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Roberto ZWETSCH: Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão Mission in Brazil in the 21st Century: mission as com-passion Misión en el siglo XXI en el Brasil: la misión como com-pasión Em memória do Pastor Primeiro Vice-Presidente da IECLB Homero Severo Pinto (1952-2010) Roberto Zwetsch RESUMO O presente artigo reflete sobre o significado da missão cristã no mundo pluralista do início do século 21. Após uma introdução a partir de duas narrativas da litera- tura brasileira, o autor apresenta a missão como constitutiva da própria natureza da igreja cristã. Num segundo momento, propõe o conceito bíblico da compaixão como atualização do evangelho para o mundo atual, marcado por desigualdades e injustiças que se abatem principalmente sobre as pessoas mais pobres e vul- neráveis. O autor enfatiza que a com-paixão deve ser entendida em seu sentido profético e transformador. O artigo conclui com um breve comentário sobre o romance do escritor irlandês John Boyne, O menino do pijama listrado. Palavras-chave: Missão; compaixão; missão transformadora. ABSTRACT The present article intent to reflect about the meaning of the Cristian mission in the pluralistic world of the beginning of the 21 century. After an introduction with two narratives of the Brazilian literature, the author explain the mission as constitutive of the nature of the Christian church. In the second part, he propo- se the biblical concept of compassion as a gospel actualization for the present world, that is characterize by inequalities and injustices, that fall frequent over poor and vulnerable people. The author emphasize that com-passion needs to comprehend in each prophetic and transforming sense. The article conclude with a short commentary about the Ireland John’s Boyne roman The boy in striped pyjamas: a fable [Ireland, 2006]. Keywords: Mission; compassion; transforming mission. RESUMEN El presente artículo busca reflexionar sobre el significado de la misión cristiana en el mundo pluralista del inicio del siglo 21. Después de una introducción a partir de dos narrativas de la literatura brasileña, el autor presenta la misión como constitutiva de la propia naturaleza de la iglesia cristiana. En un segundo momento, propone el concepto bíblico de la compasión como actualización del evangelio para el mundo actual, marcado por desigualdades e injusticias que afectan principalmente a las personas más pobres y vulnerables. El autor enfatiza que la compasión debe ser entendida en su sentido profético y transformador. El artículo concluye con un breve comentario sobre el romance del escritor irlandés John Boyne, El niño con el pijama de rayas. Palabras-clave: Misión; compasión; misión transformadora.

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Roberto Zwetsch: Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão

Missão no século 21 no Brasil: missão como com-paixão Mission in Brazil in the 21st Century: mission as com-passion

Misión en el siglo XXI en el Brasil: la misión como com-pasión

em memória do Pastor Primeiro Vice-Presidente da IecLBHomero Severo Pinto (1952-2010)

Roberto Zwetsch

ResumoO presente artigo reflete sobre o significado da missão cristã no mundo pluralista do início do século 21. Após uma introdução a partir de duas narrativas da litera-tura brasileira, o autor apresenta a missão como constitutiva da própria natureza da igreja cristã. Num segundo momento, propõe o conceito bíblico da compaixão como atualização do evangelho para o mundo atual, marcado por desigualdades e injustiças que se abatem principalmente sobre as pessoas mais pobres e vul-neráveis. O autor enfatiza que a com-paixão deve ser entendida em seu sentido profético e transformador. O artigo conclui com um breve comentário sobre o romance do escritor irlandês John Boyne, O menino do pijama listrado. Palavras-chave: Missão; compaixão; missão transformadora.

AbstRActThe present article intent to reflect about the meaning of the Cristian mission in the pluralistic world of the beginning of the 21 century. After an introduction with two narratives of the Brazilian literature, the author explain the mission as constitutive of the nature of the christian church. In the second part, he propo-se the biblical concept of compassion as a gospel actualization for the present world, that is characterize by inequalities and injustices, that fall frequent over poor and vulnerable people. the author emphasize that com-passion needs to comprehend in each prophetic and transforming sense. the article conclude with a short commentary about the Ireland John’s Boyne roman The boy in striped pyjamas: a fable [Ireland, 2006].Keywords: Mission; compassion; transforming mission.

ResumenEl presente artículo busca reflexionar sobre el significado de la misión cristiana en el mundo pluralista del inicio del siglo 21. Después de una introducción a partir de dos narrativas de la literatura brasileña, el autor presenta la misión como constitutiva de la propia naturaleza de la iglesia cristiana. en un segundo momento, propone el concepto bíblico de la compasión como actualización del evangelio para el mundo actual, marcado por desigualdades e injusticias que afectan principalmente a las personas más pobres y vulnerables. el autor enfatiza que la compasión debe ser entendida en su sentido profético y transformador. el artículo concluye con un breve comentario sobre el romance del escritor irlandés John Boyne, El niño con el pijama de rayas. Palabras-clave: Misión; compasión; misión transformadora.

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1. Duas narrativas para começar

Agradeço à organização do evento promovido pela Federação Lute-rana Mundial em conjunto com a Universidade de Muenster pelo honroso convite em participar deste debate sobre eclesiologia e Missão da Igreja nos dias atuais. É um privilégio conhecer colegas de diferentes lugares do mundo e compartilhar com vocês alguns insights de minha modesta experiência missionária e acadêmica na América Latina.

se me permitem, gostaria de iniciar esta contribuição com duas narrativas que podem nos ajudar a refletir sobre o que significa missão no contexto pluralista do mundo do início do século 21.

A primeira narrativa procede da Ásia, mais particularmente da cidade de Isfahan, sul do Irã (tReVIsAN, 2009, p. 125-127). conta-se que nessa cidade existia uma colônia de artesãos armênios, cristãos e muito ricos. Um potentado muçulmano, desejando apossar-se dos bens desses cristãos, convocou certo dia os líderes da comunidade armênia e disse-lhes:

– Li nos vossos Livros sagrados que vosso Mestre vos disse: “se tiverdes fé do tamanho de um grão de mostarda, podereis transportar uma montanha para onde quiserdes”. Decidi, pois, experimentar vossa fé e verificar se não sois impostores. Ordeno-vos que escolhais alguém dentre vós que possui fé do tamanho de um grão de mostarda, e que mo apresenteis. se ele não conseguir transportar o monte que está ali à frente, eu o matarei, e a todos os chefes de vossa comunidade.

A legenda conta que os cristãos, apavorados com as palavras do muçulmano, fizeram grandes jejuns e penitências até o dia marcado para a prova. Nesse dia apresentaram ao muçulmano um velho monge, que a comunidade considerava santo. Diante do muçulmano, o monge orou:

– senhor, minha fé não é do tamanho de um grão de mostarda! É menor do que ela [...]. Por isso não serei capaz de transportar a montanha! Aceitai minha morte em penitência por minha pouca fé [...].

Ao ouvir tais palavras, o chefe muçulmano comoveu-se, perdoando ao monge e aos demais membros da comunidade cristã sua falta de fé, que não lhes permitia realizar o milagre prometido por cristo.

Quando o homem se retirou, os cristãos reuniram-se para agradecer a Deus sua salvação. então o monge falou:

– Irmãos, é possível que tenha sido maior milagre o muçulmano ter-se com-padecido de nossa falta de fé do que nós sermos capazes de transportar a montanha [...]. A misericórdia divina perdoou nosso pecado!

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Tendo refletido sobre as palavras do monge, a comunidade concluiu que o milagre moral da compaixão do muçulmano foi maior que o milagre físico do deslocamento da montanha. Até aqui a primeira narrativa.

ela foi relatada por um poeta brasileiro, amigo especial, Dr. Armindo trevisan, que num livro recente interroga-se como intelectual e professor universitário sobre verdades fundamentais da sua fé. Na conclusão desta narrativa ele nos lembra da resposta que um pai desesperado, com lá-grimas, deu a Jesus implorando pela cura de seu filho surdo-mudo: “Eu creio, senhor, ajuda-me na minha falta de fé!” (Mc 9.24).

A segunda história foi escrita por eliane Brum (2008, p. 20-25), jovem e brilhante jornalista brasileira, no premiado livro de reportagens A vida que ninguém vê. O fato se deu num bairro de Novo hamburgo, cidade vizinha de nossa escola superior de teologia, a uns 10 km da casa onde moro. Na Vila Kephas vivia Israel Pires. É um bairro formado há décadas por operários de uma indústria que já não existe mais. hoje, ali vivem biscateiros, desempregados, catadores de papel e recicláveis, gente muito pobre. Na Vila Kephas vagava Israel, um rapaz de 29 anos, trágico e sem esperança. Imundo, com dificuldades mentais, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe já falecida, ele passava fome com a madrasta e a irmã doente. era um desregulado das ideias, segundo o povo do lugar. era escorraçado como um cão, torturado pelos meninos maus, cuspido, apedrejado, quase violado. Israel era um verdadeiro pária, a escória do lugar.

Um dia ele se aproximou de um menino de nove anos chamado Lu-cas. Menino de olhos brilhantes, cor de amêndoa, bom de bola e bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. e foi refazendo o trajeto nos dias seguintes. todas as tardes lá ia Israel tragado por certa magia acompanhando Lucas até a porta da escola. Lá ele via as crianças receberem merenda diariamente. Israel chegou lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.

eliane, a professora, descobriu Israel. ele era como um vulto, um espectro na porta da escola. com um sorriso inocente e olhos de vira-lata com fome, ele não conseguia esconder a cara pronta para receber um bofetão.

Mas Eliane o viu. E Israel se viu refletido no olhar da professora. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel se viu na-vegando nas pupilas da professora, bem vestido, garboso. ele descobriu naqueles olhos que era um homem, um ser humano, não um escombro.

capturado pelo olhar da professora, Israel perseguiu aquele olhar até que um dia conseguiu entrar na escola. Quando viram, Israel estava na janela da sala de aula, meio corpo para dentro do olhar da professora. Quando o chamavam, fugia correndo. Mas devagar como bicho acuado, foi pegando o primeiro lápis, depois um afago. e num dia de agosto, Israel

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cruzou a porta e pintou bonecos de papel no chão da sala. e o olhar da professora se multiplicou pelos 31 pares de olhos das crianças daquela sala de aula. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo.

ele passou a chegar à escola de banho tomado, barba feita, roupa limpa. seus olhos agora brilhavam feito facho de luz. Um sorriso recém inventado emoldurava seu rosto sofrido. Quando entrou pela primeira vez na sala de aula, a professora começou a chorar. A subversão acabara de acontecer. O amalucado furou o bloqueio da lei e entrou para a sala de aula no único lugar em que o aceitaram como gente: entre crianças de nove anos!

Desde então Israel passou a frequentar a escola com regularidade. A professora que andava deprimida, descobriu-se bela e importante. As crianças, que vivem na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel.

Os pequenos deram respostas inteligentes para a jornalista. Jeferson, oito anos, por exemplo, falou para Israel: “O que importa é que você siga a vida”. Já Grace, menina de nove anos, aconselhou: “Não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares”. e Lucas, garantiu ao novo amigo: “Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vander”, porque todo mundo (na Kephas) tem medo do Vander, e completa: “Israel, tu me botas na garupa no recreio?”

Aqueles olhares amoleceram as ruas de pedra da vila Kephas. Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou respeito na vila e a admiração do pai. Vai ganhar vaga oficial na escola e já aprendeu a escrever a letra “P” de professora. e ninguém mais lhe atira pedras. A professora, que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora.

Assim termina o artigo emocionante de eliane Brum. teologia em meio a jornalismo de primeira qualidade porque feito com olhos humanos, bem abertos e compassivos.

Duas histórias muito distantes no espaço e no tempo. Duas vidas, muitas vidas em suspenso à sombra da morte e do desamparo. O que une as duas narrativas? A meu ver, é justamente a compaixão, o exercício da misericórdia que começa com a entrega da vida e com o olhar desarmado de uma criança de nove anos. e tal compaixão tem uma força que, se não move montanhas, ao menos move e transforma vidas!

2. Igreja como missão

em artigo para a Dogmática Cristã editada por carl Braaten e Robert Jenson (1984), o teólogo estadunidense Philip J. Hefner define a igreja como a comunidade de Deus em Jesus cristo que não encontra sua

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razão de ser em si mesma, em suas obras ou justiça própria. A igreja cristã se distingue de toda outra comunidade terrena pelo fato de tomar “intencionalmente como sua razão de ser o testemunho explícito da ratio de cristo como a chave para compreender todo o processo da natureza e da história”. Para hefner a missão perpassa o todo da doutrina da igreja. Basta conferir seu artigo (heFNeR, 1995, p. 191-253). Minha conclusão é a seguinte: não é possível definir dogmaticamente a igreja sem fazer referência explícita e essencial à missão. A partir da concepção trinitária de Deus, a teologia cristã afirma que estas três maneiras de Deus ser se desdobram para dentro do mundo na criação e na sua missio. Por esta razão, participar da missio Dei é participar do próprio ser de Deus em seu desdobramento no presente e no futuro como o foi também no passado e na história do povo de Israel. Em outro artigo, Hefner define o ser humano como co-criador, colaborador privilegiado da ação de Deus no mundo. Este Deus chama a igreja à existência por meio de seu filho Jesus de Nazaré e a envia ao mundo para proclamar suas maravilhas, evangelizar os pobres e libertar os oprimidos (Lc 4.18; Is 61.1s). O Deus de Jesus é, pois, um Deus missionário que cria, envia e sustenta um povo, uma comunidade que se define e se entende a si mesma como “comunidade missionária”. Dizer igreja é soletrar a palavra missão e tal missão não tem fronteiras, ela abrange a família, o bairro e o mundo inteiro (FeDeRAÇÃO LUteRANA MUNDIAL, 2006, p. 23-42).

Mas é importante reafirmar dois pressupostos para que esta co-munidade participe da missio Dei em fidelidade ao Deus de Jesus. Pri-meiro, missão jamais é um caminho de mão única, mas de mão dupla: ela exige um relacionamento de reciprocidade entre quem é enviado e quem recebe a mensagem de Deus. Na missão não existe a possibili-dade de somente ensinar ou somente aprender. somos companheiros de caminhada e solidários uns dos outros. Andamos pelos caminhos do mundo com os olhos postos no horizonte comum do reino de Deus. A igreja bem entendida está a serviço desse reino e não de outro. O que prevalece na missio Dei é a relação fraterna e solidária entre enviados e destinatários do evangelho que liberta e salva a ambos e diante do qual somos sempre aprendizes.

O segundo pressuposto é assumir a contextualidade da igreja na cultura e na sociedade. hefner escreveu: “se uma igreja se estende além dos limites de sua cultura, é para assistir outras igrejas em sua missão, e não para fazer missão no lugar delas”. essa posição de parceria na mis-são de Deus é verdadeiramente revolucionária e abre a possibilidade de renovarmos permanentemente o desafio da missão hoje em dia, sobretudo em tempos de globalização e dos novos desafios que se apresentam às igrejas cristãs numa cultura dominada pela competição, pela violência e pela difusão dos valores do individualismo e do prazer a todo custo. como

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escreveu a missióloga presbiteriana sherron K. George, a mutualidade presente em Deus mesmo

... é o fundamento e modelo para todas as práticas nas parcerias de missão. A mutualidade na missão é uma troca de dons, um relacionamento mais horizontal do que vertical, que não cria dependências nem exerce domina-ção. A missão mútua é inerentemente cooperativa [...]. A mutualidade requer paciência, abertura, reciprocidade e honestidade (GeORGe, 2006, p. 86).

Documentos recentes das igrejas cristãs reafirmam a centralidade da missão na própria autocompreensão da igreja. O Papa Paulo VI afir-mou esta teologia na famosa exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, de 1975. O cMI no documento Missão e evangelização: uma afirmação ecumênica, de 1982, igualmente manifestou que o cerne da vocação da igreja é a proclamação do reino de Deus inaugurado por Jesus, crucificado e ressurreto. e que o diálogo e o dar as mãos uns aos outros ajudam a humanidade a superar suas divisões e a trabalhar junto em liberdade, respeito e paz criativa.

A comunhão luterana no mundo definiu sua compreensão de missão e eclesiologia em dois documentos importantes: Juntos na missão de Deus (1988) e Missão em contexto (2004).1 se no primeiro, o destaque é a compreensão de missão sob o signo da cruz, no último documento o conceito de empoderamento resgata a dimensão da ação do espírito santo na missão, não como poder que serve para exaltar a igreja, mas antes para torná-la apta ao testemunho. A igreja toda ela missional se envolverá com os problemas candentes de sua realidade tendo como critério a defesa da vida em todas as suas dimensões. Por isto a prática da missão concretiza-se como prática de acompanhamento, solidária com os pobres, os sem esperança, desiludidos e desamparados, para formar com estas pessoas uma vida em comunhão com todas as consequências que isto implica. O modelo será sempre a encarnação de cristo em meio a um mundo fragmentado e violento, no qual a própria igreja passa por transformações jamais sonhadas antes. A missão holística abrange a totalidade da vida humana e da própria natureza, e se manifesta numa caminhada de transformação reconciliadora ou de evangelização restau-radora como a chamou o teólogo cubano Jorge A. León. No documento A natureza e a missão da igreja (2005), a comissão de Fé e Ordem do cMI volta a reafirmar que a igreja só será coerente consigo mesma se for uma igreja testemunhal (lembremos aqui o conceito de martyria, que originou a palavra martírio nas línguas latinas), que proclama a vontade de Deus

1 cf. Zwetsch (2009, p. 28-40), onde faço um resumo dos documentos e uma breve ava-liação missiológica.

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de salvar e transformar o mundo. Outro teólogo latino-americano, René Padilla, elaborou o conceito de missão integral para dizer que a missão de Deus abrange a totalidade da vida humana em todas as suas dimen-sões, pessoais, psíquicas, espirituais, sociais, econômicas, ambientais (cf. Zwetsch, 2008, p. 146-206).

Ora, missão como caminhada de testemunho e encarnação é assumir o caminho da cruz, isto é, a forma como Deus resolveu agir no mundo por meio de seu filho Jesus. Nele e em seu ministério Deus agiu contra o pecado e a injustiça e disse sim ao amor e à justiça restaurativa e dig-nificante, apesar da perseguição e crucificação. A manhã de páscoa, o sinal da ressurreição dado primeiramente às mulheres nos convida – na fé e por meio da fé – a assumir a caminhada de Jesus onde quer que o seu espírito nos alcance.

É nesse contexto amplo que defendo a compreensão de missão como com-paixão. No que segue vou expor brevemente o que significa isto e que consequências podemos tirar dessa perspectiva diante das muitas crises de toda ordem que nos atingem como igrejas e como nações.

3. missão como com-paixão

Para entendermos o que significa missão hoje precisamos dizer quem é Deus, pois missão é missio Dei. Embora uma definição jamais consiga descrever minimamente quem é Deus para nós, podemos nos valer do testemunho bíblico que nos narra muitas experiências do povo de Israel e, depois, da comunidade de Jesus com o seu Deus e nosso Deus. Jesus chamou Deus com uma palavra muito especial e que temos dificuldade para traduzir: Abba. Isto significa que Jesus mantinha uma relação de grande intimidade com Deus, possivelmente única. ele nos ensinou a nos dirigir ao Abba também por meio dessa relação de proximidade e confiança: Pai nosso [...]. com as feministas, creio que podemos dizer: Mãe nossa [...], contando com a compreensão do próprio Deus.

Mas tem mais. Para Jesus Deus é o Deus compassivo (cf. NOUweN, 1998). há muitas outras características que o descrevem segundo o teste-munho bíblico, mas esta sobressai na vertente profética e, sobretudo, em Jesus. Um de seus ditos afirma: “Sede misericordiosos como também é misericordioso vosso Pai” (Lc 6.36). compaixão e misericórdia são o mesmo aqui. tratando de desdobrar esta tese, encontrei seis pontos que merecem ser considerados para relacionarmos esta compreensão de Deus e sua mis-sio. tal compreensão tem consequências cruciais para a missão da igreja de Jesus nos dias de hoje, portanto, evidentemente também para nossas igrejas evangélicas luteranas espalhadas pelo mundo. No que segue vou expor estes pontos e trazer alguns exemplos de como a com-paixão pode traduzir para o nosso tempo uma prática missionária atual, relevante e de-

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safiadora. Vale recordar aqui que o professor Johann B. Metz anteriormente já afirmara que a pessoa que sofre tem autoridade indiscutível porque toca à profundidade de cada ser humano. esta pessoa fala àquelas dimensões em que a essência humana vigora como pathos, cuidado e compaixão essencial (cf. MetZ, apud BOFF; MÜLLeR, 2009, p. 25).

3.1 Compaixão como resumo do evangelho de Deuscompaixão pode ser uma palavra que resume o evangelho de Deus

para os dias de hoje. sempre é temerário resumir e concentrar. Mesmo assim, arrisco-me a afirmar que a missão de Deus encontra nesta pala-vra-expressão um ponto alto, uma experiência que transcende tempo e espaço, conceito e história.

Deus se compadeceu de nós. E se solidarizou definitivamente com o nosso extravio. em Jesus de Nazaré, ele se aproximou para sempre do seu povo que caminha neste mundo como gente desgarrada para conduzir-nos ao seu reino de amor, justiça e bem-aventurança. e isto em e através do tempo e não de maneira ahistórica.

A compaixão de Deus poderia ser a tradução da sua missio para os tempos modernos ou pós-modernos. Pois, vivemos num tempo em que impera a objetividade do processo histórico, a insensatez da corrida pelo lucro a qualquer custo, o descalabro da destruição da natureza, a insensibilidade pelo sofrimento de milhões de seres humanos, que não encontra limites ou remédio. Numa palavra, vivemos tempos in-compas-sivos, duros, cruéis.

se pensarmos nos processos históricos vividos atualmente na Amé-rica Latina, com evidentes lampejos de esperança em vários países, ainda assim percebemos que a realidade de uma integração subalterna no mercado econômico mundial globalizado deixa pouca margem para alternativas nacionais autônomas, como almejam as propostas de um socialismo revigorado e democrático. Diante dessa situação, há que buscarmos uma alternativa que se anuncie possível e viável, diante das inseguranças e aporias do futuro no século 21. esta busca não é apenas de ordem política, econômica e social. Ela também desafia as igrejas e suas respostas teológicas frente aos sinais dos tempos.

Não será tarefa fácil, contudo, acreditar na compaixão divina se considerarmos apenas o testemunho das igrejas cristãs. sua divisão histórica, a inconsistência de seu testemunho, a guerra provocada pela concorrência religiosa, os escândalos que solapam a credibilidade do evangelho da paz, da justiça e da reconciliação, todos estes são motivos suficientes para desfigurar a promessa do evangelho. Na verdade, fazem tremer os alicerces das igrejas que confessam ser Jesus cristo seu senhor e Mestre, compassivo e desafiador. Por isto, sem a presença do Espírito santo que sopra onde quer e transforma igrejas e pessoas, haveria pouco

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o que fazer. como escreveu José comblin e outros teólogos como Jürgen Moltmann, é no poder do espírito que a igreja cumpre sua missão.

O espírito prepara a Igreja no meio das nações. [...] Por isso não precisamos partir para a missão já com um projeto de Igreja, nem com um projeto de evangelho elaborado. [...] O espírito é quem revela cristo às nações. Nós o anunciamos, mas não sabemos como vão conhecê-lo. O que importa é a apresentação de cristo assim como ele se apresentou: pelos caminhos da humildade e da cruz. cristo parte da pobreza, dos meios pobres. Apresenta-se como sem poder. A revelação de cristo é a revelação da sua cruz vivida como real caminho. [...] O cristo da missão não será um discurso humano sobre cristo, mas uma presença viva e real de Jesus feito homem pobre e sem poder, de uma maneira capaz de tocar no coração dos pobres das nações. Desse modo, cristo e o espírito estão unidos também na missão e somente a sua unidade torna possível a missão nesta hora do mundo (cf. cOMBLIN, 1988, p. 202s).

sem este poder do espírito libertador de cristo, a igreja permanece uma instituição puramente humana e limitada em sua perspectiva histórica. ela não dará conta da vocação a que foi chamada. entretanto, este é o desafio da missio Dei.

3.2 A compaixão de Deus é irmã da justiça – a dimensão profética da missão

O mundo atual é o da concorrência e da competição. A monetarização da economia mundial foi responsável pela maior queda que o sistema financeiro capitalista já passou desde a quebra da bolsa de Nova York em 1929. O custo da “salvação” do sistema chegou a muitos trilhões de dólares, dinheiro evidentemente surrupiado das bocas famintas de milhões de crianças, da construção de escolas, da irrigação dos campos africanos e de tantos outros investimentos que com muito menos poderiam aliviar a fome no mundo, como afirmou o responsável pelo programa da FAO2, na ONU. Na economia financeira, distante da vida real das pessoas, não há lugar para a cooperação, o cuidado e a vivência da compaixão. O mundo hoje depende do sucesso dos grandes negócios nas bolsas financeiras das principais cidades do planeta. e quando elas caem na jogatina geral em que se transformou este sistema, os governos são chamados para salvar o sistema como aconteceu novamente este ano com os problemas da Grécia. É muito interessante observar como funciona o esquema! Na hora do lucro, a lei é privatizar. Na hora da desgraça, o remédio é socializar. É pertinente perguntar se esta é a única lei possível. Ou pelo menos, se ao seu lado não devem vigorar outras metas, que, de modo alternativo,

2 Food and Agriculture Organization.

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proponham a reciprocidade como critério para a convivência humana eassim equilibrem a balança do capital para resguardar o direito à vida, hoje seriamente comprometido para mais de dois terços da humanidade e até mesmo para o meio ambiente.

Nesse contexto, a palavra compaixão encontra um solo fértil para fru-tificar. É o que tem afirmado repetidamente o Dalai Lama (2009), líder do budismo tibetano. Obviamente, ela por si só não garante nada. A compaixão precisa ser desdobrada em atos de vontade, em propostas de vida e socie-dade. Do contrário, fica apenas como um horizonte de boas intenções, sem incidência histórica e perspectiva de futuro. Por isto, estou de acordo com quem defende que a compaixão divina só se torna concreta historicamente quando associada à outra palavra-realidade central no testemunho bíblico, sobretudo, em sua tradição profética. A compaixão de Deus é irmã da justiça. O Deus bíblico é o Deus da justiça.3 Assim como não há paz sem justiça, também não compreendemos a compaixão de Deus se nos esque-cemos de relacioná-la com a sua justiça. estas duas realidades traduzem, a meu ver, o que podemos entender por amor de Deus ou hesed, palavra central da mensagem do profeta Oséias. e também a palavra rahmim, que se pode traduzir como ter misericórdia ou o revolver das entranhas por amor de alguém (cf. JeNNI; westeRMANN, 1985, c. 957-966).

No contexto do Antigo testamento estas palavras estão relacionadas com outros verbos afins e que apontam para a realidade do evangelho da graça de Deus como anunciado por Jesus. são eles: ser clemente com alguém, ser misericordioso, sentir compaixão, tratar bem, respeitar, consolar, mudar de destino, ajudar, ser bondoso, magnânimo. como se percebe, todas essas expressões indicam uma forma especial do agir de Deus em relação ao seu povo e para com a humanidade. esta compaixão de Deus se opõe a outra atitude do mesmo Deus: a misericórdia está em oposição exclusiva à cólera de Deus ou a substitui, porque a ira suspen-de a relação do povo com Deus. em Isaías, o termo misericordioso ou compassivo chega a ser predicado absoluto de Deus. só ele é realmente misericordioso ou compassivo para conosco! e quem experimenta tamanha compaixão, verdadeiramente encontrou o paraíso, como afirmou Lutero num de seus textos autobiográficos! Só a compaixão e misericórdia con-seguem vencer a violência, hamas (em hebraico), e não a força!

3.3 com-paixão: a inseparabilidade entre juízo e graçaNeste sentido, procurei associar as duas dimensões do amor de

Deus com uma palavra que é simultaneamente uma expressão e em cuja grafia procurei reunir várias dimensões da misericórdia divina. Para

3 cf. Metz (2002, p. 28): “Una compasión que busca justicia es, en la era de la globali-zación, la palabra clave del programa universal del cristianismo”.

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mim, a com-paixão de Deus só se torna real quando sua justiça se revela e se realiza. e a justiça de Deus, do ponto de vista da teologia bíblica, concentra duas dimensões inseparáveis: ela é juízo e graça, condenação e redenção, morte e vida. Morte ao pecado que destrói a convivência humana e ressurreição para uma nova vida, em graça e verdade liberta-doras. O juízo revela a profundidade do pecado humano e sua separação da fonte da vida e de tudo o que é sagrado. O apóstolo Paulo escreveu: “porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em cristo Jesus nosso senhor” (Rm 6.23). A graça é a resposta amorosa de Deus que não deixou a morte ser a última palavra, reconciliando, por meio de cristo, a humanidade com ele mesmo, abrindo desta forma as portas da história para o novo, o inaudito, a experiência da vida em plenitude.

3.4 Paixão de Cristo – paixão dos crucificados: buscar a Deus sub contrario

Com-paixão aponta para outra dimensão da misericórdia divina e esta diz respeito ao sofrimento, a passio, que nos remete à paixão de Cristo e, por extensão, à paixão dos crucificados deste mundo, ontem e hoje. Há um tipo de sofrimento que não tem sentido, cuja reflexão levaria ao absurdo. Mas haveria um sofrimento redentor, libertador? É isto que o evangelho de cristo anuncia: em seu sofrimento há, precisamente, um dom e uma promessa. com a ressurreição Deus o resgatou da morte injusta e fez com que o justo triunfasse fazendo brotar novamente a semente da esperança. Mas apesar disso, a cruz é e continuará a ser escândalo. em termos teológicos, jamais poderá ser suprimida ou diminuída. cruz é um escândalo intransponível. Por isto, a teologia cristã é paradoxal. Leonardo Boff chamou a atenção para este aspecto:

Deus deve ser buscado sub contrario. Lá onde parece não haver Deus, lá onde parece que ele se retirou: lá está maximamente Deus. essa lógica contradiz a lógica da razão, mas é a lógica da cruz. essa lógica da cruz é escândalo para a razão e deve ser assim mantida, porque só assim temos um acesso a Deus que de outra maneira jamais teríamos. A razão busca a causa da dor, as razões do mal. A cruz não busca causa nenhuma: aí mesmo na dor Deus está maximamente. [...] [a cruz] deve se manter como cruz, como uma treva diante da luz da razão e da sabedoria deste mundo (BOFF, 1978, p. 136).

Esta reflexão sobre a cruz e o sofrimento é importante no contexto da com-paixão porque facilmente se poderia cair no dolorismo típico da religiosidade latino-americana. A aceitação do sofrimento não significa masoquismo, mas em boa tradição cristã significa luta contra o mal e re-

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sistência ao pecado e à fatalidade da vida. Não por acaso na oração que aprendemos de Jesus está dito: “e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal”. A tentação do conformismo, da entrega ao sem sentido do sofrimento e da dor é real. A oração de Jesus não nos promete viver sem tentações, mas nos ensina justamente a não cair diante delas.

Aqui cabe acrescentar um pensamento. Vitor westhelle, teólogo luterano brasileiro que leciona em chicago, escreveu recentemente um livro de grande força inspiradora: O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz (westheLLe, 2008). Nesse livro, westhelle nos adverte que não pode haver vida cristã a não ser aos pés da cruz e na companhia dos crucificados deste mundo. Ele escreveu:

se Deus está oculto na cruz, então Deus participa da paixão de cristo. Mas se Deus está oculto atrás da cruz, de modo que a imutabilidade, a majestade e o poder divinos são apenas encobertos e não são afetados pela cruz, então o mistério de Deus não se revela na cruz, nem mesmo sob seu oposto. A conseqüência dessa interpretação nos levaria ao seio de um Deus misterioso e apavorante. Mas se Deus estivesse naquela cruz, tería-mos a noção de um Deus cuja compaixão alcançou essa profundidade. A tentação é claramente optar pelo “na” e evitar o “atrás”. Mas essas opções são realmente excludentes? Não deveríamos reconhecer em Deus tanto o fascinans como o tremendum, conforme Rudolf Otto resumiu os atributos do sagrado? esse duplo sentido que se encontra em Lutero não representa oposições alternativas para a interpretação. Ambos são válidos [...]. A obra oculta de Deus é uma forma de nomear de uma maneira radical nossa ex-periência de sermos abandonados por Deus como o próprio Jesus vivenciou (westheLLe, 2008, p. 69).

Isso significa que somente vamos compreender o Deus de Jesus e sua obra em favor de nós quando soubermos nos encontrar com Jesus e seus crucificados no seu caminho, atrás e junto a essas pessoas e povos que clamam por justiça, vida e salvação. Do contrário, poderemos ser boa gente, mas perderemos o proprium que identifica o nome que recebemos de cristo. Nesse sentido, westhelle sugere que a teologia da cruz de Lutero ainda hoje é especialmente desafiadora porque ela nos conduz a uma vivência concreta de solidariedade com quem sofre e grita por libertação. westhelle escreveu:

O desafio para nós é sermos capazes de discernir, como Lutero fez, os luga-res e tempos em que o quebrantamento, a vida ferida, as profundas crises estão recebendo uma operação plástica por parte dos sumos sacerdote do novo evangelho global, o que o teólogo canadense Douglas John hall chama de culto do “otimismo oficial” (WESTHELLE, 2008, p. 72).

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Quando apontamos para a cruz de Jesus e a cruz dos crucificados, é compreensível que muitos de nós, rapidamente, mencionemos a ressurrei-ção como o ato salvador de Deus que na manhã gloriosa superou a morte, a dor e o sem sentido da história. Mas o que precisamos aprender reitera-damente é que a cruz não é algo transitório e descartável. efetivamente, Jesus ressuscitou para nossa salvação e libertação. Mas se Jesus não viveu até o fim a cruz, é vã a nossa fé, se me permitem refazer o conhe-cido dito do apóstolo Paulo. como cristãos, será preciso manter a tensa e criativa relação entre a sexta-feira da paixão e a páscoa, sem jamais “desfazer o escândalo da narrativa fundadora, a não ser que deixemos de entender o mais importante”, como concluiu westhelle (2008, p. 72).

3.5 Compaixão como experiência de libertação: simul iustus et liberatus, semper liberandus

Nesse sentido, Leonardo Boff nos ajuda ao demonstrar duas coisas. Primeiro, que Deus ao assumir o sofrimento e o absurdo da cruz, não aceitou esta absurdez como seu limite. ele assume o absurdo

... não para divinizá-lo, não para eternizá-lo, mas para revelar as dimensões de sua glória que ultrapassam qualquer luz que venha do logos humano e qualquer escuridão que venha do coração. Deus assume a cruz em solidarie-dade e amor com os crucificados, com aqueles que sofrem a cruz. Diz-lhes: embora absurda, a cruz pode ser caminho de uma grande libertação. con-tanto que tu a assumas na liberdade e no amor (BOFF, 1978, p. 143s). A segunda observação diz respeito ao sofrimento que nasce da luta

contra o sofrimento, quando a experiência da fé se dá no contexto do mistério da passio liberationis. trata-se do sofrimento que se experimenta na luta contra a opressão e as injustiças, no compromisso com a liberta-ção dos empobrecidos deste mundo, vítimas de um sistema no qual eles não têm mais lugar. conforme L. Boff, este sofrimento apresenta um nível de dignidade humana incomparável. ele não é buscado, mas encontrado no caminho do discipulado. O mesmo se poderia dizer do sofrimento de quem é perseguido por causa do evangelho, do anúncio do amor de Deus, ou da luta por justiça, como o fez o Mahatma Gandhi. este tipo de sofrimento tem a capacidade de denunciar o mal do sistema que do-mina o mundo, tem a estranha força de negar o sistema porque vive da realidade do amor divino, da força do reino futuro que procede de Deus e para ele conduz, da força da não-violência, que no Brasil foi traduzida pela expressão firmeza permanente. citando L. Boff outra vez:

Por isso o sofredor, vítima da violência do sistema, é livre e jovial, tomado do Absoluto verdadeiro que confere sentido à perseguição e à morte. O

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mundo que Deus prometeu [...] é tão real, tão verdadeiro, tão plenificador que nenhuma morte por mais violenta, nenhum suplício por mais excogitado e inumano que se apresente, é sofrido como destruidor. tal atitude livre e libertadora exaspera os agentes do sistema... (BOFF, 1978, p. 152).

É por isso que o testemunho de Dietrich Bonhoeffer enforcado ao final da 2ª Guerra Mundial (agosto de 1945) ainda ressoa no mundo in-teiro. Para nós na América Latina, é revelador que justamente o teólogo que morreu por causa de sua fé tornou-se o maior testemunho de um evangelho que aparentemente havia sido derrotado pelo nazismo.4

O encontro com o Deus crucificado, em sua paixão, portanto, propicia uma experiência verdadeira de conversão, por meio da qual a vida toda é reavaliada e ganha nova direção. esta é uma experiência de graça, perdão e liberdade que livra as pessoas de um passado que escraviza e proporciona um redirecionar da vida em novas bases. Noutro texto Boff explica esta experiência como um radicar-se em Deus como fundamento do novo ser, como aconteceu na vida de Jesus. tal processo de conversão jamais acaba, pois que está sujeito à dialética do pecador-justo/justificado. A teologia luterana chama a isto de sola gratia, sola fide, que se traduz na vivência histórica como o ser oprimido que se torna liberto e libertador. Boff definiu este aspecto da vida de fé com a fórmula: homo simul iustus et liberatus, semper liberandus (cf. BOFF, 1976, p. 187 e Zwetsch, 1998, p. 141-155,).5 O ser humano é simultaneamente justo e libertado, sempre libertador, a partir da cruz e da esperança que dela nasce. “Porque na esperança fomos salvos”, escreveu o apóstolo Paulo (Rm 8.24).

3.6 com-paixão: apaixonar-se pela misericórdia de DeusMas há ainda um último aspecto na expressão com-paixão que preci-

so apontar. A missão de Deus comporta uma luta pela vida. A resistência contra o amor de Deus é permanente neste mundo. tanto nas instituições – também nas igrejas – quanto em nossas vidas individuais. A dialética da vida é feita de sombras e luzes, de pecado e graça, de tal modo que, pela fé, somos simultaneamente justos e pecadores. Por isto, é necessário deixar-se apaixonar pela misericórdia de Deus. Na linguagem profética do Antigo testamento, a ideia vem com a metáfora de um “mover-se desde as entranhas”. É possível afirmar que Deus ama a humanidade como uma mãe que desde o mover-se de suas entranhas luta por seus filhos e filhas. somente os misericordiosos e limpos de coração conhecerão a Deus,

4 cf. Gutiérrez (1980, p.395-415). em nossa escola superior de teologia dedicamos um dia especial de estudos em 09/04/1995, no cinquentenário da morte de Dietrich Bonho-effer, atualizando seu legado para nossa reflexão teológica e compromisso missionário na América Latina. cf. Estudos Teológicos, ano 35, n. 3, p. 221-257.

5 Para uma visão sistemática da cristologia de L. Boff sob este aspecto, cf. sander (1986).

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afirmou Jesus (Mt 5.7s). com-paixão é uma tentativa de demonstrar que a missão diz respeito ao ser inteiro das pessoas e da igreja de Deus. Missão como com-paixão é um lema e um programa, um alerta e um desafio. É um reconhecimento e uma esperança.

Alguns exemplos podem nos ajudar a visualizar a vivência da com-paixão como rosto da missão hoje. conheci um programa da Igreja evan-gélica Luterana da colômbia que me causou profundo impacto. chama-se Asívida e tem por objetivo acompanhar pessoas que foram contaminadas pelo vírus hIV e vivem com AIDs. O que me chamou atenção é que se trata de um programa que acolhe, acompanha e restaura as pessoas que por alguma razão contraíram o vírus, sem qualquer resquício de culpa-bilização ou condenação moral. É um exercício exemplar da teologia da graça e da compaixão que liberta e dignifica as pessoas.

Um segundo exemplo é o Plano de Ação Missionária da IecLB, em sua segunda versão de 2008. O título do PAMI é sugestivo: Missão de Deus – Nossa paixão. somos uma igreja oriunda da imigração de evangé-licos e luteranos no século 19, mas que decidiu, em 1949, tornar-se Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. esta decisão histórica foi a senha para assumirmos definitivamente a dimensão missionária consti-tutiva de uma igreja cristã. Desde então, procuramos cada vez mais nos inserir no meio do povo e da cultura brasileira, não sem tropeços e crises. O atual Plano de Ação Missionária não é uma solução mágica, mas é um documento orientador que pouco a pouco vai atingindo as comunidades, nos mais distintos lugares do nosso grande País. O que caracteriza este plano é a articulação entre os quatro eixos que desdobram a compreen-são de missão: evangelização – comunhão – diaconia – liturgia, e as três dimensões transversais que permeiam cada eixo: formação (educação) – sustentabilidade – comunicação. O centro do plano é a afirmação de que Deus nos chamou desde a criação do mundo para sermos seus par-ceiros na sua missio. em Jesus ele se aproximou de nossa humanidade radicalmente. Nele e com ele fomos convencidos da paixão de Deus pelo mundo. Por isto, na força do espírito, somos um povo de apaixonados pelo evangelho e a mensagem do reino de Deus. se a missão de Deus é nossa paixão, a com-paixão como via prática da missão nos desafia a um compromisso novo e transformador.

Se hoje vivemos tempos de crise que exigem redefinições, de certa forma, é possível afirmar que a renovação da missão se dá justamente nesses períodos de crise. É nos momentos de cruz que experimentamos, como pessoas e igrejas, os limites da nossa paixão e da nossa infideli-dade. Parafraseando o teólogo uruguaio Juan Luis Segundo, que afirmou ser necessária não só uma teologia da libertação, mas a libertação da teologia, penso que a missão é o instrumento que Deus usa para libertar a igreja de si mesma e de suas aporias.

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Para concluir – de volta à literatura

Acabo de ler com sadio espanto o romance do escritor irlandês John Boyne, O menino do pijama listrado (2009). A história dos meninos Bruno, alemão, e smuel, judeu, ambos com nove anos, para mim é um exemplo cabal do que a com-paixão é capaz de realizar. Pois nessa fá-bula, são estes dois meninos separados por uma cerca irremediável num campo de concentração, que subvertem o sistema e desenvolvem uma amizade que supera ideologia, opressão, desumanização e até mesmo a morte. Quando ambos finalmente podem estar juntos e dar-se as mãos, subvertendo a ordem cruel, são imolados na câmara de gás junto com muitas outras pessoas. Mas este é o engano do sistema. Pois foi nesse gesto frágil e tocante que o mundo renasceu e uma nova aurora de paz e liberdade pode ser entrevista, ainda que sob a cruz. Ontem e também amanhã, em Israel, na Palestina, no Brasil ou no haiti.

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