2.2 A água nos eventos mundiais sobre o Meio...
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Em sua obra Regenerative Design for Sustainable Development, de 1996, Lyle relatou algu-
mas experiências realizadas nos Estados Unidos que atuavam na prevenção de inundações
sem agredir o meio ambiente. Apresentou, então, situações em que o escoamento das águas
pluviais é trabalhado através da modelagem do terreno, de modo a obter lagoas de detenção,
ou, nos casos onde não há espaço para lagoas superfi ciais, adotando-se lagoas subterrâneas.
Ele defendia também, na linha de prevenção de inundações, a solução de renaturalização
dos leitos dos rios, não como resgate do seu estado original, mas como uma solução hidroló-
gica em que o fl uxo perde velocidade, reduzindo a incidência de assoreamento e do impacto
à jusante e gerando um ambiente receptivo a espécies vegetais e animais.
2.2 A água nos eventos mundiais sobre o Meio Ambiente
Como colocado na seção anterior, a preocupação com o consumo ou dilapidação da natu-
reza não teve início no século XX. Há séculos vinha se manifestando. Malthus, economista
e demógrafo britânico, em 1789, já temia pelo crescimento demográfi co e pela limitada
oferta de alimentos para sustentar a população em projeção.
George Perkins Marsh, tido como o pai dos movimentos ambientalistas, publicou em 1862,
nos Estados Unidos, a obra Man and Nature, em que explicitava sua apreensão com relação
ao desmatamento e a conseqüente desertifi cação do território (FRANCO, 2000). Essa obra
foi um dos elementos que motivaram, poucos anos depois, em 1891, a promulgação da lei
que estabelecia as reservas fl orestais, e em 1911, a lei de proteção de nascentes de cursos
d’água. Eram medidas de proteção aos recursos naturais mais explicitamente disputados ao
longo da história da civilização – a água e o solo –, pois a falta de disponibilidade de um
desses elementos signifi ca entrave ao desenvolvimento.
Segundo Dean (1996), na segunda metade do século XIX ocorreu a criação de algumas
sociedades científi cas, entre as quais a Plataforma Científi ca do Rio de Janeiro, em 1858,
dissidente da Sociedade Vellosiana, criada em 1851, cuja temática era a preocupação das
ameaças ambientais representadas pela intensa atividade econômica e adensamento popu-
lacional que eliminavam recursos naturais. Esse autor comparou o geólogo, mineralogista e
aprimorador agrícola Gustavo Schuch de Capanema a George Perkins Marsh, em suas refl e-
xões sobre o desmatamento. Naquele momento já se atribuía a causa da seca à derrubada
das fl orestas.
Entre dois extremos, o tecnocentrismo, baseado no poder da ciência e da técnica para resol-
ver os problemas da sociedade, e o ecocentrismo, assentado nos princípios ecológicos, situa-
se um espectro amplo de visões de mundo que refl etem valores diversos. Saraiva (op. cit., p.
28) apresenta esquematicamente a evolução desses valores no tempo (fi gura 15).
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Saraiva (ibid.) e Barbieri (2001) convergem na concepção de que a evolução dos conceitos
de equacionamento dos confl itos ambientais deu-se em três etapas distintas:
1ª - Salvaguardas ambientais (décadas de 1960 a 1970): imposição de limites ao crescimen-
to econômico, políticas normativas e de repressão às atividades ou processos geradores de
poluição;
2ª - Gestão de recursos (décadas de 1970 a 1980): identifi cação de problemas de gestão
generalizados e circunscritos aos limites restritos a cada país; vai-se além das práticas corre-
tivas e repressivas citadas na 1ª etapa, adotando-se a prevenção da poluição e melhoria dos
sistemas de produção, atribuindo-se valores econômicos aos recursos naturais;
3ª - Desenvolvimento sustentável (o conceito surge no início da década de 1980 e perma-
nece até o presente): percepção de que as ameaças ao equilíbrio ambiental são de âmbito
planetário e, no lugar da visão ecológica, propõe-se a sustentabilidade, integração entre os
princípios ecológicos e econômicos, visando políticas de desenvolvimento que contemplas-
sem o equilíbrio no presente, de modo a assegurar a equidade inter-geracional.
As etapas acima elencadas se remetem ao teor do conteúdo abordado nos diversos eventos
mundiais, os quais tinham como objeto de discussão os principais problemas ambientais,
mencionados por Alirol (2004, p.26): mudanças climáticas e efeito estufa, perda da biodi-
versidade, desmatamento, degradação dos solos e desertifi cação, aumento das poluições e
descarte de resíduos tóxicos e degradação dos recursos hídricos.
Esses eventos têm início com o fórum internacional de 1968, promovido pelo Clube de
Roma, reunião considerada um marco das preocupações da sociedade com o impacto sobre
o meio ambiente na 2ª metade do século XX. Nele reuniram-se intelectuais notáveis de vá-
rias partes do mundo e formações diversas para questionar os parâmetros econômicos ado-
tados pelos países industrializados e os efeitos sobre a qualidade do ambiente, gerando um
Figura 15: Evolução dos paradigmas ambientais, segundo Colbin e Schulkin, 1992Fonte: CORREIA (1994) apud SARAIVA (1999, p. 28)
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relatório fi nal - “Limites do Crescimento” - publicado em 1972. O relatório, de acordo com
Barbieri (1997), apontava que os índices alarmantes de crescimento populacional e o consu-
mo correspondente, que se traduzia em produção agrícola e industrial, escassez dos recursos
naturais e crescentes índices de poluição, inviabilizariam, em cem anos, as condições de
vida no planeta. Foi também apresentada a proposta de crescimento zero, defendida pelos
chamados “zegistas”16, com suas teses neomalthusianas.
A degradação ambiental era freqüentemente atribuída à explosão demográfi ca, sem atentar ao fato de que a grande maioria dos recursos naturais do planeta, a começar pela energia fóssil, era consumida pela minoria abastada, e não pela maioria dos famin-tos (SACHS, op.cit., cap.1, p. 18).
As propostas de contenção do crescimento eram fortemente repudiadas pelos países não de-
senvolvidos, os quais ansiavam por padrões de conforto obtidos pelos países desenvolvidos.
Em 1971, a Organização das Nações Unidas (ONU), promoveu em Founex, na Suíça, uma
reunião preparatória para a Conferência sobre o Meio Ambiente que se realizaria em junho
de 1972, em Estocolmo. A partir de então, os participantes passaram a organizar legislação,
ministérios e entidades comprometidas com as questões ambientais.
Entende Sachs (Ibid.) que os encontros propostos pela ONU tiveram o mérito de apoiar uma
posição de equilíbrio entre o crescimento zero (ou o fundamentalismo ecológico) e o cresci-
mento selvagem, gerando o conceito de eco-desenvolvimento.
Barbieri (1997) explica esse conceito baseando-se em Sachs (1980), caracterizando-o como
pluralista, por defender soluções endógenas, partindo da lógica das necessidades inerentes
à região e da integração entre sociedade e natureza.
A seguir, são mencionadas algumas das conferências que contribuíram para o aprofunda-
mento da questão ambiental e desenvolvimento, refl etindo na preocupação com a proteção
dos recursos hídricos e a recuperação dos corpos d’água.
Sachs (2005, p.20) considera a 1ª Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, Suécia, em 1972 como “[...] o marco zero de uma verda-
deira revolução na maneira de pensar o desenvolvimento e a governança internacional”. De
fato, esse foi o primeiro grande evento a analisar e avaliar a temática ambiental de um ponto
de vista que preconizava a necessidade de proteção dos recursos naturais para o bem estar
da sociedade. Nessa conferência, foram criados o PNUMA (Programa das Nações Unidas para
o Meio Ambiente), cujo escopo era gerenciar as iniciativas de proteção ambiental, e o Fundo
Voluntário para o Meio Ambiente, com foco de atuação nos países em desenvolvimento (San-
16 Zegistas são aqueles partidários do crescimento zero (SACHS, 2005, p.17)
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tos, 2004, p.19), consolidando as bases da moderna política ambiental adotada por todos os
países, com maior ou menor rigor, nas suas legislações particulares.
A 1ª Conferência das Nações Unidas sobre os recursos hídricos foi realizada em Mar del Pla-
ta, Argentina, em 1977, tendo como foco específi co discutir os problemas que ameaçavam
a qualidade e a disponibilidade da água, formulando o Plano de Ação de Mar del Plata,
considerado o mais completo documento referencial sobre recursos hídricos, até a elabora-
ção do capítulo específi co sobre a água da Agenda 21. Esse documento enfatizava o papel
da água no crescimento econômico e estimulava a participação dos usuários no processo
decisório, endossando a recomendação apresentada pela Conferência da ONU sobre Assen-
tamentos Humanos - HABITAT, realizada um ano antes, em 1976, em Vancouver, Canadá.
Esta recomendação exortava a todos os países esforços no sentido de fornecer água potável
e serviços de saneamento adequados para todos até 1990. Importante lembrar que foi justa-
mente a partir de 1980 que se iniciaram as discussões sobre confl itos de gestão dos recursos
hídricos no Brasil, dominados pelo setor de energia.
A partir dos princípios recomendados no Plano de Ação de Mar del Plata, Barbieri (1997)
identifi ca as ações de proteção e recuperação dos mananciais, controle da poluição hídrica,
redução da incidência das moléstias associadas à água, aplicação do princípio do poluidor
pagador, identifi cação e aplicação das melhores práticas ambientais e desenvolvimento de
novas tecnologias limpas.
O 3º Encontro Mundial da ONU de 1983 criou a Comissão Mundial sobre Meio Ambien-
te e Desenvolvimento (CMMAD), coordenada pela ministra norueguesa Gro Bruntland. O
objetivo era reexaminar a questão ambiental, inter-relacionando-a com a questão do de-
senvolvimento, e propor um Programa de Ação mundial. A CMMAD trabalhou durante três
anos na elaboração do relatório que seria divulgado em 1987, denominado “Nosso Futuro
Comum” ou “Relatório de Brundtland”, como fi cou conhecido. Esse documento apresentava
o conceito do desenvolvimento sustentável, preconizando o atendimento às necessidades
do presente sem comprometer as demandas das futuras gerações e preparando as bases da
2ª Conferência do Meio Ambiente, que seria realizada no Rio de Janeiro em 1992.
Nessa Conferência, também conhecida como Cúpula da Terra, Rio 92 ou Eco 92, foram reu-
nidas cerca de 178 nações em torno da “equação meio ambiente e desenvolvimento, na bus-
ca de estratégias políticas e técnicas que assegurassem a recuperação da práxis com relação
à episteme, nos vinte anos transcorridos entre as duas conferências” (SACHS, 2005, p.23).
Vale ressaltar que cinco importantes documentos foram concebidos então: Convenção sobre
Mudança Climática, Convenção sobre Diversidade Biológica, Princípios para Manejo e Con-
servação de Florestas, Declaração do Rio e a Agenda 21.
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A Agenda 21 visa municiar as políticas públicas por meio de um quadro de referências que
abarca mais de cem áreas programáticas a serem tratadas no âmbito local, nacional e pla-
netário. O capítulo 18 da Agenda 21 dedica-se à “Proteção da qualidade e do abastecimento
dos recursos hídricos”, elencando uma série de posturas e diretrizes com relação aos recursos
hídricos e exigindo o planejamento e manejo integrados desses recursos (BARBIERI, 1997,
p.117).
No mesmo ano da ECO-92, 1992, ocorreu a Conferência Internacional da ONU sobre Água
e Meio Ambiente em Dublin, Irlanda, consagrando a Declaração de Dublin. Nela, de for-
ma inovadora, foi registrado um enfoque sobre a avaliação, aproveitamento e gestão dos
recursos hídricos, principalmente da água doce, afi rmando que sua otimização somente
poderia ser obtida mediante um compromisso político e com a participação dos mais altos
níveis dos governos em conjunto com a sociedade civil e as comunidades envolvidas. Foram
produzidas recomendações e um programa de ação intitulado “A Água e o Desenvolvimento
Sustentável”, explicitando a relação entre a água e a diminuição da pobreza e das doenças;
a necessidade das medidas de proteção contra os desastres naturais; a conservação e o re-
aproveitamento da água; o desenvolvimento urbano sustentável; a produção agrícola e o
fornecimento de água potável ao meio rural; a proteção dos sistemas aquáticos e as ques-
tões trans-fronteiriças. Nessa conferência, foi reconhecida, ainda, a existência de confl itos
geopolíticos derivados da posse das bacias hidrográfi cas.
Em 1996, na 2ª Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos – Cú-
pula das Cidades ou HABITAT II, ocorrida em Istambul, Turquia, foram elencadas algumas
questões referentes aos recursos hídricos, propondo-se habitação adequada para todos e
desenvolvimento de assentamentos humanos em um mundo em urbanização, defendendo
o acesso à infra-estrutura de água e esgoto.
No mesmo ano, a Conferência sobre Avaliação e Gerenciamento Estratégico dos Recursos
Hídricos da América Latina e Caribe, realizada em São José, Costa Rica, ressaltou a impor-
tância do papel das agências nacionais de recursos hídricos na promoção do gerenciamento
integrado desses recursos através da valorização econômica, social e ambiental da água; da
adoção da bacia hidrográfi ca como unidade de planejamento regional; da capacitação dos
recursos humanos e maximização dos recursos fi nanceiros disponíveis; da implementação
de um sistema de informações sobre recursos hídricos e do envolvimento da comunidade e
do setor privado (MOTA, 2005).
Em seguida, em 1998, a Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentá-
vel, realizada em Paris, França, propôs a gestão das águas doces trans-fronteiriças e enfati-
zou o estímulo à luta contra o desperdício e a detecção dos vazamentos17, manifestando-se,
17 Segundo a Conferência Internacional sobre água e Desenvolvimento Sustentável, na maior parte dos países em desenvolvimento de 30 a 50% da água se perdia entre a captação e o usuário.
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então, nitidamente, a intenção de ver a sociedade civil cada vez mais envolvida na questão.
Reforçou-se, nesse fórum, a gestão integrada por bacia, conciliando a proteção dos ecossis-
temas e a satisfação das necessidades hídricas. Foi estabelecido o princípio: “se a água não
tem preço, ela tem um custo” e ainda a noção do princípio poluidor-pagador18.
Em 2000, o 2º Fórum Mundial da Água, Haia, Holanda, tinha como objetivo proporcionar
segurança hídrica para assegurar o desenvolvimento da humanidade no início do Século XXI.
Os recursos hídricos sob ameaça da poluição, uso inadequado e alterações climáticas deve-
riam ser administrados sob parâmetros de valoração econômica, social, cultural e ambiental,
contando com o envolvimento das partes interessadas na defi nição de políticas (MOTA,
2005). Identifi cou-se, nessa ocasião, que a crise da água era, freqüentemente, uma crise de
governabilidade.
A Conferência das Nações Unidas, Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, ou
Rio+10, ocorrida em Joanesburgo, África do Sul, em 2002, visava fazer uma avaliação dos
avanços e obstáculos em relação aos compromissos assumidos em 1992 e uma análise dos
motivos que ocasionaram a tímida evolução da implementação desses compromissos. Des-
tacava-se que os documentos fi rmados no Rio de Janeiro, como a Agenda 21, não haviam
saído do papel.
No processo de discussão desses eventos, Barbieri (1997) ressalta a importância de um pro-
grama de ações a ser implementado na busca do desenvolvimento sustentável suplantando
o desenvolvimentismo tradicional, predador da natureza e excludente, e também o ambien-
talismo tradicional, que preconiza a manutenção de áreas protegidas, a preservação da vida
selvagem, preocupado basicamente com os efeitos do crescimento econômico em níveis
acima do que os estoques de recursos naturais poderiam suportar. O autor comenta:
Muitos chefes de governo apoiaram propostas e acordos internacionais contrários às suas convicções e compromissos partidários face às pressões exercidas pela exposição dos temas na mídia internacional e à vigilância ruidosa de muitas ONGs, mas pouco fi zeram depois para ratifi cá-las e implementá-las em seus países (op. cit. p. 89).
No que tange aos cuidados com a água, chama a atenção o tema desenvolvido no capítulo
18 da Agenda 21. As seguintes recomendações estão englobadas dentro do item Proteção
da qualidade dos recursos hídricos (água doce) e do seu abastecimento:
18 Segundo Alvim (2003), na França foi instituída a “Lei das Águas”, em 1964, e com ela o princípio de gestão integrada de bacias hidrográfi cas e da cobrança de recursos hídricos por meio do princípio poluidor – pagador. Essa autora deta-lha estes aspectos colocando que aquele país é o principal precursor deste modelo, sendo que o Estado de São Paulo, em 1991, adotou-o em sua política estadual de Recursos Hídricos (Lei nº 7.633/1991) e, posteriormente, em 1997, o Brasil com a Lei das Águas (Lei nº 9433/97).
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Manejo integrado de recursos hídricos;
Avaliação dos recursos hídricos;
Proteção dos recursos hídricos, qualidade da água e dos ecossistemas aquáticos;
Abastecimento de água potável e saneamento;
Água e desenvolvimento urbano sustentável;
Água e produção sustentável de alimentos e desenvolvimento rural sustentável;
Impactos da mudança do clima sobre os recursos hídricos.
Quanto ao item referente ao abastecimento de água potável e saneamento, Barbieri lembra
que este já havia sido abordado, em 1990, na Declaração de Nova Delhi sobre Água e Sanea-
mento, cujo lema era algum para todos em vez de mais para alguns, sob o argumento de que
“80% de todas as moléstias e mais de 1/3 dos óbitos nos países em desenvolvimento sejam
causados pelo consumo de água contaminada” (Ibid., p.120). Foram então estabelecidos os
seguintes objetivos a serem alcançados até o início do século XXI:
Garantir que todos os residentes das zonas urbanas tenham acesso a pelo menos
40 litros per capita todo dia de água potável e que 75% da população disponha
de serviço de saneamento, próprio ou comunitário;
Estabelecer e aplicar normas qualitativas e quantitativas para o despejo de efl uen-
tes municipais e industriais;
Garantir que 75% dos resíduos sólidos gerados nas zonas urbanas sejam recolhi-
dos e reciclados, ou eliminados de forma ambientalmente segura.
O pressuposto da Agenda 21 local, preconizado na ECO-92, é de que ela deve ser levada ao
âmbito em que realmente se estabelecem as relações sociais, com propostas a serem im-
plementadas concretamente de acordo com os princípios gerais do documento original, de
modo que crescimento econômico e preservação do meio ambiente sejam complementares
e os atores sociais locais assumam metas, recursos e responsabilidades defi nidas (MELLO,
2006). No Brasil, depois da ECO-92 ou Rio 92, a Agenda 21 foi desenvolvida por alguns es-
tados e municípios brasileiros; entretanto, sem muita efetividade
Cabe aqui mencionar a noção de governança, implícita nos princípios da Agenda 21, que,
segundo Acselrad (2006), integra as condições do liberalismo da década de 1980 e tem suas
origens no Banco Mundial, com o sentido de boa gestão dos recursos de um país, com cará-
ter estritamente gerencial a ser assumido pelos organismos multilaterais. Constitui-se numa
solução discursiva cujo intuito é o de preservar as funções políticas próprias dos governos
nacionais alvo de ajuda do Banco, sem afetar sua soberania política.
Vale ressaltar que a relação com a água tem se ampliado a cada debate e, hoje, preconiza-se
a gestão integrada entre a água e o território.
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Quadro 03: Eventos mundiais relacionados com a legislação brasileira e a preservação dos recursos hídricos
Será possível verifi car, nos próximos capítulos, que os planos de recuperação dos
rios analisados contêm princípios cujas raízes se encontram nas discussões dos movimentos
mundiais sobre meio ambiente, os quais geraram outros documentos no âmbito dos países
participantes e alertaram a sociedade para a consciência ambiental.
O quadro 03 sintetiza, na linha do tempo, as conferências internacionais e nacio-
nais e suas principais recomendações voltadas para os recursos hídricos, e as leis brasileiras
que foram sendo criadas em conseqüência das pressões resultantes das várias conferências.
1972 1973 1977 1984 1986 1988 1992 1997 1998 2000
EventosMundiais
LegislaçãoBrasileira
LINHA DO TEMPO
Conferência de Estocolmo (Suécia)- Consolida as bases da moderna política ambiental
Conferência de Mar del Plata (Argentina)- Enfatiza o papel da água no crescimento econômico
Conferência de Dublin (Irlanda)- Reconhece a água como recurso finito e a existência de conflitos geopolíticos derivados da posse das bacias hidrográficas
Cúpula da Terra (Brasil)- Criação da Agenda 21
Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentável (França)- Gestão integrada por bacia- Princípio estabelecido: se a água não tem preço, ela tem um custo- Noção de poluidor-pagador.
II Fórum Mundial da Água (Haia)- Necessidade de se colocar a governabilidade eficaz da água como uma das principais prioridades de ação.
Criação da Secretaria especial de Meio ambiente vinculada ao Ministério do Interior
Criação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA):- Início da evolução dos comitês de bacia hidrográficas
CONAMA estabelece a classificação segundo seus usos preponderantes
Promulgada a Constituição Federal (Carta Magna) que permitiu aos Estados e à União criar seus sistemas de gestão de recursos hídricos
Lei das Águas (Lei Federal nº. 9.433/97) que estabeleceu a Política Nacional de Recursos Hídricos
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2.3 Medidas de baixo impacto para o desenvolvimento urbano
Os eventos mundiais, sintetizados no item anterior, produziram ampla refl exão acerca da
interferência antrópica sobre o meio biótico e abiótico, os efeitos devastadores da urbani-
zação intensa, e assimétrica, do ponto de vista social, em todo o planeta. Discussões sobre
as estratégias para viabilizar condições de qualidade de vida humana para as gerações fu-
turas, equacionando desenvolvimento e manutenção dos recursos naturais, possibilitaram
categorizar os confl itos, estabelecer políticas, princípios, acordos, marcos legais e diretrizes.
As críticas e recomendações dos eventos realizados vão ao encontro de medidas de baixo
impacto ambiental que conciliem natureza e sociedade.
Nesse contexto, fi ca evidente que, quando se trata de rios urbanos, a prevalência da visão
setorialista, que, durante quase meio século, priorizava obras de engenharia, gerando efeitos
perversos, deve ser revista. Há uma ampla gama de medidas de planejamento e gestão refe-
rentes às bacias hidrográfi cas capazes de articular planejamento urbano e gerenciamento
hídrico.
Silva (2002) entende que o controle de inundações é a maior interferência sobre o plane-
jamento de bacias hidrográfi cas que abrigam áreas urbanas de grande porte. Para o au-
tor, atualmente é impensável se abordar os problemas dessa natureza simplesmente numa
perspectiva de ampliação das estruturas hidráulicas sem considerar um planejamento que
atenue as demandas.
Nesse sentido, há vários autores que defendem a integração do plano de drenagem ao pla-
nejamento e uso do solo mediante a aplicação de medidas estruturais e não estruturais. Essa
visão se insere nos fundamentos da gestão integrada de recursos hídricos que contemplam
o uso sustentado dos recursos, a abordagem multi-setorial e o emprego de medidas não
estruturais. Silva (ibid.) esclarece que as medidas estruturais e não estruturais se aplicam a
todos os sistemas de infra-estrutura física.
As medidas estruturais envolvem estruturas que ampliam a capacidade de vazão dos cursos
d’água e retenção dos defl úvios, visando retardar o escoamento, e compreendem obras de
engenharia intensivas ou extensivas.
As medidas intensivas correspondem a estruturas concentradas pontuais ou lineares que
envolvem grandes investimentos. Canholi (2005) subdivide-as em quatro possibilidades de
acordo com o objetivo a ser alcançado:
Aceleração do escoamento – retifi cações, canalização e obras correlatas;
Retardamento do fl uxo – barragens, reservatórios (bacias de detenção ou reten-
ção) e renaturalização do leito;
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Desvio de escoamento – túneis de derivação e canais de desvio;
Adequação das edifi cações para proteção contra enchentes, (ação de âmbito
individual).
Quanto às medidas estruturais extensivas, que abrangem áreas mais ou menos extensas da
bacia, o autor cita armazenamentos de pequeno porte e recuperação das matas ciliares ao
longo da bacia.
As medidas não estruturais são ações de caráter preventivo, visando evitar o aumento de
vazões, e envolvem normatização e regulamentação do uso e ocupação do solo, códigos de
obras, educação ambiental, com o objetivo principal de evitar a poluição difusa através de
resíduos e lixo, seguro antienchentes, sistemas de alerta e previsão de inundações e sistema
de recuperação pós-inundações.
Ao argumentar que as medidas não estruturais atuam em prazos mais longos que as estru-
turais, Canholi cita Walesh (1989), o qual relatou que, em Denver, o custo da aplicação de
medidas estruturais para 1/3 da bacia era equivalente ao custo da aplicação de medidas não
estruturais para 2/3 da bacia.
Tucci (2003) reconhece que as medidas estruturais podem trazer uma sensação de maior
segurança, mas as não estruturais podem ser efi cazes a mais longo prazo e a mais baixo cus-
to: “as medidas não-estruturais são aquelas em que os prejuízos são reduzidos pela melhor
convivência da população com as enchentes” (id., 2006, p. 414).
O quadro a seguir (quadro 04) foi organizado por Saraiva (1999) e apresenta as medidas
estruturais e não estruturais e sua relação com as medidas de controle da água e do uso do
solo. Nele, a autora demonstra que as medidas estruturais atuam mais diretamente sobre
o controle da água, implicando predominantemente em obras de engenharia, enquanto as
medidas de controle do uso do solo estão associadas a ações não estruturais.
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Canholi (op.cit.) acrescenta o conceito de medidas estruturais não convencionais, como so-
luções que divergem do conceito tradicional de canalização e priorizam a prática de reser-
vação e infi ltração de águas pluviais. Essas ações se aplicam a reservatórios de retenção,
retardando os fl uxos nas calhas de rios e córregos, e a diques do tipo polders19, visando
captar as águas em estágios intermediários, dosando o contingente que atingiria as regiões
mais baixas e derivando parte desse contingente para áreas agricultáveis ou residenciais. O
autor faz críticas ao sistema tradicional, que objetiva o afastamento rápido das águas plu-
viais, promovendo o tamponamento de cursos d’água, a implantação de galerias e canais de
concreto e, em paralelo, a ocupação dos fundos de vale pelas vias de circulação. As bacias
são assim afetadas, com o agravante de que a ocupação urbana, em geral, se desenvolve de
jusante para montante, gerando transtornos cada vez maiores para os moradores das áreas
mais baixas.
Não é por falta de legislação, nem por falta de órgãos de gestão que a situação dos rios e
bacias brasileiros chegou ao estado atual de poluição e degradação. A ausência de inves-
timentos nas áreas protegidas, confl itos entre planos e projetos setoriais, omissão na fi sca-
lização da ocupação de áreas de mananciais têm contribuído para acelerar o processo de
degradação ambiental (MARCONDES, 1999, p.86-87). Nesse sentido, Dowbor (2005) afi rma
ser essencial compreender o impacto ambiental de infra-estruturas mal concebidas basea-
das em concepções estruturais errôneas.
Quadro 04: Sistematização dos tipos de medidas de defesa contra as cheiasFonte: PARK (1981) apud SARAIVA (1999, p. 320)
19 Área de terra rebaixada e protegida por diques.
Barragens, reservatórios e bacias de retenção
Modificação nos leitos regularização fluvial
Diques
Proteção das construções
Modificações na bacia de escoamentoProjetos de drenagem e proteção contra
cheiasPrevisão de cheias, sistemas de aviso e
planos de emergência
Regulamentação de planos
Aquisições e transferências
Seguro de cheias
Informação e Educação Públicas
Medidas não - estruturais
Medidas estruturais
Medidas de controle do Solo
Medidas de controle da água
Auxílio financeiro e redução de
danos
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20 No estado de São Paulo a Política Estadual de Recursos Hídricos foi instituída através da lei 7.633/91 e institui o Sistema Integrado de Gerenciamento dos Recursos Hídricos. È uma legislação considerada pioneira no Brasil, conce-bida com base no modelo francês de lei da águas de 1964. Alvim (2003), em sua tese de doutoramento, aprofunda os princípios da política das águas na França e no estado de São Paulo.
21 LID –The Low Impact Development Center se dedica a pesquisar projetos sustentáveis e à qualidade da água é originário de Maryland no Condado de Prince George disponível em http//: www.lowimpactdevelopment.org acesso em junho 2008
A adoção da bacia hidrográfi ca como unidade de planejamento e gestão ambiental tanto
no nível nacional, através da lei nº. 9433/97, quanto no âmbito de vários estados brasilei-
ros20 busca, em decisão recente, introduzir no país uma política que trate a água e seus usos
de modo integrado. Com base nos princípios de gestão integrada da bacia hidrográfi ca,
elemento geográfi co entendido enquanto um território complexo, procura-se implementar
um modelo que articule todos os atores em confl ito sobre os usos da água. Dada a difi cul-
dade de coordenar as diversas instâncias de poder atuantes na bacia – o poder municipal
representado por diversas prefeituras e o âmbito estadual e federal –, discute-se a efi ciência
da aplicação dessa legislação. Alguns especialistas defendem um olhar mais direcionado à
micro-escala quando se trata da recuperação dos rios na paisagem urbana.
O cumprimento da legislação ambiental de forma rígida nem sempre é a melhor alter-nativa para enfrentar a situação em que se encontra grande parte dos cursos d’água em nossas cidades. Nesse caso, o plano de gestão de micro-bacias com maior autonomia e fl exibilidade pode ser um instrumento para enfrentar o problema (CARDOSO, 2003, p.51).
Silva (op. cit) reforça que existem barreiras de ordem técnica, econômica, institucional e
legal difi cultando a gestão no âmbito da bacia, e enfatiza o aspecto de que a inclusão dos
princípios de sustentação ambiental e social costuma ser inviabilizada pelos compromissos
operacionais e fi nanceiros assumidos pelos agentes.
O conjunto de medidas não estruturais e não convencionais acima apresentado inclui ações
e procedimentos que vêm sendo fartamente divulgados, particularmente nas obras de Tucci,
que propõe a aplicação na fonte de medidas de controle da drenagem urbana, envolvendo
a escala do lote, na escala do loteamento (microdrenagem), e nos principais rios urbanos
(macrodrenagem) (id. 2003). O autor considera fundamental para promover medidas sus-
tentáveis no âmbito municipal um Plano Diretor de Drenagem Urbana integrado ao Plano
Diretor Municipal. E introduz uma série de dispositivos para equacionar a drenagem urbana
que coincidem com o conjunto de procedimentos denominado Green Infrastructure pelos
americanos. Esses procedimentos vêm ganhando espaço como sistema de ações integradas,
divulgado amplamente em manuais, revistas ou sites voltados para planejamento e projetos
de baixo impacto sobre o meio ambiente.
O programa LID21 (low impact development), ou intervenções de baixo impacto, propõe a
adoção, na micro escala, de medidas que, sistematicamente aplicadas, contribuirão para a
84
RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
22 Biovaletas são valetas gramadas para escoamento e infi ltração da água.
23 BMP disponível em http//:www.epa.gov/ne/assistance/univ/bmpcatalog.html
melhor qualidade do ambiente. Abaixo, são enumeradas algumas delas, que se relacionam
com a temática das águas:
Trilhas ou caminhos verdes de pisos drenantes ao longo dos rios como estratégia
para ampliar a captação das águas pluviais e reduzir sua velocidade. Considera-se
que, como valor agregado, essa medida pode atrair atividades turísticas e recrea-
cionais e valorizar as propriedades do entorno.
Jardins de absorção (ou área de biorretenção) com a função de captar as águas de
chuva visando à recarga do lençol freático, à prevenção de inundações e propi-
ciando ambiente para a vida animal. Como valor agregado, tem-se a redução de
custos com tubulação e com a manutenção dos jardins.
Recuperação ou criação de áreas de várzea ou alagados que, além de captar e
diminuir a velocidade das águas pluviais, abrigam ecossistema rico em biodiver-
sidade, fi ltrante, e provêem oportunidades de recreação mais específi ca – caça,
pesca e observação de pássaros.
Lajes de cobertura cobertas com vegetação, assim como biovaletas22, que ab-
sorvem e fi ltram as águas pluviais, reduzindo o contingente de escoamento e
poluentes; as biovaletas, ao infi ltrar parte da água, reduzem custos de investi-
mentos em tubulação de drenagem.
Pavimentação porosa que contribua para a recarga do lençol freático e para a
diminuição da escala de bacias de detenção.
Com relação à racionalização do consumo da água, o LID recomenda economia e reuso, e
irrigação automática; com relação ao esgoto, o tratamento local e banhados construídos;
com relação à redução de descarte de resíduos, recomenda compostagem e coleta seletiva;
com relação à aplicação da vegetação, o emprego de vegetação nativa pelas vantagens da
redução de aplicação de adubos químicos e pesticidas e manutenção de solo de superfície.
Outro sítio que apresenta soluções para o ecodesenvolvimento é o sítio do Best Management
Practices, da EPA (Environment Protection Agency)23, com manuais de projetos para várias
categorias - manejo de bacias hidrográfi cas, campos de golfe, condomínios e outros.
Em países europeus, tais como Alemanha, França, Holanda, Dinamarca, Reino Unido, e em
países americanos, como Estados Unidos e Canadá, a literatura sobre a proposição de novas
possibilidades de desenvolvimento urbano é extensa, mais signifi cativamente, desde a dé-
cada de 1990.
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RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
Hough (1995), por exemplo, apresenta o rio Tamisa como uma importante referência de res-
gate da qualidade da água e, conseqüentemente, do início da recuperação da fauna do rio
– em 1975, mais de 80 espécies de peixes eram encontradas na área e mais 10000 pássaros
para aí migraram. O autor observa, no entanto, que os valores despertados entre os anos da
década de 1980 e início da década de 1990, suscitados a partir de uma consciência mundial
acerca da importância da qualidade das condições da natureza na cidade, introduziram a
visão de que os ecossistemas ribeirinhos são abrangentes e sua recuperação, portanto, não
se atém somente a uma melhor qualidade da água, com a diminuição de seus níveis de
poluição. E enfatiza que os planos de recuperação devem abranger o equilíbrio socioeconô-
mico e ambiental.
Dessa maneira, conclui Hough (op. cit.), o processo de desenvolvimento urbano deve con-
tribuir para esse equilíbrio, entendendo a água como recurso hídrico e tendo como aliada a
educação ambiental para garantir a gestão adequada dos vales e das bacias hidrográfi cas.
As novas visões de integração dos cursos d’água que buscam conciliar a paisagem natural e
a artifi cial pressupõem a interligação das dimensões social, econômica e ecológica; porém,
nem sempre a dimensão estética, capaz de sensibilizar os usuários, tem sido englobada.
Nesse contexto, é representativo o trabalho de Herbert Dreiseitl, artista e arquiteto paisa-
gista alemão que, desde 1980, tem um ateliê especializado em trabalhos ligados à água.
Dreisetl chama a atenção para o fato de que a água, apesar de sempre presente no tecido
urbano, está cada vez mais invisível aos olhos da população. Além dessa condição de ocul-
tação da água, ele aponta para o dualismo no processo de gestão que opõe freqüentemente
funcionalidade, que implica em tecnologia, e estética.
Dreisetl reuniu em livro exemplos de projetos internacionais com água (Figuras 16 a 19) que
buscam integrar essas dimensões, levando em conta o aspecto global e local, o contexto so-
ciocultural, a participação da comunidade e equipes multidisciplinares que comunguem de
uma abordagem que abarque hidrologia, engenharia, ecologia e arte, devidamente inseridas
na paisagem local (DREISEITL, GRAU, 2005).
Desde a década de 1980, os países desenvolvidos têm criado projetos de recuperação de
cursos d’água que vão desde planos não intervencionistas, que apenas estabelecem normas
punitivas ou restritivas, até aqueles que descem dos planos para o projeto multidisciplinar
e, através de estratégias adequadas para cada caso, visam dar forma a valores e processos
ecológicos, buscando conceber ações locais num contexto regional.
Nos próximos capítulos serão apresentados estudos de alguns desses casos internacionais e
outros nacionais.
86
RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
Figura 17: Áreas comuns de Arkodien Asperg, próximo à Stuttgart. Condomínios residenciais.FONTE: DREISTETL, H. e GRAU, D. New waterspaces: planning, building and designing with water. Boset, Birkäuser, 2005.
Figura 16: Praça em Hattersheim.FONTE: DREISTETL, H. e GRAU, D. New waterspaces: planning, building and designing with water. Boset, Birkäuser, 2005.
Figuras 18 e 19: Áreas comuns de Echallens, próximo a Lausanne. Condomínios residenciais.FONTE: DREISTETL, H. e GRAU, D. New waterspaces: planning, building and designing with water. Boset, Birkäuser, 2005.
PARTE II
PLANOS E PROJETOS DE RECUPERAÇÃO DE CURSOS D’ÁGUA URBANOS ESTUDOS DE CASOS [1991 – 2006 ]
88
RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
Critérios e justifi cativa de seleção dos casos
Uma vez abordada a situação que levou à ruptura com os
cursos d’água e situados os movimentos que têm contribu-
ído para uma evolução da abordagem dos recursos naturais
como fonte de riqueza, busca-se entender aqui como os re-
batimentos teóricos se adéquam à intrincada teia de rela-
ções concretas do universo socioespacial, com seus confl itos
e mediações.
É importante sinalizar que o desenvolvimento sustentável
pressupõe desenvolvimento socioeconômico em sintonia
com o território, mais na condição de aliado do que de alheio
a um complexo suporte, evoluindo da rígida postura preser-
vacionista para incluir as adequações necessárias a um am-
biente antropizado, ótica que norteará a leitura dos casos.
Partindo das indagações iniciais trazidas na introdução,
apresenta-se nesta parte do trabalho um conjunto de casos
de planos e projetos de recuperação de rios urbanos, nacio-
nais e internacionais, que podem se constituir em impor-
tante referência para o tema aqui em foco, lembrando que
se entende recuperação associada à condição de melhoria e
não de retorno a um estado original.
Seja qual for a escala, de um projeto de uma vala de drenagem ou de uma fonte até um plano para toda uma região metropolitana, a chave para alcançar soluções efi cientes, efetivas e econômicas é uma compre-ensão das várias maneiras como as águas se movem através da cidade (SPIRN, 1995, p. 161).
89
RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
A seleção de projetos foi focada entre cidades de porte grande e médio, sujeitas a pressões mais intensas, justamente pela complexidade dos fatores intervenientes que implicam em situações desafi antes, apresentando então maior riqueza de procedimentos e propostas.
Os casos foram escolhidos de acordo com alguns critérios, discutidos a seguir, sendo que foram agrupados, em dois capítulos distintos, os casos internacionais e os nacionais, devido aos diferentes contextos, legislações e características de abordagem.
No primeiro conjunto, foram escolhidos casos de países desenvolvidos da América do Norte1 e que já haviam sido objetos de estudo e de discussão por serem considerados referências muito signifi cativas. Esses países têm operado transformações radicais no seu tecido urba-no, requalifi cando as áreas centrais das grandes cidades, áreas portuárias e antigos bairros industriais, entendendo que são regiões, de modo geral, bem dotadas de infra-estrutura e subutilizadas. Muitas dessas áreas centrais envolvem vales e rios, cujas várzeas foram sendo gradativamente ocupadas e participam do escopo de requalifi cação urbanística.
Acompanhando a situação de evolução dos planos de recuperação de rios ou bacias urbanas em países desenvolvidos, europeus e norte-americanos, por meio de literatura específi ca e registros sobre tais experiências, cada vez mais abundantes em revistas especializadas, e verifi cando suas escalas variadas, é possível concluir que há um vasto potencial a ser explo-rado. A partir dessas experiências, o objetivo, aqui, é montar um quadro de referências que sirva de guia à prática profi ssional brasileira.
Já no segundo conjunto de casos foram selecionados alguns projetos recentes do universo brasileiro, de modo a verifi car como a comunidade do meio urbano, ao se defrontar com incômodos crescentes resultantes desse quadro, tem reagido à deterioração dos rios. Foram também abordadas as medidas alternativas aos modelos convencionais2 da engenharia e do planejamento do uso do solo, e como vêm incorporando os paradigmas contemporâneos de reintegração de cursos d’água e respondendo às restrições institucionais e às limitações socioculturais e econômicas.
Importante destacar que, assim como vários outros países em desenvolvimento, o Brasil está apenas se iniciando na área de projetos de recuperação de cursos d’água. Apesar de haver grupos de pesquisa multidisciplinares estudando esse assunto desde a década de 1990, conta-se com poucos planos concluídos, sendo que alguns se encontram em fase de imple-mentação.
Tanto a escolha dos casos internacionais quanto dos casos nacionais partiu de um conjunto
de pesquisas em sítios eletrônicos, livros e revistas especializadas, bem como entrevistas,
quando possível, com profi ssionais ligados ao setor. E, ainda, trouxe efetiva contribuição o
1 Os países europeus apresentam um leque variado e de grande interesse que não foi selecionado por não apresentar detalhes sufi cientes para serem analisados.
2 Esse aspecto foi comentado no capítulo 1.
90
RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
curso específi co sobre recuperação de rios urbanos, intitulado Renaturalização de Bacias
Hidrográfi cas Urbanas, oferecido em fevereiro de 2007 na ABES (Associação Brasileira de
Engenheiros Sanitários) pelos professores Sadalla Domingos do núcleo POLI USP e Mário
Mendiondo da USP São Carlos. Nesse curso foi apresentado o caso da bacia do Rio Cabuçu
de Baixo, um dos casos estudados e apresentados neste trabalho.
Para a escolha de dois casos selecionados dos Estados Unidos, foi decisiva a entrevista reali-
zada com o professor e arquiteto paisagista Nathan Cormier3, que apontou seis planos como
exemplares: o do rio Anacostia, em Washington; o de San Diego; o da região de Saint Louis,
localizado na área de confl uência de dois grandes rios, Mississipi e Misouri; o plano da região
de Saint Paul, também na bacia do Mississipi; o San Diego River Park e o Los Angeles River.
Todos são mais ou menos contemporâneos, tendo sido desenvolvidos no fi nal da década de
1990 e início do século XXI, e apresentam abordagens metodológicas bastante similares; ou
seja, partem de temas análogos relativos à reconquista do vale, à recuperação das funções
hidrológicas dos rios e de seus ecossistemas, à qualidade das águas e valorização dos rios
como fatores de revitalização urbana.
Do conjunto dos casos internacionais, foram selecionados os que se seguem, sendo que para
cada um deles há justifi cativas específi cas, de acordo com suas singularidades e importân-
cia:
Os planos dos rios Anacostia e Los Angeles destacados da listagem acima foram
escolhidos porque, além de estarem localizados em importantes regiões metropo-
litanas, foram mencionados também na obra Ecological Riverfront Design4 como
modelos expressivos que envolvem a escala do plano e do projeto, e apresentados
de modo bem detalhado, possibilitando sua necessária compreensão.
O plano do rio Don, localizado em Toronto, Canadá, e mencionado por Hough
(1995) como referência de abordagem holística, foi escolhido por ser capaz de
valorizar a natureza no meio urbano, entender a água como recurso hídrico e
envolver a população local no plano de recuperação do rio urbano, promovendo
ainda a educação ambiental como estratégia de assegurar a gestão adequada dos
vales e bacias hidrográfi cas. Contribuiu também para essa escolha o fato de ter
sido a primeira experiência a que a autora desta pesquisa teve um contato em
loco, quando, em 1995, junto a um grupo de arquitetos paisagistas brasileiros,
realizou viagem profi ssional exploratória ao Canadá. Nessa ocasião, um grupo de
profi ssionais canadenses apresentou o trabalho em desenvolvimento pela equipe
3 Nathan Cormier, arquiteto paisagista norte americano, trabalha em empresas especializadas em projetos sustentáveis que incluem planos e projetos de recuperação ambiental. Nathan participava, na época em que se realizou a entrevis-ta, no início de 2007, de uma avaliação de projetos de recuperação de rios urbanos nos Estados Unidos.
4 Ecological Riverfront Design: restoring rivers, connecting communities, de autoria de Betsy Otto, Kathleen McCormick e Michael Leccese editado em março de 2004 pelo Planning Advisory Service, departamento de pesquisa do American Planning Association.
91
RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
da força-tarefa Bring Back the Don, responsável pelo plano iniciado ofi cialmente
em 1990. Estavam naquele momento captando recursos para a fase de fi nali-
zação dos projetos e início de sua implementação. A apresentação foi bastante
motivadora, tanto pelo envolvimento da equipe e da comunidade, como pela
proposta até então pouco comum. Trata-se também de modelo referenciado na
obra URBEM.
Quanto ao conjunto dos casos nacionais, adotaram-se critérios bastante diversos:
O Plano do Rio Piracicaba, localizado na cidade paulista de Piracicaba, é um plano
abrangente, em fase de implementação. E, em que pese a fase de degradação das
águas do rio, nunca foi relegado pela população, que o identifi ca como a alma
da cidade e tem desempenhado um importante papel na conquista da revalo-
rização do rio, associada à revitalização da cidade. Trata-se de um plano bem
fundamentado, abrangendo aspetos socioeconômicos, ecológicos, urbanísticos e
paisagísticos.
O plano da bacia do rio Cabuçu de Baixo integra a Bacia do Tietê e está presente
no cenário da cidade de São Paulo. Circulando-se pela pista da margem esquerda
do rio Tietê, pode-se ler a seguinte inscrição na parede da galeria onde ele de-
ságua, na marginal oposta: “córrego Cabuçu de Baixo”. É um retrato do confl ito
travado entre a ocupação irregular das áreas lindeiras de proteção permanente ao
rio, as vias de circulação de veículos e o impacto gerado à montante. Trata-se de
um plano que envolveu equipes multidisciplinares, com foco particularmente nas
questões hidrológicas, e foi aqui selecionado por trazer aspectos de complemen-
taridade ao estudo de recuperação de rios, além de uma abordagem de caráter
diverso do plano do rio Piracicaba.
O Parque do Mangal das Garças, situado num trecho da orla do rio Guamá, em
Belém, estado do Pará, apesar de confi gurar uma área pontual, está conectado
a uma estrutura mais ampla, que integra o ambiente amazônico. Trata-se de um
projeto já implantado e tido como referência na região norte do país, no âmbito
de projetos de revitalização de área urbana ribeirinha próxima ao centro urba-
no.
92
RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
Método de análise dos casos
Conforme colocado anteriormente, como metodologia geral para a análise dos casos sele-
cionados, partiu-se inicialmente de sistematização e revisão bibliográfi ca de obras escritas
por autores diversos, as quais tratam de temas relativos à degradação e descaracterização
das paisagens focando sua vinculação com os sistemas fl uviais, os eventos mundiais e sua
afetação sobre a tendência mundial de recuperação de bacias e microbacias hidrográfi cas
em áreas urbanizadas.
Dentre essas obras, as que foram destacadas a seguir trouxeram contribuições fundamen-
tais, na orientação de como olhar os casos estudados bem como quais os aspectos que
poderiam ser analisados:
Restoring Streams in Cities, de Ann L. Riley, de 1998. Nessa obra, Riley discute os
impactos da urbanização sobre os sistemas fl uviais, apresenta as iniciativas de
reversão desse processo que ocorreram na história remota de algumas civiliza-
ções, e a partir do fi nal do século XIX, mais particularmente depois da guerra civil
nos Estados Unidos, com a introdução de marcos regulatórios decisivos. Propõe,
ainda, medidas de recuperação abrangendo áreas multidisciplinares.
O Rio como Paisagem, de Maria da Graça Amaral Neto Saraiva, de 1999, trata da
gestão de sistemas fl uviais, suas relações com a paisagem e o território, e inseri-
dos no contexto da evolução dos paradigmas ambientais. A abordagem da autora
introduz a histórica importância cultural dos rios para a civilização e discute seus
valores e a percepção afetiva e sensorial que se tem desses sistemas. Discute os
aspectos metodológicos de planos de revitalização, fazendo uma leitura da pro-
dução internacional, e expõe alguns estudos de caso desenvolvidos em Portugal
Ecological Riverfront Design: restoring rivers, connecting communities, docu-
mento da American Planning Association - Planning Advisory Service, report
number 518-519, de 2004, cujos autores são Betsy Otto, diretora sênior da Wa-
tersheds Program for American Rivers e Kathleen McCormick e Michael Leccese,
editores e articulistas da área de paisagismo e planejamento ambiental. Trata-se
de um guia que propõe novas visões para áreas ribeirinhas e apresenta uma série
de recomendações para planejamento e projetos de recuperação de rios urbanos,
propondo a retomada da saúde dos rios e sua integração com a comunidade,
estabelecendo estratégias para sua interação.
URBEM - Urban River Basin Enhancement Methods é um programa da Comissão
Européia (EC – European Comission) que envolve várias entidades parceiras de
âmbito internacional. Entre 2002 e 2005, desenvolveu uma série de relatórios de
pesquisa (Work Packages) com o intuito de divulgar métodos de abordagem das
bacias hidrográfi cas urbanas, visando recuperá-las ou preservá-las, e apresen-
93
RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO
tando recomendações a serem adequadas de acordo com o contexto regional de
áreas a serem tratadas. Para esta pesquisa, consultou-se o Work Package 2, que
traz alguns estudos de caso.
Todas as obras são unânimes com relação a uma abordagem multifacetada que integre valo-
res ecológicos, econômicos e sociais. Otto et al (2004) enfatizam a importância da vitalidade
social próxima ao rio, com a condição de que as áreas de várzea se mantenham protegidas.
De modo geral, os autores apresentam um quadro de tendência crescente de investimentos
em recuperação de rios urbanos, que teve início mais timidamente no fi nal da década de
1970 e início de 1980 e se expandiu signifi cativamente na década de 1990, sendo que a
expectativa de investimentos para os primeiros anos do século XXI é de, aproximadamente,
quinhentos milhões de dólares. Segundo eles, esse “boom” ocorre em função de fl uxos eco-
nômicos que contribuíram para a desativação de áreas industriais próximas às áreas de vár-
zea, motivando uma reavaliação dessas áreas com vistas a sua vocação futura. Estabelecem
os princípios básicos para a recuperação dos rios urbanos alertando para que se compreenda
e se conheça as particularidades de cada caso, lembrando que a importação de modelos
aplicados nem sempre funciona.
Uma vez selecionados os casos a serem analisados, realizou-se uma pesquisa específi ca de
cada um deles, por meio de livros, artigos, documentos específi cos, associados a entrevistas
com atores envolvidos, quando possível.
A análise dos casos ocorreu a partir do desenvolvimento de roteiro de sistematização dos
aspectos envolvidos: indagando-se qual a motivação que desencadeou o repensar dos pro-
cedimentos na relação com os cursos d’água e levou ao desenvolvimento de um projeto ou
plano de recuperação. Dessa maneira, foi possível detectar os confl itos agravantes de um
processo de deterioração ou outros fatores condicionantes da evolução urbana; quais as
características do sítio e qual o signifi cado do rio para a comunidade – funcional ou afetivo.
Verifi cou-se também como se desenvolveram os planos, quais os segmentos da sociedade
envolvidos, quais os objetivos contemplados, propostas selecionadas, estratégia de implan-
tação e etapas alcançadas.
Iniciou-se a leitura pelos casos internacionais, pois estes apresentam maior riqueza de abran-
gência temática e metodológica, o que permitiu afi nar melhor o instrumental de análise.
A seguir, serão apresentadas as descrições dos casos: no capítulo 3, os casos internacionais
e no capítulo 4, os nacionais.