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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos The meaning core as an instrument for the understanding of the sense constitution Artigo Wanda Maria Junqueira Aguiar & Sergio Ozella Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 222 PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (2), 222-245

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Núcleos de Significaçãocomo Instrumento para a

Apreensão da Constituiçãodos Sentidos

The meaning core as an instrument for theunderstanding of the sense constitution

Art

igo

Wanda Maria JunqueiraAguiar &

Sergio Ozella

Pontifícia UniversidadeCatólica de São Paulo

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PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2006, 26 (2), 222-245

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Resumo: O artigo tem como objetivo instrumentalizar o pesquisador,segundo a abordagem da Psicologia sociohistórica, nos procedimentos deanálise de material qualitativo, visando a apreender os sentidos queconstituem o conteúdo do discurso dos sujeitos informantes através doque chamamos de núcleos de significação. Na primeira parte, é feita umaretomada de aspectos teórico-metodológicos desenvolvidos a partir,basicamente, de Vigotski, tais como a importância de um métodomaterialista histórico e dialético, as categorias linguagem e pensamento eas noções de significado e sentido, necessidades e motivos. Na segundaparte, propomos algumas etapas de procedimento de organização e análisedo material levantado, particularmente através de entrevistas, visando achegar aos núcleos de significação no caminho da apreensão dos sentidose da subjetividade dos informantes. Destacamos três etapas: pré-indicadores, indicadores e núcleos de significação. Complementando otexto, ilustramos os procedimentos propostos com uma dissertação demestrado e uma tese de doutorado orientadas pelos autores, no sentidode visualizar a análise dos núcleos de significação.Palavras-chave: Psicologia sociohistórica, metodologia, sentidos, núcleode significação.

.Abstract:The main objective of this article is to give the researcherstools,using the sociohistoric psychological view, in the analyses procedureof the qualitative material, aiming to learn the sense that constitutes thespeech content of the subject informant, through what we call the meaningcore. In the first part, a retake of the theoretical methodological aspectsdeveloped basically by Vigotski is done, such as the importance of thehistorical and dialectical materialism method, the language and thoughtcategory and the notions of meaning and sense, necessities and goals. Inthe second part, we propose some stages of procedures to organize andanalyze the collected material, mainly through the interviews, aiming toget in the core of the meaning in order to learn the sense and the subjectivequality of the informants. We point out three stages: pre - indicators,indicators and meaning core. To complete the text, we illustrated theproposals procedure with a master dissertation and a Phd thesis orientatedby the authors as a way to visualize the analysis of the meaning core.Key words: sociohistoric Psychology, methodology, sense, meaning core.

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dessa perspectiva metodológica, a crítica radicaldas visões reducionistas, objetivistas esubjetivistas,

1a discussão sobre a relação

aparência - essência, parte - todo, aimportância da noção de historicidade, deprocesso e a noção de mediação.

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Desse modo, frisamos que nossa reflexãometodológica sobre a apreensão dos sentidosestará pautada numa visão que tem noempírico seu ponto de partida, mas a clarezade que é necessário irmos além das aparências,não nos contentarmos com a descrição dosfatos, mas buscarmos a explicação do processode constituição do objeto estudado, ou seja,estudá-lo no seu processo histórico. Noentanto, ao nos referirmos aos pontosessenciais a serem considerados sobre ométodo, não podemos deixar de mencionar aimpossibilidade de se construir um métodoalheio a uma concepção de homem. Assim,falamos de um homem constituído numarelação dialética com o social e com a História,sendo, ao mesmo tempo, único, singular ehistórico. Esse homem, constituído na e pelaatividade, ao produzir sua forma humana deexistência, revela - em todas as suas expressões-, a historicidade social, a ideologia, as relaçõessociais, o modo de produção. Ao mesmotempo, esse mesmo homem expressa a suasingularidade, o novo que é capaz de produzir,os significados sociais e os sentidos subjetivos.Indivíduo e sociedade vivem uma relação naqual se incluem e se excluem ao mesmotempo. Quando afirmamos se incluem,lembramos Vigotski (2001), quando afirma queo indivíduo é “quase o social”; para ele, nãohá invenções individuais no sentido estrito dapalavra. Em todas, existe sempre algumacolaboração anônima. E, quando afirmamos seexcluem, se diferenciam, destacamos asingularidade do sujeito. Entendemos, dessaforma, que indivíduo e sociedade não mantêmuma relação isomórfica entre si, mas umarelação onde um constitui o outro.Concordamos quando Vigotski (1999) afirmaque o Processo de Internalização deveria ser

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Para iniciarmos nossa discussão sobre acategoria sentido e suas implicaçõesmetodológicas, torna-se necessário,inicialmente, que se destaque, mesmo quebrevemente, alguns aspectos teórico-metodológicos desenvolvidos especialmentepor Vigotski, como : a importância de ummétodo materialista dialético, as categoriaslinguagem e pensamento e as noções designificado e sentido.

Desde 1927, quando escreve O SignificadoHistórico da Crise da Psicologia – umaInvestigação Metodológica, Vigotski destaca aimportância de um método que desse contada complexidade do que entendia comoobjeto da Psicologia, ou seja, o Homem esuas funções psicológicas. Fica evidente quea Psicologia seria impotente para superar astarefas práticas que se lhe apresentavam senão contasse com uma infra-estrutura lógico-metodológica própria. Revela-se, dessa forma,nas reflexões do autor, a necessidade de umateoria que fizesse a mediação entre o métodomaterialista histórico e os fenômenospsíquicos. Vejamos: ainda nesse texto, o autorafirma ter a clareza de que não padece demania de grandeza, pensando que a históriacomeça com ele, mas tem a pretensão derealizar a Psicologia como ciência. A ciência,nessa perspectiva, deve ter como pedraangular a idéia da inseparabilidade do lógico,da base material, da dialética e do histórico.Dessa forma, concordamos com Vigotskiquando este afirma que a tarefa daqueles quepretendem aplicar o marxismo à ciência deveser a de elaborar um método, “...um sistemade procedimentos mediadores concretos deorganização dos conhecimentos que podemser aplicados precisamente à escala dessaciência.....A dialética ( metodologia) é chamadaa reproduzir, no plano do cognitivo, a dialéticaobjetiva do psiquismo (1996, p.471).

Sem a intenção de nos determos na análisedos aspectos que definem tal método,destacamos, como decorrência da adoção

1 Ver mais sobre essaquestão em Vygotski -Obras Completas, vol. I -El Significado Históricode la Crisis de laPsicología. UnaI n v e s t i g a c i ó nMetodológica.

2 Ver mais sobre aquestão em Vygotski.Formação Social daMente. Ed. MartinsFontes, 1994 , cap. 5, eGonzalez Rey - LaInvestigación Cualitativaem Psicología : Rumbosy Desafios. Ed. Educ,1999.

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Entendemos,dessa forma, que

indivíduo esociedade não

mantêm umarelação isomórfica

entre si, mas umarelação onde um

constitui o outro.

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chamado de “Processo de Revolução”,pressupondo uma radical reestruturação daatividade psíquica nesse movimento chamadode Internalização.

Ainda nos detendo na questão metodológica,vemos a necessidade de apresentar uma brevediscussão sobre a categoria mediação, dadasua importância para a perspectiva adotada.O uso dessa categoria nos permite romper asdicotomias interno-externo, objetivo-subjetivo,significado-sentido, assim como afastar-nos dasvisões naturalizantes, baseadas numaconcepção de homem fundada na existênciade uma essência metafísica. Por outro lado,possibilita-nos uma análise das determinaçõesinseridas num processo dialético, portanto, nãocausal, linear e imediato, mas no qual asdeterminações são entendidas comoelementos constitutivos do sujeito, comomediações.

A apreensão do homem, como nos lembraVigotski (2001), dar-se-á pela compreensão dagênese social do individual, “pela compreensãode como a singularidade se constrói nauniversalidade e, ao mesmo tempo e domesmo modo, como a universalidade seconcretiza na singularidade, tendo aparticularidade como mediação” (Oliveira,2001, p.1). Entendemos, desse modo, que ohomem, ser social e singular, síntese demúltiplas determinações, nas relações com osocial (universal), constitui sua singularidadeatravés das mediações sociais (particularidades/circunstâncias específicas).

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Assim, ao falarmos em mediação, referimo-nos, como afirma Severino, “a uma instânciaque relaciona objetos, processos ou situaçõesentre si; a partir daí, o conceito designará umelemento que viabiliza a realização de outroque, embora distinto dele, garante a suaefetivação, dando-lhe concretude” (2002, p.44). A categoria mediação não tem, portanto,a função de apenas ligar a singularidade e auniversalidade, mas de ser o centroorganizador objetivo dessa relação. Ao

utilizarmos a categoria mediação, possibilitamosa utilização, a intervenção de um elemento/um processo, em uma relação que antes eravista como direta, permitindo-nos pensar emobjetos/processos ausentes até então. Assim,como já colocamos acima, subjetividade eobjetividade, externo e interno, nessaperspectiva, não podem ser vistos numarelação dicotômica e imediata, mas comoelementos que, apesar de diferentes, seconstituem mutuamente, possibilitando um aexistência do outro numa relação de mediação.Nossa tarefa, portanto, é apreender asmediações sociais constitutivas do sujeito,saindo assim da aparência, do imediato, e indoem busca do processo, do não dito, do sentido. Colocadas essas questões metodológicas,destacamos, como uma questão preliminarpara a discussão dos sentidos e significados, arelação pensamento – linguagem.

Muitos autores têm debatido esse tema; assim,faremos uma breve retomada de alguns pontosessenciais para essa discussão.

Retomando nossas reflexões sobre aconstituição dialética do homem, podemosafirmar que o plano individual não constituimera transposição do social. O indivíduomodifica o social, transforma o social empsicológico e, assim, cria a possibilidade donovo. Isso posto, podemos afirmar que alinguagem seria o instrumento fundamentalnesse processo de constituição do homem.“Os Signos, entendidos como instrumentosconvencionais de natureza social, são os meiosde contato com o mundo exterior e tambémdo homem consigo mesmo e com a própriaconsciência” (Aguiar, 2000, p. 129).

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Assim, os signos, instrumentos psicológicos,são constitutivos do pensamento não só paracomunicação, mas também como meio deatividade interna. A palavra, signo porexcelência, representa o objeto naconsciência. Podemos, desse modo, afirmar

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3 Ver mais sobre taisquestões em Lukács, G.Estética: CategoriasBásicas de lo Estético.Tomo 3. Barcelona –M é x i c o , D . F :Grijalbo,1967.

4 No artigo Sentido eSignificação - sobreSignificação e Sentido:uma Contribuição àProposta de Rede deSignificados, in Redede Significações, Ed.Artmed, 2004,Smolka,A.L.B. discutemais profundamente aquestão do Signo.

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que os signos representam uma formaprivilegiada de apreensão do ser, pensar e agirdo sujeito.

Como afirma Vigotski, “O Pensamento nãose exprime na palavra, mas nela se realiza”(2001, p.409), podendo, muitas vezes, “opensamento fracassar”, não se realizandocomo palavra. Dessa forma, para que se possacompreender o pensamento, entendido aquicomo sempre emocionado, temos que analisarseu processo, que se expressa na palavra comsignificado e, ao apreender o significado dapalavra, entendemos o movimento dopensamento.

Temos, assim, que a relação pensamento-linguagem não pode ser outra que não umarelação de mediação, na qual, ao mesmotempo em que um elemento não se confundecom o outro, não pode ser compreendido semo outro, onde um constitui o outro.

O pensamento passa, portanto, por muitastransformações para ser expresso em palavras,de modo a concluir-se que a transição dopensamento para a palavra passa pelo significadoe o sentido. Dessa forma, podemos afirmar quea compreensão da relação pensamento/linguagem passa pela necessária compreensãodas categorias significado e sentido.

Isso posto, destacamos a necessidade dadiscussão das categorias significado e sentido.Apesar de optarmos iniciar pela discussão dacategoria significado, faz-se necessárioexplicitar que essas duas categorias, apesarde serem diferentes, de não perderem suasingularidade (fato que nos leva a discuti-lasem separado), não podem ser compreendidasdescoladas uma da outra, pois uma não existesem a outra.

Segundo Vigotski, (2001), o significado, nocampo semântico, corresponde às relaçõesque a palavra pode encerrar; já no campopsicológico, é uma generalização, umconceito.

Na verdade, o homem transforma a naturezae a si mesmo na atividade, e é fundamentalque se entenda que esse processo de produçãocultural, social e pessoal tem como elementoconstitutivo os significados. Dessa maneira, aatividade humana é sempre significada: ohomem, no agir humano, realiza uma atividadeexterna e uma interna, e ambas as situações(divisão essa somente para fins didáticos)operam com os significados. Nessa perspectiva,Vigotski (2001) lembra que o queinternalizamos não é o gesto comomaterialidade do movimento, mas a suasignificação, que tem o poder de transformaro natural em cultural.

Os significados são, portanto, produçõeshistóricas e sociais. São eles que permitem acomunicação, a socialização de nossasexperiências. Muito embora sejam maisestáveis, “dicionarizados”, eles também setransformam no movimento histórico,momento em que sua natureza interior semodifica, alterando, em conseqüência, arelação que mantêm com o pensamento,entendido como um processo.

Os significados referem-se, assim, aosconteúdos instituídos, mais fixos,compartilhados, que são apropriados pelossujeitos, configurados a partir de suas própriassubjetividades.

Ao discutir significado e sentido, é precisocompreendê-los como constituídos pelaunidade contraditória do simbólico e doemocional. Dessa forma, na perspectiva demelhor compreender o sujeito, os significadosconstituem o ponto de partida: sabe-se queeles contêm mais do que aparentam e que,por meio de um trabalho de análise einterpretação, pode-se caminhar para as zonasmais instáveis, fluidas e profundas, ou seja,para as zonas de sentido. Afirma-se, assim,que o sentido é muito mais amplo que osignificado, pois o primeiro constitui aarticulação dos eventos psicológicos que o

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“O Pensamentonão se exprime napalavra, mas nela

se realiza”

Vigotski

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sujeito produz frente a uma realidade. Comocoloca Gonzalez Rey (2003), o sentidosubverte o significado, pois ele não se submetea uma lógica racional externa. O sentidorefere-se a necessidades que, muitas vezes,ainda não se realizaram, mas que mobilizamo sujeito, constituem o seu ser, geram formasde colocá-lo na atividade. O sentido deve serentendido, pois, como um ato do homemmediado socialmente. A categoria sentidodestaca a singularidade historicamenteconstruída. Como coloca Namura,

“A análise da relação do sentido com a palavramostrou que o sentido de uma palavra nuncaé completo, é determinado, no fim das contas,por toda a riqueza dos momentos existentesna consciência.[....]o sentido da palavra éinesgotável porque é contextualizado emrelação à obra do autor, mas também nacompreensão do mundo e no conjunto daestrutura interior do indivíduo” (2003, p.185).

Fica evidenciada, desse modo, a complexidadede tal categoria, fato que, sem dúvida, geragrande dificuldade nas formas de apreendê-la. No entanto, é esse o caminho que nospropomos a seguir: apreender o processoconstitutivo dos sentidos bem como oselementos que engendram esse processo.Queremos apropriar-nos daquilo que dizrespeito ao sujeito, daquilo que representa onovo, que, mesmo quando não colocadoexplícita ou intencionalmente, é expressão dosujeito, configurado pela unicidade histórica esocial do sujeito, revelação das suaspossibilidades de criação.

O sentido coloca-se em um plano que seaproxima mais da subjetividade que com maisprecisão expressa o sujeito, a unidade de todosos processos cognitivos, afetivos e biológicos.No entanto, dada a sua complexidade,afirmamos como nossa possibilidadeaproximarmo-nos de algumas zonas desentido.

Para que se possa melhor compreender acategoria sentido, retomamos um dosprincípios do materialismo dialético: a unidadecontraditória existente na relação simbólico -emocional. Para se avançar na compreensãodo homem, ou melhor dizendo, dos seussentidos, temos que, nas nossas análises,considerar que todas as expressões humanassejam cognitivas e afetivas.

Concordamos com González Rey (2003) aoafirmar que o pensamento é um processopsicológico, não só por seu caráter cognitivo,mas por ser sentido subjetivo, pelassignificações e emoções que se articulam emsua expressão.

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Como afirma Heller, “...não pode haver umrosto completamente desprovido deexpressão” (1986, p .74). Segundo a autora(1986), o sentir – seja positiva ounegativamente, sempre significa estarimplicado em algo; a implicação vai, assim,ser vista como um fator constitutivo e inerentedo atuar e do pensar. As emoções não podem,assim, ser vistas como passivas, comoepifenômenos. Em Teoria da Emoções,Vygotski, citando Spinosa, destaca o aspectofundamental e constitutivo dos afetos:“...afetos são estados corporais que aumentamou diminuem a capacidade do corpo para aação, favorecem-na ou limitam-na, assim comoas idéias que se tem sobre esses estados”(2004, p.16).

Na perspectiva adotada, portanto, a separaçãoentre pensamento e afeto jamais poderá serfeita, sob o risco de fechar-se definitivamenteo caminho para a explicação das causas dopróprio pensamento, pois a análise dopensamento pressupõe necessariamente arevelação dos motivos, necessidades einteresses que orientam o seu movimento.Desse modo, além de apontarmos a relaçãodialética entre o aspecto afetivo e o simbólico,destacamos a importância de agregarmos anoção de necessidade e motivos para a

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5 Em Sujeito eSubjetividade,São Paulo:Ed. Thomson, S.P, 2003,Gonzalez Rey faz umadiscussão aprofundadasobre a questão dasemoções, necessidades emotivos.

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Entendemos,dessa form“Aanálise da relaçãodo sentido com apalavra mostrouque o sentido deuma palavranunca écompleto, édeterminado, nofim das contas, portoda a riqueza dosmomentosexistentes naconsciência.[....]a,que indivíduo esociedade nãomantêm umarelação isomórficaentre si, mas umarelação onde umconstitui o outro.

Namura

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compreensão do sujeito e, assim, dossentidos. Isso posto, vemos como importante,mesmo que de maneira breve, apresentarmosalgumas reflexões feitas no campo daPsicologia sociohistórica sobre esses conceitos.As necessidades são entendidas como umestado de carência do indivíduo que leva asua ativação com vistas a sua satisfação,dependendo das suas condições de existência.Temos, assim, que as necessidades seconstituem e se revelam a partir de umprocesso de configuração das relações sociais,processo esse que é único, singular, subjetivoe histórico ao mesmo tempo. Além disso, éfundamental ressaltar que, pelas característicasdo processo de configuração, o sujeito nãonecessariamente tem o controle e, muitasvezes, a consciência do movimento deconstituição das suas necessidades. Assim, talprocesso só pode ser entendido como frutode um tipo específico de registro cognitivo eemocional, ou seja, a constituição dasnecessidades se dá de forma não intencional,tendo nas emoções um componentefundamental. Pode-se dizer que tais registrosconstitutivos das necessidades não sãonecessariamente provenientes dassignificações, podendo constituir-se emafecções que ainda não foram significadas.Como coloca González Rey, “Se a emoçãodiz não, os meios não estão disponíveis.... Aemoção é que define a disponibilidade dosrecursos subjetivos do sujeito para atuar”(2003, p. 245).

Evidencia-se, desse modo, a complexidadedesse processo, marcado especialmente pelaforça dos registros emocionais, geradores deum estado de desejo, de tensão, que mobilizao sujeito, que cria experiências afetivas que,como atividade psíquica, têm papel regulador.Esse estado emocional, que mobiliza, que,como nos aponta González Rey, “...caracterizao estado do sujeito ante toda a açãofundamental” (2003, p.242), deve seranalisado para chegarmos aos sentidos. Masainda falta um elo. Essas necessidades, vividas

como estado dinâmico, ainda não dão umadireção ao comportamento. Esse processo, deação do sujeito no mundo a partir das suasnecessidades, só vai completar-se quando osujeito significar algo do mundo social comopossível de satisfazer suas necessidades. Aísim, esse objeto/fato/pessoa vai ser vividocomo algo que impulsiona/direciona, quemotiva o sujeito para a ação no sentido dasatisfação das suas necessidades. Talmovimento, ou seja, a possibilidade de realizaruma atividade que vá na direção da satisfaçãodas necessidades, com certeza modifica osujeito, criando novas necessidades e novasformas de atividade. Afirmamos, assim, que anecessidade não conhece seu objeto desatisfação, ela completa sua função quando o“descobre” na realidade social. Entendemosque esse movimento se define como aconfiguração das necessidades em motivos.Com isso, estamos dizendo que os motivosse constituirão como tal somente no encontrocom o sujeito, no momento que o sujeito oconfigurar como possível de satisfazer as suasnecessidades.

Ao se apreender o processo por meio do qualos motivos se configuram, avança-se naapropriação do processo de constituição dossentidos, definidos como a melhor síntese doracional e do emocional. Aproximamo-nos,dessa forma, do processo gerador da atividade,ao mesmo tempo gerado por ela.Apreendemos o que é a atividade para osujeito, e, assim, algumas zonas de sentidosda atividade, claro que atravessadas pelossignificados, mas, no caso, revelando umaforma singular de vivê-las e articulá-las.

A apreensão dos sentidos não significaapreendermos uma resposta única, coerente,absolutamente definida, completa, masexpressões do sujeito muitas vezescontraditórias, parciais, que nos apresentamindicadores das formas de ser do sujeito, deprocessos vividos por ele.

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Sabemos o quão difícil é sua apreensão; elenão se revela facilmente, não está naaparência; muitas vezes, o próprio sujeito odesconhece, não se apropria da totalidade desuas vivências, não as articula.

Não podemos esquecer que o pensamento,sempre emocionado, não pode ser entendidocomo algo linear, fácil de ser captado; não éalgo pronto, acabado. É interessante quandoVigotski afirma que o pensamento muitasvezes termina em fracasso, não se converteem palavras. Com essa afirmação, podemosentender que vivências ocorrem, que umprocesso está ocorrendo, mas que não seexpressa claramente, ou nem é significadoclaramente, objetivamente, e, assim, podemosconcluir que as vivências são muito maiscomplexas e ricas do que parecem.

Então, como apreendê-las?Que caminho nos conduziria a tal tarefa?

Procedimentos para análiseatravés dos núcleos designificação

Antes de entrarmos no tema da análise,consideramos adequada a apresentação dealguns apontamentos sobre a “coleta” dematerial a ser analisado, isto é, osprocedimentos e instrumentos recomendadospara uma investigação dentro da abordagemsociohistórica. Não são procedimentos ouinstrumentos exclusivos, mas fundamentaispara os nossos objetivos dentro de umaproposta de pesquisa qualitativa.

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Neste artigo, trabalharemos com entrevistas,do nosso ponto de vista, um dos instrumentosmais ricos e que permitem acesso aosprocessos psíquicos que nos interessam,particularmente os sentidos e os significados.Sem a pretensão de ampliar uma discussãosobre esse método de coleta, gostaríamos deatentar para algumas características quemarcam esse instrumento e que, sem dúvida,

interferem no seu potencial de captação ouapreensão dos sentidos e significadosbuscados.

● as entrevistas devem ser consistentes esuficientemente amplas, de modo a evitarinferências desnecessárias ou inadequadas;

● elas devem ser recorrentes, isto é, a cadaentrevista, após uma primeira leitura, oinformante deverá ser consultado no sentidode eliminar dúvidas, aprofundar colocações ereflexões e permitir uma quase análise conjuntado processo utilizado pelo sujeito para aprodução de sentidos e significados;

● mesmo considerando que uma boaentrevista possa contemplar material suficientepara uma análise, se houver condições, algunsoutros instrumentos podem permitiraprimoramento e refinamento analítico. Paraisso, recomenda-se um plano de observaçãono processo das entrevistas, tanto para captarindicadores não verbais como paracomplementar e parear discursos e ações queestejam nos objetivos da investigação.

Outros instrumentos úteis e possíveis deutilização: relatos escritos, narrativas, históriade vida, frases incompletas, autoconfrontação,vídeo-gravação e, inclusive, questionários oudesenhos, desde que sejam complementadose aprofundados através de entrevistas.

Leitura flutuante e organizaçãodo material

Os pré-indicadores

Consideramos que a palavra com significadoseja a primeira unidade que se destaca nomomento ainda empírico da pesquisa.Partimos dela sem a intenção de fazer meraanálise das construções narrativas, mas com aintenção de fazer uma análise do sujeito.Assim, temos que partir das palavras inseridasno contexto que lhes atribui significado,entendendo aqui como contexto desde a

Wanda Maria Junqueira Aguiar & Sergio Ozella

6 Para mais detalhessobre essa questão,consultar: Ozella, S.:Pesquisar ou ConstruirConhecimento. O Ensinoda Pesquisa naA b o r d a g e mSociohistórica. In AnaM.B.Bock (org.) AP e r s p e c t i v aSociohistórica naFormação em Psicologia.S.Paulo: Ed. Vozes, 2003,pp.113-131; GonzálezRey, Fernando: LaInvestigación Cualitativaen Psicologia: Rumbos yDesafios. São Paulo:Educ, 1999; Vigotski, LevSemenovich: A FormaçãoSocial da Mente. SãoPaulo: Martins Fontes,1998.

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narrativa do sujeito até as condições histórico-sociais que o constituem.

Tendo o material gravado e transcrito,iniciamos várias leituras “flutuantes”, para quepossamos, aos poucos, nos familiarizar, visandoa uma apropriação do mesmo. Essas leiturasnos permitem destacar e organizar o quechamaríamos de pré-indicadores para aconstrução dos núcleos futuros. Irãoemergindo temas os mais diversos,caracterizados por maior freqüência (pela suarepetição ou reiteração), pela importânciaenfatizada nas falas dos informantes, pelacarga emocional presente, pelas ambivalênciasou contradições, pelas insinuações nãoconcretizadas, etc. Geralmente, esses pré-indicadores são em grande número e irãocompor um quadro amplo de possibilidadespara a organização dos núcleos. Um critériobásico para filtrar esses pré-indicadores éverificar sua importância para acompreensão do objetivo da investigação.

Os indicadores e conteúdostemáticos

Uma segunda leitura permitirá um processode aglutinação dos pré-indicadores, seja pelasimilaridade, pela complementaridade ou pelacontraposição, de modo que nos levem amenor diversidade; já no caso dos indicadores,que nos permitam caminhar na direção dospossíveis núcleos de significação. Esses critériospara aglutinação não são necessariamenteisolados entre si. Por exemplo, algunsindicadores podem ser complementares pelasemelhança do mesmo modo que pelacontraposição: um fato identificado como pré-indicador, ao ser aglutinado, pode indicar ocaráter impulsionador/motivador para ação emuma determinada condição. Inversamente, omesmo fato pode funcionar como paralisadorda ação em outro momento, mas ambospodem ser indicadores importantes no processode análise.

Esse procedimento tem analogia com o quecoloca Vigotski (1998, p.182) quando fala daspeculiaridades semânticas da fala interior edestaca a aglutinação como uma delas:“Quando diversas palavras se fundem numaúnica, a nova palavra não expressa apenas umaidéia de certa complexidade, mas designatodos os elementos isolados contidos nessaidéia”.

Tentaremos aqui ilustrar com exemplos esseprocesso, que resultará de dois elementos: osindicadores e sua relação com situações ouconteúdos temáticos. Um exemplo que podeesclarecer a organização de pré-indicadores eindicadores pode ser encontrado no Anexo 1.

A partir dos pré-indicadores identificados,podemos avançar para indicadores do tipo:violência, drogas, gravidez, sexualidade, família,escola, consumismo, religiosidade, medo,alegria, tristeza, prazer, etc. Entretanto, taisindicadores podem ter significados diferentesdentro de condições específicas (lembrem-sedos critérios de aglutinação citados acima:semelhança, complementaridade,contraposição). Um indicador como a violênciapode ter potências e coloridos diferentes emcondições diversas, tais como: fases ou etapasde sua trajetória na vida, nas relações com“outros” (família, trabalho, autoridades,namorada), em experiências de vida, etc. Estesseriam os conteúdos temáticos junto aos quaisos indicadores adquirem algum significado. Deposse desse conjunto (os indicadores e seusconteúdos), devemos, nesse momento, voltarao material das entrevistas e iniciar umaprimeira seleção dos trechos que ilustram eesclarecem os indicadores.

Esse momento já caracteriza uma fase doprocesso de análise, mesmo que aindaempírica e não interpretativa, mas que iluminaum início de nuclearização.

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Construção e análise dosnúcleos de significação

A construção dos núcleos de significação

A partir da re-leitura do material, considerandoa aglutinação resultante (conjunto dosindicadores e seus conteúdos), iniciamos umprocesso de articulação que resultará naorganização dos núcleos de significação atravésde sua nomeação. Os indicadores sãofundamentais para que identifiquemos osconteúdos e sua mútua articulação de modoa revelarem e objetivarem a essência dosconteúdos expressos pelo sujeito. Nesseprocesso de organização dos núcleos designificação – que tem como critério aarticulação de conteúdos semelhantes,complementares ou contraditórios –, épossível verificar as transformações econtradições que ocorrem no processo deconstrução dos sentidos e dos significados, oque possibilitará uma análise mais consistenteque nos permita ir além do aparente econsiderar tanto as condições subjetivas quantoas contextuais e históricas. Espera-se, nessaetapa, um número reduzido de núcleos, demodo que não ocorra uma diluição e umretorno aos indicadores. É nesse momentoque, efetivamente, iniciamos o processo deanálise e avançamos do empírico para ointerpretativo, apesar de todo o procedimentoser, desde o início da entrevista, um processoconstrutivo/interpretativo

7. Os núcleos

resultantes devem expressar os pontoscentrais e fundamentais que trazemimplicações para o sujeito, que o envolvamemocionalmente, que revelem as suasdeterminações constitutivas.

Uma sugestão para a nomeação dos núcleosé extrair da própria fala do informante uma oumais de suas expressões, de modo a comporuma frase curta que reflita a articulaçãorealizada na elaboração dos núcleos e queexplicite o processo e o movimento do sujeitodentro dos objetivos do estudo.

A análise dos núcleos

A análise se inicia por um processo intra-núcleo, avançando para uma articulação inter-núcleos. Em geral, esse procedimentoexplicitará semelhanças e/ou contradições quevão novamente revelar o movimento dosujeito. Tais contradições não necessariamenteestão manifestas na aparência do discurso,sendo apreendidas a partir da análise dopesquisador. Do mesmo modo, o processo deanálise não deve ser restrito à fala doinformante, ela deve ser articulada (e aqui seamplia o processo interpretativo doinvestigador) com o contexto social, político,econômico, em síntese, histórico, que permiteacesso à compreensão do sujeito na suatotalidade.

Como nos lembra Vigotski (1998), um corposó se revela no movimento. Assim, sóavançaremos na compreensão dos sentidosquando os conteúdos dos núcleos foremarticulados. Nesse momento, temos arealização de um momento da análise maiscomplexo, completo e sintetizador, ou seja,quando os núcleos são integrados no seumovimento, analisados à luz do contexto dodiscurso em questão, à luz do contexto socio-histórico, à luz da teoria.

Parece-nos importante insistir que oprocedimento adotado visa a avançarmos doempírico para o interpretativo, isto é, da falapara o seu sentido, entendendo que vamosem busca da fala interior, ou seja, a partir dafala exterior caminhamos para um plano maisinteriorizado, para o próprio pensamento(Vigotski, 1998, p.185).

Caminhando na compreensão dos sentidos,relembramos a importância da análise dasdeterminações constitutivas do sujeito, e, paraisso, é importante apreendermos asnecessidades, de alguma forma colocadas pelossujeitos e identificadas a partir dos indicadores.Entendemos que tais necessidades são

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7 Consultar obras citadasna nota de rodapé número

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determinantes/constitutivas dos modos deagir/sentir/pensar dos sujeitos. São elas que,na sua dinamicidade emocional, mobilizamos processos de construção de sentido e, éclaro, as atividades do sujeito.

Para tentarmos deixar mais claro o processopor nós utilizado na análise de pesquisas porintermédio dos núcleos de significação,faremos uso de alguns exemplos retirados dedissertações e teses de alunos que estiveramsob nossa orientação nos programas deestudos pós-graduados em Psicologia social ePsicologia da educação da Pucsp. Osexemplos não pretendem ser modelosconcluídos e irrepreensíveis do processo. Seuobjetivo é ilustrar o processo, mesmoapresentando uma ou outra falha, já que cadaanálise é única e encontra-se dentro de ummomento contínuo de construção eaprimoramento.

Serão utilizados dois trabalhos. Inicialmente,referir-nos-emos à tese de doutorado de CéliaFerreira Novaes, As determinações sociais noproblema da escolha profissional: contradiçõese angústias nas opções dos jovens das classessociais de alta renda, desenvolvida noPrograma de Psicologia social, em 2003, soborientação do professor Sergio Ozella. Emseguida, ilustraremos com a dissertação demestrado de Agnes Maria Gomes Murta, de2004, no Programa de Psicologia da educação,orientada pelo professora Wanda MariaJunqueira de Aguiar, Contribuições daPsicologia sociohistórica para a educaçãoinclusiva.

Cada uma delas teve razões específicas paraser escolhida como exemplo e nãonecessariamente ilustram de maneira perfeitatodo o processo, mas servem como referênciapara ao menos uma das etapas identificadasno início desta seção.

Novaes, Célia Ferreira - As determinaçõessociais no problema da escolha profissional:

contradições e angústias nas opções dos jovensde classes sociais de alta renda.

Como apresenta logo no início de seu resumo,Célia pretendeu, com seu estudo,“compreender as contradições existentes naconstrução de problema da escolhaprofissional, geradoras de sofrimento nosadolescentes das classes sociais e econômicasde alta renda...” e completa, no seu capítulometodológico, que o fará através da apreensãodo “conjunto de significados e sentidos quecompõem a construção do problema daescolha profissional” (p. 116).

A autora justifica o interesse em estudar apopulação de alta renda da seguinte maneira:“Em geral, encontramos trabalhos relativos aosofrimento daqueles que não dispõem demuitas possibilidades de escolhas profissionais,constituídos pelos grupos sociais onde seconcentra a parcela da populaçãoeconomicamente carente ou marginalizada,excluída da educação formal de qualidade ede um conjunto de condições que facilitam oacesso às melhores oportunidades detrabalho.[...] Entretanto, esses jovens (de classealta) estão também sendo forjados nestamesma sociedade de cuja dinâmica extraemos elementos a partir dos quais constroem osideais e valores que respaldam suas ações,enquanto agentes privilegiados quecontribuirão, no exercício de suas profissões,para o processo de construção desta mesmasociedade.[...] A classe social é umareferência a valores que definempossibilidades, limites e contradições [grifonosso]” (p. 4).

O sujeito da investigação foi um jovem (Rafael)em processo de orientação profissional na Puc-RJ. Cursava o 3º ano do ensino médio emuma escola bilíngüe da zona sul da cidade.Pertencia a uma família de altíssimo nívelsocioeconômico, residia em um condomíniofechado e tinha sido alfabetizado na Europa.O material foi resultado de entrevistas

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“compreender ascontradiçõesexistentes na

construção deproblema da

escolhaprofissional,

geradoras desofrimento nos

adolescentes dasclasses sociais eeconômicas de

alta renda...”

Célia

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individuais ocorridas durante as sessões deorientação profissional, que compuseram umtotal de 15 encontros.

A partir da organização das entrevistas, queresultaram nos indicadores e nos conteúdosimportantes para o objetivo do estudo, Céliaconstruiu seis núcleos de significação:

● a realidade que o confunde e incomoda;● a experiência estética das profissõesreificadas;● a vida sob controle ou o atrevimento do real;● o prazer como causa e conseqüência ;● as contradições e ambigüidades entre aautonomia protegida e a rotina sempre nova;● a condição de impotência do ser natural.

Por problemas de espaço editorial, iremos aquiilustrar a análise com apenas um dos núcleos.Entretanto, todos eles, de alguma forma, estãomuito inter-relacionados e imbricados entresi, configurando a integração pretendida noprocedimento proposto anteriormente.

A experiência estética daprofissão reificada

Esse núcleo se constituiu a partir das narrativasreferentes às duas profissões que pautavam adúvida de Rafael: a Medicina e o Direito.

“...acho a Medicina legal porque é a maioradrenalina ...tem sempre um caso novo ...umahistória toda complicada pra gente resolver ...temvárias pessoas pra resolver junto com você...você tem a maior galera pra ajudar você.”

Quanto ao Direito, sua referência pode seridentificada como:

“...aquela roupa ridícula ...tem que ler muito,os livros são enormes ...é muito tudo sozinho...ali na hora você decide a parada, tem queconvencer as pessoas, e se errar? ...também éuma profissão poderosa como a Medicina.”

... ambas as profissões têm algo em comum,sedutor e glamuroso. São afirmaçõesexplicadas principalmente por imagens, ondea compreensão do que sejam as profissões sefaz a partir de experiências marcadamentevisuais:

“...eu não consigo ver quando tem operação etiram as partes de dentro da gente, o cara colocaa mão, não gosto de olhar.”

A referência às profissões parece moldada porrelações sensíveis, segundo Rafael, oriundasde filmes da TV, que agradam aos sentidos eexcitam o sujeito.

Rafael se refere à profissão como um produto,cujo uso deve agregar valor a quem o possui eidentificar o sujeito enquanto classe deconsumidor a que pertence:

“...lugar desvalorizado ...num lugar que nãote valorizam ...deve ter coisa melhor queMedicina ...coisa que eu goste mais, me dermelhor” (p.128).

É interessante destacar aqui como a autoraconduz sua análise. Célia articula dados dosujeito, quebra a seqüência cronológica daentrevista e busca a articulação entre fatos atéentão não articulados pelo sujeito, revelarelações, e, para isso, recorre, além dascategorias de análise da sociohistórica, aconteúdos de outras áreas das ciênciashumanas e sociais para explicar (por exemplo)o poder da mídia na constituição dos sujeitos.A autora continua sua análise:

“A escolha se faz sobre um conjunto deprofissões-coisas que são avaliadas pelo seuvalor de troca na sociedade, quanto de retornopoderá ser obtido com sua posse. Há umdistanciamento do sujeito com a função socialdo exercício das profissões, avaliadas comoprodutos para uso, consumo e troca... Ahierarquização das profissões, feita pelasescolas, e o respectivo status daqueles que asescolhem, participam, também, da

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configuração desse núcleo de significação.Assim,

‘...Publicidade exige menos estudo do queMedicina ...não é tão valorizada ...o pessoalde Medicina acha que é melhor que os outros...eu também achava.’

O status pessoal é denotado pelo status daprofissão reificada, cujo valor revela o statusde quem a possui ”(p.128).

Mais adiante, Célia considera o papel da mídiana produção de significados sobre asprofissões. Senão vejamos:

“Rafael compreende a Medicina, antes detudo, pela simbologia de poder e glamour queacompanham a apresentação das profissõesna mídia, para a qual só interessam os seusaspectos isolados, quer seja nas publicidades,nos seriados, filmes ou novelas. A profissãocostuma ser parte do contexto do produto quepretende vender ou do personagem que arepresenta, não tendo qualquer antecedenteque a comprometa num tempo histórico ounuma realidade social complexa. A Medicinaque é apresentada por Rafael está destituídade história, são fragmentos de imagens emovimentos em que estão ausentes oselementos concretos que constituem asrelações de produção e o trabalho. Naverdade, sua Medicina não está inserida emqualquer relação econômica, tudo éfuncionalmente articulado para o final feliz,isto é, aquele que faz sentido para o roteiro.Isoladamente, nada é absurdo, mas tudo éacrítico. Essa experiência guarda uma perigosaproximidade com outros aspectos do cotidianode Rafael” (p.139).

Outro destaque a ser feito se refere ao usoda literatura, não se prendendo apenas às falasdo sujeito, para justificar, e, dessa forma,ampliar e contextualizar suas considerações.“Rocha (1995)

8 nos mostra que a sociedade

na mídia é uma sociedade de abundância,resolvida e absolutamente bem sucedida

economicamente, sem nenhuma ênfase notrabalho para que isso aconteça.[...] Nasociedade apresentada pela mídia, só secolocam problemas que ela é capaz desolucionar. Há uma permanente relação entreos desejos e os meios para a sua realização,negando as condições concretas em quevivemos” (p.139).

A autora continua sua análise, agoracontextualizando e teorizando (sobre) suasreflexões.

“Vários contextos contribuem como processosmediadores da construção da subjetividade deRafael, de seus sentidos pessoais sobre oproblema que atravessa e suas possíveissoluções. Suas múltiplas relações intersubjetivasservem de mediadores para a conversãodesses contextos e seus significados para oplano intra-subjetivo e de sentidos pessoais deRafael.”... “Compreender a cultura e oconjunto de relações sociais em que Rafaelestá inserido e suas atividades interativasconcretas no cotidiano permite-noscompreender os sistemas de signos quemedeiam e configuram o processo desubjetivação de Rafael, como sente e interpretaa realidade a sua volta” (p.140).

Nesse trecho, vale destacar novamente ocuidado da autora em articular a construçãodos sentidos de seu informante com suasvivências, suas experiências, como a soma doseventos psicológicos despertados pela palavra.Desse modo, fica clara a importância da teoriae da contextualização para chegarmos aossentidos entendidos (como dito anteriormenteneste texto) como atos do homem mediadossocialmente.

Celia conclui, articulando seus sentidos esignificados com o grupo social onde Rafaelestá imerso.

“Rafael constrói a experiência do seu gruposocial enquanto é por ele constituído, atravésdas significações que produz a partir das

8 Rocha, Everaldo. ASociedade do Sonho. Riode Janeiro: MauadEditora, 1995.

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.[...] Na sociedadeapresentada pela

mídia, só secolocam

problemas que elaé capaz de

solucionar. Há umapermanente

relação entre osdesejos e os meios

para a suarealização,

negando ascondições

concretas em quevivemos” (p.139).

Rocha

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funções distintivas de sua classe social. Essasfunções se realizam por diversos aspectos,pela posse de determinados objetos, pelo tipoe forma de consumo e freqüência a lugares e,também, por práticas e partilhas designificados que são formas de ser e vivênciasemocionais, configurando o mundo de Rafaele ensejando novas experiências reais em suavida” (p.140).

O prazer como causa econseqüência

Nesse núcleo, a autora trabalha um dosaspectos centrais no discurso de Rafael,relacionando-o com o caráter hedonistapresente nos jovens, particularmente nos dosegmento socioeconômico de Rafael e queparece nortear não apenas suas escolhasprofissionais mas também sua própria vida.“Escolher aparece fortemente vinculado aoprazer como critério decisório e que, ao seratendido, efetivamente deverá levar a umresultado igualmente prazeroso. Todo oprocesso seria um único momento de umprazer que se expande. A certeza de Rafaelde que isso é possível vem de sua experiênciade vida. Frente ao que lhe desagrada, elesimplesmente não olha, troca de canal, comonas cenas dos filmes de TV que lhe desagradamou apenas exclui, como as partes da cidadeonde mora,

‘...eu até penso nisso, mas não vejo saída e aí,desligo.’

Afirma que, quando está a fim de algumacoisa, sempre a consegue, seja passar de anono colégio, seja um carro novo. Suapreocupação principal não é com seudesempenho na profissão, mas com amanutenção de um estado de prazer com oque vai fazer, que, por sua vez, é a garantiado sucesso. Esse gostar não só deve existir nomomento da escolha como deve manter-seno futuro, condição para que permaneçaexercendo qualquer profissão”(p.129).

A autora enfatiza o caráter e a importânciadesse núcleo de significação,

“O prazer como causa e conseqüência, emsi mesmo, é essencial em qualquer avaliaçãoque faz, se constitui na métrica daquilo queele observa, analisa, consome e decide, istoé, a realidade é aferida pelo estado de ânimoque propicia. É ponto de partida, processo eobjetivo. Rafael diz que quer encontrar algode que goste, e que só assim vai quererestudar e terá garantido o sucesso e arealização profissional. Os atributos daprofissão deverão fazê-lo sentir-se animado osuficiente para querer tal profissão. Ele a querporque ela é uma garantia de que terá prazer.Pode inclusive não ser a Medicina, pois indagasobre se

‘...tem alguma coisa que eu possa gostar mais...que seja melhor pra mim.’

Mas não pode ser qualquer outra profissão,tem que preencher seus vários critérios, numaliberdade de escolha que só permite umresultado – o sucesso em todas as suasnuances” (p.149).

Mais adiante, Célia tenta compreender melhora questão do compromisso e do custo-benefício presente nas decisões de Rafael.

“Rafael define a dose de compromisso queestá disposto a investir, o tempo em quepermanecerá na sessão e o término dosassuntos abordados. Tem dificuldade para secomprometer com o outro, despejandoinformações, fatos, alegrias e sofrimentos semse deter sobre sua própria história.

‘...Eu até penso nisso, mas não vejo saída eaí, desligo.’

Mais que um processo de defesa circunstancial,é uma forma de lidar com a experiência docotidiano e um estilo de vida. Não lhe ocorreprocurar ou construir saídas que dependam

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de si mesmo, de sua persistência ou esforço,pois os mecanismos de delegar as soluçõesde seus problemas e o de desligar-se do quenão gosta já lhe são familiares e semprefuncionaram”(p.150). E continua:“ Rafael nãopretende deter-se muito tempo sobre osmesmos fatos. Seus momentos estão semprerepletos de fazeres, exigindo uma dispersãocompetente para conseguir, ao mesmotempo, marcar programas com amigos,resolver seus problemas de estudo, atenderàs demandas que lhe chegam pelo telefonecelular, enquanto lida com os própriossentimentos durante a nossa relação deorientação. Rafael se liga e se desliga de umassunto para o outro, num fluxo de fatos eemoções que carecem de reflexão (p. 150).

Rafael configura a escolha profissional deacordo com o seu cotidiano, que ele não querver mudado porque ‘...minha vida é muitomanera.’ Não se trata de querer manter-secriança, muito pelo contrário, a infância impõelimites e barreiras indesejáveis, mas de teruma vida adulta repleta das possibilidadesavidamente desejadas, ampliando espaços eliberdades. Rafael quer ser adulto não comas facilidades infantis que são muito tímidaspara seus anseios, mas com as condições,possibilidades e ações, sem conseqüênciasadversas, com as quais convive no universodos adultos que o cercam. É um modelo deadultez que o inspira e não o retorno amodelos infantis (p.150).

A preferência profissional de Rafael, portanto,depende da capacidade potencial de quealgum curso suscite o seu gostar e que lhepermita vislumbrar sensações novas eprazerosas que, por sua vez, desencadeiemnovos desejos, isto é, a profissão deve atenderao desejo de ser capaz de desencadear novosdesejos e assim sucessivamente. Para Rafael,as profissões têm que extrair sentido de simesmas e se autojustificarem, oferecendo suaprópria legitimação em cada momento eproporcionando a maior satisfação possível.

O prazer como causa e conseqüência daescolha profissional força uma busca ansiosade Rafael pelo curso que mais o encante, comgarantias de que continuará, no futuro,gostando da escolha que fizer, ‘...se eu gostarvai ser legal ...não vou ter problemas’ (p.151).

Subjaz uma configuração de mundo profissionalque só o interessa na medida e extensão emque cumpre uma função sempre realizadorade prazer. A profissão se apresenta liberta dequalquer compromisso com o real a sua volta,da mesma forma com que Rafael recorta omundo que o interessa e apenas por ele circula.Não se trata apenas de negar a realidade, masde subvertê-la, travesti-la numa aparência derealidade, formando uma ilusão de sociedadeadequada a seus propósitos e onde tudo éigualmente possível, basta querer ‘...se elequiser fazer, que faça’, como afirma a mãe deRafael. O real fica, assim, submisso,incondicionalmente, a todas as hipóteses quese queira lançar sobre ele” (p.152).

Novamente vale a pena chamar a atenção paraa maneira como a autora procura compreendere ampliar as considerações do seu sujeitointegrando-o ao contexto ideológico docapitalismo que o cerca e determina seussignificados e sentidos, bem como omovimento de transformação e de contradiçãoque pode estar em processo a partir dasdiscussões com a pesquisadora.

“Rafael convive e partilha da requeridaflexibilidade para a mudança e do afrouxamentodas interdições nos deslocamentos,acompanhando as práticas econômicas e asperspectivas de emprego. Saber-se móvel éagora uma qualidade que Rafael deve cultivar,porque necessita dela para cumprir suas metasde sucesso profissional, mas sente, comapreensão, a conseqüente deriva interior. Alógica do capital flexível, deslocada paratrabalhadores igualmente flexíveis econtingenciais, que possam ir e vir, fluindopelos lugares sem acusarem danos ou

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sofrimentos, encontra Rafael relutante emdesprender-se do próprio passado. Nessemomento de escolha, a flexibilidade implicatanto riscos e perdas quanto soluções (p.154).Dá-se conta de que, na vida, as coisas nãofuncionam como na prova do vestibular quefez no ano anterior, só ‘...fiz para ver comoera ...fazer de conta sem ter que ficar nervoso.’No que concerne a sua escolha, além de nãoter um script, Rafael compreende que nemtudo pode ser ensaiado. Situações imprevisíveisconstituem o tipo da novidade que ele teme,aquelas que podem expor o real que não ointeressa e que fogem ao seu controle. Se falarem um projeto de vida a seguir, soa poucoatrativo porque retira a possibilidade de serflexível e plural; fora dele, surge a insegurança.Rafael necessita sentir-se seguro, protegido eciente de que está definitivamente certonaquilo que faz, mas suspeita que não terá ascertezas sobre o caminho que escolher antesde percorrê-lo. Dá-se conta, também, de quesua liberdade de escolha é, ao mesmo tempo,gratificante e dolorosa” (p. 154).

Nas considerações finais, a autora reafirma seusobjetivos e faz uma síntese de suas pretensõese do que foi atingido na sua investigação.

“Pretendemos, neste trabalho, chamar a atençãotambém para a importância de acompanharmosos movimentos e as transformações que vêmalterando as relações dos jovens com a educação,a informação e a escola de ensino médio,especialmente como instituição garantidora deempregos. Sem uma perspectiva crítica dessecomplexo relacionamento, perdemos apossibilidade de compreender o que significa aeducação formal da escola para esses jovens, cujainsatisfação aponta um esvaziamento do ensinomédio, percebido como um curso de passageme tempo de sofrimento, destituído de significadopróprio e sem utilidade outra que não seja, aoterminá-lo, conseguir passar para umauniversidade, escamoteando-se todas ascontradições desse relativo sucesso (pp.161/162).

Nossa pesquisa nos faz reconhecer osparadoxos de vidas cercadas de dispositivosde segurança que garantem a liberdade demovimento e prazer e, ao mesmo tempo,incutem o sentido de vulnerabilidade,opressão, incapacidade de superar obstáculose medo das diferenças, paralisando suas ações.A naturalização da individualidade massificada,soberana numa sociedade invisível, desliza paraa impossibilidade da ação transformadora nomundo real.

É fundamental que aprofundemos nossoconhecimento sobre as múltiplasoportunidades de construção de realidadesfragmentadas que são oferecidas pela mídia esua programação para adolescentes, plenas demateriais simbólicos de fácil digestão,incentivando consciências planas e explicaçõeslineares do real que circulam no cotidiano dosjovens. Todo um ritmo veloz e superexcitado,predominando a cultura da ação sobre anarrativa, oferecendo referências simbólicas naininterrupta tela eletrônica eivada de imagense efeitos especiais, numa estimulação semmemória, numa cultura sem rastro e semconseqüências, com primazia do tempopresente e do lazer imediato. São estilos devida lúdico-estético-hedonistas que insistemem se colar na idéia do ser jovem enquantouma criação da própria juventude, queefetivamente se apropria desses significadose desenvolve um sentido de participação euma ética própria. A partir dessas concepções,cremos poder ampliar nossa compreensãosobre a profundidade e extensão com que aambigüidade da urgência do novo, mantendoa responsabilidade solitária de manutenção doscontroles sobre os resultados, afetam,estressam e paralisam os sujeitos”(pp.162/163).

Murta, Agnes - Contribuições da Psicologiasociohistórica para a educação inclusiva: ossentidos produzidos por professores daeducação infantil de uma cidade do Vale doJequitinhonha acerca da inclusão escolar.

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São estilos de vidalúdico-estético-hedonistas queinsistem em secolar na idéia doser jovemenquanto umacriação da própriajuventude, queefetivamente seapropria dessessignificados edesenvolve umsentido departicipação euma ética própria.

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Essa pesquisa teve como objetivo analisar oprocesso de constituição dos sentidossubjetivos de duas professoras de educaçãoinfantil acerca da inclusão escolar de criançascom deficiência no ensino regular (deficiênciasessas que geram necessidades educacionaisespeciais).

Foram realizadas entrevistas com quatroprofessoras e uma coordenadora. O critério,como não poderia deixar de ser, foi qualitativo.Desse modo, foram escolhidos profissionaisque podiam falar com propriedade do tema aser pesquisado. Dentre esses quatro, foramescolhidas duas professoras que, no entenderda pesquisadora, melhor se adequavam aospropósitos da pesquisa. Com o intuito dequalificar as informações obtidas, foramrealizadas cinco entrevistas recorrentes comcada professora.

Utilizaremos como exemplo apenas a análisereferente a uma das professoras, denominadaFerreira.

Como coloca Agnes (p.124), partindo dopressuposto que a análise é construtiva einterpretativa, o procedimento para aapreensão dos indicadores deu-se da seguinteforma: após a transcrição, foi realizada umaleitura flutuante do material; em seguida,foram sendo levantados indicadores, ou seja,questões que se repetiam, que eramenfatizadas, que revelavam envolvimento daprofessora e que se mostraram importantes,considerando o objetivo da pesquisa, ou seja,apreender os sentidos e significados sobreinclusão. Como exemplo, destacamos aquestão da religiosidade, que se mostrou umindicador fundamental para a organização deum dos núcleos, por atravessar e mostrar-seconstitutivo de muitas das experiências vividaspela professora. Após esse momento, estavamcriadas as condições para se organizar, no caso,um dos núcleos de significação, ou seja, paraarticularmos os conteúdos relacionados àsexperiências que tinham a religiosidade comoelemento essencial. Com esse processo de

organização dos núcleos, pretende-se, cadavez mais, criar as condições de nosapropriarmos daquelas determinações queconstituem o sujeito

A autora (idem) frisa que o levantamento eorganização dos núcleos de significação jáconstitui um momento de análise, pois o atode “recortar” é realizado a partir dos critériospropostos pelo pesquisador, e esses critériossão sempre escolhidos em função dos objetivosda pesquisa, e, como diz Ozella (2003, p.114),“[...]nunca são neutros”.

Os núcleos de significação resultantes foram:

● o encontro com a religiosidade;

● ser normal ou estar deficiente: eis a questão;

● o papel do professor;

● inclusão/projeto creche inclusiva/sociedadeinclusiva.

A título de exemplo, utilizaremos um dosnúcleos: “O encontro com a religiosidade”.

“O encontro com areligiosidade”

Segundo Agnes, esse núcleo é capital porqueevidencia a religiosidade como um dos pontosfundamentais e constitutivos da vida deFerreira, sendo, portanto, um aspecto essencialque atravessa a forma como ela sente, pensae age sobre o mundo. Assim sendo, areligiosidade marca profundamente a maneiracomo ela atribui sentidos à inclusão, àdeficiência, à sua vida profissional e às suasrelações interpessoais. Entendemos que aimportância dada por Agnes a esse núcleo éadequada, dado ser uma das funções centraisdo núcleo de significação, que é destacaraqueles aspectos fundamentais para acompreensão do sujeito, aqueles aspectos quesão constitutivos do sujeito a ser pesquisado.Para fundamentar esse movimento de análiseque levantou o núcleo, Agnes destaca partes

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Núcleos de Significação como Instrumento para a Apreensão da Constituição dos Sentidos

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da fala de Ferreira que evidenciam a relevânciada religiosidade em sua vida, o quanto ela foiconstitutiva das suas formas de ser, pensar esentir. Segundo Agnes (p.125), Ferreira nosrevela, por meio da sua história de vida, que,por ter sido diagnosticada aos 14 anos de idadecomo pessoa com sofrimento mental, teve quetomar “remédio controlado”, era vigiada pelafamília e não tinha autonomia para gerir aprópria vida. “[...] os médicos falavam comminha mãe que isso (os sintomas apresentados)era um princípio de loucura”. Ela relata que,nesse período, trabalhou e que não pôdeestudar de forma sistemática. Após os 24 anosde idade, e a partir da intervenção de ummédico espírita e da sua internação em hospitalpsiquiátrico no qual a Doutrina Espíritaorientava a atividade de alguns profissionais,Ferreira se sente curada e ressignifica suaexistência. A Doutrina Espírita passa, então, anortear de maneira profunda a sua vida.

“(o médico) [...] fez um tratamento comigo,me desintoxicou, me internou, tirou... todo oremédio, melhorou e me deu...ânimo.[...]

Quando ele me levou no Centro Espírita, foionde eu melhorei, foi aonde que, que tudopra mim mudou, que eu fui ter vida... nova.Foi onde eu tive minha vida renovada, minhavida melhorou, porque, eu... eu vi a vida comoutros olhos, eu não precisava de ninguémmais pra ficar me vigiando.”

Ferreira deixa claro como o períodocompreendido entre os 14 e 24 anos foidoloroso e o quanto ser considerada “doente”a incomodava. Dessa forma, após “sua cura”,de pessoa que necessitava da ajuda de outros,passa a ajudar. Ajudar os outros se torna,então, sua filosofia de vida. Fica evidente oprazer e a felicidade que ela sente em tomara responsabilidade de sua própria vida para sie o prazer de dedicá-la à ajuda ao próximo.

“[...] o médico falou que eu tinha que tomar

remédio. Depois que eles (os familiares) viramque o remédio estava me deixando daquelamaneira.... [...] Assim, me deixando... é, ...apática. Então eles ficaram preocupados.Como é que eles iam deixar eu sair sozinhapra ir pra algum lugar.... Então o dia que eu...me internei,....o doutor falou que eu não tinhanada, que eu ia melhorar, esse dia eu renascipra vida.[..]a doença que eles achavam queeu tinha era um engano, não era doença,porque mediunidade não é doença.... Aícomecei a decidir minha vida, a andarsozinha.[...]O que faziam comigo eu comeceia fazer pras pessoas [.......]E assim, comeceia ajudar as pessoas mais... humildes que meprocuravam, porque eu comecei a trabalharno espiritismo.”

Na sua análise, Agnes destaca que a fala deFerreira traz à tona sentimentos e emoçõessobre sua forma de ser e agir no mundo “antese depois da sua cura”. Num esforço de análisee portanto, de apreensão do processo deconstituição dos sentidos configurados porFerreira, a pesquisadora em questão trazcategorias que têm o potencial de iluminar arealidade estudada. Vejamos um trecho de suaanálise, realizada por meio de algumascategorias da Psicologia sociohistórica.

“Segundo Rey (2003, pp. 241-254), asemoções estão estreitamente ligadas às ações,por meio das quais caracterizam o sujeito noespaço de suas relações sociais. Para ele, avivência da pessoa que é constituídahistoricamente gera um conjunto de emoções,que, por sua vez, geram necessidades. Asnecessidades são entendidas, aqui, como“estados produtores de sentido, associados àatuação do sujeito numa atividade concreta”;essas necessidades geram motivos que levamo sujeito a atuar de forma particular no mundo.Podemos, então, estabelecer relações entreas emoções vividas por Ferreira na fase emque se via e era vista como “incapaz”, aentrada da religiosidade em sua vida e a suaforma atual de ação no mundo.

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“(o médico) [...] fezum tratamentocomigo, medesintoxicou, meinternou, tirou...todo o remédio,melhorou e medeu...ânimo.[...]

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O sentimento de exclusão, de inferioridade,de incapacidade, de ser doente, que ela deveter vivido dos 14 aos 24 anos, geraram, paraessa segunda fase de sua vida, a necessidadede ter sua capacidade e autonomiareconhecidas. “Aí comecei a ... a decidir minhavida, sozinha; a andar sozinha; viajar sozinha,trabalhar sozinha, sem que ninguém precisasseme levar. Eu comecei a fazer tudo sozinhaaí... ao invés “d’eu” ser ajudada, eu comeceiajudar as pessoas.”

A Doutrina Espírita – que foi sua salvação –passa a ser parte constituinte de sua vida e ospreceitos que norteiam essa Doutrina passama nortear também suas ações e sua vida.Assim, ajudar, doar, abdicar e a caridadepermeiam não só todo o discurso de Ferreiramas também sua ação/atividade” (pp.127-128).

Podemos perceber, então, que a partir domomento em que Ferreira começa a ‘viveruma nova vida’, as múltiplas necessidadesconstituídas historicamente encontram novasformas possíveis de se configurar em motivos.Dessa maneira, diante de sua realidadeprofissional, ela passa a ajudar as pessoas, adoar seu tempo, a fazer caridade, a amar atodos como irmãos, a encontrar novos motivosque impulsionam sua vida.

Vejamos:‘[...] e assim, eu não cobro nada de ninguém,eu não peço nada pra ninguém, meu trabalho,meu trabalho é gratuito.’

A APAE entra, então, em sua vida, como umabenção,

[...] eu não estou trabalhando só prá mesustentar; eu estou trabalhando porprazer.[...]Eu estou trabalhando também poramor.”

Segundo Agnes (pp.128-129), “...sentir-se útila tira da esfera dos inválidos, incapazes. Ajudaras outras pessoas passa a ser uma necessidade

pessoal e um motivo que a ligaprofissionalmente à atual instituição em quetrabalha. Esse aspecto é tão forte que elarecusa o convite para trabalhar em uma outraatividade melhor remunerada.

Consideramos, nesse núcleo de significação,a caridade, a doação, a ajuda, o amor comoelementos que, a partir da religiosidade, irãoconstituir os sentidos que serão atribuídos àsexperiências de vida de Ferreira.

É necessário ressaltar que as falas de Ferreirasão reveladoras dos sentidos que se foramconstituindo através das experiências vividaspor ela, ou seja, os sentidos foram sendoconstruídos ao longo das suas experiências.Entretanto, esses sentidos, que sãoparticulares, são, ao mesmo tempo, compostospelos significados sociohistóricos dahumanidade. Rey (2003, p. IX) nos ajuda acompreender esse caráter dialético daconstrução dos sentidos quando, ao tratar dasquestões referentes à produção dos sentidose dos significados em Vigotski, afirma que :

“[.....] as criações humanas são produções desentidos, que expressam de forma singular oscomplexos processos da realidade nos quais ohomem está envolvido, mas sem constituir umreflexo destes. Em outras palavras, essesprocessos são uma criação humana, os quais,integrando os diferentes aspectos do mundoem que o sujeito vive, aparecem em cadasujeito ou espaço social concreto de formaúnica, organizados em seu caráter subjetivopela história de seus protagonistas.”

“Ser normal ou estar deficiente:eis a questão!”

Segundo Agnes (pp.130-131), um pontoimportante para a análise refere-se à formacomo, também inundada pelos princípios dareligiosidade, Ferreira concebe a deficiência eo deficiente. Esse aspecto constitui, portanto,o segundo núcleo de significação.

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Como explicitado anteriormente, nesse núcleode significação, foram agrupadas e articuladasas falas/conteúdos (indicadores) que sereferem às concepções, sentimentos e práticassobre deficiência e sobre a pessoa deficiente.Segundo a pesquisadora em questão (idem),ao ser solicitado a Ferreira que explicitasse suaforma de ver as pessoas com deficiência, elaparte do senso comum, de uma visãoestereotipada dessas pessoas. Atribui a elascaracterísticas tais como: “eles são dóceis”,“carinhosos”, “inteligentes”, capazes”, “nãometem medo”, “são bonzinhos”, “gratos”,“calmos”. Percebe-se aqui que Ferreiraapresenta uma visão ingênua, ideologizada,que descontextualiza o deficiente como serhistoricamente situado, sendo essa uma visãoque em nada contribui para a transformaçãodas práticas educacionais, uma vez que se tratada educação de seres abstratos e idealizados.Retomando nossa intenção de exemplificarpossíveis formas de se realizar uma análise,na perspectiva sociohistórica, vale destacar aimportância de se buscar não apenas descreveros fatos, mas explicá-los, ou seja, buscarformas de explicitar a gênese social doindividual. Agnes pretende, com sua análise,evidenciar que a fala da professora tem comoelemento constitutivo, determinante, aideologia, e o quanto esse tipo de visão(ideologizada) descontextualiza o problema,não contribuindo para a sua superação.

Voltando à análise realizada por Agnes (pp.130),ela afirma: “Interessante observar também queFerreira, ao tentar apropriar-se dos ‘discursospoliticamente corretos’ como aqueles queapregoam que somos todos iguais e, portanto,todos somos deficientes, ela incorre em umacontradição, pois, ao declarar a igualdade detodos, nega exatamente aquilo que nossingulariza – a diferença. Igualdade,normalidade, deficiência, direito, diferença,necessidades especiais são conceitos que elaparece não dominar, ou, no mínimo, são poucoelaborados”.

‘Olha, eu não vejo elas como deficientes não.Eu vejo elas como ser humano. Eu trato elasigual, eu não tenho esse negócio de que elassão coisa não. Na hora de cuidar delas a gentecuida... com mais carinho, cuida de... com ummeio mais... adequado, mas olhar pra elas euolho como ser humano. Como um irmão...igual! eu não olho elas como deficientes não.Porque deficientes somos todos, né?’

A idéia de que todos somos deficientes, deque todos temos uma deficiência, ou de quetodos nós, em algum momento de nossas vidas,vivenciamos uma situação de “estar deficiente”,foi muito difundida por Mantovan (1997) eWerneck (1999); entretanto, observa-se quemuitos de nós, educadores, nos apropriamosdessa fala sem pensar nas implicações que elatraz. Mais uma vez, nega-se a diferença e, deuma forma simplista, reduzem-se as implicaçõespolítico-pedagógicas, tais como: eliminação dasbarreiras programáticas e arquitetônicas, maiorinvestimento em formação dos professores,etc., necessárias, por exemplo, para aalfabetização de uma criança cega ou surda.Concordamos com Sá (1992, p.14) quandoafirma que a ‘corrente máxima de que ‘somostodos iguais’ serve antes para ocultar opreconceito e justificar a exclusão do que parareconhecer a diferença’”.

Nesse trecho da análise, destacamos arelevância do movimento empreendido pelapesquisadora, de não se contentarsimplesmente em relatar a fala, mas emapreender as contradições presentes e buscaroutras formas de se compreender o fenômeno.Ainda nesse trecho, evidencia-se a necessidadede o pesquisador conhecer as várias leituras daquestão estudada, de conhecer a literaturasobre o tema para que possa realizar umaanálise crítica, questionadora, que possapropiciar novas formas de se olhar osfenômenos.

Para se evidenciar a importância de umacompreensão mais completa da questão a ser

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estudada, destacamos o esforço analíticorealizado pela pesquisadora de inserir questõesrelativas a uma situação particular, numcontexto mais amplo, considerando osaspectos sociais e políticos, inclusivearticulando, em alguns momentos, osdiferentes núcleos.

“Como apontado anteriormente, areligiosidade é marcante na vida de Ferreira.Da mesma forma que a sua vida é inundadapela Doutrina Espírita, também o é aconcepção apresentada por ela sobredeficiência e sobre a pessoa deficiente.Entendemos tal concepção comonaturalizante, ou seja, pouco ou nada analisaos aspectos sociohistóricos imbricados naconstituição/construção da deficiência. Pelocontrário, para essa Doutrina, a deficiência esuas conseqüências estão ligadas a questõescármicas, isto é, a pecados ligados a vidaspassadas. As pessoas deficientes teriamescolhido vir com deficiências nesta vida afim de resgatar dívidas acumuladas em vidaspassadas. A terra é considerada uma escolaonde os espíritos, através da experiência,podem evoluir. Dessa forma, a questão dadeficiência é abordada como se fosse a ordemnatural das coisas. Ela acredita que cada umde seus alunos é deficiente porque tem algode outra vida para resgatar, assim comotambém associa a sua “missão” na APAE comoum resgate cármico.

‘Então eu levo isso muito a sério, que eu seique... que existe outra vida, e que eu já tiveoutras vidas passadas e vou ter outras, nofuturo, então acho que... eu aceitando isso,esse princípio, então eu acho que todosaqueles que me procuram não me procurampor acaso não.’

Essa visão naturalizante corrobora com práticasassistencialistas e filantrópicas, mas éimportante salientar que esse discursoassistencialista e caritativo não é exclusivo daDoutrina Espírita e de Ferreira. Ele está

presente em nossa sociedade, evidenciando-se principalmente na incipiente participaçãodo poder público na gestão e financiamentoda educação das pessoas com deficiência.Diante dessa falha ou, por que não dizer,diante do descaso do poder público, aeducação do deficiente tem sidodesempenhada quase que exclusivamente porentidades assistenciais e filantrópicas que, nodizer de Sá (1992, p.15), muitas vezes têm‘concepções autoritárias baseadas emsentimentalismos em que o deficiente étratado como inferior, subalterno e infantil’”(pp.132).

Para finalizar as discussões sobre esse núcleo,apontamos ainda que os sentidos e significadosacerca da deficiência e do deficiente, do modocomo são apreendidos pela pesquisadora,aparecem como algo que faz parte da naturezahumana e que são extremamente atravessadospela religiosidade, o que só pode serglobalmente apreendido também pelaarticulação dos núcleos entre si.

Concluindo nossas considerações sobre asanálises realizadas por Célia e Agnes, afirmamosque, ao recorrerem a algumas das categoriasanalíticas e metodológicas da Psicologiasociohistórica, criaram as condições deultrapassar a simples descrição dos dados,estabelecer relações que até então não haviamsido feitas, detectar a gênese de alguns fatos,afastar-se de explicações naturalizantes.

Importante ainda destacar que, para nosaproximarmos de uma apreensão mais globaldo sujeito, é necessária a articulação de todosos núcleos levantados. Em alguns casos, pelaqualidade da informação obtida, num primeiromomento, a análise pode ficar mais circunscritaa aspectos da história do sujeito; entretanto,ao serem articulados com dados advindos darealidade social, cultural e com os outrosnúcleos, evidenciam-se outras determinaçõesfundamentais, fazendo, inclusive, com que osdados adquiram outra qualidade. Acreditamos

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‘Então eu levo isso

muito a sério, que

eu sei que... que

existe outra vida, e

que eu já tive

outras vidas

passadas e vou ter

outras, no futuro,

então acho que...

eu aceitando isso,

esse princípio,

então eu acho

que todos aqueles

que me procuram

não me procuram

por acaso não.’

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que, nesse movimento de articulação dos núcleos entre si, e com as condições sociais, históricas,ideológicas, condição de classe, gênero, e, sem dúvida, com os conhecimentos cientificamenteproduzidos sobre a área em questão, uma nova realidade surge, mais complexa, integrada, reveladoradas contradições, movimento esse fundamental para a apreensão da constituição dos sentidos.

Temos a clareza, no entanto, da complexidade desse exercício de explicar, de como são múltiplasas determinações dos fatos. Desse modo, percebemos que, sem dúvida, outros determinantespoderiam ser contemplados nas explicações realizadas, mas que este é um momento doconhecimento atingido.

Como já afirmamos anteriormente, uma das marcas desse tipo de análise é ter como metadesvelar fatos e fenômenos, explicitar contradições e assim, ousar apontar caminhos mais críticos,menos naturalizantes e ideológicos .

Anotações para análise de entrevista9

Pré-indicadores gerais

● sentimentos e emoções manifestados (felicidade, prazer, tristeza, solidão);● aceitação (ou não) pelos pais/parentes e por homens e mulheres (chavões ao exemplificar a relação gay x bandido,gay x ladrão, etc.);● homossexualidade vista como legal;● sofrimento na relação com a escola;● preconceito de alunos e de direção;● assumir para família (mesmo para quem rejeita? exemplifica apenas os que aceitam!!!!!!);● não assumir para outros;● aparência dos gays (masculino x feminino);● namoro (ficar);● ciúme, posse, fidelidade no namoro;● assumir para si / não assumir para o outro;● não aceitação da homossexualidade da mãe (no início);● pai não existe para ele;● assumir-se determinando aceitar a mãe como homo;● respeito como determinante nas relações com os outros;● internet (pontos positivos e negativos);● internet e risco;● internet e cuidados;● assumir e mudança na vida pessoal (positivamente);● o aceitar por parte de amigos;● amizade e balada;● amizade e diversão;● amizade e apoio a situações de depressão;● amizade e “derrubar” (falsidade, inveja...);● amizade e idades dos amigos (funções diferentes);● necessidade de gays serem unidos (não concretizada);● homossexualidade como alvo da violência;● homossexualidade e gueto x outros lugares;● assumir x estabilidade profissional ou econômica;● parada gay;● gay x heterossexual (iguais e normais);● normalidade (sentir-se normal);● amizade básica e fundamental para ele;● saúde e prevenção;● sexo seguro;

Anexo 1

9 Entrevista não utilizadana dissertação demestrado de ElcioNogueira dos SantosConto ou não Conto? OSignificado e os Sentidosde Tornar Pública aOrientação SexualHomossexual paraAdolescentes Masculinosda Cidade de São Paulo.Psicologia Social. Pucsp,2004.

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● a importância do assumir.Indicadores resultantes da aglutinação dos pré-indicadoresvisando à organização de núcleos

Emoções positivas ou negativas em relação ao homossexualismo

● sentimentos e emoções manifestados (felicidade, prazer, tristeza, solidão);● homossexualidade vista como legal;● sofrimento na relação com a escola;● preconceito de alunos e de direção;● respeito como determinante nas relações com os outros;● homossexualidade como alvo da violência;● amizade básica e fundamental para ele.

Relações de amizade/união entre os homossexuais

● amizade e balada;● amizade e diversão;● amizade e apoio a situações de depressão;● amizade e “derrubar” (falsidade, inveja...);● amizade e idades dos amigos (funções diferentes);● necessidade de gays serem unidos (não concretizada);● homossexualidade e gueto x outros lugares;● gay x heterossexual (iguais e normais);

Aceitação pelos outros da homossexualidade

● aceitação (ou não) pelos pais/parentes e por homens e mulheres (chavões ao exemplificar a relação gay x bandido,gay x ladrão, etc.);● não aceitação da homossexualidade da mãe (no início);● o aceitar por parte de amigos.

Assumir: para si, para os outros, para a família...

● assumir para a família (mesmo para quem rejeita? exemplifica apenas os que aceitam!!!!!!);● não assumir para outros;● assumir para si / não assumir para o outro;● assumir-se determinando aceitar a mãe como homo;● Assumir e mudança na vida pessoal (positivamente);● assumir x estabilidade profissional ou econômica;● normalidade (sentir-se normal);● a importância do assumir.

Outros: aparência / namoro e posse / internet / parada gay / saúde e prevenção...

● aparência dos gays (masculino x feminino);● namoro (ficar);● ciúme, posse, fidelidade no namoro;● internet (pontos positivos e negativos);● internet e risco;● internet e cuidados;● parada gay;● saúde e prevenção;● sexo seguro.

AGUIAR W d M J i A P i P i l i S i hi tó i C t ib i õ D b t M t d ló i I B k A M G l M

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Recebido 18/08/05 Reformulado 17/03/06 Aprovado 24/03/06

Referências

Wanda Maria Junqueira Aguiar Professora titular da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em

Psicologia da Educação da Pontifícia Universidade Católica de São PauloRua Bagé, 230/182 bloco C -Vila Mariana 04012-140 São Paulo/SP

E-mail:[email protected]

Sergio OzellaProfessor associado da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social

da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.Rua Martiniano de Carvalho, 669/1101 - Bela Vista 01321-001 São Paulo/SP

E-mail:[email protected]

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