26ª Bienal de São Paulo - Artistas Convidados 2004

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So Paulo 2004

Declare seu amor cidade.

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papel oficial da Bienal

Iimprensaoficial

Apoio Instituciona l da Prefeitura do Municpio de So Paulo Lei 10923/90

sil'ila'loGOVERNO DA RECONS TRU Ao

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GOVERNO DO ESTADO DE

SO PAULORESPEITO POR VOC

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MlNISTRIO

Ministrio da Cultura

Fundao Bienal de So Paulo

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Conselho [Council]

Francisco Matarazzo Sobrinho (1898-1977) Presidente Perptuo do Conselho [Perpetuai President of the Council]

Conselho de Honra [Honorary Council]

Oscar P. Landmann Presidente [President] Alex Periscinoto Carlos Bratke Celso Neves Edemar Cid Ferreira Jorge Eduardo Stockler Jorge Wilheim Julio Landmann Luiz Oiederichsen Villares Luiz Fernando Rodrigues Alves t Maria Rodrigues Alves Roberto Muylaert

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Conselho de Administrao [Board of Directors]

Jorge Wilheim Presidente [President]

Membros Vitalcios [Lifetime Members]

Benedito Jos Soares de Mello Pati Celso Neves Ernest Guenther Lipkau Giannandrea Matarazzo Gilberto Chateaubriand Hlene Matarazzo Joo de Scantimburgo Manoel Ferraz Whitaker Salles Oscar P. Landmann Oswaldo Corra Gonalves Pedro Franco Piva Roberto Pinto de Souza Rubens Jos de Cunha Lima Sbato Antonio Magaldi Sebastio de Almeida Prado Sampaio

Membros [Members]

Adolpho Leirner Alex Periscinoto Aluzio Arajo lvaro Augusto Vidigal Andrea Sandro Calabi Angelo Andra Matarazzo Antonio Bias Bueno Guillon Antonio Henrique Cunha Bueno ureo Bonilha Beatriz Pimenta Camargo Beno Suchodolski Carlos Bratke Carlos Francisco Bandeira Lins Csar Giobbi David Feffer David Zylbersztajn Edemar Cid Ferreira Fbio Magalhes Fernando Roberto Moreira Salles Horcio Lafer Piva Ivo Rosset Jens Olesen Jorge Wilheim Julio Landmann Luiz Sales Manoel Francisco Pires da Costa Marcos Arbaitman Miguel Alves Pereira Miguel Reale Jr. Pedro Aranha Corra do Lago Pedro Cury Pedro Paulo de Sena Madureira Ren Parrini Ricardo Renzo Brentani Roberto Duailibi Roberto Muylaert Rubens Murillo Marques Rubens Ricupero Saio Davi Sei bel Thomaz Farkas Wolfgang Sauer

Diretoria Executiva [Executive Board]

Manoel Francisco Pires da Costa

Presidente [President]Pedro Paulo de Sena Madureira

Primeiro Vice-presidente [First Vice-president]Eleonora Mendes Caldeira Segundo Vice-presidente [Second Vice-president] Aluizio Arajo Diretor [Director] Carlos Bratke

Diretor [Director]

Diretores Representantes [Representative Directors]

Embaixador [Ambassador] Celso Amorim

Ministro das Relaes Exteriores [Minister of Foreign Affairs]Gilberto Gil

Ministro da Cultura [Minister of Culture]Claudia Costin

Secretria de Estado da Cultura [State Secretary of Culture]Celso Frateschi

Secretrio Municipal de Cultura [City Secretary of Culture]

Curador [Curator]

Alfons Hug

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Curador [Curator]

Alfons Hug

26 a Bienal de So PauloArtistas Convidados [Invited Artists] 25 de setembro a 19 de dezembro de 2004 Pavilho Ciccillo Matarazzo, Parque do Ibirapuera, So Paulo

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UM FEITO BRASILEIRO

I A Bienal de So Paulo tornou-se um signo no apenas da cultura, mas

do desenvolvimento e da modernizao da cidade de So Paulo e do prprio Brasil, no sentido mais amplo desses termos. (Algum ainda pensa que a arte se dissocia de seu tempo e de seu espao? De sua sociedade e de sua histria?). Tornou-se tambm um signo do dilogo entre a cultura brasileira e as culturas de outros pases, processo fundamental, definidor mesmo, que revitaliza diariamente a constituio cultural do pas. Ao longo de 53 anos de existncia, a Bienal de So Paulo afirmou-se como referncia. no apenas o evento mais importante do Brasil em sua rea, mas um dos mais significativos do mundo. No princpio, a Bienal permitiu cidade a formao de um importante acervo de arte moderna e contempornea. Depois, incluiu a arte visual brasileira no circuito internacional, contribuindo decisivamente para o reconhecimento da produo nacional no exterior. Talvez a Bienal tenha sido a iniciadora de muitos artistas brasileiros. Talvez tenha sido a formadora de boa parte de nossos crticos e curadores. E certamente foi a responsvel pelo primeiro, ou pelo mais intenso contato de muitos de ns com a arte em suas mltiplas expresses e potencialidades. No por acaso, portanto, a 26 a edio da Bienal de So Paulo protagoniza o calendrio oficial de comemoraes dos 450 anos de So Paulo, neste pavilho construdo por Oscar Niemeyer para o 4 centenrio da cidade, em 1954. A Bienal est no corao da cidade. E de seus cidados. um marco na vida da principal metrpole brasileira, sntese e metfora do que h de melhor, e pior, no pas. Sabe-se que no exterior o Brasil identificado principalmente por expresses singulares como o carnaval, o futebol-arte e a capoeira. Aos poucos, porm, outros aspectos vitais de nossa diversidade cultural ganham destaque, como o caso da arte brasileira contempornea. Temos uma produo intensa e diversa que refaz cotidianamente o percurso do dilogo com as principais tendncias internacionais, e ocupa mostras e instituies de arte contempornea no mundo inteiro. Uma parte desta produo est aqui, assim como seus parentes e contra-parentes de outras nacionalidades, disposio para a fruio livre, para a crtica, para o choque, para a reinveno, para a transformao, enfim, da prpria arte e do pblico. (Ou algum ainda pensa que a arte se dissocia de seu pblico e de seu criador? De sua massa e de sua trajetria?). O Ministrio da Cultura apia e celebra a Bienal de So Paulo como uma realizao, como um feito, como um marco de So Paulo e do Brasil, dos paulistanos e dos brasileiros, dos artistas e do pblico. E, agora, um marco ao alcance de todos, ou pelo menos de muitos, com a gratuidade e os programas consistentes de arte-educao. Parabns, So Paulo!

Gilberto Gil Ministro da Cultura

A BRAZILlAN FEAT I The Bienal de So Paulo has become a sign ofthe culture and modernization of the city of So Paulo and of Brazil itself, in the broadest terms. (Does anyone still think that art is not connected with its own time and space? With its own society and history?). It has also become a sign of the dialogue between Brazilian culture and that of other countries, which is a fundamental process, even a defining one that revitalizes our cultural identity everyday. During its 53 years of existence, the Bienal de So Paulo has been established as a reference. It is the most important event of its kind in Brazil, and one of the most significant in the world. At first, the Bienal allowed the city to bring together an important collection of modern and contemporary art. Eventually, it placed Brazilian art in the international circuit, which helped our production to be recognized abroad. It may be that the Bienal's stimulating effects gave rise to many Brazilian artists. It may figure prominently in the professional background of a good part of our critics and curators. And, for many of us, it was most certainly responsible for our first and most intense contact with art in its multiple expressions and potentialities. Thus, it is not by chance that the 26 th Bienal de So Paulo is the flagship event ofthe celebrations marking So Paulo's 450 th anniversary, held in the same pavilion conceived by Oscar Niemeyer for the city's 40dh anniversary, in 1954. The Bienal is in the heart of the city. And in the heart of its citizens. It is a landmark in the life of Brazil's main metropolis, a synthesis and metaphor of the best, and the worst, in the nation. Around the world, Brazil is most widely known for its distinctive features such as carnivaI, the so-called art soccer and capoeira. Little by little, though, other vital aspects of our cultural diversity are gaining recognition, as is the case for Brazilian contemporary art. We have an intense and diverse production in continuously renewed dialogue with the main international trends, which is shown in exhibitions and contemporary art institutions all over the world. A part ofthis production is here, together with its relatives and counterparts from other nationalities, to be contemplated by the general public and art critics, to shock, to spur reinvention, in short, to transform the art world and society at large. (Or does anyone still think that art is not connected with its viewers and its creators? With its context, history and future?). The Ministry of Culture supports and celebrates the Bienal de So Paulo as a feat, a landmark of So Paulo and of Brazil, of the city's inhabitants and of all Brazilians, of artists and art viewers. And now available to everyone, or to a great many, by way of free admission and substantial art-education programs. Congratulations, So Paulo!

Gilberto Gil Minister of Culture

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A Fundao Bienal de So Paulo foi criada por Francisco Matarazzo Sobrinho em 1962, na esteira de movimentos de modernizao que, nos anos 40, levaram criao de instituies como o Museu de Arte de So Paulo (MASP) e o Museu de Arte Moderna (MAM). A unio de artistas, membros da elite paulista e intelectuais, provenientes da Faculdade de Filosofia da Universidade de So Paulo, permitiu a formulao de polticas culturais que colocaram So Paulo no circuito internacional das artes. O desafio era trazer ao pas e mostrar aos brasileiros as obras de artistas consagrados no exterior, vencido com galhardia. No ano em que a cidade de So Paulo comemora o seu 450 0 aniversrio, a 26 a Bienal de So Paulo consolida o esprito inovador que a moveu desde a sua edio inaugural. Ao decidir mostrar aos brasileiros artistas contemporneos, a Bienal continua fiel ao seu esprito original. Nos ltimos dez anos, o Brasil assistiu consolidao de museus e ao florescimento de novas instituies culturais que possuem as instalaes necessrias e cumprem eficientemente o objetivo de apresentar as obras clssicas (Ncleo Histrico) populao brasileira. Bienal fica acrescido o papel de perscrutar o novo, o futuro e a vanguarda. Ao consolidar sua importncia de mais de meio sculo como embaixadora do Brasil no mundo das artes, ela passa a atuar em algumas frentes especficas: - Descobrir e introduzir artistas contemporneos nos cenrios nacional e internacional revelando os futuros Picassos, Portinaris; - Emprestar sua importncia internacional aproximao da cultura entre os povos e ampliao das relaes entre o Brasil e seus parceiros comerciais; - Desenvolver cursos culturais e profissionalizantes de apoio s diversas aes j existentes no pas, com o objetivo de colaborar no processo de incluso social. A Bienal no deve restringir nem limitar suas influncias e o impacto das suas exposies nas diversas reas da atividade humana. A sua atuao e ser sempre agressiva na busca da ampliao de horizontes. O destino da Bienal contribuir sempre para a abertura de fronteiras. A arte e a cultura tm luz prpria. Resguardado o espao em que seus atores se movem livremente desejvel a criao de pontes entre a arte e as demais atividades do ser humano. A 26 a Bienal se constituir em um ponto de convergncia para atrair, alm de artistas e amantes das artes, parceiros de negcios em ambiente prprio e capaz de incentivar as relaes comerciais internacionais. Esse ser um dos objetivos do plano de trabalho para esta edio da Bienal de So Paulo. O tema deste ano, idealizado pelo curador Afons Hug, nos remete quele espao em que no devem existir amarras criao e ao desenvolvimento de nossos potenciais. Como tenho dito repetidas vezes, a Bienal ousadia!

Manoel Francisco Pires da Costa Presidente Fundao Bienal de So Paulo

The Fundao Bienal de So Paulo was founded by Francisco Matarazzo Sobrinho in 1962, in the wake of the modernizing movements that had led to the creation of institutions such as the Museu de Arte de So Paulo (MASP) and the Museu de Arte Moderna (MAM) in the 1940S. The gathering of artists, members of the So Paulo elite and intellectuals from the then recently founded CoIlege of Philosophy of the University of So Paulo contributed to the formulation of cultural policies that placed the city into the international milieu of the arts. The chaIlenge was to bring works of internationaIly celebrated artists to Brazil and show them to the publico That goal was bravely achieved. This year, in which So Paulo celebrates its 450 th anniversary, the 26 th Bienal de So Paulo reaffirms the innovative spirit that has driven it from its very beginning. In deciding that only contemporary artists are to be shown, the Bienal remains faithfuI to its original intents. Over the last ten years, Brazil has seen the consolidation of museums and the rise of new cultural institutions with the proper facilities for exhibiting traditional works of art, and they are effectively fulfiIling this role (the so-caIled Historical Nucleus). The Bienal's role is to investigate the new, the future, and the avant-garde. Consolidating its importance as Brazil's ambassador in the world of the arts for more than half a century now, the Bienal has taken up several specific objectives: - Discover and introduce contemporary artists within the national and international settings, revealing the future Picassos and Portinaris; - Exert its international status to foster interchange among cultures, forging stronger links between Brazil and its trade partners; - Develop cultural and technical courses in support of various programs already underway in Brazil, with the aim of contributing to the process of social inclusion. The Bienal must not limit its influences or the impact of its exhibitions on the various fields of human activity. Its performance is and shaIl always be aggressive in the search for further horizons. The Bienal's destiny is to open up frontiers. Art and culture have a life of their own. Once the space where their actors can freely move is assured, it is desirable that links be created between art and other areas. Beyond a point of convergence for artists and art lovers, the 26 th Bienal de So Paulo wiIl furnish a setting favorable for the stimulation of international commerce. This aim has been integral to the planning for this edition. This year's theme, proposed by curator Alfons Hug, takes us to that place where there are no restrictions for creation or the development of our potentials. As I have often said, the Bienal is daring!

Manoel Francisco Pires da Costa President Fundao Bienal de So Paulo

Alfons Hug

Contrabandistas de imagens

pginas anteriores [previous pages] Edward Burtynsky, Three Gorges

Dam Project, Wushan #1, Yangtze River, China, 2002, detalhe[detail], fotografia cromognica [chromogenic c-print], 84x 173cm, coleo do artista [collection of the artist]

Thomas Struth, Nasca Unes 1

(with J E. Bedoya), Nasca/Peru,2003, detalhe [detail], 1/10, c-print montado em [mounted on] Plexiglas, 136,Ox 186,4cm, cortesia [courtesy] Thomas Struth

Os desertos da regio do Golfo Prsico so o cenrio do vdeo Passagem de Shirin Neshat, cujo tema esse estado indefinido entre a vida e a morte somente apreensvel pela arte e pela religio. Por um lado, essa terra de ningum, na qual se unem o tempo e o espao, aparece no mapa como uma mancha branca, localizada fora do alcance do mundo conquistado; por outro, ela revela ser um campo de foras espirituais que se irradiam para alm do mundo terreno. Nesse ritual fnebre, pleno de sedutora beleza, a artista iraniana celebra um grande momento de perda, mas tambm de redeno. O conceito de Terra de Ningum, emprestado originalmente da esfera militar, onde designa uma rea disputada por dois exrcitos, possui vrias dimenses: uma dimenso fsico-geogrfica, uma poltico-social e, finalmente, uma dimenso de natureza esttica que, no contexto da Bienal, mais nos interessa. A primeira no se refere apenas a espaos naturais mticos, desabitados como selvas e desertos, mas tambm a terras baldias e sem dono nas nossas metrpoles. A estas se juntam zonas dificilmente determinveis ou litigiosas: campos de batalha, acampamentos de refugiados, emissoras piratas, parasos fiscais, empresas fantasmas, clnicas de abortos em alto-mar e veredas de contrabandistas nas faixas de fronteira. Setenta por cento da rea de Caracas ocupada por moradias irregulares e 80% das crianas venezuelanas vm ao mundo como filhos ilegtimos. Bairros inteiros do Rio de Janeiro so reas extraterritoriais, que escapam ao controle do poder estatal. A mesma coisa vale, espantosamente, para muitas prises. A guerrilha colombiana domina regies cuja extenso comparvel da Sua. At mesmo os prefeitos da maioria das megalpoles ignoram o nmero exato de pessoas que as habitam, e os mapas da cidade, quando existem, ficam obsoletos em pouco tempo. Na luta pela sobrevivncia nas metrpoles, acabam se constituindo "socitopos" peculiares, e isto nos lugares mais incrveis: em arranha-cus abandonados ou embaixo dos viadutos, onde se assentam artesos numa situao seminmade. Estas zonas instveis se caracterizam, de um lado, pela pobreza e pela marginalizao e, de outro, por uma surpreendente produtividade e criatividade. No nvel poltico-social, Terra de Ningum significa que o chamado setor informal engloba em muitos pases do Terceiro Mundo mais da metade da populao economicamente

ativa. Mas significa tambm que a chamada globalizao se alimenta de fluxos invisveis de dinheiro e da aptrida internet. Ao mesmo tempo, continentes inteiros, como a frica, ficam desligados do resto de mundo e entregues ao seu prprio destino. Terra de Ningum tambm so os deficitrios sistemas de previdncia e as condies polticas turvas em extensas partes do mundo. Entrementes, as relaes entre os seres humanos tornaram-se a cada dia mais desregradas e vagas, isto quando no se assemelham a um deserto. At mesmo a linguagem emigrou para uma Terra de Ningum cultural, algo que uns vem como empobrecimento, outros como enriquecimento. A cacofonia dos meios de comunicao de massa leva mudez; a enxurrada de imagens tem como conseqncia a pobreza visual. A falta de pontos de contato entre as diversas civilizaes resulta num perigoso vcuo. Diferenas culturais que deveriam ser produtivas so postas de modo absoluto e intransponvel. Neste contexto, ser que o Brasil, cuja populao multitnica apresenta, segundo uma pesquisa recente, 143 diferentes matizes de cor da pele, poderia servir como modelo positivo?

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I A Terra de Ningum da esttica comea onde termina o mundo do dia-a-dia. Designa aquele espao em que realidade e imaginao entram em conflito. Artistas so guardas de fronteira de um reino que est alm do "mundo administrado", e aonde no mais chega a competncia interpretativa da poltica e da economia. Enquanto todo mundo discute constantemente a respeito de quem dono do qu, a arte esclarece as condies de propriedade ao seu modo: no reino da esttica todos so donos de tudo. Ora, no contexto da Bienal, interessa-nos saber se e como as formas da Terra de Ningum descritas no incio, isto , as devastaes do mundo real e das relaes interpessoais, se refletem na arte. Como as obras de arte so mais do que meros fatos, todo adensamento artstico de fenmenos da realidade ser sempre mais plurvoco e mais complexo do que uma simples reportagem. Esta regra se aplica mesmo quando o artista usa a fotografia ou o vdeo, dois meios aos quais atribudo um elevado grau de proximidade com a realidade. Embora os artistas estejam enfronhados em conflitos, eles no reduplicam o mundo, eles criam espaos livres na realidade. Eles transportam a matria-prima terrestre mediante metforas e smbolos para um novo estado, perceptvel pelos sentidos. A obra de arte manifesta algo diferente, um ''outro''; ela alegoria. A arte existe fora da causalidade e no deve ser aprisionada na carcaa frrea das coaes profanas. Portanto, uma bienal no uma exposio de convices. Toda obra de arte bem-sucedida narra ainda, a par do que ela expe, uma segunda histria, e atrs de todo artista encontra-se um segundo autor, que desconhecido. este quem induziu o roqueiro Keith Richard, ao ouvir a gravao de um solo do inventor do blues Robert Johnson, a fazer a clebre pergunta: "Mas quem o outro?" (But who is the other one?) A grande variedade de estratgias documentrias que tambm puderam ser observadas, durante os ltimos anos, em grandes exposies internacionais, parece levar concluso de que a confiana no poder da esttica est minguando. Alis, esse parece ser o caso tambm da literatura, em que as obras de carter jornalstico, as biografias e os livros de auto-ajuda ocuparam os espaos da fico. Tendo em vista o estado precrio em que o mundo se encontra e a urgncia dos seus problemas, artistas e curadores parecem procurar a salvao em anlises cientficas, reportagens e tratados discursivos sobre a realidade, desconhecendo, de modo gritante, as possibilidades dos processos estticos. As colnias da arte so locais de isolamento e ilhas de resistncia em meio a um oceano de mesmice. Aqui a arte desvenda aquelas camadas interiores do mundo que necessariamente ficam ocultas aos modos de observao superficial, sejam elas de natureza poltica ou sociolgica. H muitos indcios de que a arte substituiu a filosofia, na qualidade de grande exegeta do mundo. Os artistas criam uma rea isenta de domnio e, com isto, um mundo contrrio ao que existe na realidade: uma terra do vazio, do silncio e do recolhimento, na qual detido, por um instante, o frenesi que nos envolve. Mas esta tambm uma terra de enigmas, na qual codificada a enxurrada de mensagens simplrias que jorra ao nosso encontro a partir das incubadoras do kitsch. Na medida em que o artista rompe as fronteiras materiais, ele se torna contrabandista de imagens entre as culturas.A ARTE COMO ESPAO LIVRE DE DOMINAO

A arte no conhece hierarquias. A pergunta sobre o que velho ou novo, perifrico ou central, moderno ou primitivo, coloca-se aqui de modo totalmente diferente do que na economia. A arte escapa do calculismo e da histeria da sociedade moderna. Enquanto a indstria continua mobiliando o mundo sem parar, a tarefa mais nobre da arte moderna consiste em limp-lo. Neste contexto, a abstrao exerce um papel privilegiado. Ela foge da tagarelice do mundo moderno e cria um contraponto sublime com ela. Tais pontos de repouso da arte, que permitem ultrapassar o quotidiano, so o verdadeiro corretivo do torvelinho do drama urbano, que tudo deglute. A Terra de Ningum da abstrao liberta o mundo de todo lastro e possibilita um recomeo purificado. A arte, provavelmente, no nos transforma em gente melhor, escreve Harold Bloom num ensaio sobre Shakespeare; mas ela nos ajuda a suportar melhor a ns mesmos e a nossa solido. Ela d vazo ao desejo de sermos um outro e de podermos viajar levados por um raio temporal a lugares inatingveis, onde nos espera um mundo melhor.

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Hans Belting. "ber Lgen und

I A interpretao do mundo, e, sobretudo, a sua transformao em imagens, convoca, junto com a arte, outros meios que concorrem com ela e entre si; em primeiro lugar, as mquinas de imagens da publicidade e o designo Uma enxurrada aparentemente infinita de imagens comerciais estereotipadas jorra sobre o mundo, sem que isso o torne mais compreensvel. Elas criam noes e conceitos que no questionam as circunstncias reais e seus valores, mas os confirmam e lhes do continuidade. O design faz de conta que em algum momento alguma coisa possa estar acabada e perfeita. A arte, pelo contrrio, parte do princpio de que nada fica pronto em momento algum. O design assume uma posio afirmativa diante da sociedade; a arte, uma posio subversiva. O design afirma; a arte pergunta. O design fica gesticulando, nervoso, com a sua pretenso de ditar moda; a arte se basta a si mesma e se permite ter diferenas com a viso idealizada da vida que nos apresentada, por exemplo, pela publicidade. Enquanto esta quer uma reproduo fotogrfica convincente do presente, a arte produz uma imagem do futuro. No fundo, trata-se do exato contrrio. A respeito disso, Hans Belting escreve: "s vezes a pintura moderna forou sua autonomia irradiante a lhe purificar o templo, principalmente por meio da expulso das imagens. Preferiu deixar as imagens infectadas pelo mundo a cargo de outros meios. A pintura, como representante da arte, e as imagens, como protocolos do mundo, declaram guerra entre si:'lGUERRA DE IMAGENS UM DISPARO NO MEIO DO CONCERTO I No necessrio ir to longe como Stendhal, para quem a poltica que penetrasse o reino da imaginao seria como um tiro de revlver em meio a um concerto. Mas a lida imediata com a realidade simultaneamente bem mais e bem menos do que a arte pode dar de si. mais do que ela pode dar, porque a arte no pode impedir uma guerra - talvez possa impedir aquela guerra silenciosa, que se desenrola no nosso prprio peito - e menos do que ela pode dar, porque a arte pode bem mais do que isso, a saber, construir um mundo simblico e mais humano. Embora cada experincia esttica e cada catarse dela resultante seja um processo profundamente subjetivo, em cada caso individual a transformao do indivduo pode ser medida quase empiricamente. Em ltima instncia, a arte mais radical do que a poltica, pois alcana aquelas camadas da alma do indivduo em que se efetua a verdadeira transformao da sociedade humana. A arte est acima dos acontecimentos do dia-a-dia e justamente por isso tem algo mais fundamental a dizer sobre eles. Um mundo que se tornou parecido com o inferno, e no qual o Weltschmerz se arraigou profundamente, no pode ser representado como inferno pela arte, porque assim ela perderia a funo essencial do resistir, do modelo contrrio. Os antagonismos no resolvidos do mundo aparecem, na obra de arte bem-sucedida, a uma certa distncia da realidade. O artista cria algo diferente, algo que no idntico com a sociedade, mas a ela se refere. Neste "deslocamento do comum" (Heidegger), as relaes costumeiras com o mundo e com a Terra so transformadas de tal modo que na

andere Wahrheiten der Malerei" (Sobre mentiras e outras verdades da pintura). Em Catlogo SigmarPolke. Bonn, 1997, P.131.

obra se manifesta uma nova verdade. J Goethe constatava que "no h melhor modo de se esquivar do mundo do que atravs da arte, e no h melhor modo de se atar a ele do que atravs dela".2 Nos ltimos anos a arte ficou, no mundo todo, sobrecarregada de poltica. Os artistas e o pblico sentem-se convocados a mitigar ad hoc a seriedade das circunstncias e os envolvimentos da realidade. Estratgias visuais e plsticas comprovadas so reprimidas em proveito de pomposos discursos sociolgicos. O que se expe no so imagens, mas atitudes politicamente corretas. Deste modo, a arte tornou-se, na melhor das hipteses, redundante; na pior, foi degradada ao nvel do polit-kitsch. Por um lado, a arte repetia cenas que j tinham sido vistas alhures, por exemplo, em reportagens e documentrios. Por outro lado, pregava-se diante de um pblico que j se havia convertido, que j estava mais do que convencido da causa justa, mas que achava que fazia parte de um pequeno crculo de iluminados. Os que ainda no tinham sido iniciados, porm, viravam as costas, decepcionados, pois procuravam em vo por um enigma que outros portadores de imagens, mais banais, no podem fornecer, mas que esperado desde sempre da arte, e com razo. Ningum acusaria Monet, um dos pioneiros da modernidade, postumamente de frvolo, porque antes, durante e depois da Primeira Guerra Mundial, ele pintava infatigvel s ninfias. No fundo, esto em jogo ainda hoje duas concepes rivais de arte, as quais atravessaram todo o sculo xx e cujos defensores mais proeminentes foram Benjamin e Adorno. Enquanto o primeiro representava uma vanguarda hostil obra, tendo a meta de utilizar os potenciais de uma arte engajada para um revolucionamento do quotidiano, Adorno insistia na autonomia da obra de arte e em seu carter enigmtico. Ele rejeitou uma funcionalizao da arte, uma vez que ela renunciaria assim sua transcendncia e "ficaria abaixo de seu conceito", chegando a "perder sua qualidade de arte" [entkunstet]. Na esttica idealista de Adorno, o observador se encontra diante da obra de arte com uma atitude contemplativa para poder adentrar um outro mundo. Depois que as religies perderam sua validade, necessidades metafsicas passaram a habitar a arte moderna.

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J. w. Goethe. "Schriften zurEm Obras de Goethe, voI.

Kunst" (Escritos sobre a arte),1822.

XII. Hamburgo, 1953, p. 469.

I Devido ao seu carter enigmtico, as obras de arte obrigam a procura de interpretaes e reflexes sempre renovadas; em ltima instncia tambm com o objetivo de encontrar o rasto da verdade. Pelo fato de a obra de arte no se deixar guardar em qualquer gaveta, ela um desmancha-prazeres para o mundo administrado que tudo quer dirigir. E nisto que reside fundamentalmente a funo poltica da arte. Mais ainda, na medida em que oferece uma pletora de vises e interpretaes do mundo, bastante freqentemente contraditrias, a arte induz o observador a assumir posio, a julgar, ensina-lhe a capacidade crtica do indivduo. "No h nenhum outro meio de tornar racional o homem sensvel seno torn-lo esttico antes", escreveu Friedrich Schiller j no ano de 1795.3 Toda experincia artstica um processo profundamente subjetivo, que fortalece o indivduo, o que por sua vez um pressuposto central das sociedades democrticas e modernas. A incumbncia social imanente arte, no precisa lhe ser prescrita. A arte no deita em camas que lhe foram feitas, disse Jean Dubuffet. E onde no houver nada de bom a realizar, ela pelo menos assumir a posio do mal melhor do que o prprio mal, como Hegel poderia acrescentar. O fato de as artes plsticas, entre todas as artes, possurem o conceito de material mais radical lhe confere uma extraordinria explosividade no convvio com o mundo e na sua reinveno. Como meio no-verbal, ela ainda especialmente adequada para o intercmbio cultural. E como a teoria da modernidade foi desenvolvida, muito cedo e com muita profundidade, justamente no contexto das artes plsticas, estas se constituem, at hoje, num ponto de referncia importante tambm para as outras artes. A arte emancipadora e se constitui num ataque realidade, tambm porque desperta a saudade de um estado livre de dominao, claro que sem design-lo especificao PARAso NA OUTRA ESQUINA

3. Friedrich Schiller. "ber die asthetische Erziehung des Menschen" (Da educao esttica do homem), 1795. Em Obras de Schiller, vol. 4. Frankfurt, 1966.

mente e sem querer represent-lo de forma bvia. Ela O paraso na outra esquina, para citar o ttulo do mais recente romance de Mario Vargas Llosa, que foi para os mares do Sul procura das pegadas de Paul Gauguin. sabido que o pintor procurou sua inspirao no Taiti, porque, na Europa, a arte, controlada e manipulada por um conventculo de crticos e marchands, tinha perdido a sua vitalidade. Deve-se agradecer a esta idia utpica o fato de que, como o formulou Boris Groys, qualquer visita ao pior museu do mundo, por mais curta que seja, bem mais interessante do que tudo o que a gente pode ver na chamada realidade durante a nossa longa vida. Tambm sabido que o Fausto de Goethe teve a sua experincia do infinito numa biblioteca, para depois perd-la na vida reaL

4. Hans Belting. Op. cit., p. 129.

o DIABO NO TO FEIO COMO SE PINTA I Em sua Crtica dafaculdade dojuzo esttico, Immanuel Kant tentou estabelecer uma hierarquia das artes. O primeiro lugar coube poesia, que deve sua vantagem quase inteiramente ao gnio, sendo a arte menos guiada por preceitos. A msica ele colocou em segundo lugar em virtude do "movimento da alma" que lhe prprio. Vm em seguida as artes plsticas, entre as quais a pintura deveria ser valorizada ao mximo, uma vez que ela, mais do que qualquer outra arte, penetra na regio das idias e amplia o campo da intuio. O longo brao de Kant parece prestar um auxlio valioso tambm aos pintores de hoje. Pois aps dcadas de degredo eles retornam agora ao olimpo das artes plsticas. "Quem determina o fim da pintura Czanne e no M. Duchamp", rabisca na parede Artur Barrio, lacnico como sempre, em uma de suas ltimas instalaes. A pintura se tornara desde os anos 70 uma vtima da politizao superficial, que vinculou a tela com a dominncia do gnio masculino, de Michelangelo a Picasso, e encontrou em novas mdias, como o vdeo, suportes imagticos mais adequados e neutros, possuindo alm disso a suposta vantagem de poder transmitir mais facilmente mensagens sociais e polticas. Junto com a pintura o comportamento apoltico estaria, ento, retornando arte? "No estamos ainda muito habituados a uma pintura que de novo desinibidamente pintura, que no se submete ao programa que denominamos em geral, um pouco irrefletidamente, ARTE. A 'arte da pintura' j existia h muito tempo, quando a ARTE, em sua dignidade abstrata, se fez esperar durante um longo tempo, e por isso ela volta depois de a ARTE ter perdido um pouco de seu monoplio. Na arte no pode haver mentiras, apenas verdade, quando ela mesma uma grande fico, ou ao menos uma idia incerta. Falar de mentira seria na arte uma dura crtica, mas na pintura uma fina descrio, pois ela que dispe de mentiras belas e antigas, se podemos chamar assim seus jogos de reger a percepo, os quais aguardamos como um curioso pblico de teatro. Certamente no percebemos o mundo somente na pintura. Mas na pintura somos como pessoa em conversa com uma outra, que conduz a regncia atrs da percepo. Esse dilogo mudo torna a pintura prazerosa e enigmtica. A pintura torna as verdades mais fceis para ns, vestindo-as com mentiras 'transparentes'. Ela utiliza mentiras com as quais verdades podem ser ditas".4SIMPLESMENTE OBRAS-PRIMAS DESCONHECIDAS

I No seu ateli, na rua Cndido Lacerda,

311, no Recife, Paulo Bruscky colecionou uma histria impressionante da arte e do mundo dos ltimos 40 anos: obras-primas da literatura, escritos cientficos, dissertaes sobre es-

ttica, tratados. Pilhas de recortes de jornal amontoam-se no cho. A elas vm se juntar cartas dos seus colegas do grupo Fluxus. Objetos e pequenas esculturas. Pastas cuidadosamente numeradas com as iniciais das principais naes da arte contm a correspondncia que Bruscky mantm com o mundo artstico; algo quase comparvel com os arquivos da Bienal de So Paulo. Recife como umbigo do mundo; e o artista, um cientista, como no Gegrafo de Vermeer, de 1669. Uma biblioteca como baluarte contra o mundo? Ou ser que a fria colecionadora de Bruscky no tambm uma conclamao muda aos jovens artistas, para que eles estudem, pesquisem, sondem teorias, em resumo, se eduquem? Num dos cantos do estdio desarrumado esto, sem que aparentemente ningum lhes preste ateno, um cavalete empoeirado e vrias paletas com manchas de tinta resse-

quida. As ferramentas do pintor parecem estranhamente deslocadas pela supremacia dos livros, objetos e conceitos. Um smbolo para a crise da pintura, tantas vezes lamentada nos ltimos tempos. O que que quadros pintados ainda podem nos dizer, diante da complexidade do mundo e da pletora de novos suportes, na qual cabem a fax-art e a mail-art do prprio Bruscky? Nessa verdadeira mina que Bruscky montou, esto enterrados, numa mixrdia de papis, todos aqueles quadros imaginrios que no foram pintados na ltima gerao, toda uma srie de obras-primas desconhecidas, para usar as palavras de Balzac. O ateli de Bruscky materializa dois modelos concorrentes de viso do mundo. Um deles coleciona, conserva, analisa documentos, num processo quase cientfico. O outro - aquele pintado com pincel- desprende-se da torrente de informaes e cria um mundo novo, paralelo, s vezes at contrrio. Enquanto o primeiro modelo tem uma pretenso onipotente de interpretao do mundo, correndo, assim, o perigo de se tornar dogmtico, o segundo se contenta em fixar um instante fugidio no emaranhado dos encontros entre os seres humanos e em iluminar a sombra que est encobrindo o mundo. Se a pintura almeja a multiplicidade de formas possveis de compreenso, a cincia se empenha por sua reduo. Obras de arte podem ser abertas e ambguas, um estudo cientfico, no. Por isso a boa arte ser sempre cincia ruim - e vice-versa. O ateli de Bruscky, que ao lado do seu complexo mundo conceitual tambm possui um encanto plstico e uma certa poesia melanclica, ser reconstrudo detalhadamente na Bienal de So Paulo. Mas ela tambm por de lado, por um instante, a sua miscelnea da saudade e revelar todos aqueles quadros imaginrios que nem ele nem seus colegas artistas conseguiram ou puderam pintar nos ltimos anos. Mais do que nunca, na arte de hoje em dia trata-se mais do poder de criar imagens, e menos da capacidade de juntar dados. Esta tarefa a gente pode deixar sem receio a cargo dos cientistas, aqueles cronistas da precariedade do mundo real. O segredo da pintura reside em que uma minscula pincelada rasga o vu do quotidiano e traz luz um novo mundo, cujos enigmas fazem fracassar as estatsticas dos matemticos. "O minsculo abismo que h entre o quadro em si e aquilo que ele significa a fonte de minha pintura" (Luc Tuymans ).5 Em todo quadro tratase, portanto, daquela porozinha da Terra de Ningum, que se situa onde o mundo acaba e a tela comea."D-ME AS CORES"

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5. Jan Thorn-Prikker. "Luc Tuymans: Renaissance der Malerei" [Luc Tuymans: Renascimento da pintura]IN:

Kulturchronik, n.3.

I No primeiro ato da pera Tosca, de Puccini, o protagonista Mario Cavaradossi pinta o retrato de uma nobre loira. De repente, ele pra, tira do bolso de seu colete um medalho com a imagem de sua amada Tosca, e seu olhar vaga repetidas vezes da miniatura ao quadro, que amalgama de maneira misteriosa a beleza das duas mulheres. A coexistncia das rivais, que na vida real s levaria a conflitos, s se pe em obra pela arte, que freqentemente rene o irreconcilivel e torna presente o ausente. S que o cime de Tosca obriga Cavaradossi a pintar de preto os olhos azuis da concorrente, para que o retrato ambivalente se torne mais semelhante imagem exata dela, Tosca. A "recndita harmonia" do quadro, como reza o ttulo da famosa ria de Cavarados si, destruda. Faz parte do poder do pintor criar equilbrio por meio de mnimas intervenes ou destru-lo, criar beleza como num passe de mgica ou aniquil-la. Ora, no dito que a beleza h muito migrou para os sales da moda e que ela no mais um critrio na arte moderna? Um dos mestres da pintura atual, Gerhard Richter, insiste em pintar belos quadros, mesmo que ele desaponte com essa postura "fora de moda" muitos crticos que prefeririam ver mais cenas de violncia. Richter gosta de lembrar que h nele, desde que se pe a pintar, uma imagem mental que, no entanto, s raramente alcana na execuo do trabalho. No caminho rumo a essa "pr-imagem" [Vorbild], ele vai eliminando sistematicamente clichs e detalhes bvios, banais. nessa extino de coisas desnecessrias que consiste a abstrao da pintura, o que se aplica, vale lembrar, tanto aos quadros figurativos como aos abstratos. Desse modo descrevemos tambm a diferena em relao fotografia. Comparada pintura, que cria imagens puras, a fotografia produz paradoxalmente imagens impuras, pois em uma fotografia

Bonn, 2003.

sempre aparecem furtivamente pequenas falhas de natureza tcnica ou irregularidades no pretendidas, baseadas em contingncias. A pureza de um quadro consiste justamente no filtro dos detalhes e na renncia demasia. Quanto a isso, Luc Tuymans gosta de contar a seguinte anedota: quando Constant Permeke, no ano de 1940, durante a abertura de uma exposio em Bruxelas, foi criticado por uma dama, para quem seus quadros seriam "um pouco vazios", ele tomou o batom dela e desenhou em um de seus quadros alguns soldados pra-quedistas caindo do cu. Voil! Dois dias mais tarde, seu pas encontrava-se em estado de guerra. Por que a pintura, que tambm na Bienal representada de maneira proeminente, volta a vivenciar hoje um renascimento? Por que ela voltou a ganhar peso na disputa eterna do "paragone", daquela hierarquia das artes cultivada na Renascena? Certamente desejase sua aura especial, que faz o prximo parecer afastado e vai buscar o distante. Seguramente a discusso crtica com o Zeitgeist (esprito do tempo) e com o lifestyle desempenha um papel, e seguramente trata-se tambm de singularidade e autenticidade artesanal em vista de uma avalanche de meios tecnicamente reproduzveis. As imagens estticas da pintura tm o efeito de uma ncora no fluxo de imagens mveis e manipulveis, nas quais ningum acredita mais. As imagens silenciosas levantam-se contra o alarido e a superexcitao do mundo comercial. Mas talvez o principal motivo seja que a pintura no se comporta mimeticamente diante da realidade, seno que suspende suas leis e faz as coisas do mundo aparecerem em forma prototpica e em sobrelevao simblica. O pintor continua a perseguir uma imagem ideal do ser humano e do mundo, que todos ns possumos, desde os primrdios.

Alfons Hug

Image Smugglers

Luc Tuymans, Plant, 2003, detalhe [detailJ, leo sobre tela [oil on canvas], 167,5x95,5cm, foto [photo] Felix Tirry, cortesia [courtesy] Zeno X Gallery, Antwerp; David Zwirner Gallery, New York

Set in the deserts of the Persian Gulf, Shirin Neshat' s video Passage focuses on the state of limbo between life and death that can only be comprehended by art and religion. This noman's-land, where time and space become one, appears as a blank patch on the map. On the one hand it lies beyond the reach of the conquered world, on the other, it is like a spiritual force field that radiates beyond life. With this burial ritual, full of bewitching beauty, the Iranian artist celebrates a great moment of loss, but also of redemption. The concept ofno-man's-land is ofmilitary origin and describes a disputed area between two fronts. The no-man's-land referred to here has three dimensions, namely, physical-geographical, sociopolitical, and finally an aesthetic dimension which is, of course, the one that is of most interest to us in the context of our exhibition. The first denotes not only mythical, uninhabited natural spaces such as mountain ranges, primeval forests and deserts, but also wastelands and abandoned zones in our big cities - as well as all kinds of areas that are difficult to define or highly disputed: war zones, refugee camps, pirate radio stations, tax havens, letterbox firms, off-shore abortion clinics and smuggling routes in border regions. Eighty percent of the city of Caracas is illegally inhabited, and seventy percent of Venezuelan children are born out ofwedlock. Entire districts ofRio de Janeiro are extraterritorial zones cut off from state jurisdiction. Curiously, the same applies to many prisons. The population of most megacities is not known even to their mayors, and city maps, ifthey exist at all, are outdated within a year. In the struggle to survive in the metropolises, curious sociotopes develop in the most unlikely places: in deserted high-rise buildings or beneath freeway bridges where, in So Paulo for instance, craftsmen have settled in semi-nomadic conditions. These unstable zones are characterized on the one hand by poverty and exclusion, on the other by an astonishing degree of productivity and creativity. On the sociopoliticallevel, no-man's-land means that in manyThird World countries the so-called informal sector comprises over half the working population, but also that the socalled globalisation is fed by invisible financiaI sources and the locationless Internet. At the same time, entire continents, such as Africa, are being cut adrift from the rest of the world

and left to their fate. The term no-man's-land also applies to the bankrupt social systems and murky political conditions that hold sway in many parts of the world. In the meantime, human relationships have become increasingly deregulated and vague, often to the point of desolation. Even language has wandered off into a cultural no-man' s-land, which seems like an impoverishment to some, an enrichment to others. The cacophony of the mass media engenders speechlessness, and the flirt ofvisual images results in a dearth of contento The lack of points of contact between different civilizations leads to a dangerous vacuum. In this way cultural differences, which could in fact be productive, become absolute and irreconcilable. Can Brazil, whose population embraces 143 different shades of skin color according to a recent survey, serve as a positive mo deI here?ART AS A POWER-FREE ZONE

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I The no-man' s-land of aesthetics begins where the normal

world ends. It designates the area in which reality and imagination are in conflict with each other. Artists are border guards of a realm that lies beyond the administered world, where the power of interpretation is no longer a sovereign right of politicians or economic gurus. While the whole world is constantly arguing over what belongs to whom, art clarifies the ownership question in its own way: in the realm of aesthetics everything belongs to everyone. What interests us in the context of the Bienal is whether and how the forms of noman's-land described above, specifically,the devastations of the real world and interpersonal relations, are reflected in art. Since works of art are more than bare facts, an artistic condensing of phenomena of reality wiIl always be more ambiguous and more complex than simple reporting. This ruI e even applies if the artist uses photography and video, i.e., two media regarded as being very close to reality. Although artists are "embedded" into conflicts (to use an expression from recent war reporting), they do not copy the world, but create free spaces within reality. With the help of metaphors and symbols they transform the earthly raw material into a new condition that can be experienced by the senses. Art exists outside of causality and must not be imprisoned in the iron casing of mundane constraints. The purpose of a biennial cannot, therefore, be to exhibit convictions. Every successful work of art tells a second story in addition to what it portrays, and behind every artist stands a second, unknown author. It was the latter principIe that led the rock musician Keith Richards, when listening to a solo recording by Robert Johnson, the legendary blues genius, to ask the famous question: "But who is the other one?" The multiplicity of documentary strategies that has been observed even at major international exhibitions over the last few years suggests that confidence in the power of aesthetics is dwindling. This also seems to be the case in literature, by the way, where journalistic works, biographies and guides have displaced fiction. Confronted with the precarious state of the world and the urgency of its problems, artists and curators appear to be seeking their salvation in scientific analysis, reportage and discursive treatises on reality, flagrantly underestimating the possibilities of aesthetic processes. The colonies of art are places of seclusion and islands of resistance in a sea of uniformity. Art reveals those inner layers of the world that remain hidden to the superficial gaze of politics and sociology. There is a great deal to say in favour of the assertion that art has taken the place of philosophy as the interpreter of the world. Artists create a power-free zone, a world that runs contrary to the existing one: a land of emptiness, of silence and respite, where the frenzy that surrounds us is brought to a standstill for a momento But it is also a land of enigmas, where the flood of images surging in on us from the breeding grounds ofkitsch are encrypted. By breaking through the barriers of the material world, the artist becomes a smuggler of images between cultures. Art knows no hierarchy. The question of what is old or new, peripheral or central, modern or primitive, is posed in a way entirely different to that of economics. Art eludes the calculating ways and the hysteria of modern society. While industry continues to furnish the world, the prime task of contemporary art is to purify it. Abstraction plays a privileged role in this contexto It avoids the garrulousness of the modern world and creates a sublime counterpoint. These refuges of art, which enable the

imagination to extend beyond the everyday sphere, are in fact the corrective to the alI-consuming maelstrom of the urban drama. The no-man' s-land of abstraction frees the world of alI its balIast and makes a purified new beginning possible. In the realm of abstraction, says Kandinsky, every form is a citizen with equal rights. Although art does not necessarily make us better human beings, writes Harold Bloom in an essay on Shakespeare, it does help us to put up with ourselves and our loneliness more easily. Art generates the desire to be someone else and to traveI along a timeline to inaccessible places.THE WAR OF PICTURES

1. Hans Belting, "ber Lgen und

I The task of interpreting the world, and particularly its transformation into pictures, attracts other, competing media into the arena in addition to art: first and foremost the picture machines of publicity and designo The world is being inundated bya never-ending flood of commercial clich pictures, without becoming any easier to understand as a resulto They generate ide as and concepts that do not question real conditions or their values, but confirm and continue them. Design operates on the assumption that something can ever be finished and completed. Art, by contrast, assumes that nothing is ever finished. Design behaves in an affirmative way vis--vis society, while art is subversive. Design asserts, art asks. Design excitedly brandishes its claim to be fashionable; art is self-sufficient and alIows itself differences from the idealised picture of the life offered to us, for instance, by advertising. Whereas the latter wants a convincing photographic image of the present, art produces a picture of the future. FundamentalIy it is the precise opposite of art. Hans Belting writes on this subject: "Classical modern painting was sometimes only able to enforce its radiant autonomy by driving out the pictures, in order to cleanse its temple. It preferred to leave the pictures, which were infected by the world, to other media. Painting, as the representative of art, and pictures, as records of the world, declared war on each other:'l

andere Wahrheiten der Malerei" [On Lies and other Truths in Painting], catalog on Sigmar Polke, Bonn, 1997, p.131.

A GUN SHOT IN THE MIDDLE OF A CONCERT

2. ].W.

Goethe, "Schriften zur

Kunst" [Writings on Art], 1822, IN Goethes Werke [Goethe's Works], volume XII, Hamburg, 1953, p. 469.

I We need not go as far as Stendhal, who said that politics, when it penetrates the realm of the imagination, is like a gun shot in the middle of a concerto Even so, expecting art to directly change reality is simultaneously expecting too much and too little of it: too much, because it cannot prevent a war - it can at best ease the warraging in our own breasts - and too little, because it can do much more than that: it can establish a humane counter-world to an inhumane present. Although every aesthetic experience, and the catharsis that results from it, is something eminently subjective, in specific cases the transformation of the individual can almost be measured empirically. Ultimately, art is more radical than politics, because it reaches into the spirituallevels of the individual, where the real transformation of human society takes place. Art stands above day-to-day events and has something fundamental to say to them precisely for this reason. A world which has beco me similar to helI and in which Weltschmerz has beco me deeply ingrained cannot be depicted by art as helI, because it would then lose its essential function of standing firm, of being the counter-model. In a successful work of art the unresolved antagonisms of the world appear at a distance from reality. The artist creates something different, something that is not identical to society, while nevertheless referring to it. In this "disarrangement of the normal" (Heidegger), the accustomed references to the world and to the earth are transformed in such a way that a new truth opens up in the work. Goethe already noted that "there is no more reliable way of retreating from the world than through art, and there is no more certain way of combining with it than through art:'2 In the last few years art has become overloaded with day-to-day politics. Artists and their audiences are calIed upon to alIeviate the adversities of reality on an ad-hoc basis. Tried-and-tested visual and sculptural strategies are suppressed in favour of pretentious sociological discourses. Exhibitions frequently show not pictures, but politicalIy correct attitudes. As a result, art at best becomes redundant and at worst is degraded to political kitsch. On the one hand, it repeats scenes already seen elsewhere (for example in reports

and documentaries); on the other, people preach to the converted, to an audience who are already convinced of the just cause and may regard themselves as members of a small circle of enlightened people. At the same time, those who are not yet initiated turn away disappointed, since they are looking in vain for an enigma that other, more banal pictures cannot supply, but which is always justifiably expected from art. Nobody in his right mind would accuse Monet, one of the pioneers of modernity, of frivolity, because he undauntedly kept on painting water lilies before, during and after World War I. Basically there are still two rival conceptions of art today which can be followed through the entire 20th century and whose most prominent representatives were Benjamin and Adorno. The former represented an avant-garde aimed at using the potential of committed art to revolutionise everyday life; Adorno, by contrast, insisted on the autonomy of the work of art and its mysteriousness. He rejected any functionalisation of art, because this would involve art giving up its transcendence, it would "descend beneath its concept:' Indeed, it would become "de-arted:' In Adorno' s idealistic aesthetics, the observer encounters the work of art with a contemplative attitude, in order to be able to cross over into a different world. After the loss of validity by religions, metaphysical needs survive in modern art.

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I Because oftheir enigmatic character, works of art force us to continuously re-interpret and reflect, ultimately also with the objective of getting closer to the truth. Because the work of art cannot be unequivocally classified, it is a thorn in the flesh of the administered world, which would like to direct everything. This is basically where art' s political function lies. More than that: by offering an abundance of complex world-views and interpretations - often enough contradictory ones - art tempts the viewer to make a statement, a judgment, to be stubborn and criticaI. As Friedrich Schiller said as early as 1795: "There is no other way of making the sensitive human being reasonable than by previously making him aesthetic."3 Every aesthetic experience is a deeply subjective process which strengthens the individual, and this in turn is a central precondition of democratic and modern societies. The social assignment is inherent in art; it does not need to be told to do it. Art does not lie down in beds that have been prepared for it, to quote Jean Dubuffet. And, as Hegel would add, even where there is nothing good to be done, art will at least always do a better job of taking evil' s place than evil itself. The fact that visual art has a more radical concept of material than all other forms of art makes it extremely explosive in the way it deals with the world and its re-invention. As a non-verbal medium it is furthermore particularly suitable for intercultural exchange. Since the theory of modernity was developed particularly early and profoundly in the visual arts, the latter still form an important point of reference to this day, also for the other forms of art. One reason why art is emancipatory and represents an attack on reality, therefore, is that it arouses a longing for a power-free condition, albeit without wanting to explicitly name the latter or depict it as a picture. It is the "paradise just around the corner" to paraphrase the original title in Spanish of the most recent novel by Mario Vargas Llosa, who wandered in Paul Gauguin' s footsteps in the South Seas. As we know, the painter had sought inspiration in Tahiti, because art had lost its vitality in Europe, where it was controlled and manipulated by a clique of critics and gallery owners. It is due to this utopian idea that, as Boris Groys put it, the briefest visit to the worst museum in the world is a thousand times more interesting than anything you get to see during your long life in so-called reality. Goethe' s Faust also experienced the infinite in the library, only to lose it later in reallife.THE PARADISE JUST AROUND THE CORNER

3. Friedrich Schiller, "ber die asthetische Erziehung des Menschen" [On the Aesthetic Education of Mankind], 1795 IN: Schillers Werke [Schiller's Works], voI. 4, Frankfurt, 1966.

(Brazilian proverb) IIn his Critique DfAesthetic judgement, Immanuel Kant attempts a rating of the arts. He puts poetry in first place, since it owes its creation almost completely to genius and is least governed by regulations. Music comes second due to its characteristic "movement ofthe soul:' Next he places fine arts,THE DEVIL IS NOT AS UGLY AS HE IS PAINTED

4. Hans Belting, "ber Lgen und andere Wahrheiten der Malerei", loco cit., Bonn, 1997, P.129.

within which painting is valued most highly since it penetrates more than other arts into the region of ideas and also expands one' s field of vision. The long arm of Immanuel Kant also seems to be giving valuable assistance to the painters of today. For, after decades of banishment, they are now returning to the elite of the fine arts. Artur Barrio, laconic as always, scribbled the following on the wall in one ofhis last installations: "Who determines the end of painting is Czanne and not M. Duchamp:' Since the 1970S, painting had become a victim of superficial politicisation, which connected the canvas with the dominance of male genius from Michelangelo to Picasso and found more suitable, neutral image-carriers in new media such as video, which also had the supposed advantage ofbeing able to transport social and political messages more easily. Has nonpolitical behaviour therefore returned to art with painting? "We have not yet quite grown accustomed to a form of painting that is again openly just painting, without submitting to that program we usually rather thoughtlessly call ART. The 'art of painting' already existed long before ART arrived on the scene in its abstract dignity, and that is why it is coming back today, now that ART is losing part of its monopoly. There must be no lies in art, only truth, even though it is one big fiction itself, or at least an uncertain idea. It would be a tough accusation to talk of lies in art; in painting, however, it would be a subtle description, for it has at its disposal beautiful and old lies, if we may use such a term to describe its well-established mise-en-scene ofperception, for which we wait like a curious theatre audience. We perceive the world not only in painting. But in painting we are in conversation as a person with another person, who is the director behind the perception. This mute dialogue makes painting full of relish and mystery. Painting makes truths easier for us by dressing them up in "transparent" lies. It uses lies with which one can say truths:'4NOTHING BUT UNKNOWN MASTERPIECES I In his studio at 311 Rua Cndido Lacerda, in Recife, Paulo Bruscky has compiled an impressive history of art and the world covering the last 40 years: classics of belles-lettres, scientific writings, discourses on aesthetics, treatises. Mountains of newspaper cuttings pile up on the floor, plus letters from colleagues of the Fluxus movement, objects and smaIl sculptures. Neatly numbered files with the initials of the most important art countries contain Bruscky' s correspondence with the world of art; it is almost comparable with the Bienal de So Paulo s archive. Recife as the hub of the universe, and the artist a scientist, as in Jan Vermeer' s Geographer of 1669. A library as a bulwark against the world? Or is Bruscky' s passion for coIlecting perhaps also a mute plea to young artists to study, to investigate, to fathom out theories, in short to educate themselves? Ignored in a corner of the untidy studio lie a dusty easel and several paIlets with driedup blobs of paint. The painter' s tools seem strangely out of place in view of the supremacy of the books, objects and concepts. A symbol of the crisis of painting that has been evoked time and again over the last few years. What can painted images still tell us in view of the complexity of the world and the wealth of new media, including Bruscky' s Fax and Mail Art? AlI the imaginary pictures that have not been painted during the last generation are buried under a mass of paper in Bruscky' s treasure trove: nothing but unknown masterpieces, to use Balzac' s words. Bruscky' s studio personifies two competing models of a philosophy of life. One coIlects, preserves, sifts through documents, proceeding almost scientificaIly. The other - the one painted with the brush - separates itself from the torrent of information and creates a new, paraIlel, sometimes even a contrary world. Whereas the first method has an all-embracing claim on the interpretation ofthe world and therefore runs the risk of becoming dogmatic, for the second it is enough to record a fleeting instant in the intricate network of human encounters and brighten the shadow that has covered the world. Painting aims at the fuIl diversity of possible ways of understanding, while science strives to reduce them. Works of art can be open and ambiguous, a scientific study cannot. For this reason, good art wiIl continue to be bad science - and vice versa.

The Bienal wilI reconstruct Bruscky' s studio down to the last detail in So Paulo; in addition to its conceptual value, it also possesses a sculpture-like attraction and a certain melancholy poetry. Furthermore, it moves his hodgepodge of nostalgia to one side for a moment and airs alI those imaginary pictures which he and his artist colIeagues were unable to paint, indeed not alIowed to paint, over the last few years. More than ever before, the art of today is again concerned with the power of creating pictures and less with the ability to colIect data. We need have no hesitation in leaving that task to the scientists, those chroniclers of the inadequacy of the real world. The mystery of painting lies in the fact that a tiny brushstroke tears up the veil of the ordinary and brings to light a new world whose mysteries cannot be solved by mathematicians' statistics. "The tiny gap that exists between the picture itself and what it means is the source of my painting" (Luc Tuymans). 5 Every painting, therefore, also has to do with the piece of no-man' s-land that lies where the real world ends and the canvas begins.DAMMII COLORI I In the first act ofPuccini's opera Tosca, the protagonist Mario Cavara-

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5. Jan Thorn-Prikker, "Luc Tuymans: Renaissance der Malerei" ("Renaissance ofPainting"), Kul-

turchronik no. 3. Bonn 2003

dossi paints the portrait of a blonde aristocratic woman. Suddenly he stops, pulIs a medallion containing the picture of his beloved Tosca out of his waistcoat pocket, and lets his eyes wander several times between the mini ature and the painting, which in some mysterious way unites the beauty of the two women. The coexistence of the female rivaIs, which in reallife would lead to conflicts, can only be achieved peacefulIy by means of art, which often enough unites the irreconcilable and lets things that are absent be present. Only Tosca' s jealousy persuades Cavaradossi to paint over the rival' s blue eyes with black paint to make the ambivalent portrait look more like her, Tosca. The picture' s "hidden harmony" - also the title of Cavaradossi' s famous aria - is disturbed. The painter has the power to either create or ruin constancy by tiny interventions, to conjure up or destroy beauty. It should not be said that beauty has long-since taken itself off to the fashion salons and is no longer a criterion in modern art. One of the masters of contemporary painting, Gerhard Richter, insists on painting beautiful pictures, even if this "old-fashioned" attitude disappoints some critics who would prefer to see more violent scenes. Richter likes to point out that, in his case, painting begins with a mental picture which, he says, he rarely reaches in the execution ofhis work On the road to this "model" (Vorbild) he then systematically eliminates the more obvious, banal details and clichs. Abstraction in painting thus consists in this erasing of unnecessary things, and this applies to both figurative and abstract pictures, it should be noted. It also describes the difference between painting and photography. ParadoxicalIy, photography produces impure pictures compared to painting, which creates pure pictures, because, in the case of a photograph, smalI technical errors or unintended, coincidental irregularities always creep in. Hence, the purity of a painting consists precisely in the loss of details and the decision to avoid overloading. Luc Tuymans likes to telI the folIowing anecdote in this context: at the opening of an exhibition in Brussels in 1940, Constant Permeke was criticized by a lady who said that his paintings were "somewhat empty;' whereupon he borrowed her lipstick and drew a few paratroopers falling from the sky into one of his pictures. Voil, two days later his country was at war. Why is painting, which is also prominently represented at the Bienal, today yet again experiencing a rebirth? Why has it made up ground in the eternal dispute ofthe "paragons;' the hierarchy ofthe arts so popular during the Renaissance? Certainly there is a demand for its special aura that makes things that are close look distant, and things distant look close. Certainly the criticaI tussle with the Zeitgeist and lifestyle, as propagated by the mass media and advertising, plays a role, and it certainly has something to do with singularity and authentic craftsmanship in view of an avalanche of technicalIy reproduced media. The static pictures of painting have an ancho r effect in a flood of mobile, manipulable pictures that nobody trusts any more. The quiet pictures, which invite one to observe undisturbed, oppose the noise and the overstimulation of the commercial world.

The principal reason, however, is probably the fact that painting does not behave in a mimetic way toward reality, but annuls the laws of reality to make the things of the world appear in a prototypical and symbolically heightened formo The painter is still hunting for an ideal picture of humanity and the world that we have had in our minds since primeval times.

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]acopo Crivelli Visconti

A madeira podre do Paraso Terrestre

pginas anteriores [previous pages] Thiago Bortolozzo, croqui para projeto [sketch for project] Vital

Brasil, 2004, madeirite [plywood],dimenses variveis [dimensions variable], foto [photo] Juan Guerra

Maxim Malhado, Sobressalto, 2001, detalhe [detail], madeira [wood]: ripo agreste, pau rolio, dimenses variveis [dimensions variable], coleo [collection] Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador, foto [photo] Mrcio Lima

Srgio Buarque de Holanda inicia a sua Viso do Paraso demonstrando que a mentalidade portuguesa, no tempo da conquista, era decididamente pragmtica. Embora, ao longo do livro, essa caracterstica fundamental do pensamento lusitano se v diluindo e assumindo contornos menos definidos, fica evidente a atitude fundamentalmente diferente daquela que impelia os navegadores de Castela, a comear pelo prprio Cristvo Colombo, a ligar tudo o que descobriam tradio bblica ou literatura fantstica de viagem dos sculos anteriores, repetindo, sobretudo, seu aspecto mais fortemente mtico e hiperblico. Em outro ponto, o mesmo autor compara as ruas traadas pelos castelhanos - que, independentemente da topografia local, sempre seguiam um plano quadriculado rgido - s ruas dos portugueses, que, ao contrrio, costumavam modificar o traado urbano original para adapt-lo ao contorno de rios, lagos e morros, a ponto de torn-lo irreconhecvel. evidente, nessa oposio, a diferena com que os dois povos conquistavam o novo mundo: os espanhis, sobrepondo sua utopia realidade; os portugueses, pousando sobre o territrio com o caracterstico desleixo, no desprovido de senso prtico. Mas mesmo no Brasil foram traadas ruas retas, capazes de se sobrepor realidade geogrfica para atingirem, diretamente, uma dimenso fantstica. Como o Peabiru, caminho aberto, ao que parece, pelos Incas e no qual os portugueses acreditaram reconhecer as pegadas de Toms de Aquino; ou, em anos relativamente recentes, a Transamaznica, provavelmente O mais colossal e espetacular malogro da histria brasileira, ferida aberta a testemunhar a desmedida vontade de poder dos militares. Fruto de uma deciso autoritria e emocional, no respaldada por estudos ou anlises que avaliassem sua utilidade, a Transamaznica propriamente uma empresa mtica, no sentido dado a essa palavra pelos colonizadores. Insana e desastrosa, pela violncia com que testa a resistncia do povo e da terra, lembra o navio iado sobre a montanha pelos ndios de Fitzcarraldo. Mesmo no Brasil, enfim, e desde os tempos da conquista, o poder da imaginao rivaliza com o da experincia.A ESCOLHA DE PERa VAZ DE CAMINHA

I Em 1 de maio de 1500, Pero Vaz de Caminha, escrivo da frota de Cabral, assinava a sua famosa carta a El Rey D. Manuel, em que fazia o primeiro relatrio oficial da descoberta da nova terra, batizada de Ilha de Vera Cruz. de

ampla aceitao a conveno de se considerar esse documento como a certido de nascimento do Brasil. Embora arbitrria, a definio pertinente: a carta tinha uma funo no s oficial, mas, em certo sentido, burocrtica. Era o carimbo que, em presena da histria, confirmava que a nova terra acabava de ser descoberta. Alm disso, exatamente como uma certido de nascimento, o documento conferia valor jurdico a um evento que, na realidade, ocorrera algum tempo antes. Isso porque, em 1498, aportara no Brasil o navegador portugus Duarte Pacheco; no ano seguinte, fora a vez do espanhol Vicente Pinzn; outros navegantes, anos antes, j haviam tocado ou pelo menos avistado as costas americanas. Isso demonstrado por cartas nuticas, relatrios dos muitos espies pagos pelos vrios governantes europeus e at por afrescos, como os da capela de Rosslyn, que descreviam o novo mundo de maneira extraordinariamente detalhada, muito antes da sua descoberta oficial. Outro fato que o demonstra, ou pelo menos leva a suspeitar, a prpria histria do famoso Tratado de Tordesilhas, com que a Espanha e Portugal, mediante aval do papa, em 1494 repartiram entre si o mundo que ainda estava para ser descoberto. Como se sabe, o tratado modificava um acordo do ano anterior, deslocando 1.300 km a oeste a linha que definia a fronteira entre as possesses de cada pas, de tal modo que Portugal "anexava" o Brasil, na poca ainda no descoberto. No importa aqui estabelecer quem foi o primeiro a tocar as costas do Brasil nem quando isso aconteceu; o aspecto interessante de toda a questo que a verso universalmente aceita, at nossos dias e a despeito das demonstraes em contrrio, a imposta pela historiografia oficial. No esse o nico caso em que, na encruzilhada entre a realidade e uma interpretao imaginria, inspirada por necessidades polticas, pelo mito ou por aspiraes utpicas, o Brasil opta por renegar a realidade e alicerar-se em bases fantsticas. Se, sob essa tica, relermos a carta de Pero Vaz de Caminha, no poderemos deixar de notar um trecho revelador. Quando ele conta os primeiros contatos com os ndios e a maneira como os gestos deles eram interpretados, pelos portugueses, como sinais da existncia de grandes riquezas no territrio recm-descoberto, o escrivo assume conscientemente uma atitude to caracterstica da colonizao portuguesa e dos efeitos que ela exerceria sobre a futura nao, que j poderia ser definida como brasileira: "isso tomvamos ns nesse sentido, por assim o desejarmos!" A escolha de Pero Vaz de Caminha fundamental, demonstra que a abordagem pragmtica e emprica de que falava Srgio Buarque de Holanda era filtrada por um processo intelectual. Entre a realidade, ainda em grande parte obscura, rica de plantas nunca vistas, animais desconhecidos e homens que se exprimiam numa lngua incompreensvel, e o sonho que levavam consigo, de riquezas fceis e infinitas para serem colhidas no primignio paraso recm-descoberto, o escrivo e os navegantes de Cabral optam pelo segundo. Sem saber, esto dando incio, desse modo, a uma duradoura separao entre a realidade e o mito que a circunda, sobrepondo ao mundo natural um universo metafrico. Certamente verdade, de resto, que, antes de serem descobertos, o Brasil e o restante do continente estavam enterrados debaixo de um manto de imaginrio fantstico, to pesado que seria quase impossvel no ser por ele subjugado. Pensemos no nome da nova terra, esse Brasil que to rapidamente substitui o bem mais politicamente correto Vera Cruz, que tanto agradava a EI Rey. A explicao etimolgica mais difundida diz que o nome deriva da rvore pau-brasil, que desde os primeiros anos se transformou na mercadoria mais procurada no mercado internacional devido ao corante que dela se extraa. Assim tambm se explicaria a definio dos seus habitantes, brasileiros, cuja desinncia remete a navegadores e mercadores, no a povos. Mas tambm existe outra teoria, bem mais sedutora, segundo a qual o nome deveria ser vinculado mtica Hy Brazil, terra fantstica, corrente na mitologia cltica, cujo nome remontaria raiz bress (bendizer), e da qual deriva a terra brasilis que freqentemente aparece nos mapas nuticos medievais de toda a Europa, em meio a mares ento ainda inexplorados. A selva de lendas com que o Velho Continente povoara o mundo inexplorado para alm das Colunas de Hrcules lanava, havia sculos, a sua sombra premonitria sobre o Novo Mundo. O momento do aportamento no foi um incio.

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Estas consideraes sugerem uma releitura do mito fundador da antropofagia, proposto por Oswald de Andrade no seu Manifesto antropfago (1928), em que as apropriaes culturais ocorridas ao longo da histria brasileira (e as futuras) eram reavaliadas e justificadas como nico procedimento autenticamente local. De um modo paradoxal, justamente o fato de o canibalismo ter estado na moda em Paris algum tempo antes de entrar na moda em So Paulo - pelo menos a partir do Manifeste cannibale dada (1920) de Picabia - que d valor ao genial achado de Oswald de Andrade. De fato, todos os grandes mitos de que a cultura brasileira se nutriu j lhe diziam respeito, de algum modo, avant la lettre. A antropofagia cultural brasileira , portanto, uma auto-antropofagia. Autofagocitando-se, o Brasil cria-se a si mesmo e ao mesmo tempo se instrui sobre o melhor modo de conceber-se, indiferente s eventuais fraturas entre a realidade e a sua interpretao.DIFUSO, ESQUECIMENTO E SOBREVIVNCIA DAS LNGUAS GERAIS I Se bem que as fontes discordem sobre o nmero total, parece provvel que, na poca do desembarque europeu no Brasil, seus habitantes falassem mais de mil lnguas diferentes. Os colonizadores no se mostraram muito interessados em aprender as lnguas dos ndios, mas foram substitudos nisso pelos jesutas, que tinham, entre suas tarefas mais importantes, exatamente a de aprender a lngua local, em qualquer lugar do mundo, para facilitar a catequese. A arte de gramtica da lngua mais usada na costa do Brasil, publicada pelo padre Jos de Anchieta em 1595, uma das primeirssimas tentativas de sistematizar a lngua local para torn-la compreensvel e facilitar seu uso por parte dos jesutas. Como j se notou, alm dos mritos inegveis da obra, Anchieta esquematiza a lngua tupinamb sempre a partir da gramtica latina. Coerente com o fim exclusivamente prtico do seu livro, que desse modo era simplificado, Anchieta fora a lngua local a caber na estrutura gramatical do latim. Se, por um lado, possibilita a sua utilizao, por outro inaugura a reduo das lnguas locais a um idioma no-natural, e enseja uma involuntria confirmao da ontolgica incomunicabilidade entre os colonizadores e a terra que querem colonizar. Para superar a confuso causada pelo grande nmero de lnguas faladas pelos ndios' os jesutas foram os principais agentes da inveno e difuso das chamadas lnguas gerais. Calcadas nas lnguas indgenas mais difundidas nas vrias reas do continente, ou nas lnguas que mais se prestavam divulgao da doutrina crist, as lnguas gerais eram ensinadas aos ndios nas misses e nas chamadas aldeias de descimento, misses prximas a cidades e fortes, onde os indgenas eram reunidos antes de serem destinados ao trabalho nas misses ou ao servio dos colonos. Ainda que teoricamente engessadas ao longo dos sculos, as lnguas gerais sofreram constante evoluo, acompanhando a mutvel composio das populaes das misses e sobretudo das aldeias. Ademais, visto que seu uso acabava por favorecer as transaes comerciais, elas se difundiram bem alm dos centros missionrios e tambm entre os colonos, a ponto de tornar-se o principal instrumento de comunicao em diferentes regies. Vrias fontes confirmam que, ainda em meados do sculo XIX, as lnguas gerais eram as mais usadas por todos os grupos tnicos de vastas reas da Amaznia e em todo o Estado de So Paulo. Segundo Roland Barthes, a escrita se aproxima do grau zero quando renuncia a qualquer ambio literria ou estilstica. Seguindo Barthes, poderamos dizer que as lnguas gerais foram criadas para ficarem o mais perto possvel do grau zero, como demonstra o fato de terem nascido com uma funo nica e bem definida: possibilitar que os jesutas cumprissem sua misso catequtica. Se a finalidade celestial, o meio que permite atingi-la absolutamente mecnico; metodicamente, na seleo que leva lngua geral, so alijadas as palavras ou as expresses que no sirvam a esse fim, e substitudas por frmulas de outras lnguas locais ou mesmo portuguesas ou espanholas. Se numa lngua antiga como a francesa, ou mesmo a portuguesa, o grau zero precisaria ser atingido despojando-a das inevitveis e seculares estratificaes, as lnguas gerais j nasciam mecnicas, depuradas at da maioria das elegncias estilsticas e metafricas das prprias lnguas indgenas das quais derivavam. E mecnicas deveriam continuar sendo, segundo as aspiraes de seus criadores.

Apesar das graduais transformaes, portanto, durante todo o perodo de sua existncia, as lnguas gerais se mantiveram claramente prximas do grau zero, e exatamente essa caracterstica esteve entre as causas de sua extino. Consideradas lnguas semi-oficiais durante os primeiros sculos de dominao portuguesa, foram proibidas em 1758 pelo marqus de Pombal, que se propunha desse modo diminuir o poder dos jesutas, mas continuaram prosperando. No entanto, no sobreviveram criao de um Estado nacional. Houve quem observasse que um Estado desptico no teria motivos para combater energicamente lnguas diferentes das faladas na corte, visto que a entidade nacional, a rigor, se limitava famlia real. Para um Estado com soberania nacional, porm, a identidade lingstica dos cidados tem absoluta importncia, e as lnguas gerais no conseguiram continuar convivendo com o portugus no Brasil republicano. Fundada sobre um modelo positivista e utopista (outros mitos que devem ser somados aos que j formavam sua espinha dorsal imaginria), a nova Repblica nascia projetada para o futuro, ansiosa por construir uma slida identidade cultural. A esse fim, naturalmente, no poderia servir uma lngua at ento limitada ao grau zero, que precisaria ainda de vrios sculos para, atravs de lentas estratificaes, atingir o status de lngua "digna" de uma nao moderna. Caindo em desuso, as lnguas gerais foram logo eliminadas, apagadas da memria nacional juntamente com outro grande acontecimento histrico pr-nacional, a diviso das possesses portuguesas em duas colnias completamente autnomas, para dar lugar construo retroativa de um Brasil mtico, desde sempre unido na terra e no idioma. Prosseguindo - autonomamente, pela primeira vez - no caminho traado pelos portugueses, o Brasil apagava a realidade, recriando a histria imagem e semelhana de seus prprios desejos. Apesar de tudo, as antigas lnguas indgenas sobrevivem na toponmia, em nomes de cidades, rios e montanhas, e em botnica. Nomes como Niteri, Moema, Itaim e Curitiba; Tiet, Iguau, Jacare e Tatu; Mantiqueira, Itatiaia, Itacolomi; e ainda jabuticaba, abacaxi, mandioca, samambaia ... so vestgio de um passado que no foi possvel apagar. ainda mais sintomtica essa persistncia secular e isolada da lngua falada, se comparada rapidez com que ruas e praas mudam de nome. A toponmia indgena natural, referese realidade geogrfica, orogrfica e morfolgica, e no urbana, que se sobrepe quela artificialmente. Adere realidade de maneira to perfeita que acaba sendo quase imperceptvel, exatamente o oposto do que ocorre com o portugus e sua pesada bagagem cultural. Os nomes efmeros com que ainda hoje, mais de cinco sculos depois do desembarque, os colonizadores procuram impor sua presena sobre o territrio, so com o tempo sobrepujados pela poesia oculta em nomes como Paran (lugar de onde se v o mar), Guanabara (seio do mar), goiaba (fruto de sementes prximas) ... So Paulo, a maior metrpole do continente, cidade infinda a ponto de se pulverizar em uma mirade incalculvel de microcosmos - o que quase impossibilita consider-la uma nica cidade -, tem no Parque do Ibirapuera um dos pouqussimos pontos cardeais comuns a toda a populao. A lembrana da madeira podre (esse o significado do nome tupi Ibirapuera), que antigamente devia encher aquela planura, continua de algum modo indelvel no centro do vrtice. Assim como os rios que antigamente sulcavam o planalto de Piratininga ainda correm, invisveis, debaixo do asfalto da cidade moderna, soterrados por um manto tanto fsico quanto simblico, no nvel semntico as lnguas gerais ainda vivem, subterrneas mas fortes, a ponto de definirem o deslocamento fsico dos habitantes. No grau zero da comunicao, a lngua geral confirma-se como tal, vulgata do lxico quotidiano, idioma que estabelece as coordenadas.ARTE GERAL

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I Pode-se dizer que toda a cultura produzida no Brasil, desde o dia de sua descoberta oficial, est compreendida entre esses dois extremos. Por um lado, a criao de universos imaginrios e fantsticos, estratificao constante de mitos de origens mais dspares, conscientemente reelaborados e transformados, e inconscientemente sobrepostos a uma realidade decepcionante; uma produo caracterizada por uma inesgotvel construo ou reelaborao de universos, por poticas pessoalssimas, mas sempre fascinantes, por uma fabulao contnua, eventualmente catica, riqussima.

Por outro lado, a sobrevivncia paradoxal do exemplar pragmatismo portugus numa linguagem quase surreal na sua elementaridade: idioma mantido no grau zero da sua evoluo para fins exclusivamente prticos, acachapado com tanta fora que ficou aderido ao cho durante sculos. Com sua tenaz resistncia toponmica, as lnguas gerais oferecem motivos de reflexo que, hoje mais que nunca, no podem ser subestimados. Meio de comunicao primordial, a arte compartilha com a lngua o papel de ponte, de instrumento de autntica compreenso. A ela tambm cabe a tarefa de restabelecer o contato perdido entre o mundo e a sua interpretao intelectual. Substituindo as palavras da lngua quotidiana - grau zero ilusrio, inflado por um excedente de informaes inteis e intrometidas, e-excessivamente carregado de significados transitrios e falseadores -, a arte tem a,obrigao de candidatar-se ao papel de intrprete entre a realidade e os seus fruidores. Isenta de qualquer compromisso com a lngua, ela tem a possibilidade de abrir caminhos ainda no traados, tornando imediatamente compreensveis mensagens de enorme impacto e complexidade filosfica. Se, conforme pretendiam os padres jesutas, as lnguas gerais deviam servir para possibilitar o funcionamento da sociedade e, em outro nvel, a subida ao cu das almas inocentes dos ndios, a koin da arte uma das poucas linguagens acessveis, sendo ontologicamente democrtica, alm de autenticamente supranacional. Ainda que impostas de cima para baixo e com finalidade francamente dominadora, as lnguas gerais funcionavam: em poucos anos os usurios se apropriavam dela, abrindo novos caminhos, inventando novos usos. O mesmo pode e deve ocorrer com a arte, que se transforma e se completa ininterruptamente por meio da interpretao que dela faz o observador. Se esses so atributos de toda arte, a comparao com as lnguas gerais assume significado especial na anlise de certa tendncia, quase um movimento, que caracteriza boa parte da mais recente, e jovem, produo artstica brasileira. Em lugar das palavras, os artistas dessa nova corrente, que poderamos definir como "arte geral", utilizam quase exclusivamente materiais simples, freqentemente retirados de outros contextos. Os resultados so, em primeiro lugar, instalaes e esculturas, mas tambm composies pictricas e at vdeos, em que a precariedade dos suportes ou dos motivos representados se traduz em manifesto potico-esttico. Com freqncia aparecem nessas obras madeiras usadas, queimadas e em avanado estado de decomposio, ferros oxidados, cimento, arame e at mecanismos precariamente adaptados a novos usos. Embora no possa ser definida como urbana, uma arte que permite intuir o mal-estar causado pela sem-cerimnia com que as megalpoles se expandem cada vez mais inexoravelmente para alm dos seus prprios limites obsoletos. Enfim, no parece aludir tanto ao urbanismo entendido como Weltanschauung, mas principalmente rapidez com que a cidade e, em primeiro lugar, a indstria, sua alma mater, se transformam cada vez mais depressa em restos arqueolgicos de si mesmas. Pouco interessada na construo de complexas mitologias, essa arte, ao mesmo tempo, est prxima da realidade quotidiana e portadora de uma mais-valia esttica e potica que lhe advm da imerso total no territrio. o fato de estar profundamente radicada no contexto do qual desabrocha que lhe possibilita ser considerada herdeira natural das lnguas gerais: analogamente a estas, tal arte estabelece um contato direto com o que a define melhor - os materiais, a prpria realidade da qual emerge. Ademais, a escolha de materiais gastos e "pobres" permite aproveitar seu imenso contedo esttico/potico. Como no caso da Arte Povera, concebida num primeiro momento pela crtica como arte de guerrilha, mas cuja herana mais duradoura pode ser considerada a extraordinria revoluo esttica e conceitual, a arte geral encontra consistncia numa pesquisa plstica extremamente forte e coerente. De maneira anloga, do ponto de vista potico, a comparao mais imediata exatamente com a toponmia indgena, lrica mas o tempo mesmo descritiva, ou seja, ancorada na realidade que a produz e que ela reproduz num outro nvel. As construes precrias de Thiago Bortolozzo, por exemplo, remetem imediata e conscientemente ao ininterrupto canteiro de obras da So Paulo da qual nascem e se alimentam; distante anos-luz desse precrio universo urbano, Ieda de Oliveira apropria-se de um confessionrio, elemento fundamental

do imaginrio rural do Nordeste brasileiro. Apesar das diferenas, obras como essas tm claramente em comum o fato de que nelas a realidade constitui tanto a fonte imaginria quanto a fsica, de que se alimenta a criao artstica. Alm disso - e tambm a de maneira anloga ao que acontecia h mais de trinta anos com as primeiras obras de Kounellis ou Zorio -, a descontextualizao dos materiais projeta indiretamente a arte para fora do contexto em que mostrada. Depois de ter sido contemplado de uma perspectiva artstica num contexto privilegiado, o material pobre lido e entendido de maneira diferente tambm no ambiente de onde fora extrado, e no s pelo artista mas - e o que mais importa - pelo observador. exatamente nisso que reside um dos maiores mritos da arte geral: apropriando-se de materiais comuns, ela age sobre a nossa percepo da realidade, amplia os horizontes e, de fato, melhora a nossa qualidade de vida, enquanto possibilita uma reavaliao puramente intelectual do mundo, irredutvel a qualquer considerao econmica. Paralelamente, essa estratgia esttica tambm funciona como armadura contra a construo indesejvel de qualquer arcabouo ideolgico. A opo por no construir mitologias se traduz, talvez involuntariamente, numa operao poltica e estratgica de extrema coerncia: restringindo seu prprio significado ao valor inerente aos materiais que as compem, essas obras se opem a qualquer instrumentalizao fcil. Assim como as lnguas gerais, aderem ao que h de mais durvel e autntico, sem sofrerem a influncia de significados ou mensagens transitrias. Se a produo artstica e, em geral, a produo cultural, ao longo da histria brasileira, foram marcadas, predominantemente, pela inesgotvel criao, ou recriao, de mitos,