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C A P Í T U L O I ================= SÃO PAULO E O BRÁS QUE OS IMIGRANTES DE SCHIO CONHECERAM (Uma abordagem sobre a sociedade industrial que se construía na cidade de São Paulo e, especialmente, no bairro do Brás no período em que aí viveram os imigrantes de Schio, entre 1891- 1895)

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C A P Í T U L O I

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Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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A casa dava para a rua, mas tinha quintal; lembro da sala, dos dormitórios. Na frente da casa passavam os vendedores de castanha, cantarolando. E o pizzaiolo com latas enormes, que era muito engraçado e vendia o produto dele cantando. As crianças iam atrás. A rua não tinha calçada. Elas ficavam à vontade naquelas ruas antigas. (Amadeu Bovi)1 __________________________________________________

11.. OO pprriimmeeiirroo ccoonnttaattoo Ao buscar as fontes que nos dissessem como chegaram e, mais precisamente, como se inseriram no ambiente urbano e industrial paulistano os operários têxteis de Schio, imigrantes vindos em 1891, deparamo-nos como a dimensão física e temporal do Bairro do Brás. Andando por suas ruas, nas imediações das atuais estações do metrô (Brás e Bresser), ou das vias que cortam o atual Moóca, atrás da antiga Hospedaria dos Imigrantes ou, ainda, as ruas que margeiam o Largo da Concórdia e as travessas da Celso Garcia é possível notar algumas características bastante peculiares e comuns de ocupação do solo urbano nesse imenso e populoso canto da cidade, que um dia chegou a concentrar a maior parte do proletariado paulistano.

Observa-se, através dessa paisagem de alvenaria e concreto, que sua ocupação deu-se de forma totalmente irregular e em tempo muito célere. É como se não houvera um minuto a perder: todos os espaços deveriam ser construídos, rigorosamente aproveitados. Os prédios são contíguos, enfileirados dando-nos a impressão de uma seqüência de monótona continuidade. Casas de quintal hermeticamente imperceptível, fachadas sem qualquer vestígio de jardim, residências cujas portas e janelas da frente se abrem diretamente para o passeio público.2 Muitas delas são geminadas e padronizadas, confundindo-se com outras construções. Ao lado de moradias, os locais de trabalho, onde o trânsito de pedestres, especialmente, é constante. Nada é circunspecto. O ir-e-vir dos transeuntes falantes, sempre lotando a calçada, sugere a necessidade de janelas acessíveis, conversas nos botecos, nas esquinas, nas feiras. Por outro lado, a poucos metros, há fábricas aqui e acolá, salpicando a paisagem e redesenhando, com suas chaminés e galpões, as silhuetas do horizonte absolutamente plano e, muitas vezes, sombrio. Não há absolutamente qualquer planejamento ou discriminação espacial: lojas ao lado de bares, bancos de quitandas e igrejas de fliperamas.3

Da densa e luxuriante vegetação que cobria as tradicionais chácaras que se estendiam às

margens do Tamanduateí e do caminho para a Penha, áreas de lazer e diversão da remanescente aristocracia imperial, da segunda metade do século XIX, entretanto, nada restou. Permaneceram qual lembrança tímida e fugaz apenas, num ou noutro canto do Bairro uma árvore solitária – um plátano remanescente da “Belle Époche” - ou, ainda mais rara, uma pequena praça em torno de uma igreja mais antiga.

O crescimento urbano definira o zoneamento social de São Paulo. As áreas baixas, de várzeas e periféricas ao centro, sujeitas às diversas catástrofes naturais, e onde o preço da terra, por conseqüência, era menor, destinavam-se à instalação industrial e à habitação proletária, proximidade que rebaixava o custo de transporte da força de trabalho, desse modo imediatamente acessível. Além do Brás, incluíam-se nessa categoria também outros bairros operários da Capital, como: Ipiranga, Cambuci, Moóca, Pari, Luz, Bom Retiro, alguns trechos

1 Na memória de um morador do Brás, no início do século, o espaço familiar é assim descrito: Depoimento do Sr. Amadeu a Ecléa

Bosi. In BOSI, Ecléa Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, Companhia das Letras, 3 ed., 1994, p. 125. 2 Segundo Jorge Wilheim, havia no Brás: “o prestígio da rua como ponto de encontro e a influência do mestre de obra italiano” ao

comentar, em seu livro, a foto de J. Xavier que mostra mulheres conversando com despreocupação na frente de uma das moradia daquele Bairro, onde porta e janelas davam diretamente para a rua. Cf. WILHEIM, Jorge São Paulo Metrópole 65: subsídios para seu plano diretor. São Paulo, Difel, 1965, entre as pp. 64-65.

3 Em seu guia para turistas na cidade de São Paulo, de 1924, Jacintho Silva, apresentando o Brás, afirmava que aquela área da cidade: “Vista de qualquer ponto elevado da cidade, apresenta-se ao forasteiro como um intermino succeder de casas, cujo meio se levantam para o alto, aqui e ali, enormes chamines de grandes fabricas.” SILVA, Jacintho (org.) Guia Illustrado do Viajante: cidade de São Paulo. São Paulo, Monteiro Lobato & C., 1924, p. 75.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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da Lapa, Água Branca e Barra Funda. Outras áreas, também marginais, mas localizadas no topo do relevo a saldo das intempéries e das imundícies, cujos terrenos eram muito mais caros, como: Pacaembu, Avenida Paulista, Campos Elíseos, Perdizes, Água Branca e Lapa, foram destinadas a zonas residenciais para as classes mais abastadas.4

Um antigo morador do Brás citado na epígrafe, Sr. Amadeu Bovi, relembrando suas memórias infantis a Ecléa Bosi, deixou-nos, a propósito, a seguinte frase:

Pra esse lado do Brás, Cambuci, Belenzinho, Moóca, Pari, aqui tudo era uma pobreza, ruas sem calçadas, casas antigas, bairros pobres, bem pobres.5

Mais acessível à implantação de grandes unidades fabris e às construções residenciais destinadas ao proletariado, o Brás sofreu, talvez mais que qualquer outro bairro da Capital, uma brutal intervenção humana no ambiente natural que dotou-o, da noite para o dia, das qualidades e mazelas de outra singular natureza: a da sociedade industrial. Justamente ali ergueram-se, durante as quatro últimas décadas do século passado, os equipamentos mais avançados produzidos pela indústria contemporânea, desde a implantação da malha ferroviária, capaz de transportar mercadorias e força de trabalho de um lado para o outro, cobrindo grandes distâncias em muito menos tempo, até as primeiras fábricas de médio e grande porte da Capital paulista, principalmente as do setor têxtil, constituindo-se, assim, num pólo de atração irrefutável para imigrantes já reduzidos ao estado proletário em seus países de origem, principalmente na Itália. 22.. AA rroottaa ddaass tteecceellaaggeennss ppaauulliissttaass:: ddoo IInntteerriioorr àà CCaappiittaall

A história da urbanização e industrialização do Brás, como se pode aferir, está diretamente associada à da cidade de São Paulo e, por conseqüência a do próprio Estado que, no começo da década de 1890, viu, impulsionadas pelo crescimento da cafeicultura no período anterior, suas atividades econômicas, principalmente os setores secundário e terciário, intensificarem-se e alastrarem-se por toda a rede urbana então existente. O surgimento do parque industrial têxtil acompanhou, pari passu, a expansão, por um lado, das atividades ligadas à cafeicultura e, por outro, das novas necessidades urbanas. Na Capital paulista, essa ampliação se estendeu em direção ao leste, até então pouco aproveitado economicamente.

A liqüidez proporcionada pela política de fácil crédito, implementada pelo Governo federal, possibilitou a constituição de diversas empresas com a finalidade de adquirir pequenas fábricas. Estas, por sua vez, passaram a substituir a produção industrial doméstica e a produção organizada em pequena escala. 6 Com o advento do trabalho assalariado e do incremento das transações comerciais, a economia brasileira passou a exigir um aumento da oferta de papel-moeda. Uma conjuntura favorável ao apoio financeiro e à intervenção governamental no setor industrial, preferencialmente o têxtil, surgia naquele período. Em 17 de janeiro de 1890, o então Governo Provisório instituiu a ‘Reforma Bancária’ que visava possibilitar o acesso fácil ao crédito, resultando numa acelerada expansão do sistema financeiro do país. As agências bancárias passaram a ter um papel de relevância. Em São Paulo e noutros estados, os bancos foram autorizados a emitir e, ultrapassando suas atividades tradicionais, a proceder investimentos no comércio, na indústria, na colonização, na construção de estradas, etc. Como conseqüência, houve o que se convencionou chamar de “Encilhamento”, isto é, num aumento considerável de papel-moeda em circulação, gerando, inicialmente, a proliferação de empresas de todas as

4 Cf. TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes O Bairro do Brás. São Paulo, Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 2 ed,

série: História dos Bairros de São Paulo - I, 1981, p. 108. 5 In BOSI, Ecléa op. cit., p. 132. 6 Cf. MARTINS, José de Souza O cativeiro da terra. São Paulo, Hucitec, 6 ed, 1996, pp. 114-115.

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naturezas, sendo que muitas delas não saíram do papel. Por outro lado, o aumento da quantidade de meio-circulante sem a contrapartida do aumento imediato da produção gerou um processo inflacionário incontrolável. Essa alta dos preços é muito visível quando manipulamos os preços das mercadorias e serviços trocados entre os anos de 1891 e 1892. Contudo, em que pese o número excessivo de empresas economicamente inexeqüíveis, a expansão monetária gerada por aquela medida não redundou apenas em inflação e especulação. Muitos empreendimentos, principalmente têxteis, se tornaram realidade em todo o país.7

Mesmo a crise que sucedeu ao Encilhamento possibilitou aos fabricantes de tecidos e aos outros industriais uma segunda oportunidade para reivindicar a intervenção governamental a favor da indústria.8

Articulou-se, entre os empresários endividados com empréstimos contraídos durante o período de incentivos oferecidos pelo novo governo, uma verdadeira campanha denominada: “Auxílio à Indústria”. O movimento foi mais intenso nas áreas onde haviam surgido industrias de relativo porte, como no Estado de São Paulo. As resistências ao favorecimento, tanto no país como no exterior - os banqueiros Rothschild também se opuseram - foram quebradas e, finalmente, o governo central, depois de conseguir apoio interno unânime, rompeu com a política do ‘laissez-faire’ e interveio com ‘mão visível’ – no auge do liberalismo mais exacerbado - nos destinos da indústria local, parafraseando a "mão invisível" de Adam Smith.9 É importante notar, entretanto, que o processo de industrialização têxtil no Estado de São Paulo tem raízes fincadas nos primórdios do século XIX. Precocemente a outras áreas do país, a então província, já em 1813, vira nascer a primeira tentativa de se implantar em seu território uma indústria têxtil. A fábrica funcionou justamente na Capital paulista até 1830. Suas instalações eram precárias: um galpão, rocas e uma dezena de teares manuais. A experiência, entretanto, não logrou. Os empreendimentos industriais seguintes começariam e cresceriam primeiro em municípios do interior para, somente em algumas décadas depois, alcançar a Capital.10

Nova tentativa ocorreu em 1852, no município de Sorocaba, quando o empresário Manuel Lopes de Oliveira, fazendeiro de algodão, mandou construir nos terrenos da chácara de sua propriedade, junto às senzalas de seus escravos, uma fábrica para descaroçar, cardar, fiar e tecer algodão. Apenas no final de 1857, essa indústria começou a funcionar, visto que a chegada e a montagem das máquinas - todas adquiridas na Inglaterra - aconteceu de forma mais lenta que o previsto. Quando se deu início à produção, havia operando-a apenas quatro trabalhadores escravos, que utilizavam maquinaria movida a vapor. Em torno de 1864, essa indústria já não funcionava. Quanto às dificuldades encontradas pelo industrial precursor, escreve a historiadora Maria Alice Ribeiro que:

Dentre os problemas enfrentados por Manuel Lopes de Oliveira no estabelecimento de

sua fábrica sobressai o da mão-de-obra especializada. A falta de pessoal com conhecimento de mecânica para montar e pôr em funcionamento as máquinas teria sido, também, uma das razões pelo fracasso da iniciativa. 11

7 Cf. CANO, Wilson Raízes da concentração industrial em São Paulo. São Paulo, T. A. Queiroz, 2 ed., 1983, pp. 72-73. 8 Cf. STEIN, Stanley J. Origens e evolução da indústria têxtil no Brasil, 1850-1950; trad. de Jaime Larry Benchimol. Rio de

Janeiro, Campus, 1979, pp. 93-99 e 105. 9 Idem, p. 102; e HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios (1875-1914); Trad. Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo.

Rio de Janeiro, Paz e Terra, 3 ed, 1992, p. 72. 10 Segundo Cano, “Stein afirma que a Bahia, até 1877-1875 tinha a maior parte da indústria têxtil algodoeira do Brasil; entre as

razões que ele alega para esse fato estão: a urbanização, mercado local, fonte local supridora de algodão porto e uma Lei Provincial da época, que mandava cobrar impostos suplementares sobre produtos exportados que utilizassem sacarias importadas.” CANO, Wilson op. cit., pp. 94-95.

11 RIBEIRO, Maria Alice Rosa Condições de Trabalho na Indústria Têxtil Paulista (1870-1930). São Paulo, Hucitec - ed. da UNICAMP, Teses e Pesquisas, 1988, p. 24-25. Warren Dean, entretanto, afirma que o fechamento da referida fábrica se dera “devido ao problema do fornecimento da matéria prima.” Cf. DEAN, Warren A Fábrica São Luiz de Itu: um estudo de arqueologia industrial. In ANAIS DE HISTÓRIA. Assis, Departamento de História do ILHPA (UNESP), 1976, vol. 8, p. 11.

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O Relatório da Comissão de Inquérito Industrial de 1882 apontava que, até 1866, não

existia na Província de São Paulo nenhuma fábrica de tecidos em funcionamento.12

Entretanto, a expansão do cultivo do algodão foi incentivada para atender com exclusividade às necessidades das indústrias européias, principalmente as da Inglaterra, em decorrência da destruição das plantações de algodão do Sul dos Estados Unidos, arrasadas durante a Guerra da Secessão (1861-65). Elas forneciam a matéria prima para os cotonifícios ingleses. Diante da carência, os capitalistas ingleses, enviavam sementes de algodão da variedade “Orleans”, da Louisiana, às autoridades brasileiras para que as distribuíssem entre os fazendeiros, criando os pressupostos para o ulterior crescimento da indústria têxtil. É importante notar, que houve, entre 1864 a 1879, um aumento vertiginoso da procura do algodão, diante da crise da produção norte-americana, fazendo seu preço médio elevar-se à cifra de 1$231 (mil, duzentos e trinta e um réis) a arrouba, no início daquele período, para, com a recuperação daquela área produtora, cair para $389 (trezentos e oitenta e nove réis), no final, isto é, decrescendo de quase 70% do preço inicial. A abundante oferta desse produto e a conseqüente queda de seu preço no mercado mundial possibilitaram a fundação de um incipiente parque industrial têxtil na província paulista. Os primeiros cotonifícios de São Paulo, portanto, foram erguidos pelos proprietários agrícolas que tinham previsto o rebaixamento dos altos preços no mercado mundial do algodão - com o fim da Guerra Civil norte-americana - e a isso reagiram. Essa conjuntura favorável propiciava, então, as condições para o surgimento da indústria algodoeira: 1) dispondo fartamente de matéria prima; 2) obtendo facilidade no recrutamento de força de trabalho especializada e na importação de maquinaria dos países industrializados; 3) se beneficiando com a melhoria dos transportes ferroviários, a disponibilidade de trabalhadores locais e estrangeiros, com a chegada das primeiras levas de imigrantes o que redundaria, por outro lado, num crescente mercado consumidor interno.13

Entre as empresas precursoras, encontrava-se justamente a fábrica "São Luiz" de Itu.

Foi a primeira fábrica têxtil algodoeira fundada na província, durante essa nova fase. Sua inauguração, no dia 2 de dezembro de 1869, começou com uma força de trabalho de 60 operários que faziam funcionar 32 teares, com 560 fusos, produzindo “algodão grosso da terra”, destinado aos trabalhos na agricultura, enfardamento, colheita e à indumentária de escravos e trabalhadores rurais. A planta da fábrica foi elaborada pelo engenheiro da Cia. Lidgerwood, de Campinas, que se dirigiu aos Estados Unidos para comprar máquinas e contratar força de trabalho especializada. O maior acionista era Luiz Antonio de Anhaia (Marquês de Itu), farmacêutico, vereador na cidade por várias legislaturas, e coronel da Guarda Nacional.14

No exemplar de 1906 do importante noticioso da imprensa italiana, Pubblicazione del

Fanfulla, divulgava-se que nas décadas anteriores, em Itu (Salto) e em Piracicaba, haviam se instalado várias fábricas de tecidos de algodão e fazia menção especial ao centro industrial de Itu, que, segundo o jornal:

(...) progredia maravilhosamente com o crescimento da população operaria, industrial

e com suas novas construcções.15

12 Idem, p. 23. 13 DEAN, Warren A industrialização durante a República Velha. In FAUSTO, Boris (org.) História Geral da Civilização Brasileira

– III – O Brasil Republicano – 1 Estrutura de Poder e Economia (1889-1930). São Paulo, Difel, 3ª ed,1982, p. 268. Cf. tb. RIBEIRO, Maria Alice Rosa op. cit., p. 26.

14 Warren Dean escreve que “dos outros quatro primeiros acionistas, Antonio Pais de Barros, barão de Piracicaba (10 ações) era principalmente um fazendeiro (...) Angelo Custódio de Morais (10 ações) foi também proprietário (...) Manuel José de Mesquita (10 ações), Antonio Carlos de Camargo Teixeira (5 ações) identificavam-se respectivamente como ‘capitalista’ e ‘comerciante capitalista’ (...) Por volta de 1884 ou antes, Anhaia vendeu suas ações a Paulino Pacheco Jordão, de uma família proprietária de terras (...) Anhaia dirigiu-se à capital da província em 1886 e fundou outra fábrica de algodão.” DEAN, Warren A Fábrica São Luiz op. cit., p. 9, 14-15.

15 PUBBLICAZIONE DEL FANFULLA Il Brasile e gli italiani. Firenze, R. Bemporad & Figlio Ed., 1906, p. 347. Usaremos como procedimento manter, de agora em diante, a ortografia original dos nomes, expressões e textos citados em português, escritos no início do século.

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Em 1872, a força de trabalho nas fábricas de tecidos da Província de São Paulo

totalizava 10.256 operários. Destes, 8970, isto é 87,46%, eram livres e 1286, isto é 12,54%, eram escravos. As mulheres formavam a maioria, alcançando a casa dos 92,77% dos trabalhadores, isto é 9515 pessoas.16 É importante notar, a partir desses significativos dados como é possível desmontar o mito de que a indústria – setor de vanguarda na acumulação capitalista moderna – só se rege a partir do trabalho assalariado. Apesar da exigüidade dos números, vê-se como a indústria têxtil, que estava em seus albores na província de São Paulo, lança mão da força de trabalho cativa para firmar sua produção. Apesar de ser usada secundariamente, não deixa de estar presente e desempenhar um papel no processo de acumulação. Não seria tarefa fácil, e não o é ainda hoje, a erradicação do trabalho escravo, principalmente da mentalidade escravocrata que, por muito tempo iria permear as relações entre patrões e trabalhadores, quer no campo ou na cidade, na cafeicultura ou na indústria.

O crescimento de unidades industriais, entretanto, se deu em 1874, quando, impulsionadas pela construção da malha ferroviária no interior, foram fundadas, somente naquele único ano, cinco fábricas de fiação e tecelagem na Província de São Paulo.

A precursora surgiu na cidade de Salto, a “Mont-Serrat”. O imponente prédio,

construído ao lado da ponte pênsil sobre o rio Tietê, ocupava uma área de 1240 m2. Contou, no momento da inauguração, com 100 operários, 50 teares e 1600 fusos. A maquinaria foi encomendada no exterior. Seu fundador foi José Galvão de França Pacheco Júnior, ituano de nascimento.17

Três outras tecelagens surgiram, ainda: em Piracicaba, a Santa Francisca, que

empregava 180 operários, operando 100 teares; em São Luiz do Paraitinga, a Santo Antonio, cujo número de trabalhadores se desconhece, mas que contava com 25 teares; e nas cercanias da cidade de Sorocaba, a fábrica Votorantim, que seria citada na publicação do mesmo jornal italiano, como sendo, então, de propriedade do Banco União e destinada à tintura de tecidos, dispondo, para tanto:

(...) de apropriados aparelhos e maquinarias e de hábeis operários, na maioria

italianos.18

A última dessa leva nasceria na cidade de São Paulo, a “MJ. Barros”, cujo proprietário era Diogo Antônio de Barros, filho do fazendeiro Antonio Pais de Barros (barão de Piracicaba), um dos pioneiro da cafeicultura paulista e sócio fundador da fábrica “São Luiz” de Itu. Os autores não identificam o bairro onde essa fábrica foi implantada. Morse afirma, a propósito, que:

A primeira fábrica de fiação e tecelagem de algodão foi fundada na cidade pelo Barão de Piracicaba (considerado o primeiro a ter feito extensas plantações de café a Oeste da Capital) e por seu filho Diogo Antônio de Barros, educado na Europa. Em 1870 êste adquiriu em Lancashire maquinaria de John Platt & Sons e, em 1872, a fábrica funcionava com 30 teares e 60 operários.19

A fábrica da Capital – situada na confluência da Rua Florêncio de Abreu com a

“Travessa 25 de março” (vide Anexo 01), hoje trecho da Rua Carlos de Sousa, que terminava nas margens do leito original do Tamanduateí - ocuparia, em 1875, 93 operários (13 homens, 20 mulheres e 60 meninas de onze a treze anos de idade), trabalhando com (de 50 a 60) teares ingleses (Platt Brothers Co.). Uma década seguinte, os registros assinalam a formação de um verdadeiro pool de empresas o que demonstra um avanço significativo do capital original: 16 Cf. RIBEIRO, Maria Alice Rosa op. cit., p. 32. 17 Cf. LIBERALESSO, Ettore Salto: história, vida e tradição. São Paulo, IMESP, 1987, pp. 88-89. 18 PUBBLICAZIONE DEL FANFULLA op. cit., p. 484. 19 MORSE, Richard M. Formação Histórica de São Paulo. Coleção Corpo e Alma do Brasil. São Paulo, Difel, 1970, p. 236.

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Em 1887 esta fábrica, e outra também de Diogo Antonio, na Capital, tinham um

total de 350 teares. Havia mais dez fábricas no interior – quatro em Itu, que era o centro da região algodoeira – mas as da Capital eram muito maiores e já a indicavam como ponto de futura concentração industrial. (O capital das duas fábricas paulistanas era de 1.050:000$000, e o das dez do interior, de 2.950:000$000).20

Alguns de seus mestres foram contratados na Europa. Anos mais tarde, um deles,

Frederico Kowarick, iria fundar sua própria fábrica. Tratava-se da tecelagem “Fábrica de Tecidos Bergman, Kowarick & Comp.”, que iria funcionar a partir dos primeiros anos iniciais deste século, nas proximidades da conhecida na época como “Estação de São Bernardo” (São Paulo Railway). Segundo o que o Fanfulla publicava, no início do século, essa indústria fabricava com força de trabalho reduzida:

Grazie ai modernissimi macchinari può molto produrre occupando pochissimi operai.21 Entre 1874 e 1875, foram fundados mais dois cotonifícios: um na cidade de Jundiaí, a

fábrica “Jundiaiana” (“São Bento”, em 1897), por um grupo de capitalistas da cidade, liderados pelo barão de Jundiaí e um dos maiores fazendeiros de algodão da região, Antônio Queirós Teles, que contou com um número de trabalhadores indisponível, mas que operavam 25 teares; e outro em Santa Bárbara do Oeste, a fábrica “Carioba”, com 26 teares.

Em 1881, mais três fábricas foram fundadas: - uma em Tatuí, que iniciou suas atividades somente dois anos depois e chegou a

empregar, já no início, 124 operários. Chamava-se "Fábrica de Fiação e Tecidos São Martinho". Sua área ocupava 9282 m2, da qual 5.192 era construída. Suas dimensões eram pujantes para a época e o faz notar Bandeira Júnior quando a ela se refere. No início eram 54 os teares – tocados a força hidráulica – e, em 1901, esse número subiria para 175. Nessa mesma época, a fábrica já contava com cerca de 300 operários, quase todos do sexo feminino. Eram crianças, menores e mulheres arrolados na própria região que trabalhavam 12 horas e meia, diariamente;22

- outra tecelagem surgiu em Sorocaba: a fábrica “Nossa Senhora da Ponte”. Um de

seus proprietários foi Manoel José da Fonseca. O estabelecimento, que funcionava numa área de 1600 m2., contava, segundo relatos do início deste século, com 40 teares e 1500 fusos e empregava mais de duzentos operários. Bandeira Júnior faz menção à existência em área contígua à fábrica de uma:

(...) villa operaria com vinte e duas casas convenientemente afastadas umas das

outras.23

- a terceira em Salto, a “Jupiter/Fortuna”, bem maior que a anterior, ocupava uma área de 7800 m2 também à direita do rio Tietê, abaixo da “Mont-Serrat”, ao final da então Rua do Porto (hoje fundos da Brasital S.A., que, em 1919, absorveria a ambas).24

20 Idem. 21 PUBBLICAZIONE DEL FANFULLA op. cit., p. 549. Cf. tb. RIBEIRO, Maria Alice Rosa op. cit., p. 33. 22 Cf. BANDEIRA JÚNIOR, Antonio Francisco A industria no Estado de São Paulo em 1901. São Paulo, Typographia do Diario

Official, 1901, p. 25; cf. tb. PUBBLICAZIONE DEL FANFULLA op. cit., p. 549. 23 BANDEIRA JÚNIOR, Antonio Francisco op. cit., p. 7. 24 Cf. LIBERALESSO, Ettore op. cit., pp. 89-90. Para os dados relativos às fábricas de fiação e tecelagem da Província de São

Paulo, em 1884, cf. tb. DEAN, Warren A Fábrica São Luiz ... op. cit., p. 13.

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A febre industrial parecia contagiar os donos do capital. Ato contínuo, outra fábrica veio a ser fundada, desta vez, na cidade de São Paulo, inaugurando, assim, a primeira de uma série de tecelagens que se integrariam, formando o futuro complexo industrial têxtil do eixo Bom Retiro-Brás-Pari. Em 1884, no Bom Retiro, surgiu, então, a tecelagem "Anhaia", pertencente à “Companhia Fabril Paulistana”, que passou a ocupar uma área de 10 mil m2 e produzia tecidos de fios de algodão, vindo do Nordeste. Apesar da discordância sobre o ano de fundação dessa fábrica, com a publicação oficial do Estado situando-a naquele ano, o Fanfulla – no início deste século - acaba por fazer uma apreciação positiva desse empreendimento fabril. Ao descrevê-lo manifesta-se entusiasta com a compacta presença italiana entre os trabalhadores:

Fabbrica di filatura e tessitura (...) Questo stabilimento è uno dei più importanti dello Stato. Ne furono i fondatori i signori: colonnello Luiz Antonio Anhaia, marchese di Ytù, barone di Tatuhy, dott. Francisco de Aguiar Barros, dott. Francisco Emydio da Fonseca Pacheco e colonnello Antonio Proost Rodovalho, nell'anno 1886, nel quartiere chiamato Bom Retiro in S. Paulo (...) Dei più che 500 operai pocchissimi sono brasiliani, molti italiani. 25

Paralelamente ao crescimento da indústria têxtil que do Interior fazia sentir seus efeitos sobre a Capital, um fato de aparente menor importância iria ocorrer justamente na cidade de São Paulo: a fundação do Liceu “Coração de Jesus”. Instituição dos padres salesianos, da congregação religiosa católica fundada pelo padre piemontês Dom Bosco, ela desempenharia um papel de notória importância na formação da força de trabalho industrial paulistana, pois suas atividades educativas estavam voltadas à integração dos meninos e jovens das classes populares à sociedade industrial. A trajetória dessa congregação na Itália não havia sido outra senão a de andar pari passu com a industrialização. Sua missão era retirar as crianças e os jovens das ruas das periferias urbanas, atraindo-os a seus “oratórios”, para depois, sistematicamente, educar-los na prevenção “do mal”, tornando-os obedientes às leis e à ordem estabelecida; e ensinar-lhes um ofício profissional, preparando-os ao cumprimento devotado das obrigações que lhes eram atribuídas pela empresa. Com isso, os salesianos encontraram graças diante dos novos senhores da época. Espalharam-se pelos quatro cantos do mundo e fincaram por onde chegaram escolas profissionais sob os auspícios e patrocínio dos capitalistas locais e das pessoas de bem interessadas em “limpar” as ruas e praças dos efeitos nocivos da sociedade industrial. A fundação do colégio e a vinda dos referidos padres à Capital de São Paulo é assim contada em sua página da Internet:

Em 1878, começou a nascer a obra do Liceu Coração de Jesus, por iniciativa de

católicos vicentinos da cidade de São Paulo. No ano seguinte, foi comprado o terreno para a construção de uma igreja. O bairro de Campos Elíseos não possuía quase nenhuma edificação; era considerado fora dos limites da cidade. Em 1882, achando-se adiantada a construção da capela, decidiram anexar-lhe um estabelecimento de ensino profissional, que gostariam de ver dirigido pelos religiosos salesianos. Em agosto de 1883, o missionário salesiano padre Lasagna escrevia a Dom Bosco relatando os primeiros convites. Na tarde de 5 de junho de 1885, chegaram de trem, vindos de Niterói (RJ), os primeiros salesianos: era o início da segunda obra dos salesianos no Brasil. Até 1915, o Liceu foi uma escola tipicamente profissional, atendendo uma clientela pobre e carente.26

Na seqüência, erguer-se-ia no Pari a tecelagem "Industrial", fundada durante o ano de 1886 e de propriedade da Companhia Industrial de São Paulo.27 25 PUBBLICAZIONE DEL FANFULLA op. cit., p. 549. Chegou a contratar, em 1912, cerca de 500 operários, dos quais 297

(59,4%) eram de nacionalidade italiana. Possuía, na mesma época, 8254 fusos no setor de fiação e 300 teares, no da tecelagem, que eram movidos a energia elétrica (90,6% da força motriz) e, em menor escala, também a vapor. Dispunha de uma tinturaria e de uma oficina de reparação de tecidos. A empresa produziu, em 1910, 3.740.447 m. de tecido. Cf. SECRETARIA DA AGRICULTURA, COMMERCIO E OBRAS PÚBLICAS DO ESTADO DE SÃO PAULO Boletim do Departamento Estadual do Trabalho. São Paulo, Anno I, nos. 1 e 2, 4o. trimestre de 1911 e 1o. de 1912, 1912, pp. 72-77.

26 Http://www.salesianos.org.br/liceusp/historia.htm, 1998. 27 Ocupava, no início da primeira década deste século, 20 mil m2 de área e produzia brins, riscados e lonas com algodão, adquirido

principalmente no próprio Estado de São Paulo. Produzia também tecidos em linho, caso houvesse encomenda. Possuía, em 1912, 600 operários, dos quais 43 (7,1%) italianos. Cerca de 85,7% da força motriz empregada pela empresa originava-se da energia

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

22

Em 19 de novembro de 1887, outra tecelagem começaria a funcionar em Salto, da firma

“Pereira Mendes & Cia.” que ocupou um prédio que fora construído para abrigar uma fábrica de papel. O edifício ficava no Bairro da Estação, entre a margem esquerda do rio Jundiaí e os trilhos da ferrovia (hoje, Avenida Aymorés).28

Três anos depois da fundação da tecelagem “Industrial” do Pari, foi a vez do Brás. Na antiga “Chácara do Menezes” seria instalada a fábrica "Sant'Anna", pertencente à “Companhia N. de T. de Juta” cujo proprietário era o fazendeiro Antonio Alvares Penteado. Foram erguidos, na Rua Flórida (vide Anexo 01 e 02) - na verdade uma travessa que unia a Rua (de) Monsenhor Andrade ao leito da estrada de ferro São Paulo Railway - diversos salões assobradados e galpões contando, inicialmente, com 12 mil m2 de área construída e, posteriormente, chegando à cerca de 45 mil m2. A proximidade com a ferrovia tinha uma razão prática: facilitar o embarque e o desembarque de mercadorias . Alguns anos depois, com a ampliação dos serviços de transporte público – via bondes – uma linha iria ligar a fábrica à cidade. Seria uma das maiores tecelagens da época. Seus motores hidráulicos eram propulsionados por água advinda de reservatórios localizados a quatro quilômetros de distância, então em áreas periféricas, situadas na atual Moóca. A fábrica produzia, em seus albores, aniagens, lonas cobertores, tapetes, baixeiros, etc. – destinados ao consumo interno - com juta importada da Índia, via Inglaterra. Trabalhavam nela por volta de 800 operários que eram, já no começo, majoritariamente italianos.29

Por volta de 1898, o proprietário fez construir, em área contígua, novos pavilhões onde

foi instalada também outra tecelagem que ocupou mais 150 operários. Chegou a fabricar, nessa época, tecidos de lã, cuja matéria prima era importada diretamente da Europa. 30

Sobre a fábrica Sant’Ana, escreveria o Fanfulla, em 1906, que: [i suoi (...)] 50 telai andarono via via aumentando in numero, giungendo a quello

attuale di 900, i quali producono diariamente oltre 75.000 metri di tessuto. La forza motrice oggi raggiunge i 760 HP. e il numero degli operai ascende a più che 2.000 uomini e donne.31

Precursor da geração de “burgueses iluminados”, à moda do que já se editava na

Europa, com Alessandro Rossi, em Schio (e o que seria, anos depois, Jorge Street, em São Paulo), Antonio Alvares Penteado projetou – com parte dos dividendos auferidos por suas empresas – a urbanização e o embelezamento do Brás.

Mandou erguer vilas operárias para os trabalhadores da Fábrica de Juta Sant’Ana, assim

como foram construídos o “Nuovo Quartier Alessandro Rossi” (1872), em Schio; e a Vila Operária “Maria Zélia” (1912), em São Paulo. Na Rua Boa Vista, mandou construir também o “Teatro Apolo” e, mais tarde, fez edificar outro, maior e mais luxuoso, na Rua 24 de Maio. É interessante notar aqui a similaridade dos procedimentos adotados pelos industriais da época. Em Schio havia sido construído, durante o ano de 1868, o “Teatro Jacquard” em frente da fábrica chamada Alta do “Lanifício Rossi SpA.”.32

elétrica e o restante do vapor. Possuía 11 mil fusos e 300 teares. Como as anteriores, possuía o setor de tinturaria e o de reparos. Produziu, em 1910, a quantia de 2.807.033 m. de tecido. Cf. SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., pp. 72-77. Cf. tb. PUBBLICAZIONE DEL FANFULLA op. cit., p. 490.

28 Cf. LIBERALESSO, Ettore op. cit., p. 90. 29 Cf. BANDEIRA JÚNIOR, Antonio Francisco op. cit., pp. 3-6. 30 Cf. TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., pp. 162-163. 31 PUBBLICAZIONE DEL FANFULLA op. cit., p. 490. Em 1912, chegaria a ocupar 2685 operários, 1816 (67,6%) deles eram

italianos. A eletricidade representava 53,1% da energia empregada na produção e o vapor 46,9%. Havia: 15 mil fusos e mil teares; um setor de tinturaria e de reparação. Produziu, em 1910, 13.519.294 m. de tecido. Cf. SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., pp. 72-77. Ver. tb. SESSO JR, Geraldo Retratos da Velha São Paulo. São Paulo, OESP-Maltese, 2 ed., 1986, p. 98-99.

32 “Fabbrica Alta”: assim era chamada a unidade maior do ‘Lanificio Rossi SpA’ que se erguia, imponente, em plena cidade de Schio. Essa designação se deu por causa da pujança de seus prédios e, também, das imensas chaminés que fumegavam sem parar sob os céus escledenses. A propósito da Vila “Maria Zélia”, Paulo Celso Miceli escreve que, além da creche e do jardim da infância, ela “(...) dispunha ainda de grupo escolar, restaurante, ambulatório, igreja, farmácia, praça de esportes, teatro, centro

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

23

Meia década depois da formação do primeiro núcleo do complexo industrial têxtil

paulistano, com as fábricas já mencionadas, e após três anos da chegada dos imigrantes de Schio na cidade e no Bairro do Brás, uma rica família de imigrantes italianos, originários do Trentino-Alto-Adige, fundaria mais uma unidade de grande porte: a “Fábrica de Tecidos de Lã, Algodão e Meia de Regoli, Crespi & Comp.” ou "Cotonifício R. Crespi S.A." como ficou mais conhecido, funcionou, a partir de 1894, no bairro da Moóca e empregava, desde sua fundação, predominantemente, trabalhadores italianos.33

Em 1901, ocupava 2000 m2. de área construída onde funcionavam 40 teares e 10

máquinas para tecido de meia grossa e a força de trabalho constituía-se, então, de 280 a 300 operários aí empregados.34

A inclusão dessa nova fábrica viria a completar o perfil econômico e social da baixada. Com isso, os bairros do Brás, Moóca, Bom Retiro e Pari se fundiam, por um lado, num único cinturão industrial, de perfil predominantemente têxtil, e, por outro, retendo, maioritariamente, a massa dos trabalhadores recém-chegados da Europa e, em menor escala, os brasileiros já residentes na periferia paulistana ou egressos do campo.

A última unidade fabril desse período seria fundada em 1895, na Vila Prudente, próximo à estação “Ypiranga” (São Paulo Railway). Seu fundador e proprietário deu seu nome à empresa: “Fábrica de Tecidos de Seda de Guilherme Polletti”. Possuía, no início deste século, em funcionamento 16 teares para fitas, 5 máquinas para cordões, 2 teares Jacquard para tecidos e outros dois para cobertores de barra de seda. Produzia, entre outros: fitas, cordões, botões, tapetes, cobertores, cortinas e tecidos para roupas femininas. Empregava, então, por volta de 150 trabalhadores.35

Com as quatro grandes unidades têxteis instaladas a cidade de São Paulo passou a contar, em meados da última década do século XIX, com 121 estabelecimentos que se utilizavam de energia mecânica, dos quais 52 eram efetivamente unidades fabris. Além das citadas tecelagens, havia, ainda, uma fábrica de cerveja, três fábricas de fósforos, uma fundição e duas oficinas ferroviárias.36 33.. OO BBrrááss pprroolleettáárriioo:: ccrreesscciimmeennttoo ee mmiisséérriiaa

Mas afinal, o que fez essa cidade e esse Bairro atrair os imigrantes de Schio? Comecemos pelo crescimento populacional: em 1836, a, então, “cidade imperial” de São Paulo possuía modestos 12.256 habitantes, enquanto o Brás tinha apenas 659, o que relativamente correspondia a irrisórios 5,37% da população total. A área urbana de São Paulo se resumia, nessa época, à colina situada entre os rios Tamanduateí e o Anhangabaú. A povoação da, então, “Freguesia do Bom Jesus de Matozinho” começou por volta de 1719, quando a Câmara

literário, salão de baile e armazém com preços inferiores aos do mercado, além de 300 casas.” MICELI, Paulo Celso Além da fábrica: o projeto industrialista em São Paulo, 1928-1948. São Paulo, FIESP, 1992, p. 43.

33 Segundo Simini: “I Crespi, mi dice Emilio (Franzina) erano effettivamente un ramo dei Crespi d’Adda industriali italiani del settore tessile.” SIMINI, Ezio Maria Carta endereçada ao autor. Schio, 13.02.1991.Essa fábrica ocuparia, em 1912, 26 mil m2 de construção. Produziria brins, colchas, atoalhados, xales e camisas de lã. A matéria prima era constituída basicamente de algodão paulista e de lã importada da Europa. Empregava 1305 trabalhadores, destes 947 (72,5%) eram italianos. A empresa usava, então, quase que exclusivamente (91,8%) a energia elétrica como força motriz. Possuía: 14 mil fusos, 500 teares e um setor de malharia. Em 1910, produziu 2.338.445 m. de tecido. Cf. SECRETARIA DA AGRICULTURA ... (1912) op. cit., pp. 72-77. A respeito da participação dos imigrantes italianos ricos no consórcio da burguesia industrial paulistana e seu desempenho na exploração da força de trabalho “compatriota”, ver DEAN, Warren A industrialização durante a República Velha op. cit., p. 270.

34 BANDEIRA JÚNIOR, Antonio Francisco op. cit., pp. 9-10. 35 Idem, pp. 11-12.

36 Cf. FAUSTO, Boris Trabalho urbano e conflito social (1890-1920) . São Paulo, Difel, 3 ed, Corpo e Alma do Brasil, 1977, p. 18. Para se ter uma idéia do que representou o avanço da indústria têxtil em São Paulo, é interessante notar que em 1899, já existiam no Estado 22 fábricas de tecidos, das quais 18 eram somente cotonifícios, 3 eram cotonifícios-lanifícios e apenas uma era integralmente lanifício. Em 1906, esse número passou para 25, com um capital constante avaliado em 35 mil contos de réis, empregando cerca de 6000 operários, utilizando uma força motriz de 5500 h-vapor para acionar 3500 teares e produzir 37 milhões de metros de pano. Cf. PUBBLICAZIONE DEL FANFULLA op. cit., p. 484.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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Municipal de São Paulo passou a atender a pedidos de interessados, todos portugueses, em obter terras públicas que ali existiam. Espalhou-se pela imensa “Várzea do Carmo”, a partir das encostas do atual Parque D. Pedro II, ampliando-se em direção a leste, região plana e alagadiça, castigada continuamente, nas épocas chuvosas, pelas cheias do Tamanduateí e afluentes que formavam o que se chamava, antes da retificação, de “Sete Voltas”. Cortava a freguesia a estrada geral, antiga trilha indígena, conhecida também como “Caminho para a Penha”, tendo nos extremos as chácaras da “Figueira” e do Tatuapé, com escala no “Marco da Meia Légua”. Ao longo desse caminho instalaram-se, como já se aludiu, várias chácaras de propriedade de pessoas abastadas da cidade. Algumas delas serviam de residência permanente, outras só para momentos de lazer. Essa característica será preservada até o final do século.37

TABELA 01

EVOLUÇÃO DO CRESCIMENTO POPULACIONAL DA CIDADE DE SÃO PAULO (POR DISTRITO)

ANOS/POPULAÇÃO

DISTRITOS

1836

1855

1872

1886

1890

1893

5.568

7.484

9.213

12.821

16.395

29.518

Santa Ifigênia

3.064

3.646

4.459

11.909

14.025

42.715

BRÁS

659

974

2.308

5.998

16.807

32.387

Penha

1.206

1.337

1.883

2.283

2.209

1.128

N. Sra. Do Ó

1.759

2.030

2.023

2.750

2.161

2.350

Consolação -

-

3.357

8.269

13.337

21.311

TOTAL

12.256

15.471

23.243

44.030

64.934

129.409

Fonte: TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., pp. 91 e 112; e MORSE, op. cit, p. 238. Uma das pessoas que possuíam chácara na várzea do Tamanduateí, era o negociante

português José Brás que teve seu nome citado em trechos de atas municipais de 1769, como o que reportamos:

Se despacham várias petições que concorreram das partes, e na mesma se passou um

mandato dos moradores do Pari fazerem as pontes que ficam entre o caminho de José Brás até a Chácara do Nicolau.38

O citado “caminho de José Brás” tornou-se, posteriormente, “Rua do Brás” e, hoje,

Avenida Rangel Pestana. Deduz-se, portanto, que o nome do Bairro tenha daí se originado. Entretanto, o incremento populacional da “cidade imperial” só iria acontecer a partir de

meados do século. É sintomático que, nesse período, houve um aumento do número de alunos que se formavam na Academia de Direito, hoje do Largo São Francisco, pulando de 32, em 1855, para 48, no ano seguinte, e saltando para 111, oito anos depois, o que reforçar-lhe-ia o epíteto de “burgo de estudantes”. Nota-se também, que, naqueles anos, houve um aumento significativo da produção jornalística o que chama a atenção para a existência de uma camada

37 Entre as que serviam de moradia permanente, estava a chácara Bresser, que pertencia ao engenheiro Carlos A. Bresser. Também

havia a chácara do Ferrão, na esquina da rua do Brás com a da “Figueira”, e que pertencera à D. Domitília de Castro do Canto e Melo, a Marquesa de Santos. Cf. SESSO JÚNIOR, Geraldo op. cit., pp. 33 e 45.

38 Idem, p. 35.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

25

social escolarizada e ávida por informação. Talvez, por isso, algumas décadas anteriores Giovanni Battista Libero Badarò tenha se interessado tanto pelos paulistanos de então. Não há dúvida que o universo da produção intelectual exerceu um papel importante na afirmação urbana da Capital provincial, como expressou, então, a um amigo um viajante estrangeiro:

[São Paulo, (26 de junho de 1855)] (...) Sinto por São Paulo um respeito mais profundo

do que por qualquer outra cidade sul-americana que já tenha visitado (...) Meus sentimentos de respeito, entretanto, provém, não do tamanho da cidade, nem de seu pitoresco, mas do ar mais intelectual e menos comercial do que em qualquer outra parte do Brasil, e que paira sobre o povo. (...)39

Voltando ao aspecto populacional, é importante frisar que: enquanto em 1855, a cidade

crescia 26,23%, passando dos 12.256 anteriores para 15.471 habitantes, o Brás já saltava para um crescimento de 47,79%, alcançando, em termos absolutos, a cifra de 974 moradores, o que representou a maior alta entre todos os bairros da cidade.

Cresciam também as atividades agrícolas no interior e isso forçou, em 1856, a abertura

na cidade de São Paulo de uma agência do Banco do Brasil e, em 1859, de uma do “Banco de São Paulo”.40

Se a Capital provincial se transformava com o crescimento da agricultura, o Brás da

época também parece sofrer algumas transformações. Um outro viajante estrangeiro que por ali passava, vindo do Rio de Janeiro, em 1861, deixou registradas suas impressões sobre esse Bairro. Seu testemunho nos chama a atenção sobre alguns dos aspectos peculiares da, ainda, vida bucólica de uma boa parte de seus moradores. Vejamos o que ele nos diz:

(...) É um dos arrabaldes mais belos e concorridos da cidade, já notável pelas elegantes

casas de campo e deliciosas chácaras onde residem muitas famílias abastadas, ao lado, todavia, de alguns casebres e ranchos menos aristocráticos, mas que nem por isso deixam de formar um curioso contraste.41

De fato, tratava-se de impressões que, a partir de uma primeira leitura daquela

realidade, não poderia sugerir senão uma certa imobilidade estrutural. Sabemos, entretanto, que estava em curso no Brás um crescimento populacional superior ao da cidade de São Paulo. Algo estava se movendo. A observação da existência de casebres e ranchos menos aristocráticos, destoando da paisagem romântica oferecida pelas casas de campo e deliciosas chácaras, revela-nos a presença de um outro segmento social importante no Bairro daquela época e, certamente, responsável pelo aumento significativo de sua população: os trabalhadores. Viviam em casas de taipa e pau-a-pique. Eram brancos pobres, negros e mamelucos, descendentes dos antigos índios tupis que povoaram o “Terreiro do Pátio”. Dedicavam-se a pequenas lavouras, que produziam toda sorte de hortaliças e frutas, e serviam, como caseiros, às famílias ricas que detinham propriedade na área. Outros trabalhavam nas pequenas indústrias caseiras e oficinas de artesanato que, aos poucos, se disseminaram pelas chácaras do Brás. Uma fábrica de licores, outra de cerveja, outra, ainda, de bebidas, outra mais de estribos e caçambas. Havia também oficinas para conserto de equipamentos para charretes e carrinhos de tração animal. Por trás da beleza paisagística e do contraste social, o Bairro transformava-se.42

Queremos, entretanto, voltar a essa população pobre residente no Brás, anterior à

imigração, composta quase que exclusivamente por brasileiros pobres. Ela sempre existiu e continuaria a existir nas décadas seguintes. Os “brasileiros” tenderam, contudo, a ralear no 39 Para o parágrafo precedente, ver. MORSE, Richard M. op. cit., pp. 131-132. Para a citação, Cf. KIDDER, Daniel P. &

FLETCHER, J. C. Brazil and the Brazilians. Apud MORSE, Richard M. op. cit., p. 146. 40 Idem, p. 193. 41 ZALUAR, Augusto Emílio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861). Apud TORRES, Maria Celestina Teixeira

Mendes op. cit., p. 88. 42 Idem, p. 105.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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Bairro. Entre estes, porém, um grupo deve ser destacado: os negros. É importante frisar que sua presença era, então, muito distinguida por tratarem-se ainda de escravos ou de recém-libertos e por estarem, ainda, vinculados ao trabalho em terras alheias. Suas vidas, conseqüentemente, eram de extrema pobreza.43

A visibilidade desse segmento étnico-cultural era notada, sobretudo, nas festas

religiosas de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, quando, em pequenos grupos, reuniam-se em torno de fogueiras para comemora-las. Ou quando promoviam batucadas e congadas que varavam a noite, e, às escondidas, exercitavam o jogo da capoeira, oficialmente vetado. Sua existência, como grupo racial e cultural distinto, fazia-se presente na primitiva festa carnavalesca, onde se dançava de fato o entrudo. O carnaval, propriamente dito, só apareceria a partir de 1857.44

Contudo, a chegada, três décadas depois, da massa dos imigrantes, sobretudo italianos,

mudou radicalmente a configuração populacional do antigo Brás, empurrado esse contingente de trabalhadores nacionais pobres - principalmente os negros - para outras plagas mais distantes. É muito esclarecedor o que diz seu Amadeu Bovi, que remoendo suas lembranças sobre aquele Bairro no início do século, nos chama a atenção para esse assunto, quando diz que:

Pretos, no Brás, tinha muito pouco. A maior parte eram descarregadores de sacos lá no

Mercado Pequeno (...) Nós não sabíamos onde moravam aqueles pretos. Deviam morar longe, no Alto da Moóca, Alto do Ipiranga. Eram lugares longe, descampados, onde a turma tinha um terreninho, depois do Monumento. (...) A maioria dos pretos descarregavam sacos. Naquele tempo, no Brás só havia 1% de pretos.45

A respeito do trabalho que a sociedade paulistana reservaria aos negros, logo depois de sua “libertação” dos vínculos escravistas, assim escreve Morse:

Os ex-escravos que vinham em grandes quantidades das fazendas habitavam muitas

vezes casebres miseráveis, trabalhando mediante salários ínfimos em serviços como a coleta de lixo, que os brancos consideravam indignos.46

Ferreira dos Santos mostra-nos, através de dois quadros (VI e VII) que, para uma

população paulistana de 64.934 pessoas, havia, em 1890: 4446 negros (6,85%); 888 caboclos (1,37%); e 6396 mestiços (9,85%). Juntos somavam 11.730 pessoas o que representava um percentual de 18,07% do total. Dados de 1893 demonstram que o conjunto da população brasileira não branca apesar de ter crescido em termos absolutos, passando para 15.049 pessoas, decresceu relativamente, baixando para o patamar dos 12,46% do total (120.775 habitantes). Naquele ano, os negros eram 490 (0,41%); os caboclos 8639 (7,15%); os pardos 5920 (4,90%). Nota-se uma mudança na nomenclatura de classificação e, com isso, a redução drástica do número de negros e uma elevação incompreensível de caboclos.47

A segunda metade do século XIX viu, portanto, a cidade e o Brás passando por uma

rápida mudança. São Paulo deixaria o ar provinciano e acadêmico da metade anterior e o Bairro

43 Morse afirma que: “Os ex-escravos que vinham em grandes quantidades das fazendas habitavam muitas vêzes casebres

miseráveis, trabalhando mediante salários ínfimos em serviços como a coleta de lixo, que os brancos consideravam indignos.” E, mais adiante, cita o “Diário Popular”, de 30 de abril de 1892, quando dizia que: “Raros, muitos raros, são os mendigos pretos que se encontraram nesta cidade.” MORSE, Richard M. op. cit., p. 242.

44 Ver. SESSO Jr., Geraldo op. cit., p. 53. Jacintho Silva citava explicitamente, em 1924, o carnaval do Brás como uma das festas mais significativas comemorada pela população ali residente. Cf. SILVA, Jacintho op. cit., p. 75. Cenni escreve que: “Houve tempo também, em que o carnaval do Brás ficou sendo dos mais famosos.” CENNI, Franco Italianos no Brasil. São Paulo, 2 ed., fac-similar comemorativa do Centenário da imigração Italiana no Brasil, 1875-1975, Martins - Ed. da USP, 1975, p 233.

45 BOSI, Ecléa op. cit., p. 144. 46 MORSE, Richard M. op. cit., p. 242. 47 Cf. SANTOS, Carlos José Ferreira dos Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo, Annablume, 1998, p.

39.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

27

começaria a alterar suas paisagens rurais, moldando-as segundo as formas suburbanas das paradigmáticas metrópoles européias, próximas às que conhecemos hoje. 44.. OO BBrrááss iinntteeggrraa--ssee aaoo ggrraannddee mmeerrccaaddoo

Nesse sentido, um acontecimento viria revolucionar a vida econômica e social do Brás e acelerar esse processo de transformação. No dia 6 de setembro de 1865, foi inaugurada a estação ferroviária do Brás, por onde passariam os trens da “São Paulo Railway Company” (S.P.R.), empresa que exploraria a concessão estatal.

A sociedade empresarial havia sido formada, no ano anterior, na Capital inglesa pelo,

então, Barão de Mauá e seus sócios estrangeiros.48 Junto com um terminal, instalou-se também no Brás a principal oficina da ferrovia que aparece nos mapas da época (ver Anexo 01). A estrada passou a ligar a Capital (Estação da Luz) à cidade portuária de Santos. Com sua instalação, ampliam-se as condições para a industrialização do Bairro, na medida em que aquela via férrea permitiria uma melhoria considerável no fluxo de mercadorias (produtos), e, simultaneamente, na circulação e transporte de força de trabalho, tornando-a disponível às áreas de demanda (inicialmente à cafeicultura e depois também à indústria), ambas condições essenciais para o desenvolvimento e a reprodução do capital. Não é por menos que, alguns anos mais tarde (1886), inaugurar-se-ia, justamente em suas proximidades, uma estação privativa para a Hospedaria dos Imigrantes.49

A chegada da ferrovia produziria um intenso processo de urbanização nas imediações

das instalações localizadas no Brás e nas demais localidades beneficiadas com a construção de terminais de cargas e passageiros. Já observamos, no tópico anterior, que várias unidades fabris se instalaram, ao longo da ferrovia bem nas proximidades das respectivas estações, pelas facilidades que estas ofereciam. Iniciativas assim criaram à margem da malha ferroviária de transportes uma rede de construções industriais hoje, ainda, tão visíveis quando se faz o caminho pela Companhia Paulista de Trens Metropolitanos que liga o centro de São Paulo a cidades do ABCD paulista.

Portanto, a importância da ferrovia Santos-Jundiaí para a industrialização e a incorporação do Brás nesse intenso circuito de deslocamento (exportação/importação) de mercadorias e força de trabalho pode ser medido pelos números oferecidos pela própria S.P.R. que transportou 68.433 toneladas de carga (mercadoria-produto), em 1870; 177.482, em 1880; e 607.809, em 1890. Podemos, portanto, observar que no, prazo de uma década (1870-1880), o 48 Os técnicos britânicos contratados para executar a obra conseguira, em 16 de fevereiro de 1867, fazer os trilhos alcançarem

Jundiaí, estação final da ferrovia. A estrada cobriu 139 km., ligando Santos àquela cidade. Cf. MORSE, Richard M. op. cit., p. 206. Como se pode observar, a presença de capitais ingleses (nesse caso “associado”) no processo de “modernização” da cidade de São Paulo é preponderante. Já, em 1851, o representante do governo norte-americano de então, James Watson Webb, assim se expressava a respeito: “A Inglaterra fornece todo o capital necessário para melhoramentos internos no Brasil e fabrica todos os utensílios de uso ordinário, de enxada para cima, e quase todos os artigos de luxo, ou de necessidade, desde o alfinete até‚ o vestido mais caro. A cerâmica inglesa, os artigos ingleses de vidro, ferro, madeira, são tão universais como os panos de lã e os tecidos de algodão. A Grã-Bretanha fornece ao Brasil seus navios a vapor e a vela, calça-lhe e drena-lhe as ruas, ilumina-lhe a gás as cidades, constrói-lhe as ferrovias, explora-lhe as minas, é seu banqueiro e levanta-lhe as linhas telefônicas, transporta-lhe as malas postais, constrói-lhe as docas, motores, vagões, numa palavra - veste e faz tudo, menos alimentar o povo brasileiro." CASALECCHI, José Ênio A proclamação da República. São Paulo, Brasiliense, 1981, pp. 26-27. Sobre o papel desses equipamentos industriais, importados pelos países periféricos da metrópole capitalista, e seus efeitos na economia local, assim escreve Gunder Frank: "A rede ferroviária ou a de eletricidade, longe de ser uma rede, era radial e ligava o interior de cada país e algumas vezes de vários países com o porto de entrada e saída, o qual por sua vez estava ligado à metrópole." FRANK, André Gunder Acumulação dependente e subdesenvolvimento – repensando a teoria da dependência; Trad. Cláudio Alves Marcondes. São Paulo, Brasiliense, 1980, p. 205.

49 Cf. MORSE, Richard M. op. cit., p. 229. Holloway afirma que o binômio vapor-ferrovia, que tanto beneficiou a expansão cafeeira paulista. Esses avanços tecnológicos haviam surgido na Europa e serviram “aos propósitos europeus em consonância com os das elites dependentes na periferia. (...) A navegação era a linha vital, o cordão umbilical que tornava possível, para São Paulo, a participação na economia mundial. Os navios traziam trabalhadores das fontes da Europa Meridional. O complemento terrestre da navegação transatlântica era a estrada de ferro, ligando o interior à costa. (...) Os 139 quilômetros que partiam do porto de Santos pela escarpa costeira acima, atravessando a Capital e colinas nevoentas até a borda da área produtora de café, foram construídos por engenheiros britânicos, financiados e controlados por capitalistas também britânicos. Os brasileiros apelidaram essa linha, pequena mas altamente rentável, de A Inglesa.” HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café: café e sociedade em São Paulo, 1886-1934; trad. de Eglê Malheiros. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, pp. 21-22.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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transporte de mercadorias mais que duplicou (159%) a quantidade de peso inicialmente carregado. No final da década seguinte (1890), transportou 3,42 vezes mais (242%) que o fizera no início do período anterior. No que tange o transporte de passageiros (a maioria deles: trabalhadores) não foi menos significativa: 75.399 pessoas, em 1870; 130.584, em 1880; e 422.355, em 1890. A progressão, nesse caso, ainda que tenha sido menor do que a de carga, foi também expressiva, chegando o contingente humano trasladado, no início da década de 1890, ser por volta de 3,23 vezes superior, ou 223%, do total do início da década de 1880. Crescimento visivelmente espetacular se o tomarmos sob o enfoque do transporte de valores, em termos monetários (incluindo mercadorias e passageiros). A “São Paulo Railway Company” transportou o equivalente a 1.187:425$106 (mil, cento e oitenta e sete contos, quatrocentos e vinte e cinco mil, cento e seis réis), em 1870; 2.577:730$530 (dois mil, quinhentos e setenta e sete contos, setecentos e trinta mil, quinhentos e trinta réis), em 1880; e 4.007:503$800 (quatro mil e sete contos, quinhentos e três mil, oitocentos réis), em 1890. Isto significou que os valores transportados no início da década de 1870 multiplicaram-se por 3,37 vezes (237%) para alcançar os totais de 1890. A partir desse quadro, podemos entender porque, durante essas três décadas, empresas têxteis de grande porte, como já citamos, foram-se instalar exatamente na várzea do Tamanduateí, ao lado dos trilhos da ferrovia que por ela corria. Um funcionário italiano, encarregado de informar seu governo a respeito das condições dos imigrantes no Brasil, em visita oficial ao Estado, na primeira década do século, assim se manifestou a respeito do intenso tráfego de homens e mercadorias facultado pela rede ferroviária paulista: Dal porto di Santos (...) le merci di importazione salgono a San Paolo dove, insieme alle merci di produzione indigena, costituiscono l’emporio commerciale dello Stato. Da San Paolo irradiano i commessi viaggiatori delle grandi case ed i mascati, merciai ambulanti, che percorrono il paese di villaggio in vilaggio arrivando fino ai cascinali ed ai ranchos in aperta campagna con una abilità e pertinacia di intenti di cui gli italiani furono maestri, fino a che non furono superati dagli armeni e dai siriaci.50

A intensa urbanização nos moldes francamente europeus, segundo opção deliberada da burguesia e políticos locais, requer serviços a eles compatíveis. Em 1872, a concessionária São Paulo Gás Co. Ltd., ainda uma empresa londrina que instalou sua sede na Rua do Gasômetro, no Brás, substituiu os lampiões a querosene das ruas pela iluminação a gás.51

Um fato que merece relevo para entendermos como a importação de parâmetros urbanos e industriais não se deu apenas pelas classes dominantes, é que, alguns anos mais tarde, a presença de técnicos e trabalhadores ingleses, empregados nessa companhia, daria ao Bairro uma característica bem peculiar, sobretudo no que se refere ao lazer das classes populares: o amor pelo futebol. Nos intervalos do almoço, os operários e técnicos britânicos organizavam o que vulgarmente se convencionou chamar de “peladas”. Essas partidas improvisadas contagiaram seus colegas italianos e nacionais. Como se sabe, esse jogo tem origem britânica e se difundiu amplamente entre os trabalhadores industriais não só da Inglaterra, mas também em países industriais de segunda geração, como a Bélgica e a Alemanha.

Essa relação entre operários e futebol, inicialmente desenvolvida na Europa e, graças

aos trabalhadores ingleses da “Companhia de Gaz”, depois, também no Brasil, era repleta de simbolismos: cores, bandeiras, hinos, enfim, unindo as velhas tradições coreográficas com a coletivização forçada da sociedade industrial. As equipes originais preservavam, no início, nomes em inglês: “The Team do Gaz”, “The S. P. Railway Team”, “São Paulo Athletic”, “Mackenzie College”, etc. Malgrado a terminologia, como já dissemos, essa “paixão” foi

50 Rapporti dell’ingegniere Silvio Coletti (Reale Ispettore viaggiante dell’emigrazione al Brasile) Lo Stato di S. Paolo e

l’emigrazione italiana. In MINISTERO DEGLI AFFARI ESTERI – COMMISSARIATO DELL’EMIGRAZIONE Bollettino dell’emigrazione. Roma, Cooperativa Tipografica Manuzio, no. 14, 1908, p. 1.676.

51 MORSE, Richard M. op. cit., pp. 244-245.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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adotada com suas peculiaridades próprias também pelos trabalhadores locais. Prova disso, foi a quantidade de campos de futebol que se proliferou na várzea do Brás e bairros circunvizinhos, ocupando todos os terrenos baldios e atraindo a atenção de multidões proletárias que, aos domingos e feriados, lotavam e transformavam esses espaços em áreas públicas de lazer, antes do advento das grandes agremiações (o “Palestra Itália”, por exemplo), ou os grandes estádios paulistanos.52

Apelamos outra vez à memória do Sr. Amadeu Bovi que, através de suas lembranças,

nos diga o que o futebol representou para a vida dele e dos trabalhadores do Brás, no início do século:

(...) o Parque D. Pedro, onde está o Palácio 9 de Julho (...) antes, o lugar era o nosso

campo de futebol, de um clube chamado Torino. (...) Comecei a jogar com nove anos. Naquele tempo tinha mais de mil campos de várzea. (...) Se nós vamos procurar na memória quantos jogadores da várzea, de uns quarenta anos faz, tinha mais de 10 mil jogadores. Aquele tempo era uma coisa! Cada campo tinha um clube; a maior parte dos campos eram dados pelos donos para o lugar progredir, popularizar. (...) Quando tinha um clube, vinha o progresso. No domingo vinham 2 mil pessoas assistir, e começava o comércio, o progresso. (...) Meu tempo de juventude foi muito empregado no esporte; organizava jogos, escalava os times, dava notícias para a Gazeta. Dirigi o Clube São Cristovão aí do Brás, composto de vendedores de jornal.53 A “Várzea do Carmo” receberia, em 1873, algumas obras de drenagem e retificação, com vistas a minorar a situação das populações ribeirinhas ao Tamanduateí. Urbanizou-se, então, uma pequena área de lazer público que ficou conhecida como “Ilha dos Amores”, mas somente no final do século (1899) o rio seria totalmente remodelado, inclusive com uma de suas vertentes totalmente canalizada. Com isso, os portos ribeirinhos foram sendo extintos.54

Outra importante obra de infra-estrutura industrial completou-se alguns anos depois. Em 1877, foi inaugurada a Estação do Norte que passou a ligar a cidade de São Paulo, pela Estrada de Ferro do Norte (depois Central do Brasil – vide Anexo 01), ao Rio de Janeiro, Capital imperial. Com a implantação desse novo veículo de pessoas e produtos, uma gama infindável de construções se ergueram nas ruas próximas da estação. Os imigrantes de Schio que desembarcaram nos portos do Rio de Janeiro fizeram o trajeto até São Paulo por essa ferrovia.55

Com os dois terminais ferroviários, que posteriormente seriam ligados também a outras

áreas da cidade e ao interior do Estado, formara-se, bem dentro do território do Brás, uma infra-estrutura industrial sem precedentes, capaz de atrair e impulsionar empresas dos mais diferentes setores.

52 TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., p. 116. Segundo os dados publicados pela Sociedade Promotora da

Imigração, em 1892, 782 ingleses entraram pelo porto de Santos, entre 1882-1891. Esse fluxo esteve relacionado, de alguma maneira, à presença de empresas inglesas na construção de infra-estrutura industrial e urbana na cidade de São Paulo. Cf. MORSE, Richard M. op. cit., p. 241. Cf. tb. CENNI, Franco op. cit., p. 242.

53 BOSI, Ecléa op. cit., pp. 132,137 e 138. No comentário à foto de J. Xavier, onde meninos jogam futebol em plena rua do bairro, escreve Jorge Wilheim, em 1965: “Uma ‘pelada’ no Brás; é inacreditável a escassez de pequenos campos de futebol, num país em que êste esporte tem predominância na recreação urbana!” Cf. WILHEIM, Jorge op. cit.,entre as pp. 64-65.

54 Ver. SESSO, Jr., Geraldo op. cit., p. 37. 55 Falando para turistas que visitavam São Paulo, no início da década de 1920, sobre a importância da Estação do Norte como eixo

ferroviário não só para os que desejavam embarcar para a Capital federal, mas também para os bairros setentrionais da cidade, Jacintho Silva assim escrevia: “(...) é o ponto de embarque e desembarque para os trens mixtos para o Rio de Janeiro e para os suburbios do norte de São Paulo, servidos pela E. F. Central do Brasil.” SILVA, Jacintho op. cit., p. 19. Outro texto alusivo à implantação desse trecho ferroviário afirma, também, que: “Um dos fatos mais importantes na história do desenvolvimento da ferrovia no Brasil foi a ligação Rio-São Paulo, unindo as duas mais importantes cidades do País. Ela se realizou no dia 8 de julho de 1877, na cidade de Cachoeira Paulista, quando os trilhos da Estrada de Ferro São Paulo, inaugurada em 1867, se unificaram com os da E. F. D. Pedro II.” Cf. http/www.ferrovia.com.br/historia.htm, p. 1, 1998.

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55.. OO ssaallttoo ddeemmooggrrááffiiccoo ee aa cchheeggaaddaa ddooss iimmiiggrraanntteess

Essas condições fariam, nas três décadas e meia seguintes (1855 a 1890), o Bairro ver multiplicados seus mirrados 974 habitantes iniciais para um total de 16.807, no final. O aumento aí alcançado foi de 17,25 vezes ou, em termos relativos, de 1625%. Se diluirmos esse número ao longo dos anos que compõem o período aludido, chegamos à conclusão que sua população cresceu na média de 826 pessoas por ano. A imensa maioria dela, originária de fora. Podemos imaginar, a partir dessas cifras, o que esse incremento populacional representou para os moradores do Brás daquela época. E, mais, o que essa avalancha humana de dimensões astronômicas, recém-chegada, teria causado nas já precárias condições de vida de seus habitantes, visto que o Bairro não possuía o mínimo de infra-estrutura urbana suficiente para abrigar de forma decente toda esse extraordinário contingente. A incorporação abrupta desses novos moradores fez, no início da última década do século, o Brás atingir o patamar dos 16.807 habitantes, alcançando, sozinho, mais de um quarto (25,9%) da população paulistana.

Para se ter uma idéia da grandiosidade dessa elevação, observemos, ainda, que, naquelas mesmas décadas, a cidade de São Paulo inteira havia crescido 319%, ou 4,19 vezes, passando de uma população de 15.471, no começo, para 64.934, no final do período. Daí, podemos aferir que, tanto em termos absolutos quanto relativos, não há como se comparar o crescimento populacional alcançado pelo Brás e pelos demais distritos paulistanos. Para exemplificar, o da Sé, já bastante habitado em 1855 (7484 hab.), cresceu 2,19 vezes (119%), enquanto o de Santa Ifigênia, que alguns anos depois ultrapassaria o Brás em número de habitantes, teve um crescimento correspondente de 3,84 vezes (284%).

Que fatores estariam por trás dessa nova alavancagem demográfica? A partir de meados do decênio 1880-1890, o Bairro do Brás, então, já notabilizado pelo grande eixo ferroviário e pelo significativo e diversificado parque industrial, passou a apresentar um crescimento constante e ainda maior graças à afluência e permanência maciça de imigrantes, italianos em testa, no recinto da Hospedaria do Brás.

Sob o patrocínio da Sociedade Protetora da Imigração, instituição formada por grandes cafeicultores, interessados na captação de força de trabalho imigrante, foi iniciada a construção, em 1886, do grandioso prédio da “Hospedaria dos Imigrantes”. O novo edifício viria a substituição o anterior, localizado no Bom Retiro e longe das ferrovias já implantadas. Fora adquirido pelo Estado em 1881, porém, sua limitada capacidade (cabiam apenas 500 pessoas no recinto) e parca dimensão, tornaram-no obsoleto para acolher e atender à grande demanda daquele momento. O novo e majestoso edifício que ocupava quase um quarteirão, foi inaugurado no ano seguinte, no final da Rua Visconde de Parnaíba, sob o no. 236, ao lado da S. P. Railway no Brás, e tinha a capacidade para abrigar por volta de 4 mil imigrantes/dia. Para facilitar-lhe o acesso, construíram a seu lado uma miniestação ferroviária para desembarcar os passageiros vindos do porto de Santos (vide Anexo 01 e 02).

No projeto original, o recinto era dotado de dormitórios, que ficavam no andar superior.

Havia cozinhas e refeitórios, uma enfermaria, uma lavanderia, um dispensário médico, uma casa de câmbio e escritórios no piso térreo. Havia, ainda, um recinto à parte onde se davam os encontros entre os trabalhadores imigrantes e os fazendeiros ou seus representantes. Os recém-chegados, no início do funcionamento da Hospedaria, podiam alojar-se gratuitamente por uma semana, enquanto definiam seus destinos.56

56 Cf. MORSE, Richard M. op. cit., p. 223. O guia elaborado por Jacintho Silva afirma, a respeito, que: “Os immigrantes, ao chegar,

e depois de preenchidas todas as formalidades regulamentares do estabelecimento, recebem cartão de rancho para si e sua família, que lhes dá direito á permanencia na hospedaria durante seis dias para se collocarem. Só nos casos de força maior, poderão permanecer por mais tempo.” SILVA, Jacintho op. cit., p. 267.

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O primeiro objetivo da construção desse imenso alojamento foi, portanto, permitir que a força de trabalho imigrante estivesse sempre - num único e mesmo lugar na Capital do Estado - à portada de mão dos fazendeiros interessados, poupando-os do desprazer de uma procura desordenada e incerta. O jornal “O Estado de São Paulo”, em sua edição de 16 de maio de 1891, informava que 16 fazendeiros contataram, na véspera, 206 imigrantes (famílias e avulsos) no interior da Hospedaria. Na edição de 17 dias depois, em 2 de junho, o mesmo diário divulgava que outros 79 fazendeiros haviam contatado, no dia anterior, 292 dos pais de família e avulsos ali alojados.57

Para facilitar ainda mais os contatos, construíram-se, posteriormente, outras pequenas

hospedagens nas cidades do interior. Sabe-se da existência de hospedarias em Santos, Ribeirão Preto, São Bernardo e Guaratinguetá.58

Aglomerados todos num mesmo recinto, os trabalhadores eram ali abordados pelos

interessados para que anuíssem às propostas de contratos que lhes eram oferecidas. Esses entendimentos demorados poderiam custar dias de conversa o que sugere a constante presença de agenciadores naquele local. A Hospedaria, portanto, além de concentrar a força de trabalho, tornou-se também um importante entreposto de negócios, onde o principal deles era sua compra-e-venda.59

Do ponto de vista oficial, somente depois de acertados os contratos com os diretamente

interessados ou seus representantes é que os trabalhadores recebiam a autorização para abandoná-la.60 É importante considerar que, sendo a maioria dos imigrantes desconhecedora da língua ou quase nada dos costumes da terra, com muita dificuldade se atrevia a deixar a Hospedaria, onde permanecia até ser encaminhada aos locais de trabalho.

Entretanto, outros imigrantes não interessados em vincular-se às atividades rurais, mais

afoitos e curiosos, na ânsia de conhecer o que lhes oferecia a cidade, saíam às ruas, muitas vezes escapando ao rígido controle dos seguranças do prédio. Eram, muitas vezes, imediatamente procurados por indivíduos sem escrúpulos que rondavam aquele edifício à procura de incautos estrangeiros - e, lhes ofertavam, em troca de pequenos pagamentos, ilusórias vantagens. Outros, ainda, eram aliciados para empregos diversos: operários têxteis, engraxates, vendedores ambulantes de sapatos, funilaria e ferragens, etc. Muitos, com isso, iriam permanecer na Capital. Um documento de 1890 nos revela como era já expressiva, naquele período, a presença desses imigrantes no Brás. Com data de 29 de dezembro, vários moradores do Bairro encaminharam às autoridades municipais um “abaixo-assinado” solicitando a confecção de guias e sarjetas na Rua D. Maria Domitila. Dentre as 30 assinaturas que se seguiram, observa-se que 10 são de nomes italianos.61 Mas voltemos nossos olhos à Hospedaria. A respeito dela, falaram também os próprios imigrantes. Os registros que deixaram, testemunham as reais condições logísticas aí encontradas: ausência de acomodações apropriadas, falta de higiene, má qualidade da comida servida e ineficiência no atendimento médico. Daí, entendem-se os protestos e revoltas manifestos, às vezes com violência, durante aquele período. Nos primeiros anos de seu

57 OESP - no. 4862, de 16 de maio de 1891, p. 2; e no. 4876, de 02 de junho de 1891, p. 2. 58 Sobre esta última, cf. OESP - no. 5067, de 27 de janeiro de 1892, página de rosto. 59 Algumas décadas depois, pode-se ter uma idéia do que aí se passava, lendo as palavras do vice-consul italiano, escritas em 1915,

quando diz que: “(...) o colono (assim que desembarca) encontra seu primeiro asilo na ‘hospedaria dos imigrantes’ (...). Essa é a primeira etapa. Aqui contata seu primeiro engajamento.” HALL, Michael Contra a imigração. In Trabalhadores: Publicação mensal do Fundo de Assistência à Cultura. Campinas, Secretaria da Cultura, Esportes e Turismo, 1989, p. 37. “Nas palavras de Esmeralda Blanco: “São Paulo assume, então, a função de verdadeiro ‘entreposto humano’ onde o fazendeiro, informado ‘do número de trabalhadores disponíveis e da sua qualidade’, contrata, pessoalmente ou através de seus ‘genros e filhos, encarregados por escrito’, os imigrantes que, alojados na Hospedaria do Brás, aguardam, ansiosos por melhores condições de vida, o momento de se dirigir para os cafezais.” DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores no trabalho industrial: os fatores sexo e idade na dinâmica do capital. Petrópolis, Vozes, 1982, p. 14.

60 Ver. MARTINS, José de Souza O Cativeiro ... op. cit., p. 126. 61 Cf. SESSO Jr., Geraldo op. cit., p. 87 e ver tb. MORSE, Richard M. op. cit., pp. 238-239. Para o documento: cf. AHMSP: Papeis

Avulsos (1891) vol. 1 (P. AV. 607), pp. 33-34.

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funcionamento, a Hospedaria não possuía camas para seus hóspedes. Os imigrantes dormiam todos no chão dos dormitórios. Cada família ao ingressar nela, recebia emprestado, por pessoa, apenas uma pequena esteira para se acomodar. As latrinas eram em número limitado, insuficientes para tanta gente. No pátio interno, havia somente uma torneira e tina para que pudessem ali beber água e lavar-se.62

A situação agudizou-se com a chegada das grandes levas subsidiadas nos anos iniciais da década de 1890. Os imigrantes queixavam-se, sobretudo, da superlotação daquelas dependências que, em alguns momentos, teriam chegado a acolher de 10 a 11 mil pessoas. Na edição de 2 de junho de 1891, o jornal “O Estado de São Paulo” publicava que no dia anterior estavam no recinto da Hospedaria 5069 imigrantes e que naquele dia a estimativa era que lá estivessem 4878 hóspedes.63

Os trabalhadores se acotovelavam num espaço com capacidade para, no mínimo, um

contingente três vezes menor de pessoas. Somando a falta de acomodações adequadas e essa proximidade promíscua, o resultado era a explosão coletiva de ódio e descontentamento. Com muita freqüência, nos dizem os relatos, o nervosismo reinante entre as pessoas levava-as a se agredirem mutuamente de todas as formas, tornando sua convivência insuportável. 66.. AA HHoossppeeddaarriiaa ddoo BBrrááss nnaass ppaallaavvrraass ddooss iimmiiggrraanntteess

Assim se expressava o imigrante Giovanni Polese, desde São Carlos do Pinhal, lembrando-se da passagem pela Hospedaria, em carta escrita a seus parentes na Itália, com data de 8 de fevereiro de 1889:

In migrazione a San Paulo sono 11 mile emigranti e dorme per tera, fissi come le

formige, e mangia male e fanno maledizioni, luomo maledisse la dona e la dona maledisse luomo. E tanti vende il suo per venire inel Brasile, e poi si trovano male e restano inganati.64 A frase de Holloway é, a esse respeito, extremamente perspicaz quando afirma que: Os imigrantes eram, muitas vezes, tratados mais como gado do que como gente, enquanto se processava a entrada, o contrato e, finalmente, a saída.65 Outra grande reclamação dos internados referia-se à qualidade da comida que lhes era servida. Imagina-se que, em se tratando de uma maioria de italianos, a exigência de uma boa alimentação sempre estava na ordem do dia.

A comida, preparada ininterruptamente para uma multidão só poderia ser padronizada, segundo o cardápio trivial brasileiro, cujo paladar se diferenciava bastante do gosto europeu, o que lhes deveria provocar ainda maior repugnância. Entretanto, parece que o grande problema quanto à alimentação estava mais na quantidade do que era oferecido e nas restrições estabelecidas para sua distribuição, prejudicando, principalmente as crianças. Segundo Holloway:

As [crianças] de sete até onze anos de idade recebiam metade da ração alimentar de um

adulto; as de três a seis anos recebiam um quarto da ração; e as de menos de três anos nada recebiam, a não ser o que com elas suas famílias podiam dividir.66

62 Cf. HOLLOWAY, Thomas H. op. cit., pp. 86-88.

63 OESP - no. 4876, de 02 de junho de 1891, p. 2. 64 FRANZINA, Emilio Merica! Merica! Emigrazione e colonizzazione nelle lettere dei contadini veneti in America Latina: 1876-

1902. Milano, Feltrinelli, 1979, p. 159 (Lettera di Giovanni Polese, São Carlos do Pinhal, 8 febbraio 1889 – Fonte: Cronaca Americana, in “Il Contadino”, no. 6, 31.03.1889).

65 HOLLOWAY, Thomas H. op. cit., p. 88. 66 Idem. No edital para “Fornecimento de rações diárias aos immigrantes recolhidos ás hospedarias da Capital e de Santos”,

publicado no “O Estado de São Paulo”, de 25 de dezembro de 1891, lê-se que: “1º. As rações ordinárias dos immigrantes

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O descontentamento, como já dissemos, transformava-se, continuamente, em revolta.

Tanto que, várias das correspondências citam ou fazem alusão às diversas rebeliões ocorridas dentro da Hospedaria, por causa da precária alimentação. Esses levantes ocorreram, principalmente, no final dos anos 80. Exatamente a dia 25 de janeiro de 1889 aconteceu um desses motins. Giuseppe Manzoni, então, presente, assim o descreveu:

Vi dirò che il 25 gennajo alla casa di emigrazione fezze Rivoluzione, portò fuori tutto

quello che si trovava in cusina, rebaltò tutto nella corte: minestra, carne, pane, tutto fuori per le finestre. Scampavano tutti li impiegati, cuochi, patroni; pestò tutto, lastroni, piatti insomma favano paura in mille persone. I militari hanno restato un pochi e condotti in prigione: allora si hanno quiettatti. (...)67 As condições de atendimento médico-sanitária também eram denunciadas. Os imigrantes e, em especial, as crianças e velhos, que já saíam da Itália subnutridos, chegavam exaustos, depois da longa travessia atlântica e da viagem de trem entre Santos e São Paulo. Pelos relatos, pode-se deduzir que a “Sociedade Protetora da Imigração”, pelo menos nos primeiros anos de funcionamento da Hospedaria, não equipou-a suficientemente para atender às freqüentes e volumosas emergências.

Algumas cartas testemunhas são dramáticas. Aludiam sem cessar à expressiva mortandade de crianças recém-chegadas. A propósito, escrevia o imigrante Bortolo Rosolen, numa de suas cartas:

Finalmente doppo 26 giorni siamo disbarcati a Santos ove si aspettava di dare sazietà

al nostro respiro, per sentire buone notizie, ma appena si poteva dirigere alcune parole verso qualche italiano e anche da costoro si sentiva risposta poco buona, a tale risposta cominciava a crescere la nostra disperazione, rivatti in S. Paolo nella casa della Migrazione, e anche a tale arivo creseva più forte la nostra disperazione, prima per vedere una grande moltitudine di poppolo, e per sentire che esisteva grande morturità sui piccoli fanciulli, non solo ma quando cominciò inoltrarsi la notte e osservando tutti i piccoli fanciulli e l’intera famiglia che stanchi del viaggio dormivano coricati sopra le tavole circondati da 10.000 persone 68 Ou ainda outro trecho da carta de Giuseppe Manzoni: Vi dirò che siamo partiti il giorno 27 gennaio dalla casa di Amirazione dove morì mio nevado Sisto, un figlio di Antonio Barel e una putela di Antonio Celotto.69

recolhidos à hospedaria da capital serão: Inteiras, para os adultos maiores de quatorze annos; Meias, para os de tres a quatorze annos; Os menores de tres annos receberão ração gratuita na proporção de um quarto de ração.” Quanto ao tipo de alimento que seria servido aos internados, o mesmo edital, mais adiante, esclarece que: “De manhã (seriam servidos), café, assucar, pão ou bolacha de bordo. Almoço e jantar, (generos variaveis): Primeira especie, feijão ou arroz, carne fresca, toucinho, pão e verduras; Segunda especie, feijão ou arroz, carne secca, toucinho e pão; Terceira especie, feijão ou arroz, bacalhau, batatas, azeite, vinagre e pão.” Mais abaixo, o edital revela que as crianças lactantes estavam privadas do leite gratuito, assim os doentes que, por recomendação médica, deveriam tomar toses de vinho. Esses produtos tinham que ser comprados: “O leite para as creanças que delle necessitarem, o vinho do Porto ou outro qualquer de identica qualidade para os doentes não serão incluidos no preço da ração ordinaria e constarão de fornecimento especial pago separadamente.” OESP - no. 5043, de 25 de dezembro de 1891, p. 3. O Governo paulista, entretanto, providenciaria uma completa reforma na Hospedaria somente a partir de 1906. Algumas décadas mais tarde, Jacinto Silva, no seu “Guia Illustrado do Viajante”, passaria uma idéia bem diferente, das relatadas pelos imigrantes do final dos anos 80, àqueles que desejassem conhecer a Hospedaria do Brás. A respeito da comida ali servida, que tanta polêmica criou no final dos 80 do século XIX, assim escreveu: “O cartão de rancho recebido após a chegada, é picotado no momento de receberem as rações, que lhes são forncecidas de conformidade com os seguintes horarios: ás 7 horas, café e pão; ás 11, almoço; ás 16, jantar; ás 19 horas, café e pão. As crianças menores têm direito a leite, duas vezes por dia. As refeições são de bôa qualidade e abundantes, compõem-se de pão, carne, feijão, arroz, batata ou verduras.” SILVA, Jacintho op. cit., p. 267.

67 FRANZINA, Emilio Merica! ... op. cit.,.pp. 174-175 (Lettera di Giuseppe Manzoni – S. José do Rio Pardo, 11 marzo 1889 – Fonte: Cronaca Americana, in “Il Contadino”, n. 16, 31.08.1889).

68 Idem,.p. 171 (Lettera di Bortolo Rosolen, Santa Teresa de Cordeiros, 9 marzo 1889 – Fonte: Cronaca Americana, in “Il Contadino”, no. 8, 30.04.1889).

69 Ibidem, p. 174 (Lettera di Giuseppe Manzoni – S. José do Rio Pardo, 11 marzo 1889 – Fonte: Cronaca Americana, in “Il Contadino”, n. 16, 31.08.1889).

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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Os redatores dos relatórios anuais do serviço de imigração de alguns anos depois, segundo Holloway, muitas vezes já faziam incluir neles uma observação contundente como esta: (...) dos que morreram, quase todos eram crianças com menos de dez anos de idade.70

A comunicação entre os imigrantes, a respeito de tudo o que se passava, fluía de uns para outros, do interior para a Capital, do que estavam já no Brasil, os aqui chamados de “italianos” para os que ficaram na Itália e que pretendiam também imigrar. Criavam-se laços de solidariedade e as cartas, por isso, tiveram um papel importantíssimo na construção de uma rede de resistência. Nelas, encontram-se explícitas recomendações para que os imigrantes evitassem passar pela Hospedaria e procurassem apoio entre parentes ou conhecidos que já se encontrassem em São Paulo, como se pode notar nestas palavras:

Questo si gli dico che per fare bene nel Bresile bisogna essere chiamati da parenti che

li sia sicuri per che quelli che li viene alla sorte la più parte li si rovinano quando che li si trova alla emigrazione (...)71

O que mais chama a atenção nessa correspondência dos trabalhadores é o sentimento manifesto de considerarem-se ludibriados pelas promessas falsas e ilusórias dos agenciadores conacionais, sob o comando dos fazendeiros paulistas, que já os haviam arrolado, anteriormente, na Itália. Com certeza, ao depararem-se com as reais condições de transporte (nos primeiros anos eram trasladados de Santos a São Paulo literalmente em vagões de carga) de alojamento oferecidas na Hospedaria e com a morte de parentes e conhecidos, não lhes restava senão força para protestar.

O imigrante vêneto Donato Zambon escrevendo como seus companheiros e compatriotas sentiam-se enganados por agenciadores de força de trabalho, na Itália, e pelos representantes dos fazendeiros, assim se expressava, em 1889:

Ora ti notifico che tempo fa, a S. Paolo in casa d’emigrazione gli Italiani fecero una grande rebulazzione, con la gente Bresiliero, perché questi poveri Italiani furono ingannati daí medesimi, in cui i cosidetti sensali di carne umana fecero tante impromesse ai poveri emigranti, e quando erano alle loro destinate dimore, non vi fu proprio nulla di eseguito; 72 A analogia que fizemos, anteriormente, quanto à existência de uma tênue distinção, para a lógica burguesa, entre mercadoria (produto) e mercadoria (força de trabalho), foi aqui expressa, nas palavras do trabalhador imigrante, com toda sua força: ao serem transportadas, as duas se igualavam. Os relatos nos revelam que as condições proporcionadas aos trabalhadores estrangeiros, que vinham para se engajar no decantado “mercado de trabalho livre”, também não foram melhores em outras partes do Brasil. Pelas palavras de Domenico Marchioro, imigrante de Schio que, com sua família, em 1896, alojou-se na Hospedaria de Juiz de Fora (MG) pode-se observar quão próximas foram as experiências vividas por uns e por outros. Ele inicia seu depoimento, informando como passaram a quarentena obrigatória na Hospedaria da Ilha das Flores:

[Ivi (...)] fummo ammassati come un grosso branco di pecore entro un casernone insieme a genti di ogni provenienza: turchi, greci polacchi, russi ed altri in attesa di essere avviati verso l’interno del paese, secondo le varie destinazioni. (...)73

70 SECRETARIA DA AGRICULTURA Relatórios de 1906, p. 174; 1907, p. 132; e 1908, p. 120. Apud HOLLOWAY, Thomas H.

op. cit., p. 88. 71 FRANZINA, Emilio Merica! ... op. cit., p. 186-187 (Fonte: Cronaca Americana, in “Il Contadino”, no. 12, 30.06.1900). 72 FRANZINA, Emilio Merica! ... op. cit.,. p. 167 (Lettera di Donato Zambon, Campinas, 3 marzo 1889 – Fonte: Cronaca

Americana, in “Il Contadino”, no. 9, 15.05.1889). 73 MARCHIORO, Domenico Autobiografia giovanile di un vecchio militante delle lotte operaie: Storia vissuta, patita e descritta da

un proletario rivoluzionario coraggioso, dalla fine dell'Ottocento ai primi del Novecento nell'Alto Vicentino. sc, sd, mimeo., p. 5.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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A seguir, empreenderam uma longuíssima viagem do porto do Rio até o planalto mineiro, gastando, com isso, mais de dez horas de trem. Chegando em Juiz de Fora, termo da viagem, foram dirigidos para outra hospedagem à espera da alguém que os encaminhasse ao destino final. Eis o que ele nos diz a respeito:

Dopo dieci ore di viaggio arrivammo a Juiz de Fora, che era allora la capitale dello Stato di Minas Gerais e dalla stazione proseguimmo a piedi verso una località della lontana periferia, un’ex fazenda denominata ‘La Tapera’, dove su di una collina, ai margini della foresta, era stato costruito un lugubre edificio destinato ad ospitare gli emigrati per l’ultima sosta, prima di essere avviati definitivamente a destinazione nell’interno.74 As condições higiênicas daquele lugar, entretanto, eram tão precárias que propiciavam a proliferação de doenças infecto-contagiosas. Verdadeiras epidemias, sem qualquer medida profilática, dizimavam levas inteiras de recém-chegados. Tais ocorrências levavam os imigrantes ao completo desespero - como aconteceu com a mãe de Domenico - segundo seu próprio relato:

Mia madre desiderava con spiegabile ansia di poter abbandonare quel triste e malaugurato edificio, dove scoppiavano spesso tremende epidemie per la mancanza di ogni misura di igiene, e qualche tempo dopo, infatti, in seguito ad una nuova e maggiore ondata di emigranti, esplose là dentro il tifo petecchiale, che ne mietè oltre la metà (...) e mi pare ancora di udire la voce di mia madre esclamare: ‘Siamo condannati alla schiavitù e alla morte!75

Muitos dos internados perdiam as esperanças de saírem vivos com suas famílias daquele lugar. O que mais os aterrorizava era presenciar o cortejo interminável dos defuntos. Nas lembranças de Marchioro, essas cenas tétricas estavam ainda vivas quase meio século depois: Vedemmo seppellire le salme di quella povera gente, in una radura ai margini del bosco e dalla piccola finestra della nostra bicocca assistemmo al passaggio delle successive torme di emigranti d’ogni provenienza che salivano quel doloroso calvario (...)76

A recepção na “Emigração” capixaba também não era muito diferente, conforme testemunha em sua descrição Egídio Cogo, no momento de sua chegada em agosto de 1894, no porto de Ubu, próximo a Vitória (ES), entrada obrigatória de quase todos os pioneiros da imigração italiana naquele Estado:

(...) e quando chegavam na ‘Emigração’, os imigrantes tinham que ser desinfetados,

porque os daqui tinham medo de doença e eles passavam num corredor de fumaça com um cheiro muito ruim, e saiam do outro lado desinfetados.77 Após o ritual e o descanso, cerca de dois ou três dias, iniciavam os imigrantes uma outra etapa da viagem às longínquas terras desconhecidas. 77.. EEppppuurr ssii mmuuoovvee ......

Malgrado o descontentamento com as condições oferecidas e os alertas endereçados aos parentes e amigos que haviam permanecido na Itália, os fluxos imigratórios não cessariam de chegar. A tendência seguiu o caminho justamente contrário. Em 1891, ano da chegada dos operários de Schio, as entradas no Estado de São Paulo atingiram algo em torno de 85 mil

74 Idem. 75 Ibidem. 76 Ib., p. 6. 77 COGO, Egídio Memórias (manuscrito). In AMBROZIM, Gervásio A família Ambrozim: um século de Brasil (1894-1994). Venda

Nova do Imigrante, Gravenol, 1994, p. 12

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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ingressos, constituindo-se no primeiro grande pico da década, seguido, depois, pelos números 1895, que alcançaram patamares bem superiores, com 104.122 entradas.

Com a intensidade e o volume desse fluxo humano, a Hospedaria do Brás, como se pode ver, tornou-se um centro permanente de tensões entre seus hóspedes e de atenções por parte da classe dirigente da cidade.

O local, como já vimos, por ser um imenso alojamento de força de trabalho, por atrair

negociantes a todo momento e de dispostos a todos os tipos de transação e, finalmente, por requerer diariamente uma grande quantidade expressiva de produtos de diversas ordens, para abastecer seu consumo, constituiu-se ele mesmo num entreposto gerador de uma infinidade de novas atividades urbanas. Os anos que se seguiram à abertura da Hospedaria, construída, a princípio, em terreno ermo, viram nascer à sua volta uma gama infindável de pequenos comércios e atividades ligadas à construção civil que iam desde a edificação até a implantação de infra-estrutura urbana para integrá-la ao conjunto do Bairro e à cidade.

Para se ter uma idéia do que acontecia em suas imediações, ressaltamos aqui uma

solicitação, datada de 5 de janeiro de 1891, encaminhada ao então Presidente da Intendência da Capital, pelo diretor da Hospedaria, para que mandasse remover da frente de seu portão um quiosque aberto e, posteriormente, reaberto na Rua Visconde de Parnaíba. Sua permanência, com certeza, estava criando problemas para a preservação da “ordem pública” naquele local.78

Logo no ano seguinte, o empreiteiro José Antonio Mangini, imigrante italiano,

justificava, em correspondência enviada àquela Intendência, no dia 20 de dezembro, o atraso nas obras de calçamento da Rua Visconde de Parnaíba.79

A febre modernizante, entretanto, havia tomado conta de todo o Bairro, ainda no final do mês de janeiro de 1891, exatamente no dia 29, o Presidente da Companhia Paulista de Transportes comunicava o Presidente da Intendência que:

(...) vae fazer levantar os calçamentos das Ruas Rangel Pestana (...) para o avançamento da construcção das linhas de carris já em começo do aterrado do Braz.80

Uma solicitação da “Cia. de Gaz de São Paulo Limitada”, datada em 5 de janeiro de

1891, para que a Intendência Municipal autorize a retirada do calçamento das ruas do Brás com vistas à passagem de tubulação, mostra que os serviços públicos estavam alcançando o Bairro com uma velocidade muito grande.81

A imigração havia transformado não só do ponto de vista demográfico, mas também

contribuído de forma decisiva para sua mudança física e econômica.

Como é possível de se comprovar, mesmo nos primeiros anos de 1890, quando o crescimento populacional do Brás perdeu o fôlego anterior e entrou num período de desaceleração, o Bairro não deixou de continuar crescendo significativamente. Como se pode aferir dos resultados do Censo de 1893, quando São Paulo atingiu a marca dos 129.409 habitantes, e o Brás de 32.387, o que representava uma percentagem de 25,02% da população total, mantendo, assim, os patamares anteriores, ainda que com uma ligeira queda em relação aos índices atingidos em 1890.82

78 AHMSP: Papeis Avulsos (1891) vol. 1 (P. AV. 607), p. 10. Numa folha anterior, havia a solicitação para a construção de uma

obra na Rua Visconde de Parnaíba, naquele mesmo ano. 79 AHMSP: Papeis Avulsos (1892) vol. 33 (P. AV. 665), s/p. 80 AHMSP: Papeis Avulsos (1891) vol. 1 (P. AV. 607), p. 89. 81 AHMSP: Papeis Avulsos (1891) vol. 1 (P. AV. 607), p. 143. 82 Santa Ifigênia, de 1890 a 1893, teria um crescimento excepcional, passando de 14.025 habitantes para 42.715, relativamente,

aumentando sua participação de 21,59% para 33,0% do total. Nas tabelas: MORSE, Richard M. op. cit., p. 238 e TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., p. 91, constatamos dois erros: um de impressão, o outro, de cálculo. Na primeira, a soma total

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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Seu contínuo crescimento era perceptível na ocupação do solo e na retificação da

paisagem urbana. Além das fábricas que já citamos, outras haviam nascido no Brás, ao longo das últimas décadas: em 1878, na Rua Mons. Andrade, ergueu-se a primeira fábrica de massas alimentícias; em 1888, na Rua Piratininga, no. 6, surgiu ali uma fábrica de móveis com cerca de 50 operários; em 1886, na Rua Visconde de Parnaíba, foi fundada a Destilaria Italiana a Vapor, dos irmãos Trevisan; em 1890, na antiga Rua da Intendência (hoje: Celso Garcia), foi inaugurada a Cristaleira Germânica; e em 1891, na antiga Rua do Rodovalho (hoje: Moóca), construiu-se a Fábrica de Carros (carroças).

Nos anos seguintes, outras tantas fábricas, oficinas e lojas nasceriam nas imediações da

Hospedaria, demonstrando que o Bairro não pararia de crescer e alcançaria seu pleno desenvolvimento industrial na primeira década do século em curso. 83

As palavras de Maria Celestina Mendes expressam muito bem o que estaria ali

acontecendo, quando afirma que:

No Brás, fábricas de todos os tipos, com máquinas aperfeiçoadas, com aparelhamento elétrico ou a vapor, ou pequenas oficinas’ instalam-se ‘dia a dia’, assim como em muitos outros bairros. Ao lado de pequenos estabelecimentos, instalados muitas vezes na residência do proprietário – em alguns casos o único trabalhador e, em outros, auxiliado apenas por poucos operários além da própria família – alinham-se, atestando a grande diversificação da produção industrial paulistana, fábricas que, funcionando às vezes em prédios mal adaptados, produzem desde alimentos até máquinas de beneficiar café. Fábricas de tecidos – de algodão, juta, seda, lã – junto às quais erguem-se indústrias de confecções, de bebidas, de chapéus, de calçados, entre outras, determinam, em virtude do valor de sua produção e da mão-de-obra que empregam – constituída sobretudo de mulheres e de menores e de crianças de ambos os sexos – a importância do setor têxtil frente aos demais.84 Assim, o Brás, do início da última década do séc. XIX, havia-se equipado de toda a infra-estrutura industrial necessária, de um parque fabril e de uma concentração de força de trabalho nitidamente proletária, abundante e acessível. Seu espaço estava sendo ocupado com residências de uns e as fábricas de outros. Havia já se transformado, de um lado, num verdadeiro distrito industrial para os donos do capital e, de outro, num bairro operário, para os trabalhadores. 88.. OOss ttêêxxtteeiiss ddee SScchhiioo aallccaannççaamm SSããoo PPaauulloo ee oo BBrrááss

Nesse complexo contexto de cidade e Bairro em plena ebulição é que chegaram os operários de Schio, entre 1891 e 1895. Vieram em meio a uma infindável multidão que varou a distância entre Gênova e Rio de Janeiro, ou Santos, e, por isso mesmo, tornaram-se tão comuns

dos habitantes de São Paulo, em 1893, não é 192.409 como aparece, mas 129.409. Na segunda, a número dos habitantes da Freguesia de Nossa Senhora do Ó, na segunda coluna, relativa ao ano de 1855, é de 2030 e não 2000 como está impresso. São Paulo, em 1893, já possuía uma população estrangeira (55,5%) maior, em dez dígitos, que a nacional (44,5%). O Brás já apresentava a maior concentração de italianos da cidade, majormente operários. Cf. SANTOS, Carlos José Ferreira dos Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza (1890-1915). São Paulo, Annablume, 1998, p. 35.

83 FAUSTO, Boris Trabalho urbano ... op. cit., p. 24. Cf. tb. MARTINS, José de Souza O cativeiro ... op.cit., p. 118. Cf. tb. TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., pp. 163-164. Ver. tb. SESSO Jr., Geraldo op. cit., p. 103. Para ilustrar ainda mais o perfil de São Paulo daqueles anos de efervescência, reproduzimos aqui as palavras de um imigrante, Antonio Piccarolo: “O Estado de São Paulo sofre, portanto, profundas alterações sócio-econômicas no período que se estende de 1890 a 1920, e é na Capital que estas se processam com ímpeto maior. O desenvolvimento industrial da cidade torna-se irreversível, sua paisagem urbana, alterada com a expansão do café no Oeste, altera-se ainda mais com a industrialização, em parte dela decorrente. A imigração provoca sensível aumento demográfico e contribui, também sensivelmente para a ampliação dos setores secundário e terciário. O operariado urbano, cujo principal núcleo é o bairro do Brás, ‘uma verdadeira cidade italiana’ – como o é a própria Capital em muitos aspectos – torna-se expressivo. A industrialização traz, consigo, novos problemas sociais: indústrias e questão social impõem um novo ritmo à vida urbana.” PICCAROLO, Antonio & FINOCCHI, Lino. O desenvolvimento industrial de São Paulo através da Primeira Exposição Municipal. São Paulo, Pocai & Comp., 1918, p. 139. Apud DE MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro Mulheres e menores ... op. cit., p. 21.

84 TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes op. cit., p. 164..

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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e, até há pouco, imperceptíveis. Sua presença coloca o problema da inserção de como os trabalhadores urbanos, vindos da Itália, se inseriram nas cidades, em São Paulo e, mais especificamente, no Brás. Uma carta escrita, em 10 de junho de 1891, justamente por um desses imigrantes, de nome Nicola Viero, logo depois de ter-se alojado no Bairro, nos revela alguns detalhes de como pode ter acontecido esse inusitado encontro, quando afirma:

(...) alla casa d'emigrazione, che vi rimasi per solo una notte e poi andai subito al lavoro che mi trovo tuttora. (...)85

Como se pode observar, Nicola Viero afirma ter passado pela Hospedaria do Brás e permanecido aí apenas um dia. Com certeza, no período em que se alojou naquela instituição a quantidade de pessoas era muito superior à capacidade dos funcionários de se ocuparem com as práticas de controle então exigidas. Nem sequer permaneceu o período de quarentena (uma semana) exigido. De fato, os registros de 1891 fazem menção a sua passagem por ali. Nicola, viajara a bordo do vapor Manilla e desembarcara em Santos, no dia 27 de maio, dando entrada na Hospedaria naquele mesmo dia, juntamente com outros 27 imigrantes de Schio. Tinha, então, apenas 22 anos de idade, ingressando, portanto, como avulso (desacompanhado) e tendo sua passagem subsidiada pelo erário público, como todos os demais imigrantes de Schio que aportaram no Estado de São Paulo.86 Antes de chegar, porém, há indícios de que já teria feito algum contato prévio com outros prováveis companheiros que o haviam precedido. Afirma também que passou ali apenas uma noite. No dia seguinte, estava já trabalhando e, com muita probabilidade, também morando em algum cômodo na Rua Visconde de Parnaíba, no. 51, nas imediações da Hospedaria (próximo onde hoje situa-se a estação “Brás” do metrô). Tornara-se mais um escledense a ir morar no Bairro operário do Brás. Entretanto, parece que, apesar de sua origem operária, quis ficar distante da fábrica e, como afirmou, esse local de trabalho era para os que não aprenderam nenhum outro ofício. De profissão, era sapateiro profissional, como tantos que vieram para São Paulo, e empregou-se numa oficina de um outro imigrante italiano de nome Serafino Turano, mencionado também na carta. Este, contudo, fora registrado na Hospedaria no final do ano anterior, exatamente em 8 de setembro de 1890, como “lavrador”, o que efetivamente não o era. Quanto a sua idade, tinha 41 anos e estava acompanhado de um filho, Luigi, de apenas 9 anos de idade. Turano era de fato um artesão, pois, além do que nos informa Nicola Viero, em 1891, é possível averiguar, a esse respeito, nas anotações contidas no “Livro de Registro do Imposto de Indústria e Profissão da Cidade de São Paulo”, do ano de 1893, ele recebeu da Municipalidade paulistana o alvará para exercer sua profissão – abrindo, de conseqüência, uma oficina - e que havia pago corretamente, em 15 de fevereiro, os emolumentos exigidos, isto é: 53$000 (cinqüenta e três mil-réis), referentes àquele ano.87 Em 1896, cinco anos depois da chegada de Nicola Viero, uma outra família de Schio, também formada por operários têxteis, chegaria ao Brasil, indo fixar-se inicialmente em Juiz de Fora (MG) e por fim em Petrópolis (RJ). Domenico Marchioro, um dos filhos da família, na época com apenas oito anos incompletos, muito tempo depois, quando já adulto, na Itália, escrevendo suas memórias, afirmou que, por volta do final de 1898 e início de 1899:

In famiglia le cose peggioravano disastrosamente. Mio padre era andato a São Paolo per cercare una nuova sistemazione, dato che il padrone di casa era nel contempo il proprietario dei telai e dei mobili, ci aveva dato lo sfratto, motivandolo col fatto che mio padre e mia zia avevano abbandonato il lavoro.88

85 BCS: Schio, Lettera di Nicola Viero a Pietro Munari, 10.06.1891, da San Paolo del Brasile, Pasta: FPM, p. 2. Cf. Apud SIMINI,

Ezio Maria Italiani in Oceania – Un operaio agli antipodi: Pietro Munari, italiano in Australia. Schio, Home Page: Saggi Italiani in Oceania, 1997, pp. 6-8. Nicola Viero aqui aparece, inexplicavelmente, sob o nome de Pietro Miola.

86 MI: Livro de Registros no. 26, fls. 30. 87 Quanto a Serafino Turano, é possível saber que chegou aos 41 anos, trazido pelo vapor Europa que atracou em 08.09.1890, no

porto de Santos. Sua passagem foi financiada pelo Governo Geral. Acompanhou-o o filho Luigi, de 9 anos. Ver. MI: Livro de Registros nº 21, p. 75. Ver. também AHMSP: Livro de Registro de Imposto de Industria e Profissão (1893), Etiqueta 1630, p. 51.

88 MARCHIORO, Domenico op. cit., p. 14.

Capítulo I: São Paulo e o Brás que os imigrantes operários de Schio conheceram.

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Como se observa, uma nova menção a São Paulo e a relação desta com o trabalho industrial, aparece nas lembranças de outro operário de Schio cuja família imigrou para outro Estado do País. Entretanto, há algo em comum entre esses trabalhadores: todos perfizeram o mesmo percurso: “cidade - cidade”, sem a pré-definida mediação do campo. Sua forma de inserção na economia e na sociedade local dar-se-ia, portanto, diversamente.

Na seqüência estabelecida pela redação dos dois textos, queremos relevar a referência às intrincadas estratégias adotadas pelos trabalhadores imigrantes para escapar do controle rigidamente estabelecido pela “Sociedade Protetora da Imigração”, que recrutava na Itália “braços para a lavoura” e não operários para as fábricas. É bem verdade que o período em discussão surgia depois de uma crise de superprodução cafeeira, ocorrida no ano de 1890. Não obstante, o momento foi propício para um fluxo crescente de entradas, como já mencionamos, ocorrendo, com isso, dois grandes picos no país e no Estado: em 1891 e 1895.

Entretanto, o processo de captação e translado da força de trabalho da Itália para o

Brasil, financiado pelo ‘Governo Geral’, visava orientá-la exclusivamente à cafeicultura. Tanto Viero quanto a família Marchioro declararam - na seleção prévia - serem trabalhadores rurais, assim como tantos outros trabalhadores urbanos que seguiram o mesmo caminho. Entretanto, ambos eram, contrariamente ao que diziam, operários têxteis. Tanto um quanto o outro permaneceriam, ainda que por motivos diversos, em cidades com presença de unidades industriais (São Paulo, Juiz de Fora e Petrópolis).

Outro elemento importante para entendermos essa imigração é desvendar-lhe os mecanismos de inserção na nova realidade. Esses trabalhadores, já urbanizados na Itália, e, muitas vezes efetivamente proletarizados, inseriram-se no ‘mercado de trabalho’ industrial que se constituía na cidade de São Paulo, no final do século XIX. Nos dois casos citados, os trabalhadores buscaram atividades profissionais urbanas na Capital paulista. O primeiro se empregou como sapateiro, numa oficina de outro imigrante italiano, localizada na Rua Visconde de Parnaíba, 51, próximo à Hospedaria. O outro, Mariano Marchioro, pai de Domenico, veio de Petrópolis, onde era operário têxtil – havia trabalhado primeiro na tecelagem e depois produzia tecidos, em casa, com teares de propriedade do próprio senhorio. Mariano, enfim, deixara a cidade serrana e a família para empregar-se em algum estabelecimento, seguramente têxtil, de São Paulo.

Esses são os temas que percorreremos nos próximos capítulos.