2018 estagiário de História Revisado por Paulo José da ... · sabia tudo, Águia de Haia... eu...
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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional / Memorial Rua Procurador Antônio Benedicto Amancio Pereira, 121, Santa Helena - 29.055-036 - Vitória –ES - Tel: 27.3194.4560 / 4561 — www.mpes.mp.br
Projeto Memória Oral – 2018
Depoimento de Sonia Maria Bereta Alvim
Transcrito por João Victor da Silva Nicodemos – estagiário de História
Revisado por Paulo José da Silva e Simone da Silva Ávila – agentes de
apoio administrativo
Sonia Maria Bereta Alvim, natural de Miracema (RJ), nasceu em 10 de janeiro de 1952. Filha de João Ney de Alvim e Silva e Darcy Bereta de Alvim e Silva, teve quatro filhos: Pollo Felipe, Samantha, Túlio e Suíla. Foi professora no Estado do Rio de Janeiro e, no dia 11 de março de 1986, iniciou sua carreira no Ministério Público do Estado do Espírito Santo. Aposentou-se como promotora de justiça em 9 de janeiro de 2012, após 25 anos de serviços prestados ao MPES.
00:00 a 00:14 – Tela inicial:
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
PROJETO MEMÓRIA ORAL
Sonia Maria Bereta Alvim Promotora de Justiça aposentada
Depoimento gravado em 29 de agosto de 2018
00:14 a 12:15 – Eu sou Sonia. Nasci Sonia Maria Bereta Alvim. Com nome
assim grande, porque meu pai achava que o nome tem que ter um som, tem
que ter uma sonoridade. Então ele ficou estudando qual era o melhor som:
Sonia Maria Bereta Alvim. Deu um som bom, então ele colocou esse nome em
mim. E cresci numa família... nasci numa família maravilhosa, numa família de
pessoas inteligentes, pessoas boas, honestas. A família do meu pai era de
homens que respeitavam as mulheres e que viam nas mulheres alguma coisa
melhor. Eu sou a mais velha dos netos do lado do meu pai – são 23 netos – e
do lado da minha mãe eu não sou a primeira, mas sou a [filha] mais velha da
minha mãe.
Meu avô por parte de mãe é italiano. Casou-se com uma mulata – eles falavam
que era negra, mas a gente está descobrindo que ela era mulata – e teve com
ela seis filhos. Depois ela faleceu quando minha mãe tinha 2 anos – faleceu no
parto da outra irmã da minha mãe, a última – e minha mãe foi criada depois na
casa de irmãs até o vovô casar. Italiano, ele era industrial, fazia tijolos, fazia
telhas... ele tinha um grande número de empregados com ele lá em Miracema.
Ele casou outra vez, teve mais quatro filhos, e minha mãe foi criada nessa
família pela avó – que eu chamava de avó Luíza, que era a segunda esposa do
meu avô. Nós a chamávamos de avó, não tinha essa diferença não. E então
minha mãe, desde pequena, cresceu ajudando na família. Cresceu ajudando a
madrasta dela – a minha outra avó – a ter os filhos, quando ela ficava de
resguardo e minha mãe, pequenininha, ajudava.
Então minha mãe tem umas histórias, sabe? Que contava assim: quando ela
tinha 8 anos de idade, o irmão dela, que trabalhava na olaria com o vovô,
sumiu. E ela fazia comida – na roça as crianças ajudam. Fez a comida, deixou
lá o prato dele pronto, do Francisco, e ele não apareceu para comer. Vovô
mandou procurá-lo e acharam-no afogado no rio com uma pancada na cabeça.
E um empregado do vovô sumiu. Sumiu e nunca mais apareceu. E desconfia-
se que esse empregado é quem matou o irmão da mamãe. Então a mamãe
desde essa época tem pavor de água, nunca deixou a gente chegar perto de
água por causa disso; e vovô também não quis procurar esse moço que matou,
porque já tinha perdido o filho – o vovô era muito religioso, ele rezava com o
pessoal da fazenda. A minha avó, a mãe da minha mãe, dava aula para o
pessoal todo que não sabia ler e escrever, sabe? Tinha aula. E toda quarta-
feira meu avô reunia todo mundo para fazer oração, todos que trabalhavam na
fábrica. Então minha mãe cresceu nessa unidade de família e aprendeu a
rezar, a orar, a ter compaixão, aprendeu a dar aula. A minha mãe teve essa
personalidade.
E mamãe me contou uma coisa, essa semana, interessante: eu não sabia de
onde vinha meu gosto pela política. Ela me contou que ela, com 12 anos de
idade, subia em palanques, que o vovô era filiado da UDN e, quando tinha que
fazer discurso, ele escrevia e mandava ela falar. Com 12 anos ela falava. E
mamãe é muito política, sabe? Acompanha tudo... eu não sabia de onde tinha
vindo isso. E mamãe veio dessa família. Chegando aos 13 anos, ela conheceu
o meu pai. E foi uma história muito linda. Posso contar, não é? Ela estava com
13 anos, trabalhava em casa e estudava. Adorava estudar, sempre quis
estudar, sempre incentivou a gente a estudar; então o meu pai a viu numa
apresentação de teatro. Ela tinha que apresentar uma peça de teatro em que
ela era uma professora. Ela conta que tinha que comprar um vestido, então ela
vendeu os ovos da galinha dela e comprou um tafetá azul, mandou a costureira
fazer e ela foi linda para esse palco. E ela, dando aula lá no palco, o papai com
19 anos viu minha mãe no palco e se apaixonou por ela. E começou a
perguntar quem era ela, ninguém sabia. Ninguém. Até que ele conseguiu uma
senhora que conhecia as famílias todas lá, que andava muito pela cidade, e ela
localizou e descobriu que era mamãe e falou onde é que era, e meu pai foi lá.
Foi lá a pé. Estrada de chão, chegou lá na porteira, tocou, bateu lá, e o meu
avô que atendeu, e falou: “Eu quero conversar com a sua filha. Quero falar com
a sua filha”, e o vovô deixou. Vovô foi lá e falou com a minha mãe: “Olha, tem
um rapaz aí chamando você. Vai lá levar um copo d’água para ele. Um rapaz
nariz de tucano” [risos], e ainda falou isso do papai. Mamãe foi levar a água e
eles se conheceram e se gostaram.
Para os meus netos eu conto assim: que ela chegou com o copo d’água e,
quando eles se olharam, os olhinhos deles bateram um no outro, assim, eles se
apaixonaram – as meninas adoram essa história [risos] – e se apaixonaram
nessa hora. E dali para frente começaram a namorar. Um dia meu pai falou
para ela: “Você é muito nova, não vai dar certo. Melhor a gente terminar”. Aí ela
falou para ele: “Não, vamos aventurar”. Vamos aventurar, com 13 anos! E está
com ele até hoje, 67 anos e oito filhos que tiveram vivos, porque perderam dois
após o nascimento, e são felizes até hoje.
Essa é a minha história com a minha família primeira. Eu fui a neta mais velha
do lado do meu pai. Eu era muito amada, queridinha. Não tem a queridinha da
América? Eu era a queridinha da família. Sempre fui queridinha da família. E
cresci no meio desse amor todo pelos tios, pelas minhas tias, pela minha avó,
por meu avô. E do lado da minha mãe também. Mamãe tinha uma irmã mais
velha, com 17 filhos, e ela me adorava. Eu adorava ir para a casa dela. Eu vivi
nesse meio, gente. Fui criada num meio de amor, de carinho.
Depois de Miracema, nós saímos e mudamos para Friburgo. Apareceu uma
oportunidade melhor para o papai lá, ele foi embora – ele era contador –,
mudou-se para Friburgo. Fomos nós. Éramos cinco filhos nessa época, mamãe
teve mais três lá. Já tinha morrido uma em Miracema e depois faleceu uma em
Friburgo. E fui criada em Nova Friburgo, fomos para lá em 1960. Na época da
Revolução eu estava lá, morando em Friburgo. E fomos... a escola era em
frente à nossa casa, então não tinha nem preocupação com os filhos. Iam e
voltavam. Não podiam ir para lugar nenhum não, tinha que ir para casa. E a
gente obedecia, ninguém mentia. Não tinha nada disso.
E crescemos com muito respeito. Mamãe sempre explicou para a gente que a
gente tem que ter respeito pelas autoridades, pelo presidente da República,
pelo nosso presidente. Ela ensinou a gente a amar o nosso país, sabe?
Ensinou os hinos para nós. Mamãe sempre ensinou esse respeito pelas
autoridades. Sempre. Autoridade do professor dentro de sala de aula. Sempre
foi incutindo isso em nós, sabe? E nós sempre tivemos respeito pelos seres
humanos, pelas pessoas em volta. Ela foi sempre muito católica, sempre rezou
muito, então ensinou para a gente também esse lado. Foi nossa primeira
catequista, sempre ensinando para nós o amor de Deus, o amor de Jesus por
nós. E sempre encaminhando todos os filhos no caminho do bem. E sempre
incentivando o estudo. A gente podia pensar o que fosse, mas estudo... podia
chover canivetes, não podia faltar aula nem nada, tinha que estudar. E para
mim isso não era difícil, porque eu adorava ler, sempre gostei muito de ler,
então para mim não tinha muita dificuldade nisso aí não. Eu acho que nenhum
outro irmão também teve esse problema. Alguns estudaram até a faculdade,
uns dois que não, mas não teve esse problema lá de estudo não. Ela não
enfrentou isso não, porque ela sempre incentivou.
Então, depois disso, minha família – eu não falei que nasci em Miracema, não
é? falei da parte de Friburgo. Eu nasci em Miracema e estudei no colégio
Doutor Ferreira da Luz, que ainda existe lá. Eu tenho uma tia que foi diretora de
lá até se aposentar, mas eu estudei nesse colégio. E esse colégio era
excelente, sempre foi referência no Noroeste do estado do Rio. Miracema é
uma cidade pequena, mas sempre teve raízes. De lá saíram vários
desembargadores, vários juízes, várias pessoas que ocuparam cargos
importantes no Brasil. Saíram muitas pessoas lá de Miracema por causa... eu
avalio isso, eu atribuo isso ao estudo. Porque lá tinha um bom estudo, uma boa
base. A pessoa conseguia ir para frente. Porque eu penso que a pessoa sem
saber português e matemática não consegue ir a lugar nenhum. Porque
sabendo português vai entender os enunciados de matemática, e sabendo
matemática vai saber fazer qualquer outra equação, qualquer outra questão,
não é? Então lá tinha isso de bom, português e matemática. Depois o resto
você aprende para frente só, sozinho até.
Então de Miracema nós mudamos para Friburgo. Estudei no Colégio Estadual
Ruy Barbosa – era municipal primeiro, depois era estadual, e eu estudei lá. Fiz
um ano no colégio particular Santa Mônica, onde eu fiz uma prova e fui a única
aprovada, com 10 anos, para a Fundação Getúlio Vargas – eu ganhei uma
bolsa de estudos para estudar na Fundação Getúlio Vargas. Não pude ir,
porque não tinha quem me levasse. Era de difícil acesso chegar lá, e mamãe
com uma porção de filhos não tinha condições de levar e não tinha mais
ninguém para ajudar.
Então não fui para a Fundação Getúlio Vargas, mas fiquei estudando num bom
colégio. E lá eu conheci a vida de Ruy Barbosa, a gente tinha que estudar, e eu
me apaixonei por Ruy Barbosa. Ruy Barbosa, para mim, era um ícone. Ele
sabia tudo, Águia de Haia... eu admirava, e eu via aquilo e comparava também
com meu pai – meu pai é inteligentíssimo – e fui crescendo assim. Minha mãe,
quando eu estava com 12 anos, começou a trabalhar fora. A gente ajudava a
cuidar das crianças, nunca teve empregada, e depois ela fez o curso normal
em Nova Friburgo. Durante os três anos, cada ano nasceu uma irmã.
Depois ela foi trabalhar, e a gente continuou com nossos afazeres, com nossas
responsabilidades, sem criar problema nenhum – eles nunca tiveram problema
nenhum com a gente, graças a Deus –, então nossos pais nos criaram sendo
amigos deles e eles nossos amigos. Eles ensinaram para nós, principalmente,
o amor. O amor, o respeito, a sinceridade, a honestidade dentro da família, e
daí eu acho que veio a nossa formação de caráter muito boa. Todos nós... as
minhas irmãs, eu adoro minhas irmãs, meus irmãos, sabe? E eles também, nós
temos um carinho muito grande um pelo outro. Eles ensinaram isso para nós.
Nossos sobrinhos, eu tenho muitos sobrinhos hoje. A família é grande. Mamãe
e papai têm vários bisnetos agora. Aí viemos para Friburgo, e de Friburgo nós
fomos para Niterói.
Exercício do Magistério e o curso de Direito
12:15 a 22:51– Eu passei no concurso público com 17 [anos]. Assim que eu
terminei o curso normal, eu fiz o concurso. Não pude tomar posse, tive que
esperar completar 18. Então, na semana que completei 18, logo depois eu
comecei a trabalhar na roça como professora. Perdi minha vaga do centro, eu
estava bem classificada, mas como eu não pude escolher eu fui para a roça. E
nessa ida para a roça eu aprendi a dirigir, que ele [o pai] me ensinou – ele me
ensinava as coisas, me ensinou a datilografar, me ensinou a dirigir, eu era a
mais velha – e fiquei muito em contato com o meu pai por isso. Aí nesse ano
em que eu estava trabalhando – eu trabalhava no colégio da prefeitura também
–, saí porque era muito difícil o acesso mesmo, era muito difícil, tinha perigo,
tinham estuprado uma professora lá, e eu saí, fiquei só com o Estado – meu
pai fez vestibular no meio do ano. Mamãe incentivando-o, ele fez vestibular.
Quando ele fez o vestibular, ele perdeu em literatura, em julho. Aí em
dezembro ele ia fazer de novo, eu falei assim: “Eu vou fazer com o senhor”. Ele
falou: “Você não pode, porque eu não tenho dinheiro para pagar sua passagem
não”. Eu falei: “Não! Eu tenho” – eu já era professora –, “eu tenho”. Tinha nada,
eu ia arranjar, dar um jeito. E tinha que fazer também a matrícula para fazer o
vestibular. Aí o meu pai falou comigo que estava difícil, e o que eu fiz? Olha
como que Deus coloca as coisas. Uma colega minha vem e me dá um dinheiro
para pagar uma calça jeans que ela comprou com um colega nosso. Aí eu falei
com esse colega, perguntei se ele me emprestava até o final do mês para eu
fazer a inscrição para o vestibular. Ele me emprestou o dinheiro da calça jeans
da colega.
Eu fui para Niterói com meu pai, paguei minha passagem e fui conversando
com ele dentro do ônibus. Eu ia fazer para Psicologia, porque eu admirava
muito o professor de Psicologia, eu queria Psicologia. E fui conversando com
ele o que era esse curso de Direito. E ele foi me explicando o que era o curso
de Direito dentro do ônibus, naquela viagem.
Chegou lá na reitoria da Universidade Federal Fluminense, naquele ano... – a
reitoria era um grande cassino, então tinha vários guichês, e os guichês tinham
aquela meia lua assim, para vender os bilhetes, e era ali que fazia a inscrição.
Então cada cabine daquela, cada guichê daquele era uma inscrição para um
vestibular: Medicina, Direito, Psicologia e cada um fazia fila ali. E o sol quente
de matar. Aí eu fui para a minha fila, Psicologia, e papai foi para a dele, de
Direito. E eu estava na fila, eu fui lá na frente e vi que tinha um papel colado,
falei: “Guarda meu lugar aqui que vou ver o que é”. Aí estava escrito lá:
“Português, Estudos Sociais, Química, Matemática”. Falei: “Não vou passar
nisso de jeito nenhum”. Eu tinha feito curso normal, não estudei Física nem
Química. Como é que eu vou passar nisso?
Me deu um desânimo na hora e aí eu fui andando no sentido dos guichês, fui
vendo as matérias de cada um. Chegou em Direito, papai estava lá atrás da
fila, estava escrito lá “Português, Estudos Sociais, Literatura Portuguesa e
Brasileira, Inglês e Latim”. Aí eu falei: “Ah, eu acho que vou passar nesse
negócio aqui”. Papai me explicou o que que era, já tinha simpatizado, aí eu fui
lá para a fila. De repente, meu pai começou a me procurar, aí eu fiz o sinal para
ele que eu estava na fila: “Oh, resolvi fazer Direito”. Ele falou: “Ah, está bom”.
Fizemos a prova. Nossa! Gente, tinha muita gente. Era muito concorrente.
Tinha mais de 6.500 pessoas, sabe? Na primeira prova de Português, já deu,
assim, 90% saiu. Mas foi uma cortada enorme em Português. E eu passei, eu
era boa em Português, então passei em Português. Aí veio a prova de Estudos
Sociais e cortou mais um “tantão”. Saía no jornal em letras garrafais “30%
cortado na prova da UFF”, saíam aquelas letras das notícias... Aí veio para a
prova de Literatura. Na prova de Literatura, eu não tive tempo de ler os livros
todos não, mas como eu lia muita coisa – eu li “O Tesouro da Juventude”, que
papai tinha comprado para a gente. E no “Tesouro da Juventude” tinha o
resumo desses livros todos, e eu li tudo: “A Moreninha”, “Guarani”. Tudo. Tinha
lido tudo ali. Então eu sabia quem eram os personagens, sabia tudo da história,
era um resumo bem feito. Então o que que aconteceu? Passei de novo, eu e
ele.
Quando terminou essa terceira prova, tinha Inglês, que eu não sabia – sabia
muito pouco só do colégio –, e Latim, que eu nunca tinha visto. Falei: “Como é
que eu vou fazer?”. Olha como é que Deus bota a mão na gente: “Vai, minha
filha”. Fomos fazer a prova de Inglês, e eles chegaram dentro de sala e falaram
que iam fazer uma primeira experiência: o primeiro vestibular a ser feito num
computador. Aí explicaram para a gente que o computador ficava numa sala
enorme, onde eles apuravam os jogos da loteria esportiva. Então eles iam usar
aqueles mesmos cartões para fazer o nosso vestibular. A gente tinha que
responder ali, marcar de pretinho, não podia errar, e seria o primeiro vestibular
com perguntas para você responder a, b, c, d ou f. Aí eles falavam: “Nós vamos
dar a opção até ‘e’, as outras letras vocês não marcam”. Explicaram direitinho.
Então a primeira experiência em Inglês.
Eu fiz a prova de Inglês, tirei 3,5. Não sabia nada. Tinha um texto lá de uma
cirurgia. Eles devem estar tentando entender até hoje o que eu escrevi lá,
porque eu traduzi aquele texto todinho, deixei nada em branco. Mas eu tirei 3,5.
Era diferente de zero. Eles falaram que tinha menos candidatos do que vagas
nessa altura. Olha, olha a sorte! Aí eu falei assim: “Ah, passei. Diferente de
zero, consegui, passei. Agora tem o Latim”. Aí em Latim eu peguei e decorei
todos os números cardinais e ordinais que estavam na lista, no programa, tinha
que cair uma coisa. Fiz a prova de Latim, tirei 1,5. Passei de novo.
Quando veio o resultado, eu fiquei ainda na primeira turma. Eram 150 vagas
para a primeira turma. Eu fiquei em 141º lugar, papai tirou 17º lugar, sem nunca
ter feito vestibular nem nada. Tinha estudado tudo naquele ano, tinha feito
artigo 91, 99, ficou em 17º lugar. E isso separado no Direito. Tinha 300 vagas,
150 na primeira turma e 150 na outra.
Nessa faculdade que eu conheci o Bravo [Francisco de Assis Barbosa Bravo],
que eu conheci a Teresinha [Teresinha Familiar], que era da minha turma,
vieram de lá. Alguns colegas que eram da minha turma vieram para cá. E nós
passamos no vestibular e começamos a cursar juntos. Então eu cursei a
faculdade junto com o meu pai, sabe? Fizemos os cinco anos morando em
Friburgo, estudando em Niterói, e depois passamos para o noturno, e aí não
teve jeito, nós tivemos que morar lá, e minha mãe levou os meus irmãos para
lá, para Niterói. Eu morei em Niterói. Foi todo mundo para Niterói. Eu transferi o
meu cargo de professora para a Secretaria de Educação, fiquei trabalhando na
Secretaria de Educação, e eles ficaram... foram embora todo mundo para lá.
E depois, mais tarde, depois que eu já tinha quatro filhos – eu me casei, eu
conheci meu primeiro marido no Projeto Rondon lá em Valença. Casei com ele
lá em Valença, aí tive quatro filhos com ele e, depois de quatro filhos, ele
resolveu que ia embora, aí me deixou com os quatro. Com os quatro, eu ia
continuar morando em Niterói, estava estudando para fazer concurso. Eu não
pude continuar, porque o dono da casa pediu a casa e eu não queria mais ficar.
Aí eu quis voltar para Friburgo, e meu pai falou: “Você não vai voltar sozinha,
nós vamos com você”. Aí ele voltou com os quatro dele – os outros já tinham
casado – e eu voltei com os meus quatro para Friburgo.
Ingresso no Ministério Público
20:43 a 26:47 – Bom, eu morava em Niterói, como eu falei, não é? Fazia
concursos lá. Eu fui jurada no Tribunal do Júri de Niterói. Era o tempo que eu
aproveitava para estudar, porque eu era funcionária pública, me deixavam à
disposição e eu ficava e aproveitava para estudar. Às vezes eu não era
sorteada e às vezes o promotor dispensava a gente, e eu ia estudar. Eu
aproveitava assim, e quatro filhos, como é que eu ia estudar? Não era
brincadeira. Era bem difícil.
E então fui fazendo concursos lá, e eu ficava, assim, quase passava, quase
passava. Tirava notas altas em Civil, Penal, aí chegava e perdia lá em
Instituições do Ministério Público, numa matéria que eu não tinha estudado
direito. Eu não passava, porque não tinha estudado tudo mesmo, não dava
tempo. Não dava, era muito esforço para mim. Então fui me aprimorando, eu fui
estudando, estudando, estudando e chegou numa época que teve concurso
aqui. Muita gente estava vindo fazer concurso aqui, e eu vim com umas
colegas, me convidaram para vir, me chamaram para vir, e íamos fazer a
prova.
O primeiro concurso que eu fiz eu não passei, fiquei realmente bem chateada,
mas Deus sabe das coisas. Então, naquele concurso, Teresinha [Familiar]
passou, e a prova que ela fez, ela me falou que era para discorrer sobre crimes
contra a fé pública. Na época eu não tinha estudado essa parte assim para
saber escrever sem olhar, entendeu? Para discorrer. E eu fiz o concurso do
ano seguinte, me inscrevi no ano seguinte e, para mim, caiu o Tribunal do Júri.
E Tribunal do Júri eu tinha sido jurada, eu estava mais afiada nesse ano aí, eu
já podia fazer sobre fé pública que eu sabia. Eu já estava estudando, bem mais
preparada. Quando eu fiz essa prova sobre Tribunal do Júri, eu não escrevi
uma linha, não copiei uma linha, do Código. Eu citei, fiz tudo da minha cabeça
e, quando o doutor Faissal [Elias Faissal] falou que eu passei, ele falou que foi
a melhor prova que ele corrigiu. Ele ligou para mim e falou que fez questão de
falar isso comigo pessoalmente, sabe?
E então eu vim de lá, fiz a inscrição em janeiro, em julho tinha que juntar títulos.
Eu não acompanhei e perdi a juntada de títulos. Eu não juntei títulos, fiquei com
a minha nota nua e crua. Em outubro foi a prova. A prova era segunda, quarta,
quinta e sexta. Na sexta você já sabia se era promotor ou não. Só que no
nosso caso não aconteceu isso. Na última prova, a OAB [Ordem dos
Advogados do Brasil] entrou com um mandado de segurança para suspender o
concurso, porque eles não tinham participado da fase do edital, eles queriam
ter participado da fase do edital. Então os desembargadores tinham
suspendido o concurso. E doutor Benedicto Amancio [Antônio Benedicto
Amancio Pereira] entrou na sala e falou: “Olha, está acontecendo isso, e eu
quero saber de vocês, vocês estão no meio da prova: vocês querem continuar
a prova com o risco de não tomarem posse ou vocês querem suspender e
fazer essa prova depois?”. Aí o pessoal se reuniu e falou: “Não. Vamos
terminar a prova”. A gente já estava com tudo ali para fazer a prova. “Não.
Vamos fazer a prova. Fica resolvendo depois”. Fizemos a prova. Levou
realmente... foi outubro, novembro, dezembro, janeiro, fevereiro. Em fevereiro
eles começaram a chamar. Então quatro meses sub judice sem ninguém saber
se ia poder ficar ou não. E continuou sub judice a posse, mas continuou. Então
as pessoas tinham que pedir exoneração dos cargos que tinham e tomar posse
sem saber o que ia acontecer depois.
Foi uma insegurança muito forte para nós, porque ficou quatro anos nosso
concurso sub judice, sabe? Foi, para nós, difícil. Nosso concurso não foi fácil,
só 19 passaram. Eu fiquei em sexto lugar empatada com a doutora Elda [Elda
Márcia Moraes Spedo], que foi procuradora [procuradora-geral]. Mas ela tomou
posse antes de mim, então teve uma diferença na antiguidade de oito dias. E
eu não podia voltar para o Rio, pedi para o doutor Amancio: “Doutor Amancio,
deixa eu tomar posse de uma vez. Eu não tenho dinheiro para ir embora para
casa”. Não tinha como eu ficar na estrada. “Não. Você só vai tomar posse
depois”. E eu não sabia quando. Oito dias depois me chamaram, aí voltei.
Cheguei lá, tomei posse sozinha dentro do gabinete com ele, fiz o juramento e
ele falou: “Vai para Muqui”. Nem sabia onde era Muqui.
Fui eu para Muqui. Em Muqui encontrei gente conhecida de Niterói: o promotor
e o juiz eram de Niterói, o Sylvio Aceti [Sylvio Bulcão Aceti] e o... ah, esqueci o
nome dele agora, foi um rapaz novinho que foi juiz aqui... Marcos Alcino
[Marcos Alcino de Azevedo Torres], depois passou no concurso de juiz aqui. E
aí eu comecei a minha carreira assim, ao contrário, trabalhei primeiro lá em
Muqui, uns dois meses substituindo uma colega, depois fui para Mimoso e
depois me mandaram para Vitória. Fiquei três anos em Vitória.
Eu vinha no domingo à noite. Não tinha ônibus, então eu tinha que ir para o Rio
de Janeiro – eu ia de ônibus de Friburgo para o Rio de Janeiro, atravessava um
lugar perigosíssimo, que ainda é perigoso até hoje, passava numa passarela
para atravessar para a rodoviária. Na rodoviária eu pegava o ônibus de dez e
meia ou onze horas da noite e vinha para o Espírito Santo. Levava 12 horas.
Essa brincadeira levava 12 horas para trabalhar. Chegava aqui de manhã, 7
horas da manhã, aí eu tomava um café e já estava quase na hora de ir para o
Fórum. Tinha dia que eu comia, tinha dia que eu não dormia. Era muito difícil.
Estrutura do Ministério Público
26:47 a 28:47 – Não tinha estrutura nenhuma. O Ministério Público não existia
não. A gente ganhava menos do que um professor com dois cargos no Estado
do Rio. Teve época de eu ganhar menos do que eu ganhava lá como
professora. A minha vontade era de ir embora, não dava. O dinheiro mal dava
para pagar as passagens, eu pegava dinheiro emprestado em banco, eu
comecei a minha carreira pegando dinheiro emprestado em banco. E era muito
difícil, a gente... em todo lugar que eu ia ninguém sabia que que era um
promotor de justiça, sabe? Você chegava na cidade igual um cachorrinho. Você
não era nada abaixo de nada. “Eu sou promotora de justiça, estou chegando na
comarca agora”. Quê? Ninguém sabia o que era promotor de justiça. “Pouco se
me dá”, era desse jeito.
O Ministério Público não era nada, ninguém conhecia. A gente enfrentava a
estrada sem asfalto nenhum, estrada de chão, entendeu? Era muito difícil. Não
tinha lugar para ficar na comarca. A gente não tinha papel, a gente não tinha
máquina de escrever, não tinha nada. A gente comprava tudo do bolso da
gente. Às vezes eu pedia no Cartório, quando era uma pessoa simpática no
Cartório deixava usar a máquina lá, mas com o tempo a pessoa ficava enjoada,
não é? Mas não tinha nem onde pedir. Nós não tínhamos estrutura nenhuma.
Em São José do Calçado, eu fiz o nome do Ministério Público lá. Mimoso fiz...
Por onde passei deixei o nome do Ministério Público. Recebi homenagens, as
pessoas viram o que era o Ministério Público. Várias pessoas quiseram fazer
concurso. Muitos entraram no Ministério Público por minha causa, porque
queriam ser promotores. Quantos advogados mudaram a vida deles porque
queriam fazer júri comigo. Porque eu não sei, eu acho que eu era mulher, eu
era muito acessível, sentiam segurança em fazer o júri comigo e começaram a
crescer na profissão.
Atuação no Tribunal do Júri
28:47 a 38:45 – Teve muitos júris que eu fiz. Os primeiros, por exemplo, em
São José do Calçado, quando eu fui para lá, eu não sabia, eu não tinha
experiência nenhuma dentro da instituição. Cheguei lá, e tinha dois júris
marcados para 29 e 30 de dezembro. E eu fui para lá no dia 27. Como é que
eu ia ler os processos? Eu li na hora. E tem outra: os réus eram queridíssimos
na cidade, aí eles os absolveram. Que decepção! Mas aí o pessoal do Cartório
me chamou e falou assim: “A senhora não fica assim. Olha, aqui ninguém é
condenado. Olha aqui no livro, ninguém é condenado nessa comarca”. Eu
mudei aquilo. Falei: “Ah, ninguém é condenado aqui... espera lá”.
Prestei bem atenção na lista de jurados e tudo, e a coisa mudou. Aí os outros
júris que eu fiz já teve condenação direto, sabe? Porque lá o promotor podia
chegar e falar o que quisesse, que eles já estavam convencidos de que tinham
que absolver. Falasse ou não falasse, para eles era a mesma coisa. Mas era
início de carreira, gente. Era inexperiência mesmo, não é? Eu acho que nem
um promotor experiente ia adivinhar que aquelas pessoas da cidade queriam
absolver. E eram uns crimes terríveis.
Depois fui trabalhar na Serra, vi coisas terríveis por lá. Vim para Anchieta. Em
Anchieta fiz muitos júris lá, e teve uns júris interessantes. Teve o júri do
mudinho. O mudinho morreu porque falou demais. O mudo era um rapaz tão
bom, ele chamou o outro de chifrudo, e começou a fazer assim [gestos] falando
que a mulher tinha botado chifre nele. Falando para o outro, não é? O outro, no
dia seguinte, sai descascando laranja e encontra com mudinho na rua e não
pensou duas vezes, enfiou a faca de baixo para cima no mudinho e matou o
mudinho.
E era, como eu falei para vocês, um rapaz bom, trabalhador, mas tudo porque
foi falar aquilo com o cara. No júri, fui lá para o júri – o júri foi feito na Câmara
Municipal de Anchieta. Então era a parte de cima, onde ficavam os vereadores
ficavam os jurados. Aí eu estou fazendo o júri, estou lá sentada para começar o
júri, entraram duas top models – Nossa! Que duas moças lindas! De onde saiu
aquilo? Lindas, lindas, maquiadas, boca vermelha... muito lindas, mas muito
bonitas mesmo –, uns rapazes bonitos junto com elas, e foram fazer o júri. E o
júri era para ser feito com um advogado muito famoso de Vitória, que falava
várias línguas, ele era muito famoso, doutor Vinícius – só lembro do primeiro
nome, Vinícius – muito respeitado, mas ele não foi e mandou o pessoal dele.
Falei: “Pronto, aí é que eu vou perder esse júri. Não vai ter jeito, não é?”. Eles
chegaram lá e falaram, falaram, falaram, falaram, falaram, falaram. Eu primeiro
falei. Eu primeiro expus o processo, fiz a minha parte, conversei com os
jurados, falei por que que eu queria a condenação, expliquei as teses da
defesa, o porquê que elas não podiam ser acolhidas, e eles começaram a falar.
E dividiram o tempo e falaram, falaram, falaram, falaram... eu não usei minhas
duas horas não, eles usaram, sabe? Aí deu o intervalo e voltamos. Quando nós
voltamos, o juiz falou assim comigo: “Oh, vou perguntar à senhora se quer a
palavra. Se a senhora responder qualquer coisa além do sim ou não, se a
senhora responder alguma coisa além do não, se for não, eu vou considerar
que a senhora está indo à réplica”. Aí eu: “Por que que ele falou isso comigo?”.
Achei estranho, mas tudo bem, estava avisado. Aí quando ele falou: “O
Ministério Público vai à réplica?”. Eu pensei e falei: “Não”. Aí acabou o júri. Eles
não tinham falado tudo o que eles tinham para falar, a defesa não tinha
acabado de falar. Eles perderam o júri. Tinham falado, nossa, em inglês,
francês, russo, falaram em várias línguas lá, eu achei que eu ia perder. Fomos
para a votação. Eu não ganhei o júri? Aí recorreram, teve outro júri. Foi uma
coisa que aconteceu que me deu muita experiência, porque o tempo... e eu não
fui à réplica, porque não tinha realmente mais nada para falar. Naquele dia não
foi estratégia, nem nada. Eu já tinha falado tudo que eu tinha que falar, sabe?
Eu não sabia o que que eu ia falar mais, não tinha mais nada para falar, já
tinha conversado com os jurados.
E outro júri que também foi muito bom foi aqui em Guarapari. Tinha sete
acusados. A juíza dividiu o júri em dois: quatro jurados em um, três noutro. Eu
fiz o júri do primeiro e do segundo separados. O primeiro, na hora do júri, ela
falou assim comigo: “Você não vai ganhar isso”. Eu falei: “Por quê?”. “Porque a
pessoa que morreu era dedo duro, era alcaguete da Polícia. E ele denunciou
todo mundo lá de dentro da cadeia, era bandido também, então você não vai
conseguir não. Os jurados vão entender que bandido tem que morrer também.”
Foi o que ela falou para mim num comentário particular, sabe? Eu li o
processo, falei: “Vamos ver o que eu posso fazer com isso aqui”. Então eu
expliquei o processo para os jurados, que eles tinham matado um rapaz
enforcado dentro da cela e que tinham enfiado a cabeça dele dentro do vaso
sanitário, porque ele tinha contado para os policiais que eles estavam furando
um buraco na parede para fugir – isso aqui em Guarapari – e deixaram-no
morto lá. Um dos líderes machucou a mão e pediu para ser levado ao hospital,
mas ele só fez isso no dia seguinte às 11 horas – a hora que eles mataram foi
mais ou menos 10 horas da noite. Ele ficou morto esse tempo todo com eles na
cela e não descobriram. Ele foi lá enfaixar a mão, voltou; quando descobriram
que ele estava morto, o delegado interrogou todo mundo, e a defesa deles é
que eles tinham sido obrigados a confessar a participação no homicídio.
E a defesa deles era essa, era coação, que eles tinham confessado sob
coação negativa de autoria. E eu provei para eles que não tinha sido negativa
de autoria, e nesse dia me deu uma iluminação de explicar aos jurados quanto
tempo que eles iam ficar presos, cada um deles. Eu fazia a acusação de
quatro. Cada acusado tinha dois, três advogados. Aquele monte de advogado
não adiantou. Eu ganhei aquele júri. Ganhei os quatro, foram todos
condenados. Chegou o terceiro, também. No terceiro, eles já sabiam que os
quatro já tinham sido condenados. Teve um que levou um advogado, que levou
uma Bíblia, falou que ele tinha se regenerado, e pediu para apresentar a
mulher do cara, que ele tinha conhecido dentro da cadeia, e ela tinha
engravidado, lá dentro da cadeia, dele. Olha, eu deixei... Quando ela entrou, o
júri gostou dela e das crianças, eram uma ou duas, e absolveu esse, uma
absolvição. Eu recorri e depois eu ganhei o outro júri. Esse foi um caso que eu
olhava para eles e falava assim: “Olhem bem para ele. Ele está pedindo para
ser condenado para ele se inserir novamente na sociedade”. Ele olhava para
mim e falava assim: “Maluca, doida”. Falava assim: “É doida” [risos]. Mas eu
acabei ganhando aquele júri.
Mas, especificamente, não tem assim um júri... teve um júri de alguma
repercussão, mas nada extraordinário. Eu fazia júri naturalmente... não sei, eu
gostava de fazer. Eu fazia júri sem ler o processo até. Por quê? Isso aconteceu
quando um juiz resolveu, interpretou, que as pautas eram ininterruptas e
resolveu marcar os júris todos seguidos, todo dia tinha júri. Eu falei: “Não faz
isso que não vai dar tempo de preparar, os processos são grandes”. Aí ele: “Eu
fui defensor e fazia júris sem ler processo”. Eu falei: “Ah é?”. Aí quando chegou
num dia de júri que eu estava cansadíssima, não tinha como ler aquele
processo, eu dei só uma lida, aí ele perguntou... Dei só uma folheada, não deu
para ler tudo. Na hora que ele perguntou: “O Ministério Público quer que leia
alguma peça?”. “Quero sim, senhor.” “Quais?” “2, 3, 4, 5, 7, 8, 9,10”. Fui
falando todas. Eles tiveram que ler o processo todo para mim. Aí ele nunca
mais fez isso comigo, sabe? Porque ele estava fazendo isso comigo era para
me provar, não é? Principalmente por eu ser mulher. Tem essas coisas
também que os homens não aceitam que a gente seja tão inteligente ou mais
do que eles não, viu? Os homens da nossa profissão. Estar no mesmo nível,
eles não aceitam não. A gente tem que se impor desse jeito.
Discriminação de gênero
38:45 a 41:07 – Algumas sim, eles tinham... eles não gostavam. Primeiro, eles
não gostavam de gente de fora e segundo que, por ser mulher, muitos homens
não aceitavam muito não, sabe? Tinha poucas mulheres, mas eu nunca recebi,
pessoalmente, nada não, sabe? Nunca sofri nada assim não, a não ser esse
daí, mas eu tirei de letra, que esse juiz aí eu conseguia falar com ele. Porque
tem juízes que você não consegue falar, mas eu argumentei com ele e falei
com ele para não fazer de novo, porque eu estava muito cansada. Porque os
juízes, às vezes, não entendem.
Teve um juiz em São José do Calçado, quando eu comecei a trabalhar, eu
levantei para ir para o banheiro – eu estava menstruada – e naquela época eu
estava com 36 anos mais ou menos, 38, e eu tinha que ir ao banheiro. Eu
pedia licença, falava que ia, ele mandou comunicações para a Procuradoria
que eu não estava na sala de audiência. Eu tinha avisado aonde eu ia, eu
estava passando mal. E não tinha compreensão. Existiu isso. Mas também tirei
de letra isso aí porque, quando a Procuradoria me perguntou, eu respondi,
tinha gente na comarca que via, não teve grandes problemas não. Também
nunca me agrediu com palavra, nada disso. Só tinha essas manias. Mas dizem
que ele era esquisito, todo mundo reclamava dele, então não era diferente.
Então eu acho que é a questão da personalidade da pessoa, não é dizer assim
que os homens não gostam das mulheres, nada disso não. Mas o que eu te
falei de não aceitar que a mulher seja mais inteligente que ele, isso é verdade.
Tem muitos homens que não aceitam que as mulheres... se você dá uma
opinião, ou sabe mais, mostra que sabe mais que eles, eles se ressentem.
Então você tem que ter jogo de cintura, às vezes, sabe? Mas nunca senti esse
negócio de sentir que eu estou alijada, que eu fui menosprezada em promoção
e remoção. Nunca aconteceu isso. Nunca. Nunca me senti assim,
principalmente, dentro da minha instituição. Os problemas que eu estou te
contando são quando a gente senta ao lado de um juiz que tem essas coisas,
essas birras. Tinha juiz que achava que poderia trabalhar sem o Ministério
Público...
Conciliação em São José do Calçado
41:07 a 44:40 – E uma vez em – lembrei uma coisa aqui engraçada – São José
do Calçado... Tinha um porteiro de auditório muito engraçado, o Alcendino. Eu
cheguei, ele entrou na minha sala e falou assim: “Doutora, tem uma mulher
esperando dentro da sala da senhora”. Aí eu falei: “Uai, o que é?”. Aí ela
começou a falar, eu perguntei o que era, e ela falou: “Olha, doutora, eu vim
reclamar com a senhora que o meu marido, José, não está indo na minha
casa”. Eu falei: “Não está indo na sua casa?” “É.” “A senhora tem filhos com
ele?” “Tenho cinco filhos com ele. Ele não está indo lá em casa, só está indo na
casa de fulana.” “Como é que é? Quem é essa fulana?” “É uma outra mulher
que ele tem. Tem quatro filhos com ela.” Eu falei: “Espera aí, vocês se
conhecem? Vocês sabem...”. “Eu sei.” Aí o Alcendino abriu a porta: “Doutora, a
outra mulher está aqui”. Aí entrou a outra mulher, uma sentada à minha frente
e a outra sentou no sofá, e eu falei: “Bem longe, fica bem longe”. Eu falei: “Meu
Deus, vocês se conhecem?”. “Conhecemos, nós nos conhecemos.” “E vocês
se dão bem?” A de cá estava zangadíssima, de cara virada. A outra falou
assim: “Nós nos damos bem sim”. “Como é que é isso? Vocês, então, têm o
mesmo homem?” “É”. Aí o Alcendino abriu a porta: “Doutora, o senhor José
está aqui”. Aí mando senhor José entrar. Um homem grandão, mulato, bonitão,
sabe? Aí eu falei assim: “Seu José, pode entrar”. Ele sentou perto da outra que
estava no sofá. Falei: “Seu José, duas mulheres? Não pode, o senhor sabe que
é crime isso, não é? O senhor é casado com alguma delas?”. “Não.” Ele não
era casado com nenhuma das duas, mas tinha as duas e cuidava dos filhos
muito bem, elas falaram, elogiaram-no, ele também falou que adorava os filhos.
Eu falei: “Mas, seu José, ela está reclamando que o senhor não está indo na
casa dela”. “É porque eu fiquei mais na casa... deu uns problemas lá, eu tive
que ficar mais, não podia avisar, por isso que ela está nervosa assim.” Aí falei:
“Mas, seu José, de qual das duas o senhor gosta mais?”. “Ah, doutora! Eu
gosto das duas. Gosto muito das duas.” Falei: “Jesus, o que eu vou fazer?
Gente, vocês estão reclamando de ele ir ou não ir. E se eu dividir os dias para
vocês, vocês aceitam?”. Aí uma olhou para a outra e falou assim: “Aceitamos”.
“Então vamos fazer assim: segunda, quarta e sexta na sua casa e terça, quinta
e sábado na sua. Está bom? E domingo, seu José, você pega as crianças e vai
passear, hein?” [risos]. “Está bom.” Aí eu peguei um papel timbrado, fui para o
computador e bati o acordo para eles assinarem. Eles assinaram. Eu tenho
cópia desse acordo. Eles assinaram comigo o acordo, eu dividi um homem
entre duas mulheres. Olha quanto tempo tem isso! Isso aí foi lá em São José
do Calçado pelos idos de 91, por aí. Olha, consegui dividir e ficou tudo em paz.
Eles obedeceram aqueles horários que eu marquei. Como é que eu ia fazer?
Eles já estavam juntos, as crianças gostavam dele, já estava todo mundo
convivendo. O que eu ia fazer, gente? Nessa hora, a moral é separada do
Direito. Então nessa hora... o costume, não é? Nessa hora eu tinha que ter
bom senso de não criar uma briga ali maior, não é? Processar nenhum ali. Por
que eu ia processar? Como? Ele nem era casado com elas.
Investigação policial em Anchieta
44:40 a 51:29 – Eu estava em Anchieta na minha sala – era uma sala que tinha
sido uma sala de juiz, sabe? Ali pelo menos eu tinha uma mesa, um banheiro –
e eu estava tranquila, trabalhava de porta aberta – nunca gostei de fechar a
porta. A porta estava assim mais aberta, aí entrou o porteiro de auditório e
falou comigo que tinha dois vendedores de livros querendo falar comigo. Eu
falei assim: “Eu não quero comprar livro não. Fala que eu não quero, que eu
estou ocupada, que eu não vou poder atender”. Aí foi: “Olha, eles estão
insistindo que querem falar com a senhora, porque os livros que eles querem
mostrar para a senhora a senhora não tem.” “Então tá. Manda entrar.” Eles
entraram e fecharam a porta e sentaram na minha frente, assim, com um
blazer igual vendedor de livro. Os dois enfiaram a mão assim no casaco, falei:
“Ah, vou morrer agora”. Eu fiquei gelada. “É agora que eles vão atirar em mim.
Fiz alguma coisa com eles?” Só passava na minha cabeça o que eu já tinha
feito com alguém de júri ou alguma coisa, acusei quem, por quê... começou a
passar um monte de coisa na minha cabeça. Quem podia ter ódio de mim? Aí
eles tiraram, assim, Polícia Federal: “Nós somos da Polícia Federal e queremos
falar com a senhora”. Falei: “Ah, eu vou levar vocês lá no juiz para vocês
falarem”. “Não. É com a senhora que nós queremos falar. Com o juiz não. E o
que nós falarmos aqui tem que ficar aqui dentro.” “É sobre o quê?” Eles eram
da P2, da polícia disfarçada. “Olha, doutora, nós estamos investigando um
senhor que mora aqui em Anchieta e ele sequestrou um avião lá na...” – Como
é o nome? Lá na Arábia, tem até um restaurante com o nome da cidade... vou
lembrar, começa com ‘b’ – “e ele sequestrou o avião e está sendo procurado
pela Interpol na França, Inglaterra.” Aí eles tiraram a documentação, me
mostraram e me deram a cópia – também tenho cópia disso – deram cópia da
vida dele, que ele era procurado e tal e tal, o nome dele, e eu cada hora mais
surpresa. “E nós estamos investigando como é que está a situação dele aqui
no Brasil, se tem alguma coisa, porque ele está renovando passaporte, e nós
estamos vendo se ele tem alguma coisa errada. Então nós queríamos que a
senhora desse um tempo.” Eu falei: “Como?”. “Ele tem um processo com a
senhora aqui, de adoção.” Aí mostraram fotos. “Oh, ele tem uma porção de
crianças no sitiozinho, na chácara dele, e ele já adotou um e está pedindo a
adoção da menina. Então nós queríamos que a senhora segurasse o processo
até a gente acabar de investigar para ver como é a situação dele”. Eu falei:
“Tudo bem, eu seguro”.
Os dias passaram, o advogado foi lá: “Doutora – eu nunca demorava com
processo –, o processo está aí com a senhora, e a senhora não despachou
ainda”. “Ah, eu vou despachar, pode deixar. É porque eu estava com muita
coisa para fazer e não deu tempo”. O advogado ficou sossegado, foi embora. E
os policiais mantendo contato comigo, me deram um número particular para se
eu quisesse entrar em contato com eles, era naquele número, mas que eu
continuasse segurando o processo lá. Muito bem, segurei, fui segurando, eles
iam falar lá comigo para ver como é que estava e tal. “Olha, nós ainda não
descobrimos nada, mas a senhora segura mais um pouco.” E eu fui segurando.
Um dia, o advogado levou o homem lá, eu conheci o homem pessoalmente, o
árabe. E ele falava com um sotaque muito carregado. E ele contou a história
dele para mim. Ele era autor de 36 livros, ele era escritor. Os livros dele eram
publicados em várias línguas, ele me mostrou isso, e ele estava no Brasil
montando uma firma legalizada, direitinho, em Vitória, de venda de
suplementos alimentares, comprimidos de vitaminas. Mas ele falou: “Tudo
direitinho, conforme o governo pede, tudo certinho, estou legalizando a firma,
com advogado e tudo. E o meu processo está aí com a senhora e eu quero
adotar essa menina. Já adotei um e está lá nos Estados Unidos estudando.
Estou querendo adotá-la para ficar comigo. Tem mais três morando comigo e
tal”. Aí ele contou que a irmã dele..., que ele saiu da Terra dele e veio para o
Brasil, não contou do avião. “Vim para o Brasil e trouxe minha irmã porque lá,
doutora, eu morava lá em...” – está quase vindo o nome. “E quando eu cheguei
em casa a minha casa estava lacrada e tinham matado minha família toda.
Sobrou uma irmã, essa irmã eu trouxe para cá, está morando aqui comigo
agora. E nós estamos extremamente felizes aqui em Anchieta, morando aqui.”
E ele já não era novinho não, sabe? Ele já tinha um pouco mais de idade, ele já
devia ter uns 67, 68 anos, por aí. E aquele negócio de adotar criança, os
policiais estavam investigando se ele estava fazendo isso para ficar fixo no
Brasil e fugir de alguma coisa, sabe?
Então eu segurei o processo, fiquei ouvindo essa história, e falei: “O que eu
vou fazer agora?”. Aí os policiais apareceram lá, contei para eles e eles
falaram: “Doutora, a senhora pode liberar, porque ele está limpo, está tudo
certinho na vida dele. Não tem nada errado, a senhora pode liberar. E nós
vamos informar à Interpol que ele está bem aqui no Brasil, não está fazendo
nada errado”. Porque realmente ele sequestrou o avião para poder fugir do
lugar. Não matou ninguém no avião, nem nada, só desviou a rota. E é crime
internacional. E eu falei: “Agora eu vou liberar”. E peguei o processo para
liberar. Aí, quando eu estou liberando o processo, o advogado entrou na minha
sala: “Doutora Sonia, sabe aquele processo? Vim pedir à senhora... Já estou
entrando agora com a desistência”. Falei: “Desistência, agora que eu estou
falando nele?”. “Desisti, doutora, a senhora não sabe o que aconteceu. O
menino que foi para os Estados Unidos e a menina que vai ser adotada estão
apaixonados. Se fizer a adoção dela, ela não pode casar com ele”. Olha o fim
da história! Aí acabei pedindo a extinção do processo e aqueles policiais
ficaram meus amigos depois. Mas eu passei um aperto, vocês não sabem. Seis
meses, mais ou menos, que eu fiquei sem poder contar para ninguém. Não
contava para ninguém, para ninguém. Não contei para ninguém não.
O papel do Ministério Público na Constituição de 1988
51:29 a 55:21 – O papel em si mudou por causa da liberdade que nós tivemos
de poder instaurar inquérito, de ter mais ação. Mas em relação ao
procedimento anterior, nós já tínhamos essa liberdade, mas ficamos com mais.
Porque nós podíamos fazer investigações, não é? Não ficávamos mais
dependendo só da polícia e da vontade do juiz, de o juiz autorizar ou não.
Então o Ministério Público ficou com essa autonomia de poder agir sem ser
provocado. A partir do instante em que soubesse, ou souber, de alguma coisa,
poder agir de ofício, vamos dizer. Ter iniciativa própria sem depender de
alguém autorizar. Então essa liberdade para o Ministério Público é muito
importante. Tem que saber medir, porque quando a gente tem liberdade
demais a gente tem que saber até onde vai. Tem que ter cautela para não
cometer equívocos, não cometer injustiças, mas é muito importante. Foi muito
importante isso. Mudou muito. E ampliou muito a área de atuação.
As nossas atribuições anteriores eram muito pequenas, assim, limitadas. Todo
mundo entendia que o promotor de justiça era só o promotor de júri – promotor
de acusação, que chamavam. Depois não, porque as pessoas começaram a
ver que o promotor é um defensor da sociedade. É a última esperança que eles
tinham. Eu resolvia problemas até de pessoal não tomar banho, menina. Os
pais levavam os filhos lá que não queriam tomar banho. A gente fazia um papel
social. O promotor virou psicólogo, psiquiatra, sem estar preparado para isso,
assistente social. Aí você ocupa um lugar na vida das pessoas importantíssimo.
O que você falar eles escutam. Então você sabendo conduzir, sabendo falar,
você vai saber fazer um bom trabalho na comarca. E eu acho que a justiça vem
daí. Esse é o papel da justiça. De fazer a paz entre as pessoas, orientar. Aí as
pessoas sempre vêm ao Ministério Público. Está com briga lá com o vizinho?
Vamos lá.
Eu tive... Dois irmãos aqui em Guarapari, já velhos, começaram a brigar, um
tacar coisas na casa do outro, estava quase que dando morte. Eu chamei os
dois lá, conversei, conversei. Era muito difícil, muito difícil. Aí eu acalmava um
pouco e começava de novo, sabe? Jogavam coisas na varanda um do outro.
Um destruía coisas do outro e o outro revidava. Aí eu fui conversando,
conversando, conversando. Foi um trabalho muito demorado, mas nós fomos
conseguindo com as audiências, fomos falando. Eu ia conversando, falando
que não era assim. Eu ia elogiando um, elogiando outro. Falei: “Oh, mas ele
falou bem de você”. Mentira. “Mas ele falou bem de você, ele gosta de você.” E
eu ia falando coisas assim para eles mudarem a ideia de um para o outro,
entendeu? E foi mudando, foi acalmando. Com o tempo, levou muito tempo, foi
acalmando, foi melhorando, não deu morte não. Mas estava a ponto de dar
morte, sabe?
Então esse trabalho do Ministério Público vem da Constituição, que deu essa
liberdade para a gente, de a gente ser mais próximo do público, porque o juiz
não tem condição. Se o juiz começar a atender público, ele não fica imparcial.
Eu já ouvi de um juiz que eu tinha que ser imparcial, eu falei: “Não, imparcial
tem que ser o senhor, eu não. Eu sou parcial, eu fico do lado de quem está
com a verdade. Eu brigo pela verdade, para surgir a verdade em qualquer
situação, para o senhor, na hora de julgar, não incorrer num erro, não é?”.
Inspiração para o trabalho
55:21 a 01:02:26 – Tive colegas maravilhosos que eu admirei muito, cada um
na sua função, mas para inspirar a minha atuação não. Minha atuação é
totalmente diferente da deles. Eu era “clínica-geral” no interior, e os que eu
conhecia todos já estavam especializados, sabe? E não tinha como eles me
influenciarem. E tudo o que eu fazia, eu sempre fui muito independente.
Sempre procurei estudar no que eu estava fazendo. Procurei ter bom senso e
eu sempre procurei uma coisa: eu sempre procurei a palavra de Deus. Porque
quando eu decidi ser promotora de justiça não foi de brincadeira não. Eu
comecei a estudar para concurso e eu não sabia se eu devia fazer para juiz ou
promotor e pedi a Deus para que ele me mostrasse o que eu tinha que ser.
Porque estava difícil de eu decidir. A gente fica, não é? Igualzinho quem está
fazendo vestibular para procurar uma profissão.
Então eu estava em casa com os meus filhos, e apareceu um filho de uma
amiga minha lá da igreja, que eu tinha entrado para um grupo carismático da
Igreja Católica lá de Niterói, e o filho dela resolveu ir lá em casa com os amigos
– ele era da Igreja Batista. “Ah, nós queremos fazer uma oração com a
senhora.” Falei: “Ah, que bom! Oração é bom. Pode entrar”. Aí uma das
meninas falou assim para mim – nunca tinha visto essa menina: “Tem um
recado de Deus para a senhora”. “Um recado?” “É, aqui.” Aí ela me mostrou
um livrinho de cenáculo – vocês já viram um livrinho de cenáculo? Aí me
mostrou uma página escrita assim: um rapaz que perguntava ao pastor como é
que ele podia conciliar a profissão de promotor – que ele tinha sido aprovado,
acabado de ser aprovado no concurso – com a vida de cristão. Aí o pastor
respondia para ele, com vários versículos da Bíblia, que não há
incompatibilidade nenhuma. Que Deus diz na Bíblia “Ide e fazei a minha
justiça” e vários versículos parecidos.
Ali, para mim, foi a minha resposta. Mesmo assim, eu ainda duvidei, eu ainda
cheguei a fazer uns concursos para juiz, não passei. Tinha que ser promotora
mesmo e no Espírito Santo, sabe? Aquilo foi uma resposta de Deus mesmo
para mim. Então, quando eu fiz o concurso para promotor, eu não fiz à toa não.
Eu primeiro pedi a Deus que me ajudasse a escolher uma coisa que eu
gostasse, que eu fosse feliz, e que Ele me usasse para o bem da humanidade
e que me desse condições de cuidar dos meus filhos, que eu estava sozinha. E
Deus me deu tudo, deu até mais do que eu pedi, sabe? Então essa resposta
veio, e eu segui isso aí a minha vida inteira. Eu seguia o que a Bíblia mandava:
“Ide e fazei a minha justiça”.
Quando eu tinha alguma dúvida, eu procurava Deus para falar comigo, pedia a
Jesus para falar comigo. E a resposta vinha, a inspiração vinha. Eu nunca falei
lendo. Eu ia para o júri, eu ia para qualquer lugar para falar, em Câmaras de
Vereadores, qualquer lugar, pegava o microfone e começava a falar, e saía.
Teve uma vez, um Dia da Mulher aqui em Guarapari, eu estava fazendo
audiência no Juizado Especial, demorou demais, cheguei atrasada – Dia da
Mulher. Quando eu entrei, tinha uma missionária falando. Eu sentei, não fiz
alarde da minha chegada. Sentei e fiquei escutando-a falar. Belíssimas as
palavras dela. Ela falou no Dia da Mulher sobre todas as mulheres na Bíblia:
Ester, Rute, Débora, as mulheres todas que tinham na Bíblia.
Eu fiquei encantada com ela, que tinha sido missionária na Índia, tinha sido
missionária em vários lugares, falava várias línguas. Fiquei encantada com ela.
Eu bati palmas. Estou eu batendo palma, o presidente da Câmara falou assim:
“Agora, nós queremos que nossa querida doutora Sonia...” – olha só, ai meu
Jesus Cristinho – “venha compor a mesa”. Aí eu levantei, todo mundo bateu
palmas e tudo, aí eu agradeci e ele falou, assim, enquanto eu estava indo: “E
ocupe a tribuna para nos falar algumas palavras, sábias como sempre”. Ele
ainda falou assim.
Aí eu fui, tudo sendo filmado. Deixei minhas bolsas num canto, porque nem
sabia em que lugar eu ia sentar ainda. Fui para a tribuna e falava assim: “Ai,
meu Jesus Cristinho, eu já chego trabalhando. Nem bem cheguei e já estou
trabalhando”. Aí todo mundo riu com isso aí, ficou todo mundo descontraído e
eu comecei a falar, cumprimentei todo mundo. Falei várias coisas sobre
mulheres, isso tudo espontâneo. E de repente eu falei assim, sem segunda
intenção nenhuma, foi inspiração divina mesmo: “E nesse Dia da Mulher não
podemos esquecer da mãe de Jesus, não é?”. Falava assim com todo mundo.
“Foi ela quem criou Jesus. Foi ela que ensinou Jesus a andar, falar. Foi ela
quem ensinou tudo a Jesus. Foi ela quem teve a coragem de assumir o filho de
Deus para levá-lo à missão que Ele tinha de nos salvar. Foi ela que ficou ao
lado dEle, que Ele só teve coragem de carregar aquela cruz por causa dela.
Que Ele olhava para ela e tinha forças”. Eu não notei que ela [a missionária]
não tinha falado de Maria, porque ela era de outra religião. Eu não notei isso.
Eu não fiz de propósito. Eu fiz de inspiração minha. Depois da cerimônia que
uma conhecida falou assim: “Muito bem a senhora ter falado de Maria, porque
a outra não falou”. E eu não tinha notado isso, sabe?
Então tinha essas coisas comigo, de falar, eu acho que, por inspiração divina,
sabe? Vinha. As coisas vinham e eu falava. Lógico que eu tinha cautela de
falar em certos ambientes, não falar para ferir um nem outro. Alertava as
coisas. Eu, quando vim para Guarapari, alertei que o crack estava aqui, que se
eles não tomassem jeito ninguém ia poder sair na rua. Está desse jeito.
Ninguém fez nada. Eu estava na frente de representantes do governador,
secretários estaduais, secretários municipais, só tinha homem, só eu de
mulher, era época de propaganda eleitoral, de campanha eleitoral. Não fizeram
nada. Até hoje. A insegurança está aí.
Quando eu estava na Promotoria Criminal, que eu sempre fiquei na Promotoria
Criminal, eu chamava a polícia e dava um jeito, que eles tinham bom
relacionamento comigo. Eu tinha um bom relacionamento com eles, eu ligava,
falava, mas, depois que passou para o Ciodes – Centro Integrado Operacional
de Defesa Social, ficou mais difícil, mais longe. As viaturas ficaram difíceis de
serem encontradas, policiais ficaram difíceis de serem encontrados.
Aposentadoria
01:02:26 a – Eu trabalhei 42 anos e 10 meses, contando com o meu tempo de
professora, que eu trabalhei um pouco em sala de aula e o resto na Secretaria
de Educação. Contando esse tempo, deu 42 anos e 10 meses. E não tirava
férias, sempre... eu não ia viajar, eu sempre não tirando. Como na época eu
acumulava Eleitoral, eu procurava não tirar para não perder o Eleitoral também,
que fazia falta, não é? Porque era muita gente, era muito colégio para pagar,
faculdade. Todos eles estudaram, todo mundo, graças a Deus, formado.
Então eu cheguei numa hora da minha vida que o meu processo já estava
pronto e eu não decidia nunca me aposentar. Meu falecido marido, Godofredo,
falava comigo: “Sonia, você vai morrer e esses processos vão ficar aí. Larga
esses processos e vamos viajar comigo”. E eu não atendi. Ele acabou
morrendo antes de a gente viajar, sabe? Eu falei: “Não. Quando eu terminar
esses júris aqui...” – eram 11 júris que estavam na pauta aqui em Guarapari,
estava inaugurando o júri no salão novo – “assim que eu terminar o último júri,
a gente vai para Porto Alegre ver sua filha, na Bahia ver a outra”. Não deu
tempo. Ele adoeceu e morreu em cerca de 40 dias daquele dia.
Então eu não quis parar de trabalhar logo, porque eu sentia falta dele. Eu
achava que ia preencher mais a minha vida. Mas eu já tinha pedido para ver
minhas contas, ver todo o meu processo, meu processo já estava prontinho lá.
Era só eu assinar a petição. Eu cheguei a ir lá três vezes, gente, para poder
assinar para aposentar, mas na hora eu desistia: “Ah, eu vou sentir saudade,
eu vou sentir falta”. Fiquei. Mas aí na véspera de eu fazer 60 anos, eu estava
aqui nessa casa com a minha tia no dia 9 de janeiro, eu falei: “Tia Vera, vamos
lá na Procuradoria comigo?”. “O que você quer fazer lá?” “Eu vou pedir a minha
aposentadoria.” “Vai pedir? Ah, não acredito, não acredito!” “Tia, eu vou fazer
60 anos. Chega. Eu vou curtir os meus netos, vou viver, não estou indo à casa
de ninguém. Para ir para São Paulo, não dá tempo de ir, porque eu tenho que
trabalhar. As crianças nasceram, uns eu conheci pela internet. Então eu estou
querendo dar atenção a eles.”
E a cada casa que eu ia, os sogros e as sogras dos meus filhos me
perguntavam: “Quando é que você vai se aposentar para você dar atenção aos
seus netos?”, sempre me cobravam. E eu achava aquilo um absurdo, na minha
cabeça não entrava que eu tinha que parar de trabalhar, sabe? Aí eu pedi
minha aposentadoria, no dia seguinte não precisei ir. Eu senti um alívio muito
grande, muito grande mesmo. De não ter – essa foi a primeira coisa que eu
senti – o compromisso do horário mais. A preocupação de trazer processo para
casa. Eu trabalhava preocupada com as partes, eu achava que eu tinha que
trabalhar por tarefa. Eu trabalhava de segunda a sexta no fórum, nunca peguei
um juiz que não trabalhasse em um dia da semana, era sempre de segunda a
sexta, a audiência ia até às 8 horas da noite, 8:30. Eu chegava em casa, comia
alguma coisa, sentava e fazia processo até 2 da manhã. Dormia até as 6. Às
seis horas estava de pé fazendo processo de novo, sabe? Então eu fiquei livre
daquela rotina.
Nos primeiros dias me perguntavam assim: “Você gosta disso? Gosta de
alguma coisa?”. Eu não sabia. Eu não sabia do que eu gostava, não tinha
noção de quem eu era. Só cuidando dos outros, não cuidava de mim, não é? Aí
eu comecei a viajar, comecei a passear, comecei a estudar, ler as coisas que
eu sempre quis ler. Fazer as coisas que eu não fazia antes e eu comecei a
gostar. Eu comecei a gostar da liberdade de poder fazer o que eu quero, de
estudar, me aprimorar.
E tinha um monte de gente atrás de mim. Eu tenho os meus filhos, são
advogados, médicos. Eu tenho essa gente toda para orientar, tenho os netos
todos. Minha neta mais velha faz Psicologia, estava fazendo Direito, parou,
trancou e está fazendo Psicologia, termina ano que vem. O outro quer ser
maestro, está fazendo Ciências da Computação e Faculdade de Música, mas
já é maestro, já rege coral – tem um coral aqui em Guarapari, e é ele que rege.
Aí eu vou vendo essas pessoas maravilhosas que estão passando por mim,
sabe? O outro é campeão de skate. A outra está estudando lá em Itajubá,
Engenharia... Eu acho que é Biotecnologia. Que tem a ver com construção de
aparelhos, sabe? Está lá, está fazendo essa faculdade lá em Itajubá. As outras
estão se preparando. Tem uma que fala pouco igual a mim, aí conversando
comigo noutro dia falou: “Vó, eu descobri o que eu quero ser”. “O que você
quer ser?”, pelo telefone. “Eu quero ser presidente da República.” Me
surpreendeu. “Mas presidente da República?” “É, vó. Porque eu pretendo fazer
muitas coisas. As pessoas precisam de muita ajuda, vó.” “Mas o que você faria
como presidente da República?” “Ah, eu ia cuidar das crianças, ver o estudo
para todo mundo...” E falou da saúde... Sabe quantos anos ela tem? Ela falou
isso comigo com 10 anos, mas assim desse jeito, entendeu? Eu falei assim:
“Mas, gente, eu estou perdendo de conviver com essa gente maravilhosa”. A
outra canta lá em São Paulo, é cantora lá, a mais novinha, a última. Ela é
contralto, que gracinha. Toca piano, toca violão e canta, uma gracinha, só
vendo.
Aí eu falei: “Gente, eu estou perdendo. Eles estão crescendo e eu não estou
vendo”. Aí eu estou recuperando isso, essa convivência. Estou me
“especializando” em relações humanas e vendo a vida espiritual deles, que a
gente não pode deixar para lá.
A gente que é avô, mãe, tem responsabilidade de falar que existe um Deus que
nos ama e nos quer bem. O que eu falei a vida inteira para os réus. Eu pedia
ao juiz para dar a palavra e eu conversava com os réus. Uns me perguntavam:
“Como é que ninguém nunca me falou desse Deus?”. Eu falei: “Então aproveita
que você está lá preso. Deus está te dando a chance de conhecê-Lo. Pede
para ir uma pastoral, um pastor, alguém para ir lá para falar dEle para você.
Você precisa conhecer Deus, conhecer Jesus”. Aí mostrava o crucifixo: “Sabe
por que Jesus ficou preso numa cruz? Por nós”. “Como é que ninguém nunca
me falou isso?” Era assim que eles falavam. Eu perguntava: “Por que você
praticou esse estupro? Por que vocês praticaram esse estupro, quatro contra
uma, e mataram a menina? Por que vocês fizeram isso?”. Aí ficam rindo: “Ah,
não sei. Veio uma voz assim e falou...”. Falei: “Veio uma voz e falou com vocês
para fazer isso? E a voz de Deus, vocês nunca ouviram a voz de Deus?”. Aí
um olhava para o outro assim, sabe? Aí eu aproveitava para falar de Deus para
eles antes de eles voltarem para a cadeia, entendeu? Porque a maioria que
sentou na minha frente não conhecia Deus. Por isso que eu falo que quem
conhece Deus não faz o que estão fazendo por aí não, não faz mesmo. “Ah, a
religião é um freio.” Ótimo. Se for um freio, ótimo. Só que religião nos dá um
sentido para a vida, para evitar esses suicídios que estão por aí, todo dia a
gente ouve falar em suicídio, todo dia. Não é muito divulgado na televisão, mas
a gente fica sabendo. As pessoas estão tendo depressão. Por que estão tendo
depressão? Porque não estão vendo um sentido na vida. Se a gente não se
agarrar com Jesus, com o que está escrito na Bíblia, com o que Jesus ensinou,
o que Deus falou, a gente não tem um sentido na vida. E é isso que eu procurei
falar, sabe, nas minhas audiências, para fazer as pessoas se conciliarem. Eu
falava do perdão, muito do perdão, que a pessoa tinha que perdoar uma à
outra, não só para o bem do outro, para ela mesma, para ela não ficar doente.
Quantas pessoas que apareceram na minha frente doente e falaram: “Ah,
depois que eu conversei com a senhora, eu melhorei, doutora”. Às vezes eu
nem lembrava quem era. “Eu melhorei, a minha pressão abaixou. Estou
melhor.” Que bom ouvir isso de alguém, não é? Que a gente pode ouvir,
porque as pessoas queriam ser ouvidas.
Tela final:
Projeto Memória Oral
Gerência
Pedro Ivo de Sousa
Coordenação
Catarina Cecin Gazele
Pesquisa e entrevista
Paulo José da Silva
Simone da Silva Ávila
João Victor da Silva Nicodemos - estagiário
Gravação e edição
Giovani Tiussi Broseghini
Design gráfico
Bruno Alves Moure
Realização
Ministério Público do Estado do Espírito Santo
Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional – Ceaf
Memorial do Ministério Público do Estado do Espírito Santo – Memp