, como fez ao primeiro homem 'para cultivar e guardar' ( 2, 15)" 27.

Esta imagem-diretriz é congruente com os ditames da YLWD�DFWLYD dos novos tempos, sem por isso sucumbir às idolatrias do progresso, da eficiência, da produtividade. Diante de uma pessoa humana que vê ameaçada pelo anonimato, o artificialismo, a massificação, o santo restaura a inviolabilidade do "sacrário" mais íntimo da existência individual, seu núcleo irredutível de pessoalidade: o diálogo com Deus. Um diálogo que se dá dentro do mundo, não para negá-lo, mas sim para injetar no interior das veias desse mundo a Graça transfiguradora da caridade.

Isso exige a ousadia da liberdade para com as pré-condições estabelecidas, institucionalmente fixadas, dos pensamentos, palavras e obras "politicamente corretos". Triunfar sobre as adesões, exteriores e interiores, aos saberes e condutas "eficientes e úteis" é reencontrar o sentido profundo daquilo que João em sua primeira carta nos disse com aguda singeleza: "... esta é a vitória que venceu o mundo. A nossa fé" (1 Jo 5, 4). Extinta a fé, extingue-se a possibilidade dessa vitória. A liberdade de vencer o mundo perde o fundamento: a voz da razão instrumental não deixa o coração e o espírito elevarem-se por sobre a mundanidade. Como corolário disso: a Porta aberta para a qual a presença da santidade aponta se transforma em ponto cego. A UDWLR analítica pode então requisitar os santos como um objeto de estudo dentre outros. Fazendo da sua objetivação da experiência o critério de verdade, ela destrói a presença simbólico-mistérica da santidade em nossas vidas. O mundo dos santos passa a ser percebido apenas como fenômeno psico-social. O cristianismo se desfigura.

� Um grande serviço que os santos podem prestar a nossos tempos é o re-aprendizado da contemplação, uma orientação para a imagem e não para o conceito, uma apreensão da presença dos entes no mundo feita com os "olhos do coração". Os santos, mesmo falando das coisas dos homens e suas trivialidades cotidianas nos falam sempre das "coisas de Deus", aquelas que não temos que primeiro conhecer para depois amar, mas sim que amá-las para conhecê-las, num movimento que só através do amor penetra na verdade. Michael Baumgarten nos fala de como é difícil encontrar palavras significativas para falar dessas "coisas de Deus" aos ouvidos dos nossos tempos: "... há tempos em que discursos e escritos não bastam mais para fazer compreensível a todos a verdade necessária. Nesses tempos os feitos e penas dos santos tem que criar um novo alfabeto, para desvelar novamente o segredo da verdade. O nosso presente é um desses tempos" 28 Essa invenção de um novo 26 Ver R. Guardini, op. cit., p. 425. 27Ver R. Guardini, op. cit., p. 426. 28Ver M. Baumgarten, (LQ�DXV����MlKULJHU�(UIDKUXQJ�JHVFK|SIWHU�%HLWUDJ�]XU�.LUFKHQIUDJH, 1891, vol. 1, Tittelblatt, citado por W. Nigg, op.cit., p. 32.

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alfabeto colide com as normas de expressão daqueles que se pretendem senhores da linguagem, e cuja ratio, emancipada da lógica do coração, se instaura a si mesma como juíza do real. Colisão grávida de conseqüências em tempos onde o discernimento entre normalidade e loucura passa a ter na ratio a referência.

O Antigo Testamento nos apontava um quadro muito diferente: a racionalidade misteriosamente enraizada na espiritualidade messiânica. Esse enraizamento, o cristianismo o radicaliza ao paroxismo. Na Encarnação o Amor de Deus subverte ironicamente toda a ordem das expectativas mundanas: é necessário refazer a percepção humana "normal" da Majestade e Onipotência Divinas. O Deus de Jesus Cristo é um Deus que se deixa abaixar até a abjeção, mergulhando, junto com a humanidade, nos abismos da humilhação, paixão, morte para elevá-la na Glória da Ressurreição.

O cristianismo é a Revelação insensata de um Deus surpreendente: da Virgem Maria "... nascera o primeiro louco de Deus e, que surpresa! era o próprio Deus!" 29 Poucos discípulos meditam tão profundamente sobre isso como Paulo de Tarso, que nos apresenta a conclusão radical: "... ninguém se iluda, se alguém dentre vós julga ser sábio aos olhos desse mundo, torne-se louco para ser sábio, pois a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus" (1 Cor 3, 18). A advertência paulina toca o nervo da questão: será necessário dar as costas à cultura para seguir os caminhos de Deus? A resposta é não. Um penoso não, que nos impõe a subversiva tarefa de salvaguardar a dialógica entre cultura e santidade, tendo na "loucura santa" pulsão de vida para o mundo: "... os 'loucos por Cristo' aparecem para intervir, ao menos indiretamente, na ordem da cultura, da ciência ou da civilização, para advertir os homens contra qualquer tipo de absolutização ou sacralização das criações humanas" 30.

O catolicismo se defronta na civilização filosófica da "modernidade moderna" com os desafios da secularização progressiva. A cristandade teocrática teve seus fundamentos teológico-políticos destruídos, seguindo-se penoso processo de ajuste para uma consciência eclesial em crise 31 No primeiro momento, diante da triunfal ofensiva iluminista contra o "obscurantismo religioso", os "privilégios clericais" e o comprometimento da Igreja com as "estruturas reacionárias de poder", o pontificado de Pio IX (1846-1868), em contra-ofensiva, publica o 6\OODEXV de 1864. O parágrafo 80 afirma o erro daqueles que pretendem que "... o Pontífice Romano pode e deve se reconciliar e transigir com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna" 32.

29Ver M. Evdokimov, 3HUHJULQRV�5XVVRV�H�$QGDULOKRV�0tVWLFRV, Vozes, Petrópolis, 1990, p. 57. 30Ver M. Evdokimov, op. cit., p. 65. 31Para um aprofundamento ver J.L. Gutierrez Garcia (org.), 'RFWULQD� 3RQWLItFLD� ,,�� 'RFXPHQWRV�3ROtWLFRV, com estudo introdutório e sumário de teses de A.M. Artajo e colaboração de V.L. Agudo, BAC, Madrid, 1958 32Ver J.L. Gutierrez Garcia, op. cit., p. 38.

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Um mundo católico em atitude de fechamento defensivo busca salvaguardar-se da desagregação a um alto preço: o posicionamento numa perspectiva anti-republicana "... o que conduzirá também a complacências culpáveis com regimes políticos opostos aos princípios democráticos, e a longas cegueiras diante da ascensão dos fascismos" 33. Não menos significativo é um falso sentimento de autarquia, expresso na pretensão de negar qualquer tipo de dívida, tanto para com uma razão profana, percebida como enferma de incurável arrogância, quanto para com a raiz judaica da fé cristã. A identificação do judaísmo com as potências racionalistas dissolventes do catolicismo contribui para semear os frutos perversos do anti-semitismo em meio católico.

O Concílio Vaticano II (1959-1965) é, nesse contexto, evento crucial: restaura-se a relação dialogal entre a Igreja católica e o mundo, fundada sobre uma justa "autonomia das realidades terrestres", expressamente reconhecida no parágrafo 36 da Constituição Pastoral *DXGLXP�HW�6SHV. Na abertura dos trabalhos o papa João XXIII tem duras palavras de censura para aqueles que, "... embora inflamados de zelo religioso, carecem de julgamento justo e de ponderação na sua forma de ver as coisas. Na situação atual da sociedade só enxergam ruínas e calamidades; têm o costume de dizer que a nossa época piorou muito em relação aos séculos passados, comportam-se como se a história, que é mestra da vida, não tivesse nada a ensinar-lhes e como se, na época dos concílios de outrora, tudo fosse perfeito no que tange à doutrina cristã, aos costumes e à justa liberdade da Igreja. Parece-nos necessário declarar nosso total desacordo com esses profetas da infelicidade, que sempre anunciam catástrofes, como se o mundo estivesse perto do seu fim" 34.

O que os "profetas da infelicidade" parecem não querer ver é que, ainda que o mundo passado tivesse sido tão bom como pregam, é no mundo presente que cabe aos cristãos viver e dar testemunho. Em outras palavras: reconhecer o valor próprio do profano não implica sucumbir perante a lógica do secularismo e renunciar a ser "... figura de uma lógica da gratuidade"e35que exige a aceitação sem reservas de todos os riscos do gesto de "amor louco" da Encarnação. É precisamente isso que fazem os santos, presentes nesse mundo como sinais "... d"Aquele que não se deixa manipular, nem apropriar, nem trocar pelo que quer que seja" 36.

Foi assim desde sempre na história do Cristianismo, que pode ser lida não apenas como história do pecado, tal como muitas vezes o fizeram os profetas do caos e os detratores da fé e da religião destrutivistas. Mas também como história da santidade - reconhecida ou não oficialmente pela instituição.

O caráter universal do chamado à santidade, tão agudamente expresso na primeira carta de Paulo de Tarso aos tessalonicenses: "... é esta a vontade de Deus: a 33Ver P. Valadier, &DWROLFLVPR�H�6RFLHGDGH�0RGHUQD, Loyola, São Paulo, 1991, p. 141. 34Citado por P. Valadier, op. cit., p. 117. 35Ver P. Valadier, op. cit., p. 87. 36Ver P. Valadier, op. cit. p. 120.

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vossa santificação" (1 Ts 4, 3), afirma a possibilidade de toda a humanidade, na vida do Espírito do Cristo de Deus, chegar à santidade. Nossa experiência de cristãos históricos aponta exemplos de alguns e algumas que realizaram essa possibilidade 37. A escolha de nossos exemplos não se preocupou em permanecer fixada na santidade "canônica", . Os exemplos querem mostrar o referencial "esculpido no humano" da possibilidade do HWKRV do amor/DJDSp ser vivido em sua radicalidade por homens e mulheres históricos e carnais como nós. Uma vivência cuja Porta nos continua aberta.

Amigos de Deus e amigos da vida, os santos cujas histórias de vida apresentamos a seguir nos mostram a possibilidadde da vivência da exemplaridade da "intimidade com Deus"e da "autonomia heterônoma"vivida no primado da alteridade divina e humana no século sem Deus.

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� 6LPRQH�:HLO������������� Nasceu em Paris a 3 de fevereiro de 1909, filha de uma família de origem judaica 38 Seu pai era um médico da Alsácia e sua mãe originária da Rússia. Formada em filosofia pela Sorbonne, foi a primeira mulher catedrática da França. Era a discípula predileta do filósofo Alain, formada em completo agnosticismo, apaixonada pelo tema da condição humana no mundo do trabalho.

Viveu intensamente as lutas, esperanças e dores de seu tempo. Movida por intenso sentimento de solidariedade abandona o magistério para trabalhar como operária fabril. Experienciou desde dentro as lutas operárias na França do início do século. Nos anos 30 a intelectual Simone vive junto aos operários franceses a crise e o desemprego. São anos duros, decisivos em sua vida. Neles, em suas cortantes palavras, recebe na carne a marca da escravidão que " ... é o trabalho sem luz de eternidade, sem poesia, sem religião" 39.

A "marca da escravidão" e o sentimento de solidariedade levam Simone às portas da fé cristã, quando de numa viagem de repouso em Viana do Castelo, um vilarejo português de pescadores. Dessa experiência temos o relato: "... num estado físico miserável entrei nessa pequena aldeia portuguesa - que era, ai! tão miserável também - sozinha à noite, sob a lua cheia, no dia da festa do padroeiro. As mulheres dos pescadores faziam a volta aos barcos em procissão, levando círios e cantando

37Ver G. Thils, ([LVWHQFLD�\�6DQWLGDG�HQ�-HVXV�&ULVWR, Sigueme, Salamanca, 1987, pp 363-374. 38 Ver o resumo da vida de Simone Weil no artigo de E. Bosi entitulado Simone Weil, que serve de introdução ao livro E. Bosi (org.), 6LPRQH�:HLO. $�FRQGLomR�RSHUiULD�H�RXWURV�HVWXGRV�VREUH�D�RSUHVVmR, Paz e Terra, São Paulo, 1979. 39Ver S. Weil, A Mística do Trabalho in /D�SHVDQWHXU�HW�OD�JUkFH, Paris, Plon, 1988, p. 204.

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cânticos certamente muito antigos e de uma tristeza dilacerante... Ali tive de repente a certeza de que o cristianismo é, por excelência, a religião dos escravos, que os escravos não podem não aderir a ela, e eu entre os outros" 40.

Em Assis , tempos depois, teve significativa experiência religiosa: "... estando só na capelinha românica do século XII de Santa Maria dos Anjos, incomparável maravilha de pureza onde São Francisco rezou muitas vezes, alguma coisa mais forte do que eu me obrigou, pela primeira vez na vida, a me por de joelhos" 41.

O itinerário de vida de Simone vai ser um contínuo servir, um despojar-se, um "abaixar-se" para uma união amorosa cada vez mais profunda, uma proximidade cada vez mais solidária com os pequenos, os humildes, os desprezados, os "párias" da modernidade. Durante suas férias trabalha de servente em propriedades rurais, onde trata de vacas, colhe beterrabas e causa espanto em meio aos proprietários: "... ela comia pouco, mas quantas perguntas! Falava nos campos a perder de vista, sobre um futuro martírio dos judeus, sobre a guerra que viria sem demora. Quando lhe oferecíamos um bom pedaço de queijo, ela o rejeitava dizendo que as crianças indochinesas tinham fome. Pobre moça! Tanta instrução fez com que perdesse a cabeça" 42.

Nesse "abaixar-se" que enlaça no amor às carências do humano, Simone é progressivamente seduzida pelo Mistério cristão. O pensamento da Paixão de Cristo penetra-lhe o fundo da existência: se sente vivendo hoje a continuidade dessa Paixão, dessa vulnerabilidade amante que se doa a si mesma em meio às dores do mundo. Diz mesmo que seu desejo amoroso de imitar o Crucificado é tamanho, que pensando na Paixão de Cristo comete o pecado da inveja 43.

Na Páscoa de 1938 Simone, acompanhada pela mãe, vai à abadia de Solesmes ouvir canto gregoriano. Acometida de fortes dores de cabeça, mal que lhe retornava periodicamente em crises agudas, a audição se lhe constitui verdadeiro ato penitencial. Ali conhece estudantes que apresentam obras de poetas ingleses do século XVII. Passa a recitar, em oração, em diversos momentos, o poema "Love" de George Hebert. Numa dessas ocasiões, em novembro de 1938 tem experiência mística profunda: " ... senti, sem estar de maneira alguma preparada, porque nunca tinha lido os místicos, uma presença mais pessoal, mais certa, mais real que a de um ser humano... No instante em que Cristo se apoderou de mim, nem os sentidos, nem a imaginação tiveram parte alguma; senti somente através do sofrimento a presença de um amor semelhante ao que se lê no sorriso de um rosto amado" 44 40. Citado por E. Bosi, LQ op. cit., p. 37. 41. Citado por E. Bosi, op. cit., p. 40. 42. Citado por E. Bosi, op. cit., p. 38. 43 Ver S. Weil, 3HQVpHV�VDQV�RUGUH�FRQFHUQDQW�ODPRXU�GH�'LHX, Gallimard, Paris, 1962, pp. 79-81. 44. Ver S. Weil, $WWHQWH�GH�'LHX, Fayard, Paris, 1966, p. 76.

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A Segunda Guerra Mundial será para Simone a grande e derradeira interpelação. No racionamento alimentar do tempo de guerra dá a maior parte de seus talões para os refugiados e senta-se a mesa dos mais miseráveis para compartilhar as refeições. Em Marseille conhece o Padre dominicano Perrin, que a encaminha para a casa do escritor católico Gustave Thibon, onde trabalha no campo. Ali faz todos os trabalhos da fazenda, conduz o gado, descasca os legumes, ajuda as crianças nas lições. A Gustave Thibon, que permanece seu amigo, escreve mais tarde: "... penso que a vida intelectual, longe de dar direito a privilégios é, em si mesma, um privilégio quase terrível que exige, em contrapartida, responsabilidades terríveis" 45 O trabalho no campo ganha para ela simbolismo de conotação eucarística:"... as fadigas de meu corpo e de minha alma se transformam em nutrição para um povo que tem fome" 46.

Nessa época Simone "descobre" o Pai Nosso. Passa a repeti-lo continuadamente durante os trabalhos, e afirma que "... às vezes durante essa recitação ou em outros momentos, o Cristo está presente em pessoa, mas com uma presença infinitamente mais real, mais pungente, mais clara e mais cheia de amor que na primeira vez que ela me tomou" 47.

Durante a evolução de seu processo intelectual e interior, a filósofa que depois se converterá ao Cristo sempre conceberá o amor como uma partilha até as últimas conseqüências de todas as dificuldades e dores do outro bem-amado. Esta compaixão receberá um selo diferente com a experiência na fábrica durante um ano.

Esta experiência já traz para o centro da vida de Simone o caráter da Paixão e morte de Jesus Cristo. De acordo com suas palavras, sua decisão de trabalhar na fábrica era, antes de mais nada, um ato de obediência que, após ter sido vivido, será percebido como tendo matado sua juventude e configurado sua pessoa com o ferro em brasa da escravidão e da desgraça e infelicidade alheias.

O sofrimento do mundo foi para ela uma obsessão e sua experiência a trouxe para muito perto da paixão e cruz de Jesus Cristo e a fez escrever ao seu confessor: �&RQKHFHU� UHDOPHQWH�R� LQIHOL]� LPSOLFD�FRQKHFHU�YHUGDGHLUDPHQWH�D�GHVJUDoD�� ( CF. 3HQVpHV�VDQV�RUGUH�FRQFHUQDQW�ODPRXU�GH�'LHX�, pg 93).

Após sua conversão, esta compaixão e seu sentimento tão agudo do sofrimento do outro não se afastaram de Simone. Ao contrário, isto foi sempre, nela, mais presente e forte. Ela diz um dia para o seu confessor: �3DUD�DTXHOH�TXH�DPD�YHUGDGHLUDPHQWH��D�FRPSDL[mR�p�XP�WRUPHQWR� ($WWHQWH�GH�'LHX, pg 7).

Simone é a mística da contemplação de Deus na miséria humana, pois "... só uma coisa de Deus podemos saber: que Ele é o que nós não somos. Apenas nossa miséria é a imagem disso. Quanto mais a contemplamos, tanto mais O contemplamos" 48 Pecar é para Simone desconhecer essa miséria humana, espelho da face de Deus. 45. Ver G. Thibon, 6LPRQH�:HLO��WHOOH�TXH�QRXV�ODYRQV�FRQQXH, La Colombe, Paris, 1952. 46. Conforme carta a Simone Pétrement, LQ G. Thibon, op. cit., p. 138. 47. Ver S. Weil, /$WWHQWH�GH�'LHX, op. cit., p. 79. 48. Ver S. Weil, idem, pp. 139-140.

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Esse conhecimento "... é difícil para o rico, para o poderoso, porque ele é quase invencivelmente levado a crer que é alguma coisa. É igualmente difícil para o miserável porque ele é quase invencivelmente levado a crer que o rico, o poderoso, é alguma coisa" 49.

Contemplando a cruz, de onde as Escrituras e a Tradição afirmam que veio para nós a salvação e redenção, Simone encontra a chave para o segredo do caminho do ser humano em direção a Deus: nossa vulnerabilidade e mortalidade. Esta mortalidade, esta vulnerabilidade da carne humana foi o caminho de Simone para a união com o Deus todo-poderoso e Sua salvação. Ela caminhou por este caminho, contemplando sua mortalidade no mesmo Cristo a ela revelado nos outros, seus irmãos, sobretudo naqueles e naquelas em quem a desgraça deixou mais expostos e mais nus em sua condição mortal. Aqueles em quem a desgraça e a morte realizam cada dia seu trabalho predatório.

Pode parecer estranho a nós, que Deus nos ofereça lições de cristianismo através dessa judia, que recusou o batismo para seguir junto aos "párias" de seu tempo. Aos olhos instalados nas certezas rotinizadas das razões teológicas e políticas ela é "insensata" e "herética

A ação do sobrenatural no mundo é, para Simone, "... quase invisível, infinitamente pequena. Mas ela é decisiva" 50Percebê-la exige toda nossa capacidade de atenção orante, algo que o fascínio diante de "prodígios miraculosos" anestesiaria.

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Edith Stein era filósofa, discípula de Husserl, com uma formação acadêmica muito séria, na Alemanha, durante o período entre as duas guerras. A universidade era seu lar até que ela experimentou, ainda muito jovem, o chamado à conversão ao Cristianismo. Nascida numa família judia muito religiosa, seu processo de conversão foi uma grande dor para ela e para sua mãe e irmãos. Mas o Judaísmo foi sempre por ela considerado como a escola onde aprendeu os ensinamentos básicos de Jesus Cristo e do Evangelho.

Desde a infância, Edith sente uma profunda fome da verdade e tem grande vida interior. Os traços essenciais de sua infância são: uma grande personalidade e vivacidade de espírito, aliadas a uma curiosidade e desejo de saber, assim como grande amabilidade com a mãe e irmãos.51

49. Ver S. Weil, idem, p.140 . 50. Ver S. Weil, 2SSUHVVLRQ�HW�OLEHUWp, Gallimard, Paris, 1960, p. 217. 51Cf. T.A MATRE DEI, (GLWK�6WHLQ���(Q�EXVFD�GH�'LRV, Madrid, Verbo Divino, 1988

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Pertencente a uma família judia de muita fé, onde a mãe exercia papel preponderante, Edith sempre segui à risca os preceitos de sua religião. Grande admiradora de sua mãe por sua fé e coragem, Edith sempre teve diante dos olhos os sofrimentos e dificuldades daquela grande mulher, que perdera quatro filhos pequenos além de enviuvar e enfrentar a educação dos filhos restantes a partir dos 48 anos de idade. Seu pai morreu quando Edith tinha um ano e nove meses e seu último legado foi o nascimento da pequena Edith numa festa significativa para os judeus.

Edith nasceu a 12 de outubro de 1891, dia da Festa da Expiação, a mais solene para o povo judeu. Nos tempos antigos, na história de Israel, o sacerdote entrava no "sancta sanctorum" e oferecia o sacrifício expiatório por ele mesmo e por todo o povo, após ter deixado o bode no deserto, carregado com os pecados do povo. Quando era uma menina, Edith certamente não suspeitava a dolorosa maneira pela qual este sacrifício expiatório seria realizado em sua própria vida. E podemos ver que, já desde o começo, a sombra da cruz se projetava misteriosamente sobre seu destino.52

Aos vinte anos Edith termina o bacharelado de psicologia e em 1911 ingressa na universidade de Breslau onde estuda filologia germânica e história..

A morte do amigo Reinach (1917) é um acontecimento decisivo em sua busca. A esperança luminosa da viúva tem sobre ela o efeito de um raio luminoso e diante dessa experiência desmoronam para ela todos os argumentos da razão. A fé brilha para ela no mistério da cruz, com a qual aí teve, como ela mesma diz "seu primeiro encontro". "Então vi - contionua Edith - pela primeira vez e palpavelmente diante de mim, em sua vitória sobre o aguilhão da morte, a Igreja nascida da paixão do Redentor. Foi o momento em que minha incredulidade caiu e o Cristo irradiou, Cristo no mistério da Cruz."53

Começa então a ler o Novo Testamento e percebe pouco a pouco que irrompeu para ela um mundo que supera o estudo e a investigação filosófica. Reconhece, então, nas "casualidades"da vida uma sábia disposição do amor misericordioso de Deus.

A experiência da conversão não é sem dor para Edith. Passa por sofridíssimos momentos pessoais diante da decisão de dever dar o passo definitivo da conversão e, por conseguinte, romper com Husserl. Seus trabalhos científicos desta época refletem seu profundo combate interior: "Causalidade Psíquica, Indivíduo e Comunidade, Estudo sobre o Estado." Antes de entregar-se totalmente a Deus passa pela aflição da noite espiritual.

Volta então a Breslau em 1919. No verão de 1921, um "milagre"no dizer mesmo de Edith põe fim a sua busca pela verdadeira fé. Estando em casa do casal Conrad-Martius, em Bergsabern, lê a vida de Santa Teresa de Ávila e ao terminar afirma: "Isto é a verdade."

Qual a verdade descoberta por Edith e que vai, a partir daí, iluminar-lhe todo o caminho existencial? A verdade de que "a loucura da cruz é o começo da verdadeira 52Cf. ibid 53Cf. ibid pg 61

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felicidade. Santa Teresa revela a Edith a verdade da alma: fazer-se criança diante de Deus.

A partir deste momento, Edith entra de cheio no processo da catequese e iniciação na Igreja católica. Pede o Batismo, que é marcado para 1 de janeiro de 1922 e volta a Breslau, com a preocupação de comunicar à família sua decisão.

Em 2 de fevereiro de 1922 recebe a Confirmação e a dolorosa cisão com a família é consumada. Edith suporta a dor desta cisão, seguindo avante com seu processo de conversão e procurando perceber, através da oração e da direção espiritual, qual o chamado de Deus para si própria.

Desde muito cedo, a vocação ao silêncio, expressamente no Carmelo a enche de desejo. Durante 10 anos, essa possibilidade lhe é negada pelo seu próprio diretor espiritual, que a aconselha a trabalhar com a juventude, como professora de alemão. Ela obedece, tomando no entanto para si largos momentos de oração e levando uma vida praticamente conventual e fazendo particularmente os votos de pobreza, castidade e obediência.

Seus repetidos pedidos de ingresso no Carmelo lhe são constantemente negados, sob a alegação de que a Alemanha Católica precisa de sua atividade no mundo. Edith obedece e continua seu trabalho científico, sempre duvidando de sua capacidade e vendo seus próprios limites. Escreve reflexões sem revolta, mas um tanto perplexas sobre si mesma: "Me dou conta de que perdi por todas as partes o contato e que em todos os aspectos sou inapta para este mundo."54

Já em 1932, em Münster, percebe os prenúncios do holocausto. As idéias nacional-socialistas e as atitudes contra os judeus começam a delinear-se com força no horizonte de Edith e a fazem iniciar-se em sua autêntica missão, a de viver o Judaísmo e o Cristianismo em unidade redentora. Sua origem judaica é para ela motivo de profunda ação de graças e júbilo diante do Senhor, que reconhece como o verdadeiro Deus de Israel. Sua conversão ao Cristianismo só faz confirmar este fato. São dela estas palavras escritas ao Pe. Hirschmann SJ: "O senhor não pode imaginar o que significa para mim ser filha do povo eleito, pertencer a Cristo não só espiritualmente como também segundo o sangue."55

A perseguição contra os judeus começa a atingir também a vida e o trabalho de Edith. Voltando a Münster, é impedida de exercer um cargoo público. Em junho de 1933, é finalmente admitida no Carmelo de Colônia tendo que passar mais uma vez pela dor de comunicar à família sua decisão.

O Carmelo foi para Edith sua mais cara pátria. Sentia-se feliz ali, na vida de clausura tão diferente da vida profissional que exercera, entre religiosas sem nenhuma formação acadêmica. Só tinha um desejo: a entrega absoluta a Deus.

Alegremente, aprofunda-se na espiritualidade dos mestres do Carmelo: Teresa de Ávila e JOão da Cruz. Em abril de 1934, toma o hábito em missa solene e vestida de noiva. Edith adota o nome de Sor Teresa Benedita da Cruz. Em abril de 1935 professa os votos e três anos mais tarde, a profissão perpétua.

54 Cf. ibid pg 158 55Cf. ibid pg 164

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Continua seu trabalho de escrever filosofia por obediência aos superiores, ao mesmo tempo que se dedica aos afazeres do convento. Edith é agraciada no Carmelo com profundas experiências místicas, o que faz dela mestra da vida interior, capaz e pronta a ajudar a outros. Dirigiu processos de conversão, tanto pessoalemnte quanto por carta. Seu conceito de ajuda à alma do próximo é profundo e humilde.

De 1938 a 1942, Edith vive uma época de profunda comoção psíquica e intensidade espiritual que culmina numa total e absoluta entrega à vontade de Deus. A perseguição aos judeus continuava avançando. Ela chega a pensar em emigrar para a Palestina, no Carmelo de Belém, para não colocar em perigo sua comunidade.

A 21 de abril de 1938, quinta-feira santa, faz seus votos perpétuos. Husserl morre a 27 de abril. A guerra é iminente e a cruz que pesa e cai sobre seu povo habita o coração de Edith que deseja ardentemente converter essa espantosa experiência em sacrifício expiatório.56

A superiora, preocupada por seu destgino, a envia ao carmelo de Echt, na Holanda. Ali, pressente que seu tempo de vida é limitado. A 9 de junho de 1940, redige seu testamento: "Já desde agora aceito a morte que Deus me destinou, com total submissão a sua santíssima vontade e com alegria. Peço ao Senhor que se digne a aceitar minha vida e minha morte para honra e glória sua, por todas as intenções dos santíssimos corações de Jesus e de Maria e da Santa Igreja, em especial pela conservação, santificação e perfeição de nossa Ordem, e; mais particularmente dos conventos de Colonia e de Echt, para reparar a incredulidade do povo judeu e para que o Senhor seja aceito pelos seus e venha seu reino glorioso, pela salvaão da Alemanha e a paz do mundo, finalmente por meus parentes, vivos e defuntos e por todos os que Deus me deu: para que nenhum deles se perca. "57

Em 1941, Edith começa a escrever um livro sobre João da Cruz, chamadodd a "Ciência da cruz". Para ela, a cruz é uma semente depositada na alma, que deita raízes e se converte na forma interior do homem. O cântico da alma começa na dor amorosa da noite, na privação sensível da proximidade divina e termina na sublime união com Deus. Este caminho é uma reprodução da morte e ressurreição de Cristo. A alma para perseverar deve ter diante dos olhos a imagem de seu Senhor: pobre, humilhado e crucificado. Quer compartilhar de seu destino. Quando consente na crucificação se realiza sua união espiritual com Deus. É portanto uma graça para a lma que Deus , mediante sofrimentos, a faça participar na sua obra redentora.

Edith deseja não apenas ser chamada "da cruz", mas ser cada dia mais semelhante a seu Senhor crucificado. Um pouco antes da Segunda Guerra ser declarada, ela pedira Irmã Otilia, sua superiora, a permissão para oferecer-se como vítima expiatória pela paz verdadeira, �D� ILP� GH� GHUUXEDU�� VH� SRVVtYHO� VHP� XPD�VHJXQGD� JXHUUD�� R� GRPtQLR� GR� $QWLFULVWR� H� D� ILP� GH� VHU� SRVVtYHO� HVWDEHOHFHU�QRYDPHQWH�XPD�QRYD�RUGHP�QR�PXQGR���

Esta é a última obra de Sor Teresa Benedita. Em 2 de agosto de 1942, oficiais da SS a levam, juntamente com sua irmã Rosa, que também entrara no Carmelo para o campo de Amersfort. Ali esperavam a deportação para Westerbork. 56 Cf. pg 247 57Cf. pg 253

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No campo, como o próprio Jesus, o amor de sua vida, Edith mostra que tinha um amor especial pelos pobres e doentes. Não havia desgraça que passasse longe de seu coração e aquele povo em desespero recebia constantemente o dom de sua atenção, de sua ajuda, de sua caridade.

A 6 de agosto é transportada para o leste, e esgotadas as esperanças de obtenção de visto ou de libertação, Edith percebe que Deus aceitou seu sacrifício. A 7 de agosto, com a partida para Auschwitz, começa o caminho de Sor Teresa Benedita da Cruz para a morte. Edith e sua irmã Rosa foram assassinadas em Auschwitz a 9 de agosto de 1942 na câmara de gás. Não foram sequer "selecionadas"para o trabalho, pois já passavam dos 50 anos de idade. Foram levadas imediatamente para o local do sacrifício que Edith tão generosamente ofereceu ao Senhor pela vida de muitos.

Sob o signo da cruz, a mensagem cristã foi mostrada pela primeira vez a Edith Stein , na ocasião da morte de um amigo querido. Sob o signo da cruz, ela renuncia a uma brilhante carreira filosófica, após sua conversão. Com o signo da cruz, ela deseja, como carmelita, compartilhar por sua expiação voluntária, o sofrimento e o desprezo de seu povo judeu. Ela entendeu o destino de seu povo sob o signo da cruz e assim pensou que tinha que tomar ela mesma essa cruz em nome de todo o povo. Assim fazendo, esta mulher esperou que a terrível cruz da aniquilação que um racismo cruel impos pela força e a violência a todo o povo de Israel fosse convertida em signo de redenção e vida. O signo da cruz - único possível nestes horríveis tempos - deveria ser mais poderoso quando suportado em união com Jesus, o Cordeiro de Deus.

(JLGH�YDQ�%URHFNKRYHQ������������58

Tal como Etty Hillesum, Egide morreu muito jovem, na flor de seus trinta e três anos. Como Dietrich Bonhoeffer, era cristão (católico) desde seu nascimento e foi o Evangelho que moldou sua vida e o fez ser uma testemunha da vida e do amor de Deus em meio ao conturbado século XX no coração da Europa.

Egide foi um jovem e obscuro padre-operário cuja morte trágica, acontecida em Bruxelas no dia 28 de dezembro de 1967 não passou desapercebida na imprensa belga da época. Aqueles que o conheciam sabiam que seu trabalho na fábrica e sua morte brutal foram a culminância de um processo de busca apaixonada de Deus. Foi sua fidelidade a esta busca que o conduziu, não ao retiro silencioso da Cartuxa, mas em direção à "sarça ardente"da grande cidade, num bairro pobre habitado pelos operários estrangeiros, próximo à estação ferroviária.59

58 Seguiremos fundamentalmente, para narrar a história de vida de Egide van Broeckhoeven, o diário do próprio Egide, -RXUQDO�6SLULWXHO�GXQ�MpVXLWH�HQ�XVLQH�, présentation par Geroges Neefs SJ, Paris, DDB, 1076, coll. CHRISTUS. Existe uma tradução resumida do diário de Egide em português, sob o título 'LiULR� GD� $PL]DGH, São Paulo, Loyola, 1975. tirada não do original que seguimos, mas do original belga. -RXUQDO� GH� ODPLWLp, Lumen Vitae-Foyer Notre Dame, Bruxelas, 1972. Em nossa "história", seguimos, no entanto, a primeira obra citada. 59 Cf. -RXUQDO���, Introdução, pg 7.

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Egide nasceu a 22 de dezembro de 1933, em Antuérpia. Seu nascimento é seguido da morte de sua mãe, o que faz que Egide seja educado por seus pais adotivos em Schilde. Faz seus estudos secundários no colégio São Francisco Xavier, em Antuérpia.

A 7 de setembro de 1950 entra no noviciado dos jesuítas em Tronchiennes. Aos dois anos de noviciado estendem-se três anos de estudos clássicos. Depois, de 1955 a 1958, faz estudos de filosofia no escolasticado de Louvain. De 1958 a 1960 faz estudos universitários; licenciado em filologia clássica em julho de 1959, Egide pede e obtém a licença para seguir o curso da primeira candidatura em ciências matemáticas e físicas. Fracassa nos exames de 1960.

De 1960 a 1961, seus superiores lhe ordenam ensinar latim no colégio São João Berchmans em Bruxelas. De 1961 a 1965, faz seus estudos de teologia no escolasticado de Heverlee, em Lovaina. É ordenado sacerdote no dia 8 de agosto de 1964.

O período-chave da curta vida de Egide são os anos de 1965, a partir do mês de agosto até dezembro de 1967. É quando ele trabalha como padre operário em Anderlecht (Bruxelas). Trata-se de um trabalho de fábrica em quatro empresas diferentes, interrompido de setembro a dezembro de 1966 para o retiro espiritual do terceiro período de provação em Tronchiennes.

A 28 de dezembro de `1967 acontece o acidente de trabalho que o atinge de forma mortal.

O "Diário"se estende justamente sobre os dez últimos anos da vida de Egídio. Começa em abril de 1958 e prossegue até a véspera de sua morte. E é fundamentalmente o que seu título indica: um diário HVSLULWXDO, onde seu autor registra o que ele chama: "suas luzes, seus desejos, e suas experiências". Ou seja, os movimentos do Espírito de Deus em seu interior, os apelos divinos aos quais Egíde se sente interpelado a responder.

Sendo tudo que nos resta como testemunho de vida deste jovem padre morto tão prematuramente, é neste diário que somos chamados a encontrar o fundamental dos traços da personalidade que queremos colocar como exemplo ético e teologal.

O tema central deste diário - e, ousaríamos dizer, o tema central da vida de Egide - é a amizade. Amizade com Deus e amizade com os homens, inseparáveis e formando um todo harmonioso e vital.

Egide vive a ação de Deus nele em meio à vida corrente: estudos, apostolado ativo, vida cotidiana, e sobretudo, amizades, encontros, contatos com todos aqueles que cruzam seu caminho. Assim desfila nas notas que ele toma em seu diário uma multidão de pessoas cuja lista completa por si só encheria várias páginas e das quais ele escreve apenas o nome. Através destas pessoas, Egide encontra o Deus de seu amor e por isso dá graças continuamente.

A unidade da vida de Egide , portanto, é dada pela conjunção íntima de três realidades: a experiência de Deus, a; experiência da amizade e o trabalho apostólico. Tendo a intenção, explicitada no próprio diário, de escrever um livro sobre a amizade ( 29/12/1963) as notas de Egide não são desordenadas, mas organizadas pelo próprio

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autor no intuito de que esta obra possa vir `à luz. Até a véspera de sua morte, ele está ocupado em organizar este futuro livro, que nunca chegou a ser escrito.

Após a morte de Egide, e desde que seu Diário veio à luz, numerosos artigos e escritos sobre ele foram escritos por pessoas tão ilustres como os teólogos Hans Urs von Balthasar e Marcel Légault.60 Foram publicadas também numerosas edições e traduções do próprio "Diário".61

Pode chegar a ser surpreendente que a Igreja Católica e, dentro dela, a Companhia de Jesus, tão prudentes e discretas quando se trata de trazer à luz vidas humanas que podem tornar-se referenciais para outros, tenham dado tal destaque aos escritos de um jovem jesuíta, apenas formado e tão pouco preocupado com as regras e a etiqueta. É impressionante que as coleções de biografias de jesuítas célebres o tenham contemplado com uma edição de seus escritos que o coloca em paralelo com autores espirituais 'de língua francesa tão clássicos como Lallemant e Cláudio de la Colombière , e com mestres espirituais da envergadura de um Pedro Fabro e do próprio Inácio de Loyola.62

E no entanto, seus editores certamente devem ter encontrado no jovem e informal Egide a mesma espiritualidade inaciana, contemplativa na ação, vivida na sua integralidade e profundidade; a mesma sede de vida interior e de transparência à graça divina que inspirou a todos os outros.

Egide foi, em nosso século, na agitação da cidade grande, um místico autêntico. Original e fiel ao mesmo tempo, seus escritos - e, mais importante que eles, a vida da qual eles revelam o segredo - são de uma profunda originalidade e autenticidade. Respira-se nesta "história de vida"o frescor da santidade feita de amizade com Deus e com os outros. A tal ponto que Marcel Légaut exclama a propósito dele: "'É de homens assim que a Igreja precisa para tornar-se novamente jovem."63

Atraído desde a juventude pela vida monásxtica e contemplativa, Egide entra, paradoxalmente, aos dezesseis anos, na Companhia de Jesus, ordem eminentemente ativa e apostólica, chamada a estar presente nas fronteiras da modernidade. Na Companhia de Jesus e sem ceder aos apelos contínuos que continuam lhe chegando da vida na Cartuxa, Egide vai ser levado, sem dúvida pela formação recebida desde o noviciado na Companhia, mas também pela leitura assídua de místicos como João da Cruz, depois de Hadewych e de Ruusbroec, místicos flamengos, e finalmente de Teilhard de Chardin, a se sentir perfeitamente harmonizado com a vida apostólica do jesuíta contemplativo na ação e a preocupar-se todo o tempo de colocar sua vida inteira, por uma participação consciente nos movimentos da vida trinitária de Deus, no prolongamento da encarnação do mesmo Deus neste mundo.

Egide recebeu e viveu o dom de assimilar profundamente as luminosas intuições dos grandes místicos e transpô-las para a vida comum, sem perder seus acentos de transcendência. Nesta realidade concreta e cotidiana, nos encontros

60 Cf. -RXUQDO��� pg 15 61 Cf. ibid pg 13 62 Todos estes autores, por exemplo, têm suas biografias e memoriais publicados na mesma coleção CHRISTUS, onde Egide também tem a sua. 63 cit. em -RXUQDO pg 15

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mesmo fortuitos de pessoa a pessoa, com os companheiros de fábrica, com os vizinhos, Egide é humildemente consciente de ser, como ele mesmo se intitula, emocionado até as lágrimas "um Teilhard da amizade"(16), mostrando aos homens e mulheres, seus amigos, que as mesmas profundidades infinitas que o grande Teilhard descobriu na realidade cósmica, não estão menos intensamente presentes nem são menos reais em todo contato de amizade. 64

Sobre a amizade com Deus e com a vida humana, obra de Deus, Egide nos dá alguns testemunhos sobremaneira inspiradores em seu Diário desde sua mais tenra juventde e seus primeiros anos de formação:

"O amor toma todos os riscos, até entregar-se naquilo que tem de mais íntimo; pois não sendo assim não se pode amar."(24)

"Aquele que vê Deus no outro vê aquilo que um homem pode encontrar de mais profundo em outro homem. Aquele que vê o Cristo neste homem tem uma visão ainda infinitamente mais profunda. É o que explica que o santo conhece os homens bem melhor que eles se conhecem a si mesmos."(26)

A liberdade do místico nele convive perfeitamente bem com a obediência e observancia do religioso:

"Meu Deus, se eu não posso chamar-te meu amigo, então não tenho mais nada. Não desejo encontrar a força em nada além de haver-te buscado. Muitos religiosos negligenciam as regras e as prescrições, sob pretexto que elas são mesquinhas, não as considerando apenas do ponto de vista que permite apreciar seu valor real e sua relatividade: o ponto de vista do amor íntimo e pessoal de Deus, vivido de uma maneira adulta e inefável."(31)

"O apostolado, é levar os homens mais perto de Deus; para levar os homens mais perto de Deus, é preciso estar muito perto dos homens; para estar perto de alguém, é preciso estar perto de Deus ( Fiquei contente de poder falar disto com JD). Aquele que ama um outro só tem uma coisa a fazer: jogar-se com toda a impetuosidade de seu coração na proximidade da intimidade com Deus; ele aprofunda assim sua própria intimidade e se aproxima do outro.

Dizer que o amor cresce é sem dúvida menos exato do que dizer que ele se aprofunda, se purifica."(35).

"A amizade se distingue do companheirismo e de outras formas do amor humano neste ponto em que ela busca o que o outro tem de mais íntimo e se encontra pronta a tudo sacrificar para lá chegar. Ela busca o outro enquanto ele é de Deus, enquanto sua intimidade tem seu fundamento na Intimidade. Desta maneira, ela permanece escondida no mistério de Deus que é Amor. A amizade cristã encontra um aprofundamento novo numa Intimidade toda nova, a do Cristo, Verbo divino, revelação da Intimidade trinitária."(37)

"O amigo é como uma casa de diamantes: no interior brilha uma luz fulgurante de uma grande beleza. Mas não se penetra nela sem quebrar a parede exterior: operação penosa, també para aquele que a quebra, pois ele se fere também. Mas uma vez que a primeira parede foi quebrada, a luz interior de um vermelho ardente 64 Cf. -RXUQDO��� pg 16

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brilha com um novo brilho. Ele quebrará então sucessivamente diversas paredes e se ferirá sempre mais profundamente. Não se trata, no entanto de alguém que quebra cinicamente um belo vaso e depois se vai como se não tivesse nada a ver com isto. Suas feridas se tornam mais e mais profundas, até o momento onde ele se encontra diante da última parede: já ele percebe através desta a própria luz e lhe parece que se ele a quebra, a luz mesma se apagará. E no entanto, é preciso que ele quebre também esta última parede: não é senãzo a este preço que ele encontrará a intimidade mais profunda do amigo, a Trindade divina. Meu amigo é como uma amável aurora do eterno amor de Deus. Nisto consistirá toda a felicidade do céu. " (45-46)

"O amor só é feliz quando ele penetra em terras inexploradas. Deus é a terra ainda inexplorada da intimidade de todos nós; pois ele é a Intimidade última, abismo insondável. Senhor, ensina-me a descobrir em cada homem a Terra ainda inexplorada que tu és. Para penetrar nas terras desconhecidas, é preciso deixar as conhecidas. "(52-53)

O "Diário "de Egide a partir deste ponto, se torna uma sucessiva enumeração de nomes e de ação de graças a Deus pela amizade de um ou de outro: "Obrigado, Senhor, pela amizade de JB. Obrigada pela amizade do professor P. Obrigada pela amizade de PV e sua família. etc. etc.". Assim a vida contemplativa de Egide vai se aprofundando e sendo vivida como uma entrada sempre mais profunda no amor dos outros que desemboca sempre no amor de Deus.

O apelo da vida de clausura volta repetidas vezes a Egide, mas pouco a pouco ele vai descobrindo a dimensão contemplativa da espiritualidade inaciana, da ordem religiosa que ele escolheu para viver. E isso o ajuda a fazer em sua vida uma opção definitiva por esse espaço onde o Senhor o chama a viver seu amor. Assim, ele escreve, no final de um retiro:

"Vi uma vez mais com grande clareza como todos os meus problemas de vocação encontram sua solução fundamental naquilo que é a essência mesma da vocação do jesuíta: pela disponibilidade total e; o total abandono à vontade de Deus, abrir-se a espaços religiosamente puros onde Deus pode atingir-nos. Estes espaços são os mesmos que aqueles onde o cartuxo encontra Deus, mas a forma que eles tomam não está fixada num quadro concreto definitivo; ela segue em tudo as moções do Espírito Santo, como o amigo pronto a seguir seu amigo em todo lugar, sem decidir ele mesmo onde irá. "(140)

É aí que Egíde vai descobrir a essência daquilo que se tornará o coração de sua vocação missionária de jesuíta: o apostolado junto aos mais distantes e despossuídos dos homens:

"Deus me fez compreender que meu desejo de viver inteiramente para ele não deve se realizar na solidão e no despojamento de uma Cartuxa, mas na decisão de ir em direção aos homens masi afastados dele: tal parece ser o meio de vida contemplativa que Deus me designa. É aí também que parece situar-se, no discernimento da ação do Espírito em mim, minha vocação de "contemplativo na ação": isto toca o ponto mais central daquilo que Deus quis me fazer compreender me chamando. (157)

Como sua irmã e contemporânea Simone Weil, a vivência do Evangelho e da compaixão de Jesus Cristo vão fazer Egide mergulhar de cheio na vida operária, na

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vida da fábrica. É lá que ele vai mergulhar ainda mais profundamente na amizade com Deus e com estes pobres que agora são masi que nunca seus companheiros:

"Deus me dizze: 'Agora é preciso amar, sem se colocar mais questões. Não mais se buscar em nada no amor, completamente liberto de ti mesmo, quer dizer, "em estado de amor". " Deus estava muito perto de mim e queria estar e ficar para me encorajar, me consolar, me fortificar com sua Presença. Ele insistiu uma segunda vez: Não mais fazer do apostolado um problema; basta amar."(255-256)

No trabalho duro da fábrica, Egide tem que enfrentar as repreensões dos chefes por não ter revelado sua condição de sacerdote, mais de um acidente de trabalho que lhe afetam gravemente as mãos, demissões. Mas em meio a toda esta dura realidade, Egide continua vivendo profunda e alegremente a experiência da amizade:

"O lugar onde encontramos Deus, a sarça ardente, é o mundo de hoje com, no coração, todas estas amizades, este amor ardente: eis aí o lugar onde nós encontramos Deus."(300)

Nas notas que escreve explicando para si mesmo por que se decidiu a trabalhar na fábrica e por que se sente feliz com esta vida, Egide diz:

"Porque me tornei, muito concretamente, o amigo de todos este s pobres, destes trabalhadores, destes pequenos que se sentem abandonados pela Igreja, por seus patores; porque estabeleci relações de amizade com os mais pobres dentre eles, muçulmanos, ortodoxos, desenraizados - com estes nove operários demitidos na semana passada; e porque eu me sinto concretamente, por estes homens, ligado a toda a massa dos pobres, dos peuqenos, dos descristianizados; porque esta amizade concreta e total é, para mim o único caminho autêntico, às vezes penoso, mas sempre muito consolador, pelo qual o Reino de Deus cresce no mundo agora; não me é mais possível, não me é mais permitido voltar atrás sobre a esoclha que fiz de ser padre operário."(344)

A 28 de dezembro, Egide estava encaregado de desatar placas de metal de seis metros por 1,50 metros trazidas por uma esteira rolante e desatarraxar as pinças do guindaste. As placas estavam arrumadas verticlamente entre pilares de ferro. A um determinado momento, uma das pinças que retinham uma placa se bloqueou e Egide foi para trás da pilha para desatarraxá-la. Neste momento, um dos pilares de apoio se rompeu, os outros cederam e toda a massa das placas, de muitas toneladas, vacilou. Sob seu peso, Egide foi projetado violentamente contra uma placa erguida verticlamente atrás dele. O golpe quebrou-lhe a espinha e ele morreu imediatamente, com os braços estendidos sobre as placas. Tinha apenas 34 anos.

Poucos dias antes, havia escrito em seu diário:

"Grande consolação meditando que perder tudo por Deus (deixar sua terra, etc.) se realiza perdendo sua vida pelo mundo (segue-me). (363)

Como o Cristo, Egide "perdeu"sua vida crucificado modernamente na fábrica onde a máquina tritura o homem. E aí viveu e deu testemunho de sua vocação de ser amigo de Deus e amigo da vida.