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O processo de gênese da (s) ciência (s) da religião na UFJF The process of genesis of the science (s) of religion in UFJF Faustino Teixeira * O curso de ciência da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora é um dos pioneiros no Brasil. Sua história remonta ao início dos anos 1970, tendo sido antecedido pela criação do Colegiado de Ciências das Religiões, em 27 de junho de 1969. Esse colegiado, na ocasião, estava vinculado ao Departamento de Filosofia da UFJF 1 . Na histórica ata da primeira reunião desse colegiado estão as assinaturas de Jaime Snoek, Murílio de Avelar Hingel, José Francisco Simões, Emílio Agostinho Giacommini, Sônia de Almeida Marcato e Maria Auxiliadora Nicolato. A partir da segunda reunião verifica-se também a presença da representação discente, com a assinatura do aluno de filosofia Rubem Barbosa Filho. Nesse colegiado foi sendo aos poucos gestado o projeto de um curso de ciências das religiões. A ideia do curso nasceu com Jaime Snoek (1920-), reconhecido moralista e padre redentorista. Tendo chegado ao Brasil em 1953, depois de defender sua tese doutoral na Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino (Angelicum – Roma), instalou-se em Juiz de Fora. Atuou na cidade junto à Paróquia da Glória, assumindo também a cadeira de Teologia * Doutor em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana. Professor no Departamento de Ciência da Religião da UFJF. Contato: [email protected] 1 E as disciplinas relacionadas às ciências das religiões, depois oferecidas, também estavam lotadas no Departamento de Filosofia, com o código CRE.

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  • O processo de gnese da (s) cincia (s) da religio na UFJF

    The process of genesis of the science (s) of religion in UFJF

    Faustino Teixeira*

    O curso de cincia da religio da Universidade Federal de Juiz de Fora um dos pioneiros no Brasil. Sua histria remonta ao incio dos anos 1970, tendo sido antecedido pela criao do Colegiado de Cincias das Religies, em 27 de junho de 1969. Esse colegiado, na ocasio, estava vinculado ao Departamento de Filosofia da UFJF1. Na histrica ata da primeira reunio desse colegiado esto as assinaturas de Jaime Snoek, Murlio de Avelar Hingel, Jos Francisco Simes, Emlio Agostinho Giacommini, Snia de Almeida Marcato e Maria Auxiliadora Nicolato. A partir da segunda reunio verifica-se tambm a presena da representao discente, com a assinatura do aluno de filosofia Rubem Barbosa Filho. Nesse colegiado foi sendo aos poucos gestado o projeto de um curso de cincias das religies.

    A ideia do curso nasceu com Jaime Snoek (1920-), reconhecido moralista e padre redentorista. Tendo chegado ao Brasil em 1953, depois de defender sua tese doutoral na Pontifcia Universidade de So Toms de Aquino (Angelicum Roma), instalou-se em Juiz de Fora. Atuou na cidade junto Parquia da Glria, assumindo tambm a cadeira de Teologia

    * Doutor em Teologia pela Pontificia Universit Gregoriana. Professor no Departamento de Cincia da Religio da UFJF. Contato: [email protected]

    1 E as disciplinas relacionadas s cincias das religies, depois oferecidas, tambm estavam lotadas no Departamento de Filosofia, com o cdigo CRE.

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    Moral no Seminrio Maior dos Redentoristas no Floresta. Como reconhecido intelectual dessa rea teolgica, contribuiu com importantes ensaios na Revista Eclesistica Brasileira e depois na revista internacional de teologia, Concilium, aps sua fundao em 1965. Fez parte integrante do comit de redao da seo de moral desta prestigiosa revista, tendo ali publicado um artigo pioneiro em 1966 sobre o tema do Terceiro Mundo, revoluo e cristianismo. Antecipa, na ocasio, um tema que ser central na teologia da libertao, nascida por volta de 1968. Pe. Jaime participou tambm da fundao da Faculdade de Servio Social, em 1958, tendo ali lecionado at o ano de 1985, acompanhando de perto a trajetria histrica e conflitiva dessa faculdade, sobretudo nos anos sombrios que se seguiram ao Ato Institucional n 5 (AI 5). Ele mesmo sofreu na pele as consequncias da represso que se irradiou sobre essa faculdade, sendo impedido de continuar sua docncia em 1977 e s mais tarde reintegrado ali.

    Sua presena na Universidade Federal de Juiz de Fora ocorreu na sequncia da crise do Seminrio da Floresta, em 1967, quando em razo da grande convulso religiosa e social provocada pelo evento do Vaticano II (1962-1965), o Seminrio da Floresta sofreu um rpido esvaziamento. Entre as alternativas que apareceram para os padres redentoristas que ali lecionavam estava a UFJF, que tinha um projeto de fundao de um Instituto de Teologia e Filosofia2. Jaime Snoek comea a participar do Grupo de Estudos para a Reforma Universitria (GERU), relatando ao ento reitor, prof. Moacyr Borges de Matos, o Projeto Universidade. Os redentoristas inserem-se na Universidade atravs da Faculdade de Filosofia e Letras (FAFILE), e o pe. Jaime assume a cadeira de tica Geral, at ento ocupada pelo professor Mozart Geraldo Teixeira.

    Esse Projeto Universidade ganha acolhida no reitorado do professor Gilson Salomo, amigo e incentivador do pe. Jaime Snoek, e o curso de filosofia vem aprovado pelo Conselho

    2 No plano de Reforma Universitria apresentado pela UFJF ao MEC em 1969, aparecia a ideia de um Instituto de Filosofia e Teologia e na ocasio, o relator do processo era o professor Newton Sucupira, do CFE.

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    Universitrio em 1968, com o primeiro vestibular em 1970. Logo de incio, Jaime Snoek ser indicado para coordenador desse curso, assumindo em razo do cargo um lugar no Conselho de Ensino e Pesquisa da UFJF (CEPE), com funo exercida at 1977, quando sofre cassao. Presidiu a Cmara de Ensino do CEPE num dos perodos mais efervescentes da histria da UFJF, de vivas discusses sobre a Reforma Universitria. Foi nessa ocasio que elaborou e apresentou para a Universidade o projeto do Curso de Cincias das Religies (assim era definido no incio).

    O projeto elaborado por Jaime Snoek contava na ocasio com o apoio de Dom Geraldo Maria de Morais Penido, ento arcebispo de Juiz de Fora, junto com o clero diocesano. Esse apoio foi depois retirado e por pouco o projeto no se desfez. A soluo encontrada para a crise foi a criao de um Departamento de Cincias das Religies e no um Curso, sendo as disciplinas ento criadas oferecidas como optativas no perodo noturno, com funcionamento nas dependncias da Faculdade de Servio Social, no centro da cidade.

    No primeiro esboo de organizao e estruturao do sonhado curso de cincias das religies3, cujo modelo foi inspirado em experincia holandesa, havia um currculo mnimo previsto para a realizao do curso em oito perodos, com disciplinas bsicas, complementares comuns e complementares especficas. Dentre as bsicas, Estudo Comparado das Religies (I-II), Filosofia da Religio (I-II) Sociologia da Religio (I-II)4, Psicologia Religiosa (I-II) e Teodiceia. Dentre as complementares comuns, Introduo Filosofia, Introduo Psicologia, Introduo Cincia do Direito, Sociologia (I-II), Antropologia Cultural, Antropologia Filosfica (I-IV), Filosofia Social, tica (I-II), Psicologia Dinmica, Portugus I, Lgica (I-II) e Histria das Ideias Polticas e Sociais. Nas complementares especficas,

    3 Esse esboo foi apresentado na terceira reunio do colegiado de Cincias da Religio, com data de 12 de setembro de 1969, com base no resultado do trabalho de duas comisses tiradas na reunio de 27 de junho de 1969.

    4 J nessa ocasio foi aventado o nome do professor Pedro Ribeiro de Oliveira para atuar nessa disciplina, e contatos foram feitos com ele na ocasio.

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    Introduo ao Mundo Bblico (I-II), Cincias Bblicas (I-IV), Teologia Positiva (I-IV), Teologia Sistemtica (I-IV). Alm dessas disciplinas, o aluno poderia complementar a carga horria do curso com disciplinas opcionais, de outros departamentos.

    Esse esboo ganhou aperfeioamento com a criao oficial do Departamento de Cincias das Religies, locado no Instituto de Cincias Humanas e de Letras (ICHL), em 10 de novembro de 1971, perodo em que o professor Afonso Ribeiro da Cruz, que teve passagem pela Congregao Redentorista, exercia o cargo de diretor desse Instituto. Com a criao efetiva do novo departamento, o projeto visado ganha um novo desenho, com um perfil de disciplinas que foi se aperfeioando at chegar seguinte estruturao:

    Ciclo Bsico:Sociologia ICivilizao ContemporneaPortugus IIntroduo PsicologiaIntroduo Filosofia

    Cadeiras Especficas:tica I-IIAntropologia ReligiosaSociologia VI (Antropologia da Religio)Introduo ao Mundo Bblico I-IIHermenutica Bblica I-II-IIICristologia BblicaEscatologia BblicaCristologia SistemticaEclesiologia SistemticaHistria do Cristianismo I-II-III-IVFenomenologia do Cristianismo I-II-III-IVEstudo Comparado das Religies I-IIPsicologia da ReligioFilosofia da Religio I-II5

    5 Essa primeira estruturao das disciplinas do curso de cincias das religies na UFJF seguiu um modelo bem teolgico. Tem razo Marcelo Camura quando fala sobre a influncia/interferncia da Teologia como uma sombra a pairar na estruturao dos Programas de Cincia(s) da Religio, pois foi a partir dela que se originaram (Camura, 2003, p. 140).

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    Dentre os docentes responsveis pelas disciplinas oferecidas estavam no incio, Jaime Snoek (tica I-II e Fenomenologia do Cristianismo IV abordando a temtica dos Elementos da Moral Crist6), Vitorino Nunes Duarte7 (Filosofia da Religio, Fenomenologia do Cristianismo I e Cristologia Sistemtica), e Henrique Oswaldo Fraga de Azevedo8 (Estudo Comparado das Religies I-II). Outros docentes foram se somando ao grupo: Joo Fagundes Hauk9 (Histria do Cristianismo I-IV), Wolfgang Gruen10 (Introduo ao Mundo Bblico I e II), Domcio Pereira Matos11 (Hermenutica Bblica I-III), Eduardo Benes de Sales Rodrigues12 (Filosofia da Religio I-II), Antnio Pedro Guglielmi (Hermenutica Bblica I-III)13, Walmor Oliveira de Azevedo14 (Hermenutica Bblica em particular Antropologia Bblica), Antnio Jos Gabriel15 (Psicologia da Religio), Zwinglio Mota

    6 Que a partir de certo momento consistiu numa abordagem da obra de Gustavo Gutirrez, Teologia da Libertao, que havia sido publicada no Brasil em 1975.

    7 Docente advindo da Congregao Redentorista e que era antes professor no Seminrio Maior da Floresta, com ps-graduao realizada em Lovaina (Blgica).

    8 Este docente era padre secular com ps-graduao realizada na Escola Bblica de Jerusalm.

    9 Padre redentorista, tambm com passagem de docncia no Seminrio Maior da Floresta, com formao de Ps-Graduao na Pontifcia Universidade Gregoriana de Roma. Contribuiu para o projeto de produo da Histria Geral da Igreja na Amrica Latina, coordenado pelo CEHILA

    10 Padre salesiano, com decisivos trabalhos na rea de catequese e ensino religioso, doutor honoris causa pela Universidade Pontifcia Salesiana de Roma.

    11 Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil, com ps-graduao na Union Theological Seminary (EUA). Ingressou na UFJF em 1975.

    12 Padre diocesano, com ps-graduao na Pontifcia Universidade Gregoriana de Roma. Atualmente Arcebispo de Sorocaba (SP).

    13 Padre diocesano e importante biblista. Trabalhou na ustria e atuou no Conclio Vaticano II como perito. Foi responsvel pelo decisivo trabalho de atualizao do episcopado brasileiro no Vaticano II, atravs das clebres conferncias mais de 80 - realizadas com os mais importantes telogos catlicos na Domus Marie (Roma). Veja a respeito de seu trabalho: Beozzo (2005, p. 197 e 204).

    14 Padre diocesano, com mestrado em cincia bblica no Pontifcio Instituto Bblico e doutorado em teologia bblica pela Pontifcia Universidade Gregoriana de Roma. Ingressou do Departamento de Cincia da Religio em 1987. hoje arcebispo de Belo Horizonte.

    15 Tinha sido ex-aluno do curso de cincias das religies na UFJF, tendo-se depois doutorado em teologia pela PUC-RJ e se inserido no Departamento de Cincia da Religio. Ordenou-se mais tarde e hoje padre na diocese de Leopoldina.

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    Dias16 (Eclesiologia Sistemtica, Antropologia Bblica e Introduo ao Mundo Bblico). Dentre outros docentes cogitados para lecionar disciplinas no Departamento de Cincias das Religies, em seu perodo inicial, figuram os professores Breno Schuman17, Pedro Ribeiro de Oliveira e Dalton Barros (padre redentorista, especializado na rea de Moral).

    Na ocasio, em razo da vigncia do sistema de crditos, os alunos dos diversos cursos da universidade podiam seguir as disciplinas de cincias das religies e com elas enriquecer sua creditao. Alguns alunos da filosofia, favorecidos pelo horrio noturno de realizao das disciplinas, tinham a oportunidade de preencher a carga horria do curso de cincia das religies e conseguir um certificado oficial da Universidade ao final de sua concluso. E assim ocorreu com determinados discentes, como Antnio Jos Gabriel, Faustino Teixeira e Franzisca Carolina Rembein18, bem como Ricardo Rezende Figueira19.

    Na experincia de Juiz de Fora ocorreram mudanas na nomenclatura do curso. No incio nomeava-se cincias das religies, depois passou para cincia das religies isso em 1974 firmando-se depois, em 1989, com o atual nome de cincia da religio. Trata-se de uma verdadeira ciranda dos nomes. A mudana para o singular, uma notria influncia alem, foi definida pelo influxo de um dos professores do Departamento, Antnio Jose Guglielmi, que defendeu ardorosamente essa mudana nos diversos colegiados na UFJF, tendo sido contemplado

    16 Originrio da Igreja Presbiteriana do Brasil, passando depois para a Igreja Presbiteriana Unida. Com formao doutoral em teologia em Hamburgo, na Alemanha, inseriu-se no Departamento de Cincia da Religio em 1982, tendo se retirado da Universidade em 1989 e retornado em 1996, integrando-se no PPCIR.

    17 O seu currculo foi examinado e aprovado pelo colegiado, para fins de contratao, numa reunio de maro de 1972, mas ela no chegou a se efetivar. Ele, porm, colaborou com vrias iniciativas realizadas no perodo.

    18 Estes trs discentes conseguiram avanar seus estudos de ps-graduao em teologia na PUC-RJ com base na concluso de creditao nas disciplinas de cincias das religies, tendo apenas que complementar a formao teolgica com um nivelamento proposto pela instituio que os acolheu.

    19 Aluno que depois se ordenou, com atuao pastoral na Diocese de Conceio do Araguaia (PA). Hoje professor no Departamento de Servio Social, na UFRJ.

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    com a aprovao. Na documentao que apresentou em sua defesa em favor de uma Religionswissenschaft argumentou o professor: a cincia da religio no singular tem o forte significado de abranger a totalidade dos fenmenos religiosos que aparecem nas diversas religies (conforme consta em ata do Departamento).

    O curso de cincias das religies foi aprovado no Conselho de Ensino e Pesquisa (CEPE) em 1970. Faltava apenas sua aprovao no Conselho Universitrio (CONSU), tendo tambm uma indicao positiva de sua acolhida no Conselho Federal de Educao, tendo em vista o apoio demonstrado pelo professor Newton Sucupira. Para a surpresa dos que apoiavam o incio do curso, ocorreram resistncias sua implantao tanto na Universidade20 como na Igreja local, inclusive com interferncias eclesisticas junto ao Conselho Federal de Educao. Chegou a acontecer um nico vestibular para cincia das religies, em 1976, com abertura de 10 vagas, mas o processo veio a ser interrompido no ano seguinte. No ano de julho de 1977 registrou-se uma campanha, certamente orquestrada, envolvendo segmentos da Universidade (em particular da Faculdade de Direito) e da Igreja local. A tenso irradiou-se para alm dos muros da Universidade, com repercusses em mbito mais amplo. O Diretrio Central dos Estudantes posicionou-se em defesa do Curso, bem como outros intelectuais de respeito, como Hilton Japiassu. Vale registrar um trecho do artigo publicado pelo filsofo no Jornal Dirio Mercantil de 20/07/1977:

    A Universidade de Juiz de Fora estava de parabns. Porque havia ousado superar o velho rano positivista, com seus preconceitos obscurantistas, e instaurado em seu seio o curso de Cincias das Religies. Fato Pioneiro no Brasil. E nico. Digno da grande envergadura de inteligncia de quem lutou por tal implantao.

    20 Um conhecido professor da Faculdade de Direito, Almir de Oliveira, escreveu um polmico artigo no jornal local, Dirio Mercantil (julho de 1977), desmoralizando o curso e atacando um de seus docentes, o professor Wolfgang Gruen. Este fato suscitou imediata reao contrria, da comunidade local e do Departamento de Cincias das Religies, exigindo um posicionamento do diretor do ICHL junto aos meios de comunicao da cidade.

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    Apesar de ser um curso que, na mentalidade dos que no pensam, dos burocratas do saber, dos que so comandados por uma filosofia mercantilista e pragmatista, dos que reduzem o Saber a uma ideologia pecuniria do status` que possa conferir a formao universitria (...). Enfim, o meu apoio a todos que esto empenhados, no em salvar` um curso em vista de seus interesses, mas um curso que dignifica a inteligncia e magnifica a cultura de um povo, conferindo real estatuto de Universidade Universidade de Juiz de Fora (Japiassu, 1977).

    A triste campanha contra o curso foi realizada no momento em que seu maior defensor, Jaime Snoek, estava de frias na Holanda, sem poder reagir altura. No cenrio, os personagens positivistas histricos mancomunados com setores conservadores da igreja catlica, provavelmente liderados de forma sutil pelo Arcebispo local21. A resistncia, felizmente, aconteceu simultaneamente. De volta das frias, Jaime Snoek, enquanto representante do ICHL no CONSU, toma a defesa do curso e salva a substncia: o curso continuou normalmente, mas sem vestibular ou matrcula, com disciplinas oferecidas como optativas para os demais cursos, alm de outras obrigatrias para determinados cursos, como Histria do Cristianismo (para o curso de histria), filosofia da religio e Estudo Comparado das Religies (para o curso de filosofia) e Antropologia Religiosa (para o curso de servio social).

    Na dcada de 1980 o Departamento de Cincia das Religies passou por momentos difceis, com um quadro docente reduzido e a motivao em baixa depois das tentativas mal sucedidas de fazer erguer o curso to almejado. Com a presena do professor Antnio Guglielmi na conduo do Departamento comeou a se articular um movimento em favor da criao de um quadro docente de excelncia, com o acento na boa formao acadmica e uma perspectiva mais laica. Em diversas situaes, esse docente manifestou seu descontentamento com determinados

    21 Como assinalou Wolgang Gruen, em artigo, h redutos confessionais que nutrem pouca simpatia pelo curso de Cincias da Religio: temem que, com suas anlises, crticas, abordagem pluralista, ele solape a f de seu adeptos (Gruen, 2005, p.23).

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    candidatos que se apresentavam nos concursos, que na ocasio sequer exigiam o ttulo de doutor para o preenchimento dos cargos. Num de seus ofcios, dirigido relatora do processo de abertura de um dos concursos realizados para o provimento de cargo de professor no Departamento de Cincias da Religio datado de 8/12/1989, sublinhou:

    A Cincia da Religio, ou seja, o ensino e a pesquisa cientfica da religio ou do fato religioso, uma rea que se presta ao equvoco de muitas pessoas se suporem preparadas e possuidoras de amplos conhecimentos. So portadoras (ministros de confisses religiosas, na maior parte) de excelente formao religiosa e moral, mas, na grande maioria, desprovidas de formao cientfica e, comumente, sem experincia de magistrio em nvel superior.

    Sinaliza entre suas ponderaes os problemas enfrentados pelo Departamento em concursos anteriores, em que candidatos, a seu ver, de tal forma despreparados, causavam constrangimentos Comisso Examinadora. Da sua viva defesa em favor da abertura de concursos visando o aproveitamento de doutores ou livre-docentes com comprovada competncia nos mbitos requeridos pelo Departamento, ou seja, de docentes provenientes dos grandes centros como Rio de Janeiro, So Paulo, Belo Horizonte ou Porto Alegre.

    A luta de Guglielmi e de outros docentes do Departamento no foi sem efeito. No final de 1980 e incio da dcada de 1990 surgem docentes com um perfil diferenciado no Departamento, mais afinado com a perspectiva visada e defendida por Guglielmi em seu incansvel trabalho. Com a entrada dos professores Faustino Teixeira (telogo)22, Pedro Ribeiro de Oliveira (socilogo)23 e

    22 Tinha sido ex-aluno do curso, dando sequncia sua formao teolgica na PUC-RJ e na Pontifcia Universidade Gregoriana de Roma, tendo defendido sua tese doutoral em 1985. Antes de ingressar na UFJF era professor de teologia na PUC-RJ, onde atuou como docente de 1978 a 1992. Atua hoje como pesquisador e docente no PPCIR.

    23 Com doutorado em sociologia pela Universidade Catlica de Lovaina (Blgica), exerceu sua docncia no Departamento de Teologia da PUC-RJ (sociologia da religio) e depois na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. hoje membro do corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio da PUC-MG.

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    Luiz Bernardo Leite Arajo (filsofo)24, todos leigos e com uma marcada preocupao acadmica, o Departamento de Cincia da Religio ganha um novo vio. Com eles nasce o projeto de ps-graduao em cincia da religio na Universidade Federal de Juiz de Fora. Ingressam no Departamento com uma visada diferencial, buscando autonomia de reflexo na temtica da religio, fora da tutela das instituies de ensino superior catlica (Camura, 2003, p. 145), ainda que a provenincia dos trs estivesse ligada ao trabalho progressista da Igreja catlica e ao campo reflexivo da teologia da libertao. A quase simultnea entrada desses trs professores no Departamento foi resultante de uma oportuna conjugao de fatores, como sinalizou Marcelo Camura em anlise a respeito da gnese do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio (PPCIR) na Universidade Federal de Juiz de Fora. Conforme assinala Camura,

    pelas mos desses trs intelectuais assegurou-se, na estrutura da Ps-graduao de Cincia da Religio de Juiz de Fora, um perfil marcado pelo respeito aos cnones e exigncias do rigor cientfico. E devido s concepes (terico-existenciais) de seus trs artfices, o contedo do curso e de sua disciplinao adquire uma nfase que mescla uma perspectiva de investigao emprica de cunho sociolgico com uma reflexo (filosfica) crtica em torno do papel da religio na modernidade e com uma reflexo (teolgica), que se concentra na perspectiva do dilogo e da tolerncia entre as religies, exigncia bsica da modernidade, enfim, todo o conjunto das reas curriculares referenciado nas cincias humanas (Camura, 2003, p. 146).

    A estratgia seguida pelo Departamento de Cincia da Religio em seu projeto de instaurao de um programa de ps-graduao na rea foi firme e segura, seguindo passos graduais de afirmao. Primeiro nasceu o Curso de Especializao em Cincia da Religio, em 199125. S dois anos depois, e gestado

    24 Fez o doutorado em filosofia na Universidade Catlica de Lovaina (Blgica). Hoje docente no Departamento de filosofia da UERJ.

    25 Curso que at hoje funciona, com grande sucesso, sendo praticamente o nico curso lato sensu gratuito oferecido anualmente pela UFJF.

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    num processo de amplo debate e discusso, que nasceu o Mestrado, em 1993, num momento em que a UFJF comeava lentamente a investir na ps-graduao26.

    Um dos professores, Luiz Bernardo, foi designado para elaborar o projeto que foi apresentado aos rgos da Universidade e depois submetido avaliao da Capes. Foram quase dois anos de reflexo compartilhada. O projeto do Mestrado foi aprovado pela Capes com nota 4, e as atividades se iniciaram em 1993. Para a coordenao do programa foi designado o professor Faustino Teixeira, que permaneceu no cargo por dez anos. Com o processo exitoso do mestrado em curso, e seguindo uma dinmica paulatina de aperfeioamento do quadro docente, com a entrada de inmeros novos professores doutores no PPCIR, nasceu o doutorado no ano de 2000, tambm avaliado inicialmente com a nota 4 pela Capes. Foi o primeiro doutorado da Universidade Federal de Juiz de Fora.

    No momento da criao do Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio, particularmente com o nascimento do mestrado, em 1993, a estruturao do curso pautava-se por uma rica dinmica de interconexo das duas reas de concentrao ento existentes: a rea de dilogo inter-religioso e a rea de razo e religio. Partilhava-se tambm uma compreenso comum sobre o significado da cincia da religio, entendida como um estudo cientfico dos fenmenos religiosos em toda a sua pluralidade (Oliveira, 2004, p. 106)27. A nfase recaa no singular, cincia da religio, mas, como assinalou Camura com

    26 Na poca em que o Programa foi avaliado em Braslia pela Capes, Antonio Gouva de Mendona e Pedro Assis Ribeiro de Oliveira atuaram como consultores da subrea de teologia e cincias da religio. O professor Mendona lembra em artigo que foi ele quem deu parecer positivo para a aprovao do curso e, na poca no se preocupou com o nome do curso no singular, cincia da religio, mas com os elementos fundamentais do curso. Sinalizou no artigo que os dois programas nacionais (na ocasio) que sustentavam o perfil mnimo de um curso de cincia (s) da religio eram os de Juiz de Fora e o da PUC-SP. Cf. Mendona (2001, p. 185).

    27 Esse artigo de Pedro Oliveira traduz de forma muito feliz a viso comungada pelos docentes do Departamento de Cincia da Religio no momento de seu nascimento, estando tambm presente no projeto elaborado por Luiz Bernardo Leite Arajo, que foi envido para Braslia e aprovado pela Capes.

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    acerto, a perspectiva defendida por Pedro, que era a mesma do programa em seu nascedouro, favorecia a acolhida de um pluralismo metodolgico (Camura, 2003, p. 149). Em artigo sobre o tema, Pedro Ribeiro de Oliveira sintetiza de forma feliz a concepo que movia o programa naquele momento. A insistncia recaa no carter pluridisciplinar do curso:

    No se trata de um mestrado em uma rea especfica (v.g. cincias sociais, psicologia, filosofia, teologia, histria), mas de um estudo que, a partir de uma` disciplina, pesquisa a religio levando em considerao os aportes de outras. Neste sentido, o mestrado em cincia da religio no avana sobre outras reas acadmicas, mas, ao contrrio, d aos seus praticantes a possibilidade de aprofundar seu conhecimento especfico com um domnio maior sobre o fenmeno religioso. Em suma: ao falarmos de cincia pretendemos fazer uma abordagem que, por ser cientfica, no interna s religies, mas que no se restringe a uma nica disciplina. Mestre em cincia da religio algum que, na sua rea, est apto a ensinar e pesquisar no campo da religio (Oliveira, 2004, p. 106-107).

    J se observa, porm, na ocasio, uma dificuldade que foi depois sublinhada por pesquisadores da rea. A laboriosidade que envolve o estudo da religio e as exigncias que este trabalho implica para os estudiosos que a ele se dedicam. Como observou Lus Dreher (2001, p. 155): A marca do estudioso da religio , em primeiro lugar, isso: o fato de que lida com um objeto de estudo extremamente complexo, que exige uma formao multifacetada e que resiste s simplificaes. No caso de um programa de cincia ou cincias da religio, exige-se tambm o imperativo de um exerccio interdisciplinar, ainda que tal tarefa tenha seus custos epistemologicamente altos; bem como o movimento que deve ser constante de ampliar o leque das abordagens disciplinares, envolvendo a presena de temas que no se restrinjam ao campo do cristianismo (Mendona, 2001, p. 184). Essa tambm foi uma das preocupaes que motivou a experincia de Juiz de Fora em seus passos subsequentes.

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    O processo de gnese da (s) cincia (s) da religio na UFJF

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 305-318

    Assim nasceu o Programa de Ps-Graduao em Cincia da Religio da Universidade Federal de Juiz de Fora, e o conhecimento de sua gnese revela-se fundamental em razo do pioneirismo da experincia em mbito geral, e novidadeiro por acontecer numa universidade pblica, cuja histria no Brasil foi at pouco tempo muito pontuada pelas reticncias aos estudos de religio28.

    Referncias Bibliogrficas

    ALVES, Rubem: A volta do sagrado. Os caminhos da sociologia

    da religio no Brasil. Religio e Sociedade, n. 3, 1978, p. 109-141.

    BEOZZO, Jos Oscar. A Igreja do Brasil no Conclio Vaticano II. So Paulo: Paulinas; Educam, 2005.

    CAMURA, Marcelo Ayres. Entre as cincias humanas e a teologia. Gnese e contexto do programa de ps-graduao em Cincia da Religio de Juiz de Fora em cotejo com seus congneres no Brasil. In: GUERRIERO, Silas (Org). Estudos das religies: desafios contemporneos. So Paulo: Paulinas, 2003, p. 139-155.

    DREHER, Luiz Henrique. Cincia(s) da religio: teoria e ps-graduao no Brasil. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). A(s) cincia(s) da religio no Brasil. Afirmao de uma rea acadmica. So Paulo: Paulinas, 2001, p. 151-178.

    GRUEN, Wolfgang. Cincias da religio numa sociedade

    multicultural. Horizonte, v. 3, n. 6, 2005, p. 15-26.

    JAPIASSU, Hilton. Cincia das Religies. Dirio Mercantil, 20/07/1977.

    MENDONA, Antonio Gouva de. Comentrios sobre um texto prvio de Lus Dreher UFJF. Cincia (s) da religio: teoria e ps-graduao no Brasil. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). A(s)

    28 Ver a respeito o clssico artigo de Alves (1978).

  • 550

    Faustino Teixeira

    Numen: revista de estudos e pesquisa da religio, Juiz de Fora, v. 15, n. 2, p. 537-550

    cincia(s) da religio no Brasil. Afirmao de uma rea acadmica. So Paulo: Paulinas, 2001, p. 179-196.

    OLIVEIRA, Pedro Assis Ribeiro de. Teologia e cincias da religio: uma rea acadmica. In: ANJOS, Mrcio Fabri dos (Org.). Teologia profisso. So Paulo: Soter; Loyola, 2004, p. 95-109.