2 JUSSARA Freire Percepcoes

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XXVI ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS ANPOCS - 2003 Grupo de Trabalho “Rituais, Representações e Narrativas Políticas” Coordenação: Irlys Barreira (UFC) Carla Teixeira (PPGAS/UnB) Beatriz M. A. de Heredia (PPGAS/IFCS/UFRJ) 2 a Sessão: Concepções “locais”: disputas e mediações Título do Trabalho: Percepções do Justo e princípios de Justiça: A elaboração de problemas públicos em Nova Iguaçu (RJ). Jussara Freire Doutoranda em Sociologia (IUPERJ) Doutorando em Sociologia no Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ). Agradeço à FAPERJ e à CAPES pelo apoio na elaboração desta pesquisa. email: [email protected]

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Percepções artigopragmatismo frances

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  • XXVI ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAO NACIONAL DE PS-GRADUAO E PESQUISA EM CINCIAS SOCIAIS

    ANPOCS - 2003

    Grupo de Trabalho Rituais, Representaes e Narrativas Polticas Coordenao: Irlys Barreira (UFC)

    Carla Teixeira (PPGAS/UnB) Beatriz M. A. de Heredia (PPGAS/IFCS/UFRJ)

    2a Sesso: Concepes locais: disputas e mediaes

    Ttulo do Trabalho: Percepes do Justo e princpios de Justia: A elaborao de problemas pblicos em Nova Iguau (RJ).

    Jussara Freire

    Doutoranda em Sociologia (IUPERJ)

    Doutorando em Sociologia no Instituto Universitrio de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ). Agradeo FAPERJ e CAPES pelo apoio na elaborao desta pesquisa. email: [email protected]

  • Percepes do Justo e princpios de Justia: A elaborao de problemas pblicos em Nova Iguau (RJ).

    Jussara Freire

    A MARCA DE VIVER NA BAIXADA

    Em Nova Iguau, a percepo da Regio metropolitana do Rio de Janeiro se

    caracteriza, entre outros aspectos, por alguns cortes. Em primeiro lugar, o outro lado

    da linha vermelha delimita a regio da Baixada e a da cidade do Rio de Janeiro. Pode-

    se acrescentar que a Linha Vermelha tem, as vezes, uma conotao de violncia

    percebida como pertencendo ao da cidade do Rio de Janeiro e no da Baixada

    Fluminense. Em segundo lugar, e com muita freqncia, esta mesma cidade

    denominada como o em baixo, de onde a expresso descer para o Rio. Embora a

    geografia fsica explique tal denominao pelo fato do Rio de Janeiro, no litoral, estar

    ao nvel do mar, e ento as regies mais prximas da regio Serrana serem mais

    elevadas, podemos tambm nos perguntar at que ponto esta denominao possa

    lembrar outras (tais como as que distinguem o asfalto das favelas), e induzir uma

    reflexo em termo de definio de regio moral (Park, in Grafmeyer e Joseph, 1974) ou

    talvez de identidade social (Goffman, 1975). Enfim, pode-se acrescentar a evocao das

    trs vias que, alm de marcar o quotidiano de muitos dos moradores de Nova Iguau,

    parecem ser categorias cognitivas a partir das quais possvel situar este mesmo

    quotidiano: a Via Dutra, a Via Frrea e a Avenida Brasil. Estas vias expressam

    paradoxalmente a ruptura com a chamada Capital e, ao mesmo tempo, sua

    continuidade. Ruptura porque Nova Iguau pensada como o bom lugar para se

    morar (Em Nova Iguau, dizem vrios moradores, no tem tiroteios), a cidade grande

    mas ainda com as vantagens da cidade do interior (argumento que no se fundamenta

    precisamente na dicotomia campo/cidade) e consequentemente, o espao que propicia

    uma forte sociabilidade1, a qual seria especfica a Nova Iguau, e continuidade pelo

    fato de ser para alguns, o local de trabalho, para outros aqueles que nos interessa neste

    presente trabalho , lugar de reunies e eventos polticos extraordinrios e ainda, para

    quem tem condio, de lazer. Parece que esta ruptura assegura a continuidade: com

  • efeito, os moradores iguauanos tendo algumas percepes parecem fomentar uma

    percepo de seu prprio municpio muitas vezes construda em contraposio com a

    percepo do Rio de Janeiro. H portanto dois espaos, qui dois mundos, um sendo

    percebido como o domstico e do conjunto de aspectos envolvidos com a moradia (o

    bom relacionamento com a vizinhana, o sossego, a vida de bairro, a amizade, etc.) e o

    outro, associado no s ao do trabalho ou do anonimato e da violncia, bem como, para

    os militantes iguauanos, da superestrutura poltica, visto que l que se encontram

    as sedes das instncias estaduais.

    Este conjunto de aspectos pode ser visto como um campo semntico, ou melhor,

    um repertrio, sendo o do espao dormitrio. Se incontestvel que podemos buscar na

    histria urbana os motivos pelos quais este espao passou a ter esta caracterstica, pode-

    se tambm realizar um trabalho de significao (Snow, 2001) destas categorias

    cognitivas (histrico e socialmente construdas) que orientam as aes quotidianas dos

    iguauanos, tendo em vista o entendimento de prticas militantes. Seguramente, a

    cidade-dormitrio representa um repertrio fundamental sobre o qual se assenta

    argumentos dos grupos militantes de Nova Iguau como, por exemplo, quando um

    diretor do MAB (Federao de Associaes de Moradores de Nova Iguau) explica a

    necessidade de realizar polticas pblicas integradas, precisamente porque Nova

    Iguau um espao dormitrio, e ento este repertrio participa em implementar um

    segundo repertrio, o da segregao ligada ao fato de ser da Baixada Fluminense. Em

    suma, estes repertrios podem ser entendidos como sendo um primeiro principio de

    injustia inserido no discurso do movimento, isto , em uma gramtica do lao

    poltico (Cefa, 2000 e Freire, 2002) que vai agrupar uma diversidade de atores em torno

    de uma causa comum. Mais ainda, esta gramtica supe lgica discursiva que se

    ajusta s situaes das quais os atores fazem parte: no caso do principio de justia, isto

    , de definio do que Justo, esta se assenta no repertrio do combate segregao

    pelo fato de ser uma cidade-dormitrio, ela despertada em situao de justificao

    voltada para o tema da cidade, e mais precisamente, para a proposta de soluo das

    questes de saneamento bsico, transporte, ou ainda de planejamento urbano.

    1 Poder-se-ia introduzir uma discusso interessante desta representao a partir de uma leitura simmeliana da noo de sociabilidade, mas no intuito de limitar a discusso proposta deste trabalho, esta questo ficar em suspenso.

  • Esta gramtica se constri portanto, a partir da extrao de repertrios e de

    categorias do campo da identidade social da Baixada Fluminense (no sentido

    especificamente dado por Goffman, 1975), dentro da qual o estigma representa uma

    principal caracterstica. Um militante petista, tanto em discusses do dia a dia comigo

    ou com militantes, quanto em situao de entrevista, insiste no carter especfico de ser

    da Baixada Fluminense: Existe um jeito de ser prprio ao da Baixada Fluminense; na

    Baixada, diz ele, as pessoas tm dentes, pele, jeito, maneira de se vestir e de falar

    especficos. As caractersticas descritas por Joo so, em primeiro lugar, fsicas, ou seja,

    a maneira como apresentado este estigma se d no sentido primeiro da noo de

    estigma, a qual, como bem lembra Goffman (op. cit.), provm, desde a antigidade

    grega, de uma marca ou impresso corporal. Ademais, interessante observar que o

    discurso de estigma utilizado por Joo e outros militantes do PT que invocam o

    mesmo repertrio em situao de disputa, ou como Boltanski e Thvenot denominam,

    em situao de prova, com outros militantes petistas de outras correntes. Com efeito,

    dois nomes esto sendo discutidos para a candidatura prefeito do Partido dos

    Trabalhadores em Nova Iguau: um sendo da corrente da Articulao (ou, para muitos

    militantes da direita do PT), e sobretudo, nascido em Nova Iguau e o outro,

    independente, sendo mais prximo do grupo Refazendo (a esquerda do PT), deputado

    federal, um no-morador de Nova Iguau e pernambucano. Nas conversas do dia a dia

    (em bares, nas festas de uns e de outros, ou ainda nos encontros de pessoas nas ruas do

    centro de Nova Iguau), as conversas sobre o nome a ser escolhido entre estes dois pr-

    candidatos se fundamentam em dois repertrios distintos: pode-se interpretar aquele de

    Joo, bem como dos defensores do nome do candidato da Articulao, a partir do tema

    do estigma e a necessidade dos estigmatizados serem representados por um

    estigmatizado, algum que tem a cor local, a histria local. Consequentemente,

    qualquer candidato que no se encaixe nesta categoria se torna obviamente um pra-

    quedista, tal como um jornal local intitulou uma matria, ou ainda, como foi inspirada

    pelo discursos de alguns militantes.

    Diante desta lgica, o outro grupo que apoia este ltimo precisou se ajustar

    muito rapidamente, h alguns dias, a este argumento e justificar sua posio, elaborando

    um repertrio baseado essencialmente no fato de que este candidato da esquerda do

    PT, e por isso, mais apto em representar os interesses dos pequenos, do movimento

    popular iguauano, em elaborar um projeto genuno para o Partido. Esta discusso

  • anima atualmente muitos espaos pblicos de Nova Iguau (entendendo estes a partir

    das idias de debate - incluindo a dimenso conflituosa -, de publicidade, de

    acessibilidade, de apresentao de si, de urbanidade e de civilidade) desde de que o

    candidato pernambucano confirmou sua pr-candidatura. Estas discusses ocorrem

    tantos nos bares e restaurantes da cidade, quanto na sede do PT, no prprio MAB, ou

    ainda nas caladas das ruas da cidade. Em todos os casos, seja quando se ajuntam

    pessoas da mesma tendncia, seja de tendncia diferentes, a discusso do nome do

    candidato a prefeito sempre extremamente conflituosa e voltada para o

    questionamento ou a avaliao de competncias de cada um dos pr-candidatos, com a

    referncia aos repertrios acima mencionados. Poder-se ia abrir aqui um parntese e se

    perguntar at que ponto este dualismo conflituoso no propicia paralelamente uma forte

    socializao, como Simmel (1912) j sugeria.

    As discusses variam em funo no s destes espaos, mas tambm, claro,

    dos prprios participantes. Tendo em visto um processo de tentativa de negociao de

    sua chapa, talvez para propor uma chapa nica composta com o nome do candidato

    pernambucano, o candidato iguauano pediu uma discusso com o grupo mais

    esquerdista do PT, o qual no s apoia o outro nome como o convidou. Durante esta

    reunio, o candidato se referiu aos motivos pelos quais o seu nome tinha que ser o

    escolhido, se referindo sucessivamente a quatro repertrios, um decorrendo do outro

    para sustentar sua argumentao:

    1- A coerncia da trajetria e o compromisso partidrio: o tempo de militana (20

    anos), a atuao em Comunidade Eclesistica de Base, em movimento da Parquia do

    bairro onde nasceu e no movimento sindical (destacando a participao em greves). A

    fidelidade partidria pode tambm ser inserida neste item visto que este militante s se

    filou a um partido. Pode tambm se acrescentar um sub-repertrio que o do know how

    poltico devido a esta trajetria. Desta forma, o fato de se candidatar a este cargo se

    deve a uma longa histria que acabou criando um compromisso com a populao

    iguauana. Paralelamente, ele apresentado como uma maneira de colaborar com o

    PT;

    2- Em conseqncia, o sentimento de indignao diante da injustia: pela atuao

    em movimento de igreja, produziu um conhecimento de uma realidade local, diante do

    qual surge este tipo de sentimento, tendo em vista a mudana da realidade da nossa

    cidade;

  • 3- Decorrente destes dois repertrios, surge o da confiana: a prpria trajetria deste

    pr-candidato relacionada com a constituio de uma forte rede de relaes e da

    aquisio da confiana dos companheiros . Alm disso, pode-se assinalar que o tema

    da confiana se refora com o repertrio da coerncia, da trajetria reta;

    4- Enfim, e mais uma vez vinculado com os trs acima, o repertrio invocado o de ter

    a marca do que viver na Baixada Fluminense, uma histria de vida do que

    viver em Nova Iguau. Assim, este candidato levanta uma srie de argumentos cujos

    mais fortes so ligados comida: preciso que se tenha comido a mesma papa de

    farinha do nosso povo para conhecer este povo. Diante desta experincia comum, este

    candidato se torna necessariamente o mais representativo da Baixada, o que est pronto

    a defender o bem comum da regio (se um candidato incapaz de viver isso, ele vai

    nos representar mal).

    Antes de prosseguir, preciso relembrar brevemente a discusso de Goffman

    sobre o estigma. Goffman (1975) aponta para o processo de classificao operado pela

    sociedade em vista de repartir pessoas e atributos segundo categorias2, Assim, so os

    quadros sociais que vo definir as categorias de pessoas e as suas caractersticas. So

    eles tambm que nos permitem definir a identidade social de um indivduo. Este

    indivduo ser diminudo, percebido como um amputado. Ora, precisamente este

    atributo que o estigma e que provoca um descrdito da pessoa estigmatizada. Trata-se

    de uma discordncia entre as identidades virtuais (carter atribudo a um indivduo de

    maneira potencialmente retrospectiva) e as reais (categoria e atributos possudos de

    fatos, aps comprovao). Desta forma, Goffman designa pelo termo de estigma: un attribut qui jette un discrdit profond (...), cest en termes de relations et non dattributs quil convient de parler. Lattribut qui stigmatise tel possesseur peut confirmer la banalit de tel autre et, par consquent, ne porte par lui-mme ni crdit ni discrdit. (Goffman, 1975, p.13)

    Goffman, aponta tambm para duas dimenses do estigma: aquela cuja diferena

    notvel e visvel, provocando o descrdito e outra, que no visvel nem conhecida e

    gera o descreditvel. Assim, existem trs tipos de estigmas: o primeiro ligado s

    monstruosidades do corpo (por exemplo, uma disformidade), o segundo s

    2 La socit tablit des procds servant rpartir en catgories les personnes et les contingents dattributs quelle estime ordinaires et naturels chez les membres de chacune de ces catgories (Goffman, 1975, p.13)

  • caractersticas de carter (o drogado, o homossexual ou o desempregado) e o terceiro, os

    estigma tribais (raa, nacionalidade, religio). A conseqncia do estigma de destruir

    o direito do estigmatizado e de reduzir as suas chances de se inserir num grupo social. A

    relao entre os normais e os estigmatizados assim fundada na distino e na

    discriminao do estigmatizado. Deste modo, o estigmatizado vem incorporando este

    modo de relao e tentando corrigir, aperfeioar-se, aproveitando-se do seu estigma ou

    legitimando-o para poder se alinhar aos grupos normais e ser aceito nele. Assim,

    Goffman continua o livro descrevendo os contatos mistos, ou seja, as situaes de

    confrontao entre normais e estigmatizados que no abordaremos aqui, pois queramos

    somente apresentar a definio do estigma e a reao do estigmatizado diante deste

    processo, importante para poder encaminhar esta reflexo. Contudo, podemos concluir

    este ponto especfico vendo nesta obra de Goffman no somente um estudo sobre o

    estigma, como tambm um esforo de identificar as categorias ordinrias construdas

    pela e dentro da sociedade; e sobre este ponto que esta obra se enquadra com este

    trabalho. Com efeito, o estigma de viver na Baixada Fluminense pensado aqui como

    uma categoria a partir da qual os atores de Nova Iguau orientam suas aes, no caso

    polticas, quotidianas. Esta categoria, como tentei mostrar, se encontra principalmente

    no quotidiano, na fala dos atores militantes pertencentes a certos grupos. importante

    salientar que esta discusso sobre a (re)construo de categorias ou de (re)classificao

    antecede a obra de Goffman e j se encontra na obra de Durkheim, Mauss e de Mary

    Douglas3 quando estes se atm a pensar as formas de classificao. A este respeito,

    segundo Mary Douglas (1989), os indivduos constrem coletivamente as instituies e

    as classificaes associadas a estas. Em contrapartida, estas instituies fornecem certos

    princpios de identificao, os quais permitem se pensar e pensar seu mundo.

    precisamente a partir desta leitura que podemos interpretar a fala de Joo ou a

    apresentao de si do candidato acima descrito. Com efeito, o mais importante para a

    discusso deste presente trabalho no tanto o processo de construo do estigma, mas

    a maneira como ele surge nas relaes sociais do quotidiano dentre esta diversidade de

    grupos militantes e, mais exatamente, a maneira como o mesmo estigma vem se

    inserindo como categoria e repertrio de uma gramtica do lao poltico. Era este o

    3 De quelques formes primitives de classifications Contribution ltude des reprsentations collectives (1903), retomado por Macel Mauss em Essai de sociologie, Paris, Minuit, Coll. Points, 1969.

  • objetivo ao apresentar os repertrios do candidato iguauano que, ao meu ver, permite

    entender qual a categorizao feita por cada grupo militante, e que se torna naturalizada

    dentro de cada grupo prximo a estas duas pessoas. Em outros termos, o grupo deste

    candidato prximo quele de Joo, e podemos observar que os mesmos tipos de

    repertrios so invocados na situao de prova (Boltanski e Thvenot, 1991), situao

    esta que coloca em prova as ordens de grandezas e que se caracterizam por uma

    situao de disputa. O atributo viver na Baixada Fluminense aquele, segundo vrios

    iguauanos, que joga um descrdito profundo: no Rio de Janeiro, muitos moradores da

    Baixada descrevem a maneira como os cariocas (os da capital) percebem a Baixada

    Fluminense: o sentimento de susto e de pavor dos moradores do Rio de Janeiro o mais

    evocado. Um entrevistado (militante do PT) contou sua indignao de quando estudava

    em uma universidade do Rio de Janeiro, quando uma colega de turma, sabendo

    perfeitamente que morava em Nova Iguau e ela, morando em Copacabana, passou de

    carro quando a turma saa da aula e o abordou ironicamente: Vai para Copa? Eu te dou

    uma carona!. Diante deste convite, ele respondeu: No, vou para Nova!. Este

    episdio de vida aquele que narrado de maneira tragicmica, e mencionado para

    justificar o motivo pelo qual, logo em seguida, abandonou os estudos.

    Em reao a isto, pode-se observar que o estigma passa a ser corrigido, a partir

    dos recortes da regio metropolitana do Rio de Janeiro, por exemplo; ele passa a ser

    legitimado a partir da reverso do estigma (quantos moradores iguauanos por sua vez

    descreditaram o Rio de Janeiro, o lugar de gente metida, l tem tiroteios demais,

    l, s tem gente de grana, l os vizinhos nem se conhecem, etc.) e se aproveitado,

    na vida poltica local, para montar um repertrio que seria representativo da populao

    como um todo (representar melhor o jeito especfico da Baixada Fluminense).

    A DISPUTA: QUESTIONAR OS PRINCPIOS SUPERIORES COMUNS

    A reunio acima descrita , de certa forma, uma situao de prova, na medida

    em que so questionados nomes de candidatos e, de maneira indireta, so avaliados

    quais dos dois lados do PT (a direita ou a esquerda do PT) mais apto, maior, para

    apresentar um nome em um cargo municipal. Neste sentido, e para retomar os conceitos

    de Boltanski e Thvenot, trata-se de mettre lpreuve as ordens de grandeza da

    direita e da esquerda do PT.

  • Neste tipo de situao, so questionadas e medidas a pertinncia e a validade dos

    repertrios de cada grupo, para no somente visar a mudana de opinio de um dos

    grupos, como tambm avaliar qual principio de Justia mais ajustado idia de Bem

    comum. Desta forma, quando este candidato realiza um discurso fundamentado nos

    repertrios de compromisso, de coerncia, de competncia, de indignao diante da

    injustia, de confiana e de ser o representante de quem tem a marca de viver na

    Baixada Fluminense, ele se encontra desajustado esta situao na medida em que ele

    estava sozinho diante de um grupo adversrio e que, naquela situao, se caracteriza

    pela sua coeso pelo fato de pertencer a um mesmo campo do PT. Ademais, me parece

    que, embora atento ao tipo de categorias deste grupo (de radicais) - preocupao

    certamente j antecipada no intuito de preparar a situao de prova -, alm de se

    esforar em se ajustar ao repertrio deste pblico durante esta situao (por exemplo,

    quando se refere ao movimento popular, ou ainda a sua atuao na comunidade

    eclesistica de base a metade do grupo atua direta ou indiretamente com associaes

    de moradores e outra est vinculada ao movimento de Igreja) , ou ainda, quando evoca a

    sua indignao (sendo seguramente um repertrio a partir do qual os chamados radicais

    podem se identificar), a avaliao de suas competncias por parte do grupo

    considerada como o que Goffman chamaria de erro de enquadramento (1991).

    Com efeito, estas situaes se caracterizam por uma atuao diante de um

    pblico, uma exposio de si diante de outros, o que uma caracterstica, para Boltanski

    e Thvenot (1991) do espao pblico. Esta exposio implica portanto, uma permanente

    justificao pblica, e a fonte desta justificao se encontra nas concepes ou

    percepes de justia da vida ordinria, servindo tambm para avaliar a grandeza das

    pessoas (que os autores chamam de princpio de equivalncia prpria). Ora, nesta

    situao, os princpios de Justia deste candidato no eram muito ajustados ao do

    pblico, na medida em que este primeiro parece ter realizado um erro de

    enquadramento, erro na definio daquela situao4, pois ele fez algumas omisses

    4 A discusso sobre definio da situao, em Cincias Sociais, se remete tradio da primeira Escola de Chicago e principalmente introduzida com William Isaac Thomas em um texto de 1923 (in Grafmeyer Y. e Joseph, I. 1974). Com efeito, ele entende por definio de situao qualquer fase de exame e de deliberao que ocorre depois de uma conduta autodeterminada. Joas (1999) entende que a anlise em termos de situao pode oferecer uma alternativa aos obstculos das teorias teleolgicas cujo enfoque a determinao de uma intencionalidade do agir baseadas nos fins e nos meios. Na mesma direo de Joas, compartilhamos a definio proposta por Blher (apud Joas, op. cit): Par situation, nous entendons nous en tant que personnes qui agissent et disposent dun certain savoir sur lagir une relation unissant des personnes entre elles et avec des choses, ou une personne avec des choses, et

  • durante a seqncia de sua apresentao, omisso que implicou um esclarecimento de

    enquadramento por parte dos membros do grupo. Com efeito, a principal distino entre

    os esquerdistas e os direitistas do PT de Nova Iguau , antes de mais nada, a

    questo da aliana poltica. Os chamados direitistas so avaliados, pelos chamados

    esquerdistas, como anti-ticos por causa do tipo de aliana que fazem em perodo

    eleitoral - isto um principio de justia dos grupos de esquerda de Nova Iguau,

    baseado no repertrio da tica e da revoluo. Como a revoluo pode se fazer com

    alianas que eles consideram como sendo duvidosas?

    Desta forma, uma vez que este candidato apresentou sua trajetria e exps seus

    argumentos, ocorreu um breve silncio - talvez o tempo de definir em um lapso de

    tempo a situao e se ajustar a ela -, que foi logo seguido dos contra-argumentos: os

    primeiros comentrios e as primeiras questes feitas ao candidato foram todos

    assentados na questo dos limites ticos do tipo de aliana que este candidato poderia

    fazer. Com efeito, uma militante se indignou ao abrao que este tinha dado a um homem

    poltico de um partido de direita - envolvido em vrios processos de desvio de verbas

    pblicas - alguns dias antes, em um evento da cidade. Outro perguntou abertamente

    como o candidato pensava as alianas caso seja candidato oficial. A terceira interveno

    foi no sentido de duvidar da autenticidade dos propsitos do candidato quando se referiu

    ao movimento popular (O PT deixou de atuar na rea do movimento popular

    segundo princpio de justia que caracteriza os chamados esquerdistas). Enfim, a

    questo da ausncia de um projeto poltico partidrio o que foi levantado com mais

    freqncia, avaliando que durante esta exposio o candidato no tinha evocado este

    tema.

    Este seqncia de contra-argumentaes, esta situao de prova, revela no s

    uma falha no enquadramento que tinha feito o candidato, como tambm uma disputa em

    qui, prcdant toujours laction considre, est donc toujours comprise par la ou les personne(s) concerne(s) comme une invitation faire ou ne pas faire quelque chose. Dans le langage courant, nous disons que nous tombons dans une situation, quune situation se produit , que nous nous heurtons elle ou que nous y sommes confronts . Nous exprimons ainsi le fait que la situation est quelque chose qui prcde notre action (ou notre inaction) mais qui rappelle aussi celle-ci parce quelle nous concerne , nous intresse ou nous affecte . (Bhler apud Joas, op. cit.) Em suma, a situao enfatiza no s o tempo e o espao, mas tambm uma relao entre pessoas e coisas, ou seja, um meio ambiente, alm de um certo know-how (ou, para outros autores, um juzo, uma avaliao) individual e/ou coletivo sobre esta.

  • torno de ordens de grandezas. A reunio militante muitas vezes o espao de disputa

    desta natureza, na medida em que os atores de uma diversidade de arenas ali se

    encontram, defendendo princpios de justia plurais, seno antagnicos, e expem a sua

    decorrente percepo do bem comum. Assim, o bem comum de um grupo o bem estar

    da populao iguauana, enquanto que para outro a preparao ao socialismo.

    A questo da perspectiva situacional me parece muito relevante, pois na maioria

    das vezes os participantes chegam em uma reunio tendo realizado um trabalho de

    definio da situao que j se sabe problemtica, de antecipao das crticas e de

    anlise dos argumentos que poderiam ser contra-argumentos a estas. De fato, cada

    pessoa que ir se expor em uma reunio prepara sua apresentao em pblico, seja

    individualmente, seja com o auxilio de sua prpria corrente (sua base, expresso que

    representa por excelncia o papel da corrente, uma base poltica, claro, mas tambm

    uma base individual que permite orientar sua ao poltica). Este fato aponta para a

    dimenso conflituosa e de disputa, pois se os primeiros argumentos podem ser

    previstos, os segundos j so menos, pois a ordem da interao no to previsvel.

    No entanto, as ordens de grandezas das pessoas, principalmente nas reunies

    partidrias (pois as reunies das associaes de moradores no obedecem as mesmas

    normas), so avaliadas em funo de certas competncias compartilhadas pelo conjunto

    dos membros, particularmente no que diz respeito apresentao de si em pblico o

    que uma anlise em termos de dramaturgia aponta muito bem. Em primeiro lugar, os

    grandes5 so aqueles cujo princpio de justia, ou seja, a avaliao do bem comum,

    considerado prioritrio. Dessa forma, a justia social, o bem estar do povo e a igualdade

    parecem ser considerados como prioritrios em relao, por exemplo, ao princpio de

    justia que se remete ao tema do socialismo (dissociado nas falas dos atores). Para

    legitimar este bem superior comum, preciso acompanh-lo do uso de uma gramtica

    do bem comum, no sentido de evitar qualquer contraproposta diante deste principio.

    No haver contraproposta significa que no h discordncia e que, se houver, os

    membros do pblico s o faro no intuito precisamente de questionar as ordens de

    5 O termo grande usado por Boltanski e Thvenot quando analisa a disputa. Esta disputa aquela que dar a determinadas pessoas (as grandes) sua grandeza e que definir o principio superior comum, definio que estabelece qual dos bens comuns prioritrio diante de outros. Trata-se portanto, de um

  • grandezas. Assinala-se que isto ocorre e se torna ento um momento de prova. Em

    segundo lugar, a antigidade, o tempo de militana, um trao fundamental do

    grande. Tambm, pode-se assinalar a gestual e o ritmo da fala: o grande no

    gesticula mas se levanta pausadamente, ele fala mais devagar e mais baixo. Somente

    quando sua ordem de grandeza questionada (por exemplo, quando as pessoas

    comeam a murmurar durante sua fala), ele pode elevar seu tom de voz. Ademais, o

    distanciamento em cima das falas dos outros participantes, atravs de uma expresso do

    olhar (como, por exemplo, olhar para o cu) ou ainda de um sorriso esboado no canto

    dos lbios. Enfim, claro, a rede supostamente ideolgica a qual pertence, sobretudo

    na conjuntura atual: os chamados direitistas tm um presidente no governo federal,

    so a maioria dentro do partido, eles tambm podem ser assessores de pessoas com

    cargos pblicos. Este conjunto de elementos faz com que a ordem de grandeza seja

    estabelecida. No entanto em situao de conflito, ela constantemente questionada.

    PEQUENOS CERIMONIAIS E OFENSA DA SITUAO DE REUNIO

    Pode-se identificar com clareza o estado de pequenos, em todos os

    movimentos estudados, com as expresses que traduzem aes passar o rodo, ou

    ainda passar o rolo e tambm fui limado. O pequeno, o que tem um poder de voz

    avaliado como menos legitimidade pelo fato de seus princpios (por exemplo, para os

    chamados radicais, o socialismo e a revoluo) no estarem ajustados ao princpio

    superior comum, se encontra muitas vezes em situao de ser limado em nome do

    princpio superior comum. A relao de ordens de grandeza, em reunies militantes

    quaisquer que sejam, se expressa abertamente em momento de voto.

    Pois a reunio tem os seus rituais, os seus pequenos cerimoniais, a comear pela

    ordem da reunio que organiza, retomando mais uma vez uma idia de Goffman, a

    ordem de interao e define as diversas seqncias do quadro6 da reunio . Com efeito,

    ela se organiza em quatro momentos: a definio da pauta (quando esta j no

    dispositivo no qual o princpio assim submetido a uma avaliao, uma classificao (em funo de sua grandeza) e enfim, estabelecido em funo de sua grandeza. 6 Goffman props o conceito de frame, de quadro, para poder analisar estas situaes. O quadro assim, um dispositivo cognitivo e prtico da experincia social, que permite compreender o que acontece em uma situao e como nela se envolver (Goffman, 1991, Joseph, 1998). Desta forma, o quadro estrutura, de um lado, a maneira como definimos e interpretamos uma situao e, por outro, o jeito a partir do qual vamos nos envolver em uma situao (Goffman, 1991, Joseph, 1998).

  • definida), a discusso de cada ponto da pauta, a tirada de proposta e a votao.

    No entanto, nem todas as reunies so deliberativas e neste caso so entendidas como

    fruns de discusses. Obviamente, o questionamento de ordem de grandeza, a

    situao de prova, ocorre quase sempre quando a reunio deliberativa. Assim, o

    momento da exposio de argumentos ou discusso de ponto da pauta a ser votado

    uma primeira seqncia que determinar a segunda. Durante a prpria discusso, existe

    certos dispositivos7, que no deixam de ser tambm pequenos cerimoniais, que

    permitem enquadrar e avaliar a situao de prova: por exemplo, quando um dos

    participantes se expressa, respeitando a lista de inscrio de falas, e outro participante

    de repente o interrompe apelando para uma questo de encaminhamento, ou ainda

    uma questo de ordem (esta ltima significando, de certa forma, que a ordem da

    interao est desestabilizada e que preciso redefinir os quadros da situao). Esta

    interrupo uma ofensa, pois instaura uma ruptura com as civilidades e as normas que

    organizavam aquela seqncia da reunio. Trata-se de no perder a face. Muitas vezes, a

    pessoa que foi interrompida se encontra assim em situao de constrangimento, e

    pegando o pblico como testemunha, relembra que estava inscrita e, portanto, tem

    direito de terminar sua fala. Em outras ocasies, ela pode se levantar e apontar o dedo

    para quem a cortou, olhando diretamente para quem o ofendeu, ou ainda para as pessoas

    do pblico, elevando a voz e declarando com certa agressividade: posso acabar minha

    fala??? Voc no me deixou terminar!. Geralmente estas situaes acabam sendo

    consertadas, para retomar mais uma vez uma expresso de Goffman, pela mesa

    coordenadora, mesa esta que tem o papel de administrar estes pequenos conflitos

    alias, interessante destacar o papel desta mesa, que na Federao das Associaes de

    Moradores de Nova Iguau, e em muitas outras esferas, recoberta por uma toalha de

    renda branca, com flores, artificiais ou no, no seu centro. O coordenador da mesa pode

    pegar um ar cansado e em tom blas: deixe o companheiro acabar, por favor, deixe ele

    acabar!. O pblico, as vezes, toma partido e se coloca ao lado do coordenador e se

    dirige para quem interrompeu: deixe o companheiro acabar, companheiro!. Este uso

    do companheiro pode ser entendido de diversas formas. Uma dela consiste na tenso

    da interao relembrando ou em nome de uma mesma identidade social. Neste caso, a

    interao normalmente consertada e a pessoa interrompida pode prosseguir, as vezes

    at fazendo uma brincadeira no intuito de consertar, por sua vez, a relao com a pessoa

    7 O dispositivo un assemblage dobjets, de rgles de conventions dont le droit peut tre une expression

  • que tentou o interromper e que perdeu, durante este instante preciso, a sua ordem de

    grandeza. No entanto, uma situao semelhante enfrentando um grande e um pequeno

    no se resolve da mesma forma. A questo de encaminhamento do grande prioritria

    em relao a fala do pequeno, e este dever se ajustar a esta ordem de grandeza.

    Assim, quando uma pessoa representante de um alto escalo de uma ONG, de um

    partido, ou de qualquer maior instncia participa de uma reunio do MAB (Federao

    das Associaes de Moradores de Nova Iguau), esta passa a ter, nesta situao precisa,

    uma ordem de grandeza, representa um bem comum avaliado prioritrio, e mesmo que

    ela corte a fala de um representante de uma associao de morador, a mesa no se

    pronunciar. No entanto, o interrompido obedece a esta regra, mesmo que faa careta de

    descontentamento.

    ALGUMAS ARENAS PBLICAS EM NOVA IGUAU

    Apresentao dos espaos das arenas pblicas estudadas

    Nova Iguau uma cidade que possui 750.487 habitantes (IBGE, censo de

    2002), dividida em nove unidades regionais (URG): Centro, Posse, Comendadores

    Soares, Cabuu, KM 32, Austin, Vila de Cava, Miguel Couto e Tingu. O Centro,

    segundo os dados do IBGE de 2002, URG e bairro, tambm o local de principal

    concentrao da populao residente iguauana contando 175.562 habitantes8.

    Da mesma forma que os moradores iguauanos fazem cortes da regio

    metropolitana do Rio de Janeiro, o mesmo pode se observar em Nova Iguau. O centro

    da cidade se divide em dois lados, como em muitos municpios da Baixada Fluminense

    e do subrbio do Rio de Janeiro, separados pela via frrea. As denominaes costumam

    o lado de c e de l, ou ainda, com mais freqncia o outro lado. Se o outro lado

    designa espacialmente toda a parte que se encontra depois da Via frrea, parece que ela

    se refere mais ao bairro considerado como sendo o da elite iguauana, a Zona Sul

    de Nova Iguau. Esta parte do bairro se caracteriza, segundo certos membros de

    associaes de moradores, pela ausncia de problemas urbanos. o lado que no tem

    au niveau national, et qui [...] soient orients vers la justice (Boltanski e Chiapello, 1999). 8 Em relao Posse com 117.834, Comendadores Soares: 108.614, Austin: 96.199, Cabuu: 76.350, Vila de Cava: 63.035, KM 32: 57.467, Miguel Couto: 50872 e Tingu: 13.328 (IBGE, 2002).

  • problema de saneamento bsico, de coleta de lixo, de iluminao pblica. Pode-se

    assinalar que um bairro de concentrao de renda9: o Centro possui a maior

    concentrao de renda por domiclios em relao aos outros bairros, mas esta se d de

    forma bastante heterognea. Este outro lado representa uma nfima zona do centro,

    embora os salrios mais altos so de 10 a 20 salrios mnimos. Duas outras zonas, em

    torno deste outro lado, se destacam em termo de renda: uma maior conta uma renda

    domiciliar de 3 a 5 salrios mnimos enquanto a outra, um pouco menor, de 5 a 10. O

    resto do centro, mais de um tero, se no for a metade, possui domiclios de rendas

    inferiores 3 salrios mnimos. Depois do centro, os moradores designam os outros

    bairros como sendo os da periferia, recortando assim a cidade em trs regies morais: o

    centro, o outro lado e a periferia.

    A Prefeitura se localiza na Rua Pimenta Atade de Moraes, a mesma rua das

    sedes do MAB, do sindicato dos comercirios, do PT e at pouco tempo, do PcdoB,

    estes espaos sendo distanciados da prefeitura mais de 350 metros (para o MAB) e de

    400 metros (para o PT). Esta proximidade espacial, se extramos o sindicato, retrata

    bastante a relao entre os dois partidos e a federao. Com efeito, os membros da

    diretoria do MAB militam paralelamente no PT e no PcdoB (e desde o ltimo

    Congresso de 2003, no PSB). A proximidade espacial parece favorecer esta pluralidade

    na medida em que as reunies dos partidos e do MAB podem ocorrer no mesmo horrio

    ou em horrios prximos e pode-se passar de uma sede para outra, ou melhor, de uma

    arena pblica para outra, com comodidade.

    O espao do MAB, a Federao de Associaes de Moradores de Nova Iguau,

    foi cedida com a ajuda do bispo Dom Adriano, em 1981. Cerca de 200 associaes de

    moradores so filiadas ao MAB. Na parede da federao de frente para rua, foi feito um

    grafiti: uma mo de punho fechado e uma inscrio, a fora do povo. um espao

    amplo, com uma rea descoberta ampla, na qual se organiza as reunies quando a

    quantidade de participantes maior. H quatro outras salas, duas pertencendo a dois

    movimentos que no so vinculados com a atividade do MAB. Uma outra uma sala de

    reunio e outra a da diretoria. A sala da diretoria possui um espao ao fundo, no qual se

    9 Elaborado pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente e da NUSEG-UERJ, s/d.

  • encontra, entre muitas outras coisas, os arquivos da federao: cadernos de atas, recortes

    de jornais, fotos, etc... Os jornais foram classificados em fichrios e por ano, desde

    1978. Estes jornais do uma idia da evoluo dos princpios de justia da federao e

    das associaes de moradores: muitos apontam para reivindicaes que ainda hoje esto

    presentes, embora talvez, com um repertrio diferente: o saneamento bsico, a falta de

    gua ou a inexistncia de canalizao, a deficincia de iluminao pblica, a falta de

    escola, a falta de transporte, a ausncia de asfaltamento ou ainda, o problema dos

    buracos nas ruas e nas caladas. Em um artigo do O Globo do dia 5 de Novembro de

    1978, h uma pgina inteira dedicada Nova Iguau e com o ttulo: a cidade

    problema. Outro jornal local, O Correio da Lavoura (5 de novembro de 1978), intitula

    uma matria: Situao dos bairros calamitosa. O conjunto deste jornal aponta para

    vrios repertrios: a falta de tudo, a calamidade e outro, do povo sofrido e esquecido.

    A sede do PT se encontra h uns cinqenta metros do MAB. Cerca de 600

    pessoas so filiadas ao PT de Nova Iguau. Uma faixa grande est pendurada no porto

    da sede com a inscrio do nome do partido e do seu smbolo, a estrela. Este espao

    composto de quatro salas: um amplo espao para reunies, e trs outras salas menores

    onde em uma fica a funcionria do partido. As paredes da sala principal so cobertas de

    fotos e de textos retratando a histria PT nacional e com documentos de outra natureza

    como a foto pendurado de Che Guevara.. As reunies das correntes ocorrem quase

    sempre nas trs outras salas dos fundos e as reunies do Diretrio, da Comisso

    executiva, de reunies abertas, ou ainda do Movimento 28 de Julho, movimento

    homossexual, ocorrem na sala principal. Muitas vezes, nestas ltimas reunies, os

    participantes buscam suas cadeiras e as dispem em forma de crculo (disposio

    diferente daquela do MAB, onde a mesa colocada frente ao pblico).

    Embora o PCdoB de Nova Iguau tenha entregue sua sede recentemente, a sede

    deste partido ficava quase em frente a do PT. Assim, o espao do PCdoB se localizava

    no trreo de um sobrado, e comportava trs salas. Este sobrado era uma construo mais

    antiga, de meados do sculo passado, e os seus filiados tinham colocado, no segundo

    andar do sobrado, do lado da rua, uma grande bandeira do PCdoB. As discusses

    ocorriam nas salas, e havia uma entrada com uma mesa de escritrio, para atender as

    pessoas e as chamadas telefnicas. Atualmente, os militantes do PcdoB se encontram no

    sindicato dos metalrgicos, muito prximo prefeitura.

  • imprescindvel acrescentar a este quadro, a presena de, no mnimo, trs bares

    nos quais se encontram os militantes destes espaos: o Bar Razes um bar ao lado da

    prefeitura. O Bar do Daniel fica alguns metros depois da sede do PT. O Bar das

    Meninas encontra-se em uma rua perpendicular rua Atade Pimenta de Moraes,

    prxima sede do PT. Estes espaos no podem ser esquecidos, na medida em que

    parecem representar uma continuidade das reunies destes movimentos. Com efeito,

    muitos dos militantes j me disseram o Bar o local onde se toma as grandes

    decises. E tambm o espao em que, depois de uma situao de prova, permite

    amenizar as tenses. interessante observar que existe uma certa dimenso de

    territorialidade no que diz respeito frequncia destes trs bares, sobretudo no caso dos

    militantes petistas. Com efeito, as pessoas se encontram nestes bares em funo de

    tendncia partidrias, de suas prprias amizades ou de proximidades de opinio. Este

    ponto talvez possa sugerir que o Bar um espao de debate e de criao de projeto, bem

    como o lugar de evitamento de conflito.

    Este breve mapa mental tem o mrito de dar uma idia da mobilidade e dos

    trajetos quotidianos dos militantes, que deixam um espao para ir em outro, e que

    acabam muitas vezes em um destes bares. Este painel tambm tem como objetivo

    visualizar as arenas estudadas no mbito deste trabalho. Antes, pode-se simplesmente

    lembrar como se entende a idia de arena pblica10, resumida por Cefa (2002):

    Une arne publique nest rien dautre que la structure de coordination de (...) diffrents lments, o se dploient les oprations quaccomplissent ses protagonistes et leurs spectateurs et les consquences pragmatiques quelles auront pour dautres personnes. Elle requiert le montage dun thtre de places occupes par des acteurs et par des spectateurs, par des locuteurs et par des auditeurs, appareills dquipements cognitifs et normatifs, dots de rserves dexpriences de sens commun, prsums capables de comprhension et de jugement dans les mondes dobjets et de rgles, doutils et de rcits quils habitent. (Cefa, Idem, p. 59-60)

    Um exemplo da passagem de uma arena para outra

    Quando a gente se mobiliza, a gente sempre consegue o que quer. Todas as

    melhorias daqui, so frutos de uma luta nossa, diz Cludio com um certo orgulho

    durante uma conversa quando visitei seu bairro uma afirmao freqente para alguns

    10 Para mais detalhamentos, conferir o trabalho do ano passado do encontro da ANPOCS sobre a apresentao deste recorte analtico, in Freire, J. e Reis, G (2002)

  • dos filiados e/ou diretores ou presidentes de associaes de moradores. As vezes,

    [falando sobre o movimento popular e sobre o desinteresse dos moradores de seu

    prprio bairro em participar das atividades da federao da sua associao de moradores

    de filiao] tenho vontade de jogar a toalha e deixar tudo pra l declarou o mesmo

    durante uma reunio da diretoria da Federao das Associaes de Moradores de Nova

    Iguau (MAB) diante de quatro diretores participantes. Outra vez ainda, Cludio, ao

    final da reunio de reativao do Conselho Comunitrio de Sade, se apresentou ao

    pblico, composto principalmente de representantes de associaes de moradores (umas

    quarenta pessoas), no intuito de apresentar argumentos para ser eleito coordenador antes

    da votao da Comisso de Organizao deste conselho e, para tanto, explicou seu

    vnculo com a luta popular ligada sade: Fui de uma Comisso Regional do MAB. E

    eu sou tambm usurio, isso quer dizer que represento o SUS [Sistema Universal de

    Sade] e defendo uma sade pblica, no tenho plano de sade porque defendo uma

    sade de qualidade.

    Quando Cludio se entusiasma a respeito do movimento e, outra vez, se

    desencoraja, podemos entender isto a partir de vrias perspectivas e escalas. Uma delas

    consiste em buscar nestas palavras a maneira como Cludio coloca argumentos e

    elabora certos dispositivos que orientam as suas aes, em funo de certos dispositivos.

    Assim sendo, Cludio efetua um trabalho permanente de reorientao e de ajustamento

    de seu discurso diante de um pblico especfico. As duas primeiras afirmaes de

    Cludio poderiam assim mostrar como este percebe a participao popular, enquanto a

    terceira joga uma luz sobre as justificaes do seu prprio engajamento e do

    engajamento dos outros: uma representao de justia baseada na idia de pblico e

    que, alm de ser compartilhada pelos outros membros da reunio, tambm o princpio

    comum que rege esta arena. Com efeito, a defesa da sade pblica , de um lado, a

    bandeira de luta do movimento popular de Nova Iguau e, por outro, uma percepo de

    justia de todas as associaes de moradores filiadas ao MAB de fato, estes dois

    pontos so relacionados e possvel repetir o que foi dito acima, que o discurso de luta,

    bem como a percepo de justia, se construram a partir de uma trajetria singular de

    formulao de ordens de grandezas (Boltanski e Thvenot, op. cit.) e ento, de

    princpios superiores comuns (op. cit.), que foram construdos no decorrer do

    movimento popular iguauano. Esta percepo de justia, a sade pblica, a sade de

    qualidade, define de um lado um dos princpios morais desta arena especfica, as

  • associaes de moradores reunidas em um conselho comunitrio, bem como, por outro,

    esboa a definio de um problema que se torna pblico, no sentido de que os atores

    iro se mobilizar em funo deste principio, sendo este ltimo definido pela percepo

    de um bem comum.

    Nos trs casos, Cludio nos d alguns elementos para entender a maneira como

    passa de uma arena para outra, e imprescindvel ler estas afirmaes a partir do

    pblico diante do qual ele se apresenta, tendo em vista as mudanas argumentativas que

    variam de um meio para outro. Paralelamente, estas oscilaes seja a conquista, seja a

    toalha jogada, seja a defesa da sade pblica e dos usurios podem nos dizer que o

    amplo tema da participao popular, para alm de ser abrangida pelo campo das teorias

    democrticas, pode ser tambm apreendida do ponto de vista de uma sociologia moral

    da ao (denominada desta forma pelo grupo de pesquisa de Luc Boltanski), a qual se

    interessa sobre os valores e os argumentos envolvidos em situaes de provas e de

    conflitos e que os consideram como sendo uma chave analtica para compreender a ao

    dos atores.

    Em suma, decifrar e entender esta gramtica do lao poltico iguauano equivale

    a compreender paralelamente como estes percebem o Justo e como, a partir destas

    percepes, eles vm elaborando um problema pblico. Com efeito, precisamente a

    partir destas trocas e conflitos, consensos e debates, acordos e desacordos que se pode

    entender o tipo de disputa que est em jogo na cit civique (op. cit). Pode-se descobrir

    como o bem comum defendido no mbito da disputa vem adquirindo relevncia em

    funo de outros, considerados de menor importncia. Quando Cludio quer se eleger

    coordenador, ele utiliza este dispositivo na medida em que invoca o principio da defesa

    da sade pblica durante sua apresentao, performance e discurso que foram

    avaliados e classificados pelo prprio pblico em funo de seu carter prioritrio e,

    neste caso precisamente, Cludio acabou sendo uns dos coordenadores votados.

    Poderamos talvez acrescentar que, apresentando ao pblico um princpio superior

    comum, que por sinal fortemente presente no MAB e que s o Cludio evocou dentre

    os outros candidatos a coordenadores, os pequenos, as associaes de moradores

    presentes estavam bem numa situao de classificar as demais apresentaes dos outros

    candidatos e a avaliar para estabelecer que tipo de grandeza prioritria diante de

    outras.

  • PROBLEMAS PBLICOS E MOVIMENTO POPULAR EM NOVA IGUAU

    Quando um conselheiro da comisso fiscalizadora do Conselho Municipal de

    Sade de Nova Iguau (CMS), se espanta pelas observaes que fez no Hospital da

    Posse durante uma visita imprevista e descreve a precariedade deste espao (a saturao

    do hospital devido ao fato de que o nico deste porte na Baixada Fluminense, ou ainda

    a precariedade do espao fsico); quando outro se queixa do desvio de verbas de dois

    hospitais do Municpio e inicia uma ao no Ministrio Pblico; ou ainda quando uma

    terceira vem denunciar o caso de um mdico que mandou uma mulher tendo um aborto

    natural voltar para a sua casa e esperar que o feto seja expelido naturalmente, estes

    trs conselheiros esto definindo situaes problemticas e, alm de apresent-las, esto

    tambm participando da construo de um problema social11 que, qui, se tornar em

    seguida, pblico (agora este pblico passa a designar o sentido da resoluo destes

    problemas pela publicizao dos problemas e a insero destes em uma agenda pblica).

    Com efeito, o Conselho Municipal de Sade um espao onde se multiplicam as

    denncias mas nem todas adquirem um carter reivindicativo. Dentre as evocadas neste

    item, pode-se perceber que aquela que mais ganhou relevncia em termos de

    publicizao de problema social, a do Hospital da Posse.

    Se buscamos entender este processo, preciso voltar s reivindicaes no s

    construdas nesta arena, como a de que antecedeu e que ainda existe: a do MAB e

    principalmente de uma de sua sub-arena, o conselho comunitrio. Com efeito, o

    conselho comunitrio de sade, desde a dcada de 80, considerado como um embrio do

    atual conselho municipal, j vinha construindo uma percepo de justia voltada para o

    direito a um hospital pblico decente, e mais amplamente, uma sade para todos.

    Este repertrio , portanto, decorrente de uma longa trajetria que acabou publicizando

    as denncias deste hospital, desde os anos 80 at hoje, atravs da imprensa local e

    11 Entendendo estes termos semelhantemente concepo de Gusfield (1981), isto , um processo pelo qual os membros de um grupo definem uma condio como sendo problemtica, se remetendo assim a uma sociologia dos problemas. Desde ento, as pessoas podem se mobilizar em vista de melhorar ou erradicar esta condio. Tal sociologia se interessa ento em entender o processo de surgimento e de continuidade de atividade reivindicativa e quais a respostas que lhe so dadas (entre outros autores, Gusfield, op. cit. e Fuks, M, 2001).

  • estadual, bem como de aes pelo ministrio pblico. H alguns meses, est se

    discutindo a entrega da gesto do Hospital da Posse para o governo Estadual, o que

    sugere que as reivindicaes locais passaram a ser inseridas em uma agenda pblica.

    Em outros termos, a formao de um repertrio de princpios de injustia, elaborado

    processualmente e de maneira contnua, no caso do Hospital da Posse e da Sade em

    Nova Iguau, durante duas dcadas, pode assinalar que estas duas arenas acabaram

    ajustando sua percepo do Justo, sua crtica, de instncias superiores, como o

    Governo do Estado. Pois, se arriscando a uma breve interpretao da obra de Boltanski

    e Thvenot, o processo de transformao se d desde que a crtica se ajuste ao principio

    superior comum. Enfim, poder-se-ia dizer rapidamente que denncias da mesma

    natureza, mas concernindo outros registros de atuao do MAB, passam por um

    processo parecido. A comparao dos princpios de Justia observveis nos jornais da

    dcada de 70 e de 80 (como apresentamos brevemente aqueles repertrios dos arquivos

    do MAB) permite entender como estes so erradicados (hoje), se transformam ou se

    inserem ou no em uma agenda pblica em funo deste processo de formao de

    crtica.

    CONCLUSO

    Buscar entender os princpios de justia presentes em vrias arenas de Nova

    Iguau, pressupe uma reflexo sobre as situaes, visto que so nelas que os agentes

    (no sentido de uma sociologia da ao) enunciam e/ou encenam as suas percepes do

    justo. Mais precisamente, pressupe ater-se maneira como so definidas estas

    situaes e, a partir deste ponto o das definies das situaes julgadas problemticas

    , ser possvel capturar quais so as percepes de justia dos agentes em uma dada

    situao. As percepes do justo no so nada mais do que uma forma de definir

    situaes problemticas. Ademais, o que pode se concluir que participar de aes

    coletivas pode ser, em primeiro lugar, uma ao situada. Este ponto permite deslocar o

    debate sobre a participao em uma ao coletiva a uma outra escala, segundo a qual

    esta participao se caracteriza como um engajamento em situao. Desta forma, busca-

    se entender como a dimenso de agir na vida pblica pode revestir um carter de

    criatividade (Joas, 1999), isto , um modo de pensar a participao no a partir de

  • rupturas, quase sempre histricas (baseadas no caso brasileiro na dicotomia

    ditadura/democracia), e sim, talvez, em um modo de agir coletivo que possui, no tempo

    e no espao, uma contiguidade e uma continuidade. A questo da criatividade diz assim

    respeito maneira como as mudanas sociais podem se realizar de maneira processual e

    decorrem de situaes especficas referentes a grupos sociais distintos

  • Referncias Bibliogrficas

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