1989 - O Dito e o Feito

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João Martins Pereira - O Dito e o Feito

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JOO MARTINS

PEREIRA

ERRATAO texto com incio na p. 168 devia aparecer no mesmo tipo que os textos com incio nas pp. 22, 44, 60, 75, 89, 102, 121, 147, 190, 208 e 225.

COLECO tempos modernos

Na Coleco Tempos Modernos: 1. 2. 3. 4. Para Alm da Revoluo, de Gonalo Ribeiro Telles Terra Que J Foi Terra, de Paulo Monteiro A Guerra Civil de Espanha 50 Anos Depois, direco de Ramon Tamames O Dito e o Feito, de Joo Martins Pereira

JOO M A R T I N S P E R E I R A

o DT E o F(IT0 IOC A D E R N O S 1984-1987

salamandra

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, tocots .

Joo Martins Pereira e Edies Salamandra, 1989

Capa: Jos Cerqueira Composio: Berenice, Lisboa Impresso: Safil, Lda., Lisboa, 1989 Depsito legal n. 30.366/89 Todos os direitos desta edio reservados por EDIES SALAMANDRA, L .s D A

Rua P."Lus Aparcio, 9, l . , Frente Telefone: 52 99 88 1100 LISBOA Telex: 64 077 P

PREFCIO

Feitos, costuma dizer-se das inevitveis proezas dos nossos antepassados. M a s h, c l a r o , q u e m se vanglorie dos seus prprios. Os caadores tm f a m a de ser desses, mas que so eles, coitados, comparados com u m R e a g a n , ao despedir-se dos americanos: Queramos m u d a r u m a nao, e mudmos u m mundo? No de gabarolas, dos que dizem como feito o que gostariam de ter feito, que se ocupa este l i v r o . H tambm os que dizem u m a coisa e fazem o u t r a , seguidores de F r e i Toms. E n c o n t r a m o - l o s a cada esquina, chamamos-lhes incoerentes, falsos, desonestos (ajudmo-los, s vezes, a ganhar umas eleies), dividimo-nos entre os que acham que eles deviam fazer o que d i z e m , dizer o que fazem ou nem u m a coisa nem o u t r a : dev i a m , p a r a nosso b e m , permanecer quietos e calados. Alguns p o d i a m dar belos l i v r o s , mas no este. To-pouco tm lugar nestas pginas os irreflectidos do meu d i to, meu feito, protagonistas de m u i t a cena de r u a , gente de nervo que no suporta a espera entre o dizer e o agir e, p o r tal frenesi, colecciona tanto (pequenos) sucessos como (pequenos) fracassos. A s classes p o p u l a r e s , pouco ponderadas de seu n a t u r a l , como se sabe, so as mais atreitas a estes incontrolveis impulsos, tipicamente l a t i nos, coisa p a r a a r r e p i a r imenso seres de formao britnica, dos que no frequentam campos de futebol, bem entendido. N a d a disso, pois. O autor destas l i n h a s , que, como os demais,

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passa a v i d a a fazer coisas pouco apetecidas, aproveitou estes baos anos de 1984 a 1987 p a r a i r anotando, agora e depois, em pequenos cadernos, as observaes que lhe suscitavam factos, gentes, l i v r o s , e outros estmulos mais, m i s t u r a com o que, nestas idades, sempre se gosta de pescar n a memria e n a experincia. Somadas u m d i a as folhas, e a vontade, isso dava u m l i v r o e projectou escrev-lo. A s sim o fez, com a inocncia p r e c i s a . U m bicho lhe m o r d e u pelo meio, porm, ao reler papis antigos e neles se lhe revelar o que deixavam em aberto, de inocncias o u tras, essas de j u v e n t u d e , de busca de u m a pele a i n d a i n c e r t a . E d e u -lhe p a r a pensar quantos caminhos divergentes desses mesmos p a pis p o d e r i a m ter p a r t i d o , dos quais s conhecia u m , que exclura todos os restantes. A t r a i u - o a ideia de escolher u m deles, o de u m outro, desses que justamente aborrecem os palradores de ideias e se reclamam da suprema v i r t u d e de fazer coisas, coisas srias, entenda-se d e c i d i r , empreender, criar riqueza, pragmaticamente, sem o estorvo das ideologias. Do autor de u m livro americano de s u cesso, vademecum p a r a vencer nos negcios, diz-se n a capa ser conhecido p o r Mr. Make-Things-Ilappen. Esboar a histria de u m desses fazedores de coisas, nossa escala, nascida da sua prpria memria, foi essa tentao a que o a u t o r , pecador sem apelo, no soube resistir. Complicou-se o l i v r o , p a r a mal do leitor. P o r q u e so dois, a f i n a l , os cadernos que lhe p r o p o n h o , supostamente escritos ao longo do mesmo perodo. Os que pachorrentamente r a b i s q u e i , em tempo real expresso n a moda , so o que so, dizem o que d i z e m . Nos outros, u m meu apagado d u p l o , aspirante a romancista de horas vagas, ficciona a a t r i b u l a d a c a r r e i r a de u m gestor de sucesso, usando com desenvoltura os tais papis antigos, dez anos retardados no tempo, juntando-lhes alguns mais da sua l a v r a e inventando p o r inteiro a sequncia plausvel de u m a maturidade ascendente. Aventurei-me ento a intercal-los, no por qualquer p e r v e r s i dade. E que entre o dito de uns e o feito dos outros, entre o discurso e o percurso assim gerados de costela comum, o jogo de reflexos, e de passagens tantas vezes n a p e n u m b r a , proporcionar ao l e i t o r , se a pacincia lhe chegar, u m exerccio que pedir p o r certo mais imaginao do que percia detectivesca.

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E , no f i m de contas, no estarei enganado? O feito v a i a q u i dito, e o dito, p a r a vos chegar s mos, teve de ser feito em l i v r o . A s armadilhas da e s c r i t a . . . U m a ltima p a l a v r a . Desejaria que este l i v r o no fosse visto como u m confronto assimtrico entre o estatuto d a ideia e d a p a l a v r a , terreno do intelectual, e o da aco prtica, terreno (neste caso) do decisor profissional. A questo que coloco , no essencial, de ideologia. E ideologias, em rigor,no as h piores nem melhores. H simplesmente a que escolhemos, e as que escolheram outros.

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198420 de Junho Passo no chamado Complexo das A m o r e i r a s e, embora ainda atrasado e sem cor (vai t-la aos fartotes, no d u v i do), ocorre-me u m a lembrana v i n d a da infncia distante, q u a n d o , em tempos de vacas menos magras, me l e v a r a m ao teatro ao d o m i n go tarde: u m cenrio de opereta. A mistura com outra recordao de infncia, essa de u m a pequena caixa com arcos, colunas e outras peas de m a d e i r a de vrios tons, de que nasciam efmeras c o n s t r u es, no casas mas cenrios tambm, que eu povoava de figuras de carto ou de c h u m b o , o que tinha mo, protagonistas de i m a g i nrios confrontos, ou convvios, talvez histrias que nessa noite sonhara. M a s porqu essa sensao de estranheza, ou de surpresa? No sero as fachadas, todas elas, no tero sido sempre, o cenrio desse imenso palco que a cidade? No ser justamente a a r q u i t e c t u r a (de exteriores, entenda-se) a arte de desenhar esses cenrios, a d e q u a n do-os a tal ponto ao esprito da poca que, muitos anos ou sculos mais t a r d e , eles nos dizem muito de como ento se vivia? De acordo, mas acho que h agora algo de novo. Impressionou-me, h uns anos, a reconstruo d a velha cidade de Varsvia, seguindo r i g o r o samente os desenhos das fachadas de o u t r o r a e, depois, a das decrpitas mansardas das I l a l l e s , em P a r i s : nesses casos (como no B a i r r o de Santa C r u z , cm S e v i l h a , o u , entre ns, na pobre Casa dos Bicos) as fachadas so, a s i m , meros cenrios, no sentido em que p r o d u -

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zem u m a iluso, como no teatro. que os interiores, onde se desenr o l a m os dramas e as comdias do tempo que vivemos, nada tm que ver com o aspecto exterior: este j n a d a nos diz sobre isso, emudecer pedaos de cidade aos que, geraes adiante, q u e i r a m h i s t o r i a r , ou r o m a n c e a r , o nosso viver (ou m e l h o r : dir-lhes- outras coisas). Impressiona-me tambm a profuso de pinturas trompe 1'ceil que hoje vo povoando as empenas de grandes edifcios: l i v r e agora dos condicionamentos de antigas fachadas, p r o d u t o apenas da fantasia, projectando-se p a r a o interior d u m a superfcie (como n u m espelho) feita cu, feita estrada, j a r d i m , escadaria, n u m a p a l a v r a , feita espao fictcio, o cenrio aproxima-se a q u i ainda mais do sentido l i teral. A tcnica u t i l i z a d a a mesma que, n u m teatro, faz u m painel plano prolongar-nos o p a l c o , tornar-se ele prprio t r i d i m e n s i o n a l , com paredes, recantos, mveis, janelas entreabertas p a r a u m espao exterior inexistente. A est, pois, a diferena. A n t e s , era o teatro que imitava o r e a l : o dcor isabelino, f i m de sculo, ou anos 30, aristocrtico, burgus ou plebeu, decalcando interiores ou exteriores tpicos de u m a poca, ou de u m a classe, situava-nos a aco. O cenrio faz-nos imaginar o que l no est (o teatro fico) e oculta-nos o que l est (os bastidores, os actores que se p r e p a r a m p a r a entrar em cena, u m enorme buraco cheio de cabos, andaimes e luzes). H o j e a a r q u i t e c t u r a c i tadina que i m i t a o teatro: naquela empena, dentro dela, no esto escadas, n e m j a r d i n s , nem pessoas; p o r detrs daqueles torrees, arcadas e cores de palcio do Feiticeiro de O z no esto damas medievais, nem figurinhas de c h u m b o , nem gigantes empedernidos. E s t gente, movendo-se em interiores que no nos dado i n d u z i r . O exterior continua a ser o cenrio da cidade mas, mais do que isso, u m cenrio em sentido prprio, a r q u i t e c t u r a de iluso, sinal de tempos em que a imagem soberana. Isto deixa-me inquieto, mas ao mesmo tempo fascina-me: como tudo o que mscara, disfarce, ocultao. Como o teatro, a f i n a l . Ser porque nos povoam a cidade de cenrios que os teatros esto v a zios? O u , simplesmente, porque cada vez mais o teatro que deles prescinde?

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31 de Julho P r i m e i r a incurso ao chamado Nordeste T r a n s montano. Nos olhos fica-nos, sobretudo, a majestade da paisagem serena que se avista do caminho florestal entre Frana e M o n t e s i nho. A M . lembra-se de Delfos. isso. Tivesse o acaso trazido p a r a a o r l a atlntica os adoradores de A p o l o , s a q u i p o d e r i a m eles ter descoberto grandeza suficiente p a r a erigir o seu santurio. M a s Bragana, e as terras v o l t a , e o acesso que escolho desde o C a r a m u l o , que me despertam reflexes bem mais actuais. E este outro mundo portugus que inesperadamente descubro, no no seu lado folclrico j to (mal) b a n a l i z a d o . Refiro-me surpresa de quem vem da c a p i t a l , onde s se fala de crise, de austeridade, de aumento do desemprego, de salrios em atraso, do c r u ressurgir d a p a l a v r a misria, e da sua realidade. Tem-se, p o r a q u i , a sensao de que se interrogssemos algum sobre a famosa (e incontestvel) crise, nos o l h a r i a m com espanto ou indiferena. No ignoro que se trata do tempo ciclicamente eufrico da chegada dos emigrantes, mas isso no chega p a r a explicar a no-crise patente n u m a cidade que esperava indolente, ensimesmada, p e r d i d a no tempo, empobrecida. O que vejo descontraco, m o v i mento, comrcio e cafs regurgitando de gente, grupos de jovens alegres e vestidos como os de L i s b o a , que e n t r a m e saem, combinam no sei o qu, nem o l h a m p a r a a televiso, tudo parece em a c t i v i d a de, em ebulio. E penso, acho mesmo que j devia ter pensado a n tes de ver: a crise, que est longe de ser s portuguesa, a crise do sistema i n d u s t r i a l , a p a r t i r da indstria (em p a r t i c u l a r , de certas indstrias) que ela se propaga e p o r isso so os grandes centros u r banos, i n d u s t r i a i s , administrativos os que mais lhe sentem os efeitos. E a crise das actividades que f o r a m o motor da ltima fase de desenvolvimento capitalista que est a t e r m i n a r : a grande indstria pesad a , as indstrias ligadas ao petrleo, as grandes consumidoras de energia. Que tem Trs-os-Montes a ver com isso? M u i t o pouco, b v i o . A sua crise, a de todas as regies agrcolas e sem recursos, essa no de hoje, secular. A emigrao atenuou-a, p o r decrscimo de bocas a sustentar e p o r aumento de rendimentos ganhos noutras paragens. P o r essa v i a , precria tambm, as coisas m e l h o r a m . Est tudo, como sempre, p o r resolver, mas, no curto p r a z o , que 6 o da conjuntura dos economistas, a sensao de euforia, a q u i , ao

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mesmo tempo que de quase-pnico nas grandes aglomeraes operrias de L i s b o a e Setbal (menos no l i t o r a l N o r t e , onde a indstria ligeira e muitos so os que r e p a r t e m o seu tempo entre a fbrica e a courela). No ser isto a tal sociedade d u a l de que falava a economia de desenvolvimento, j no a de que se fala hoje nos pases i n dustrializados? Os polticos, que nos fins-de-semana se passeiam pelo pas sempre a pensar n a campanha que vir prxima, e que p o r toda a parte f a l a m da crise, fazem l e m b r a r os bem intencionados (e h a v i a muitos, hoje so u m a raridade) das campanhas de d i n a m i zao c u l t u r a l dos anos quentes, que i a m f a l a r de luta de classes entre patres e operrios onde no h a v i a nem uns nem outros.

8 de Agosto Se hoje comeasse umas memrias, seriam talvez estas as p r i m e i r a s frases: Aos 51 anos, olho p a r a trs e tenho a sensao de ter 'gerido' a m i n h a v i d a com razovel sucesso. E , no entanto, focando a vista p a r a o detalhe, dou-me conta de que, como toda a gente, o que fiz foi ' v i v e r s apalpadelas'. 0 balano das boas e ms sortes foi-me favorvel, e eu limitei-me, em meia dzia de momentos cruciais - que so quantos h numa v i d a a ser capaz de decidir p o r m i m prprio d a vereda a seguir, sem angstias excessivas sobre o que p o d e r i a ter acontecido se p o r o u t r a tivesse tomado. Talvez alguns, conheo casos, sejam capazes de gerir a v i d a como se gere u m a empresa (estou a exagerar: a m a i o r i a das empresas so, elas tambm, geridas s apalpadelas...): estabelecer objectivos (uma c a r r e i r a ! ) , definir os meios necessrios p a r a os atingir, aplic-los controlando a progresso, avaliando e corrigindo os desvios. N u n c a o fiz e talvez h a j a quem me julgue frio a esse ponto... F o r a m sempre os pequenos prazeres do 'logo t a r d e ' ou do 'logo noite' que me a j u d a r a m a sobreviver, e no q u a l q u e r longnqua certeza ou desgnio. E se alguns planos f i z , f o r a m sempre de curto p r a z o , p a r a me libertar de tutelas insuportveis e aumentar a margem desses pequenos prazeres. Pequenos, mas no d i r i a fteis: a conversa de caf (ou a saborosa solido do caf), as l e i t u r a s , os cinemas, os encontros, os amores passageiros, os passeios pela cidade, os ps de dana, mais tarde as viagens, as chamadas aces colectivas (no d i r i a , no meu caso, militantes). P a r a no f a l a r dos prazeres maiores, das a m i z a -

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des, dos amores ' d e f i n i t i v o s ' , e tambm d a Gazeta e das escritas. T u d o isto foi a construo de m i m prprio, n u m pano de fundo de enorme curiosidade pelo f u t u r o , que sempre foi p a r a m i m u m a avent u r a no desconhecido, n u n c a u m projecto. U m b o m exemplo disto mesmo: s mesmo a posteriori a dolorosa apropriao do meu corpo me veio a parecer u m a vitoriosa gesto de u m p r o b l e m a difcil. M a s a memria a est p a r a me r e c o r d a r como f o i , justamente esse, u m percurso no escuro, em que me orientou u m a qualquer faculdade semelhante que evita aos morcegos baterem contra as paredes de u m a gruta isto , sem que a razo directamente interviesse. E x a gero u m pouco: a razo, em cada caso, exercia-se a p a r t i r de u m ' s a b e r ' que lhe e r a a n t e r i o r , e era esse que c o m a n d a v a , que me dirigia por u m caminho cujo f i m , o quando e o como, eu no descortinava, muito menos p r o j e c t a v a . A razo teve sempre, nesse e noutros decisivos momentos, u m papel secundrio: n u n c a fugi s decises, nunca deixei (tanto quanto pude) que outros decidissem p o r m i m , mas sempre tive a conscincia de que nos faltam os elementos todos (o que isso?) p a r a poder decidir racionalmente. O que se f a z , de facto, muito mais escolher do que d e c i d i r . P o r isso me totalmente alheia a ideia de arrependimento. D a q u i a dez ou quinze anos a i n d a imaginarei que seria este o meu comeo de umas hipotticas memrias? A parte a questo do saldo das boas e ms sortes, que isso n u n c a se sabe, d i r e i , u m pouco como Joo B a r o i s , que algo muito distante deste texto significar u m a irremedivel p e r d a de discernimento...

22 de Agosto L e i o , n u m artigo do socilogo A b r a h a m Moles intitulado Uma cincia do impreciso: As cincias sociais so o melhor exemplo em grande escala das cincias do impreciso, do difuso, etc. Os conceitos que elas m a n i p u l a m so imprecisos por essncia: qualquer esforo p a r a os precisar abusivamente, os espartilhar em definies fechadas, decompe e destri os prprios conceitos. [...] O papel do investigador em cincias humanas convencionais mais do que seguir a ideologia cientista que pretende eliminar c o n ceitos difusos e infralgicos, p o r f o r m a a ajustar-se a u m a imagem da razo p a r a a q u a l aquelas cincias no f o r a m feitas o de

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pensar com rigor conceitos vagos. H a larga matria p a r a o uso d a razo. E mais adiante: Um caso simples: o acto de fotografar seres animados, com boa qualidade de imagem, p o r u m observador, i n t r o duz u m a inevitvel reaco, quer de fuga, quer de pose, em q u a l quer caso de artificialidade do sujeito, c r i a d a pela presena do observador; todos os etnlogos, todos os fotojornalistas o sabem. A n a lisando de mais p e r t o , descobrimos que isso est n a natureza das coisas da prpria observao. Se o observador se dissimula, se m i n i m i z a , as imagens que ir obter sero necessariamente mais pequenas, mais difusas, mais vagas. N u m a p a l a v r a , h u m a espcie de produto constante de incertezas entre a preciso de u m a imagem e a justeza d a observao relativamente ' v e r d a d e ' do fenmeno observado. Isto , os conceitos so vagos porque o so tambm necessariamente, distncia que impe o desejo de no-interferncia, os factos observados que os devero s u p o r t a r . M a s ateno: q u a l q u e r fotojornalista sabe tambm que, se voltar vrias vezes ao l o c a l , pode conseguir imagens de vrios ngulos, pode mesmo, p o r s u r p r e s a , t i r a r alguns instantneos de grande preciso de imagem sem que ten h a havido tempo p a r a reaco dos visados. Isto quer dizer que os efeitos daquela r e g r a , v e r d a d e i r a no essencial, podem ser atenuados se se i n t r o d u z i r (e isso f o r possvel: objecto de observao estvel no tempo) a varivel tempo, ou seja, se o socilogo no for preguioso, o que r a r o , devemos a d m i t i r . O socilogo de gabinete, o que p r e tende t i r a r concluses a p a r t i r de meia dzia de entrevistas, o que se preocupa mais com as estatsticas e as correlaes e menos com a justeza das observaes relativamente ' v e r d a d e ' do fenmeno observado esse permanecer sempre na p e n u m b r a de nmeros e teorias que podem deslumbrar os incautos, mas pouco acrescentam ao conhecimento d a realidade social. O u t r o s , mais cuidadosos e p e r sistentes, conseguiro, d a neblina dos fenmenos, fazer surgir s i lhuetas e contornos suficientes p a r a que o uso da razo a encontre fecundo material de reflexo.

23 de Setembro N a sua demasiado bvia vontade de iconoclastia, servida p o r u m a prosa atraente e u m h u m o r pouco h a b i t u a l entre ns, Miguel Esteves Cardoso t r a v a frequentes batalhas contra

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moinhos de vento. A propsito do suplemento DN Jovem, saiu-lhe ontem u m artigo de que extraio estas (representativas) preciosidades: A j u l g a r p o r u m a grande parte dos textos escritos pelos jovens colaboradores do ' D N J o v e m ' , no h qualquer diferena entre eles e os ' p a i s ' . Estes pais espirituais constituem a gerao de Woodstock e de M a i o de 6 8 , veterana das b a r r i c a d a s e das b a r r a c a d a s da r e v o luo, e o c u p a m hoje u m a parte generosa do poder (no s c u l t u r a l ) . M u i t o s filhos saram, pelos vistos, t a l q u a l os pais. Foi-lhes instilado com xito a mentalidade 'hippie-progressista-marginal' em pequeninos. N o entanto, no se r e b e l a m contra e l a , como justo e t r a dicional e histrico desde tempos imemoriais, [...] contentam-se com repetir as rezas dos catecismos sebentos d a alternatividade, da m a r ginalidade e d a c o n t r a c u l t u r a l i d a d e dessa idade da P e d r a que f o r a m os anos 60. [...] A mentalidade portuguesa est t r a n c a d a no M a i o de 68. [...] E esquerdista, afrancesada, c o n t r a o ' P o d e r ' e animicamente movida pelo desejo de ' l i b e r t a r ' tudo o que no seja pssaro e voe n u m campo verde n u m cu cor de l a r a n j a . E s t a , p a r a usar a linguagem que lhes prpria, precisamente a 'ideologia da classe d o m i nante' do P o r t u g a l contemporneo, o 'discurso do p o d e r ' da a c t u a l i dade; ao q u a l tantos jovens colaboradores do ' D N J o v e m ' inconscientemente acrescentam as suas modestas contribuies. difcil dizer tantos disparates em to poucas palavras. E ao mesmo tempo to desajeitadamente denunciar a malformao britnico-utilitarista-paternalista do a u t o r , que atira afrancesado como u m insulto e, de resto, s faz citaes (na parte do artigo no r e p r o duzida) de u m nmero do DN Jovem sobre o tema animais, to caro aos bondosos sbditos de S u a Majestade. M . E . C , , como se s a be, u m daqueles intelectuais de formao inglesa cuja preocupao dominante quanto sociedade portuguesa parece ser, no j (como era h u m sculo) a ultrapassada questo d a dependncia da prfida Albion, mas a desesperante interrogao porque raio de azar no h-de P o r t u g a l ser (como) a Inglaterra?, o que se compreende ser matria p a r a dolorosas angstias. E m todo o caso, D o u t o r em Sociologia (ou a caminho disso), no pode deixar de surpreender a facilidade jornalstica com que, em defesa d a sua d a m a , passa p o r cima de todas as evidncias (ou lgicas presunes). Vejamos ento. De que jovens e de que pas fala M . E . C . ? P o r u m l a d o , da amos-

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tra de jovens que escrevem e m a n d a m os seus textos ao DN J o vem, que erige n o u t r o passo do texto em grande parte d a j u v e n t u de portuguesa, conferindo-lhes to abusiva representatividade que me interrogo (e tremo) sobre a idoneidade dos estudos sociolgicos do autor. E quanto aos pais (que no so s espirituais, como p a r e ceria p r i m e i r a v i s t a . . . ) , onde recolheu a informao de que so todos esquerdistas, afrancesados, libertrios, etc.? E ainda que, p o r mera hiptese, todos o tivessem sido em 68, no os v hoje o prprio M . E . C , ocupando o p o d e r , ou seja, presumivelmente m a d u r o s b u r gueses conservadores bem instalados n a vida? Onde ter ento ido M . E . C , desencantar que hoje a ideologia da classe dominante em Portugal a de M a i o de 68? M a i s a i n d a , que est t r a n c a d a nesse fatdico ms a mentalidade portuguesa (que ignoro o que seja e julgo expresso bem desastrada n a pena de u m socilogo). A o f a l a r em ideologia d a classe dominante, M . E . C , parece ter u m a ideia c l a r a sobre o assunto, pena que no nos explique u m pouco melhor como define essa classe e o que o leva a a t r i b u i r - l h e to perniciosos pendores ideolgicos. Se mesmo classe dominante no sentido marxista que se refere, o disparate bvio: n u m pas capitalista prestes a entrar n a C E E , os empresrios, os proprietrios de meios de produo, os gestores em geral ( i n c l u i n do os das empresas pblicas), etc. n u n c a manifestaram q u a l q u e r tendncia anarco-esquerdizante, n e m isso seria possvel, c l a r o . Se M . E . C , se refere simplesmente classe poltica, ou simplesmente ao poder isso: no fala ele do discurso do P o d e r ? , s u posto e x p r i m i r ( n u m marxismo sumrio) as posies da classe d o m i nante, o disparate , se possvel, maior a i n d a : Soares, Ernni, M o t a P i n t o , Veiga Simo, Amndio de A z e v e d o , A l v a r o B a r r e t o , etc. etc., as figuras de p r o a do triste B l o c o C e n t r a l que nos (des)governa sero tudo esquerdistas disfarados (mas que no escapam perspiccia do articulista)? Chegar p a r a t i r a r essa concluso o facto (mel h o r : a m e r a hiptese) de que u m ou outro secretrio de Estado possa, nos seus tempos de j u v e n t u d e , ter n a m o r a d o as ideias de 68, t a l vez at vivido nalguma comunidade, indo receber pontualmente a mesada a casa dos pais? Insisto: ter mesmo M . E . C , alguma ideia do pas em que vive? E n f i m , voltando aos filhos, suponhamos que o tom geral dos tex-

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tos publicados no DN Jovem e r a efectivamente libertrio e esquerdizante, o que est longe de ser verdade. E bvio que os c o l a b o r a d o res do suplemento (essa amostra que no a juventude portuguesa!) so adolescentes dados reflexo e escrita, que o l h a m p a r a si prprios e sua volta de f o r m a interessada ou mesmo empenhada, embrio de futuros escritores, artistas, intelectuais. No seria n a t u r a l esperar que este tipo de jovens, como sucede em qualquer tempo e em q u a l q u e r l u g a r , produzisse u m discurso romntico, libertrio, antipoder, expressasse u m a revolta mais ou menos v i n c a d a contra u m a sociedade que se descobre injusta e hipcrita? Que teria isso a ver com M a i o de 68, com os p a i z i n h o s , espirituais ou no? S teramos que nos regozijar com isso, quando tantos indcios (basta f a l a r com professores) sugerem u m a j u v e n t u d e , no essencial, desatenta, se no aptica, desinteressada do poltico e do social, ou ento d o m i nantemente c o n s e r v a d o r a , q u a n d o p o l i t i z a d a . O u seja, o contrrio do que M . E . C , nos quer v e n d e r . mesmo essa ausncia de revolta que surpreende e i n q u i e t a .

24 de Outubro Segundo Soares, estamos n u m a data histrica (viragem, a sua expresso): m a r c h o u hoje p a r a D u b l i n , com trs ministros atrs, p a r a assinar u m p a p e l chamado constat d'accord, que anteontem a C E E lhe estendeu p a r a satisfazer o nosso i r r e m e divel saloiismo. P a p e l que n a d a diz de novo, que no tem qualquer v a l o r jurdico e a que os espanhis no ligaram a menor importnc i a . M a s mais saloio ainda (e d i v e r t i d o , vamos l) foi o enviado da A n t e n a 1, Esteves M a r t i n s , ao fazer a reportagem: desfazendo-se em elogios ao p a p e l , sua extraordinria importncia, comentou, i n terrogado de L i s b o a sobre o ambiente em D u b l i n antes da assinatur a , que tudo estava calmo e, aparentemente, a populao de D u b l i n ainda no se deve ter apercebido da importncia do acontecimento!!! E s t a r i a ele a imaginar os pacatos patrcios do Joyce l e v a n do Soares aos ombros at ao aeroporto?

26 de Outubro E m tempos passados, s houve, que me r e c o r de, dois terceiros famosos: o terceiro Estado e o terceiro exclu-

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do (um dos axiomas bsicos do raciocnio cientfico). Nos ltimos t r i n t a anos, s u r g i r a m , sucessivamente: o 3 . M u n d o , a 3. Idade e, mais recentemente, a 3 . Revoluo I n d u s t r i a l (ou a 3. vaga, que sem ser o mesmo, l v a i d a r ) . Nos dois primeiros casos, no h a v i a qualquer fenmeno de ocultao: as designaes d i z i a m o que t i n h a m a d i z e r , e r a m p u r o s nomes. M a s , nos trs ltimos, j no assim: trata-se de mantos bem pouco difanos que r e c o b r e m r e a l i d a des eventualmente chocantes. Aps a 2 . G u e r r a M u n d i a l , os colonizadores cinicamente descobriram que u m a imensa parcela deste m u n d o , que d o m i n a v a m (e, independncias p a r t e , c o n t i n u a r a m a d o m i n a r ) , v i v i a no a n a l fabetismo, n a fome, n a doena, n a carncia de t u d o , no que ento se veio a c h a m a r , e hoje j no se u s a , o subdesenvolvimento. H o u v e ento q u e m falasse dos danados d a Terra ou das Naes Proletrias, mas, pudicamente e talvez p o r inspirao histrica no 3. E s tado (seria u m a maneira afinal de dizer aos deserdados de hoje: Ns, os burgueses, tambm partimos de longe e conquistmos p o der e fortuna?), algum se ter l e m b r a d o , a pretexto de j haver dois outros mundos, esses desenvolvidos o capitalista e socialista , de c h a m a r a tais pases o 3." M u n d o . Designao n e u t r a , assptica, que ocultava, de facto, os crimes e a espoliao de que n i n gum estava p a r a se envergonhar e muitos estavam, e esto, p a r a tranquilamente prosseguir. Anos mais t a r d e , com o alongamento da v i d a , a evoluo dos costumes e a crescente desagregao da instituio f a m i l i a r t r a d i c i o n a l , foi-se evidenciando, nas sociedades ocidentais, o d r a m a social daqueles que, at ento, a i n d a detinham u m a certa a u r a de sabedor i a e se m a n t i n h a m , melhor ou p i o r , acolhidos pelos descendentes mais jovens, em casas com dimenses suficientes p a r a no a t r a p a l h a r e m demasiado, a j u d a n d o a c r i a r os netos e, quantas vezes, substituindo as c r i a d a s , profisso em declnio p o r todo o l a d o . Velhos c a d a vez mais velhos (logo, mais inteis e mais exigentes de cuidados), separaes cada vez mais frequentes, casas cada vez mais pequenas (lgica da valorizao mxima dos terrenos e do maior lucro i m o b i lirio): deixou de h a v e r lugar, m o r a l e m a t e r i a l , p a r a aqueles a quem simplesmente se c h a m a v a , com alguma t e r n u r a a i n d a , os velhos hoje j quase s usado como sinnimo de os pais. P o i sg 8 s 8 8

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no foi a nova situao dos velhos que se considerou i n d i g n a , mas o nome que se lhes d a v a . P o u c o se fez p a r a resolver o p r o b l e m a mas, em compensao, procurou-se restituir-lhes a dignidade p e r d i d a passando-se a design-los p o r a terceira idade. E nem as a t e r r a d o ras imagens televisivas de u m ou outro lar da 3 . idade chegam p a r a alterar a paz de conscincia dos que, u m - d i a , a f e r r o l h a r a m a sua vergonha com u m a p a l a v r a .s

E n f i m , a 3. Revoluo I n d u s t r i a l , exemplo de como a acelerao dos conhecimentos, das tcnicas, arrasta consigo a prpria acelerao das p a l a v r a s . De facto, s muito posteriormente s l . e 2 . revolues industriais (a d a mquina a v a p o r e a da electricidade/petrleo) elas f o r a m assim chamadas. O que compreensvel, pois trata-se de processos longos, sem data identificadora, de cujas implicaes econmicas e sociais s muito mais tarde possvel a p e r cebermo-nos globalmente. Foi-se implicado p o r elas, mas nunca for a m anunciadas. P o i s esta, a t e r c e i r a , que se diz estar a comear e cujo comboio q u a l q u e r poltico portugus p r o c l a m a que no poderemos perder! j est baptizada e diariamente e x p l i c a d a , comentada, entusiasticamente exaltada.9 a a

A c h o que vale a pena interrogarmo-nos u m pouco. A l . R e v o l u o I n d u s t r i a l , a r r a n q u e do capitalismo de produo e cadinho da sociedade que hoje conhecemos, teve os seus mrtires e as suas misrias: o i n f e r n a l trabalho nas minas de carvo e de f e r r o , o trabalho i n f a n t i l , o sweating system, os acidentes e doenas profissionais, a total ausncia de proteco social e de direitos elementares, os dias de 16 horas (6 quando no 7 dias p o r semana, sem frias) e o que tudo isto significa de mortes e, sobretudo, de ausncia de v i d a . B a s ta ler o romance social ingls do sculo passado ou as descries de Villerm, no necessrio r e c o r r e r a obras especializadas. F o i de tudo isso que nasceram as prsperas sociedades burguesas do princpio deste sculo, a to frvola e divertida Belle Epoque de que ainda hoje se f a l a .s

E no esqueamos tambm os milhes de mrtires da a c u m u l a o n a Unio Sovitica, que o paralelo oriental concentrado no tempo (por isso, p o r ser mais perto de ns e p o r piores razes i m pressiona mais certos espritos) da revoluo i n d u s t r i a l europeia: os

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trabalhos forados, a razzia nos campos, as grandes fomes dos anos 30. Quanto 2.~ Revoluo I n d u s t r i a l , recorde-se apenas a desqualificao do t r a b a l h o , a cadeia de montagem (reveja-se os Tempos Modernos), as tragdias da urbanizao descontrolada, as grandes crises com milhes de desempregados (que s a 2 . G u e r r a conseguiu ultrapassar, at crise seguinte, a que atravessamos), enfim o desenvolvimento do subdesenvolvimento, ou seja, a explorao desenfreada dos recursos e riquezas d o . . . 3. M u n d o . P e r g u n t o , e n to, j que se sabe tanto sobre a Revoluo a n u n c i a d a , que a 3 . , quem vo ser os mrtires desta? Ou seja, onde est o seu lado escond i d o , de que ningum fala?5 B 5

No tenho resposta. M a s ponho-me a p e n s a r , u m pouco ao c o r r e r da p e n a . N a sociedade f e u d a l , o p o d e r era dos que so, isto , dos que, p o r nascimento e condio, t i n h a m u m nome, e r a m senhores. M a s essa sociedade, em que as b a r r e i r a s eram de estatuto, p r o d u z i u dentro de si prpria os que tm, e m b o r a no sejam. Nisso f u n d a r a m estes a legitimidade do seu poder n a sociedade c a p i talista i n d u s t r i a l : podem os que tm (meios de produo, d i n h e i ro). E , nos seus primeiros tempos, eles ainda quiseram u m suplemento da legitimidade antiga, e fizeram-se bares, viscondes, m a r queses, e m b o r a j no fossem senhores de n a d a , a no ser das fbricas, dos negcios e do d i n h e i r o . H o j e j no ligam a isso. Passadas duas revolues i n d u s t r i a i s , a estamos a i n d a , e constatamos que o tempo dos que no tm (os proletrios, os assalariados, em geral), o tempo de abalarem o m u n d o , parece ter passado, do modo que u m d i a o s o n h a r a m . A 3 . Revoluo I n d u s t r i a l , a t a l , passa-se (como a a n t e r i o r , alis) dentro do capitalismo. Aparentemente, estar a haver u m a deslocao de poder p a r a os que sabem, ou seja, os detentores dos conhecimentos mais avanados, que so apenas uma parte dos que tm. A s b a r r e i r a s , at a q u i econmicas, passaro, sem deixar de o ser, a ser sobretudo tcnico-cicntficas. Ficaro de fora as grandes massas que j u l g a m ter cada vez mais informao, mas cada vez tm menos acesso informao que d poder. Que p o der dar ao cidado c o m u m a capacidade de consultar, atravs do seu televisor, a lista telefnica ou os cmbios do d i a , face ao da m u l tinacional que d o m i n a os segredos d a manipulao gentica? O tota3

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litarismo tcnico-cientfico espreita, no tenhamos dvidas. No disse R e n a n u m d i a : A grande o b r a cumprir-se- pela cincia, no pel a democracia? Os mrtires desta revoluo j no sero gente esfarrapada e f a m i n t a . A s misrias desta revoluo j no sero sobretudo materiais. E s t o u a e x c l u i r , c l a r o , a hiptese, que no pouco plausvel, de serem os esfomeados do t a l 3. M u n d o os futuros coveiros do a r r o gante sistema que desponta. E b e m possvel. M a s dentro do sistema, nos pases do capitalismo tecnolgico e seus devotos satlites, a lgica impe a concluso de que sero d a o r d e m do esprito, do pensamento, dos sentimentos, os d r a m a s do f u t u r o : os que pensam, os que sentem, os que o l h a m sua v o l t a , sero os oprimidos? O sistema morrer u m d i a s mos dos que querem tomar o saber em suas mos, afinal os mesmos de sempre, mas portadores de outra r e v o l u o? Produzir o excesso quantitativo de informao inofensiva uma espcie de salto qualitativo (no se diz que 9 0 % da informao em que assenta o p o d e r de u m a C I A provm de fontes pblicas, a que qualquer pode ter acesso?) e da vir a fora dos desinformados da T e r r a ? T u d o isto ser talvez u m enorme disparate. M a s julgo que este tipo de reflexo aponta u m caminho que pode ser fecundo.9

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27 de Outubro Gosto de escrever. Acho que teria dado u m bom jornalista, mas no calhou. No fim de contas, talvez s tivesse de comum com u m jornalista, bom ou m a u , o desejo secreto de u m dia escrever u m romance. Mas viciei-me no artigo curto e no comentrio apressado, que no pedem demasiada reflexo, que se despacham no tempo de u m a sinfonia, e sempre me faltou imaginao p a r a desencantar u m a boa histria, com princpio, meio e fim, ou ento p a r a laboriosamente construir u m texto denso, sem princpio, nem meio, nem fim, em que a crtica mais exigente pudesse descobrir a engenhosa trama de u m romance moderno de difcil mas gratificante leitura. Pois bem, a apetecida histria, o material que qualquer escritor leva anos e anos (penso eu) a recolher e classificar, veio-me u m belo dia parar s mos. Talvez te sirva p a r a alguma coisa, disse-me o meu amigo Jos Filipe Capito, J P par a os mais ntimos, ao passar-me alguns embrulhos de notas em que, nas horas vagas, foi registando ao longo da vida observaes e memrias, e ao acaso de vrias mudanas de casa se acabaram por juntar n u m caixote de carto, desses de qualquer electrodomstico que j deve h sculos ter dado a alma ao criador. Nem ele prprio suspeitaria que estavam ali preciosas linhas, mal alinhavadas certo, onde teria dificuldade em se reconhecer quinze ou vinte anos mais tarde, mas isso s no sucede, claro, a quem no passou por muitas: poucos

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tm a coragem, ou a insensatez, de enfrentar o papel, e j tantos se arrependem de ter enfrentado o fotgrafo... A me v i eu, pois, com esses papis cheios de gatafunhos, alguns quase ilegveis, outros de u m a prosa caligrafada com o lazer de infindveis horas no caf, mistura com bonecos e ornamentos margem, que o vejo a rabiscar enquanto afinava as ideias e as frases (as rasuras contam-se pelos dedos) pensando talvez que ele prprio, n a idade madura, as folgas a crescer, se dedicaria ao paciente exerccio de dar forma definitiva a esses textos, e a junt-los n u m caderninho, p a r a dar a ler aos amigos e deixar aos netos. No sabia ento que u m a carreira se faz preenchendo cada vez mais o tempo e a cabea com coisas do trabalho e cada vez menos com meditaes sobre a vida nossa e dos outros, no sabia sequer que estava a comear u m a carreira, a seu modo, como tantos mais. por isso que as histrias de carreiras, sendo parecidas, comeam todas por ser diferentes: livros desses, s vale a pena ler os primeiros captulos, at ao momento em que eles sabem o que querem. O facto que, ansiosamente lida de u m jacto, hibernou a papelada vrios anos no meu escritrio, no lhe tendo ento descortinado utilidade que no fosse a de dar algumas piadas ao J P de vez em quando, o que at no lhe desagradava, e a prova que, u m a vez por outra, me ia entregando, como u m a espcie de folhetim, a sua produo mais recente. J no inocente, esta. Dei nela por muitos recados e por u m maior cuidado em justificar-se (perante mim?) ou em furtar-se a interioridades excessivas. Talvez fosse apenas a tal maturidade a instalar-se, quando nos vem a vontade de dar consistncia ao nosso prprio personagem, ou ao personagem que julgamos ser p a r a os outros, indo disso buscar sinais de surpreendente coerncia a fragmentos de memria e procurando no deixar escapar frases ou inconfidncias que possam esfumar o trao. Por que me terei decidido agora a experimentar a mo r a o sempre adiado romance, sem pressas e sem plano, ao bor de imprevisveis cios ou disposies? Talvez porque pendor moralista, que julgava no ter, me faa ver, cada pasaum vez

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mais, no percurso do meu amigo, a histria exemplar de u m a gerao triunfante. Talvez por j lhe pressentir o desfecho e, viciado leitor de policiais, agora do outro lado da histria, no me querer deixar antecipar por ele. Ou porque, rodeado de crise por todos os lados, a aventura da fico seja a escapatria que me resta, como a outros, mais empreendedores, a fuga ao fisco ou o contrabando. Claro que ao seleccionar, e juntar minha maneira, aqueles materiais, e bocados de conversas, e episdios que recordo, ao comentar, ao introduzir nos textos do meu amigo passagens inteiras que so minhas, ao polir-lhe frases, ao reforar-lhe ou atenuar-lhe ideias, no o personagem J P que estou a construir, o tal que ele desejaria representar, mas sabe Deus se outro no fim de contas bem mais prximo do que J P foi e , isto se no fosse u m rematado disparate pensar-se ou dizerse que algum alguma vez foi ou alguma coisa. Comecemos ento. Pelo princpio, como prprio dos amadores. E dos clssicos, no? Dos mais verdes anos de J F no me chegam, naturalmente, notas pessoais. Mas deles nos fala u m texto recente, que ter escrito a propsito de declaraes de u m poltico em voga: Poucos se podem gabar do dia exacto em que comearam a interessar-se por poltica. Poucos tero tido, como Descartes ou Rousseau, sbitas iluminaes a revelar-lhes a matemtica do mundo, a trazer-lhes ideias suficientes para escrever centenas de livros ou a acordar-lhes a conscincia para as grandes questes da vida colectiva. Acho que o comum dos mortais descobre a poltica como descobre o amor: aos poucos, sem calendrio definido, ao sabor de acasos e de encontros, de imperceptveis vibraes que raro deixarem data. S muito mais tarde, por curiosidade tpica da meia-idade, ou por necessidade de mandar u m a biografia p a r a os jornais, se vem a reconstituir, melhor ou pior, esse fio quase sempre nebuloso. ento que, por vezes, a tentao do 'dia luminoso' surge como a v i a mais fcil p a r a explicar o que no tem explicao. E certas datas parece terem sido inventadas de propsito p a r a esse fim...

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Pela minha parte, no sei quando foi. 0 que hoje a minha mais longnqua recordao poltica, no me deixou n a altura qualquer marca. Ia pelos catorze anos quando chegou a Pao de Arcos, onde ento vivia, u m a leva de midos loirinhos. Picaram alojados n u m desses muitos fortes que salpicam a Costa de Cascais, e devem ter sido ali postos noutros tempos para impor algum respeito entrada no Tejo de esquadras inimigas que, de resto, nunca pediram licena p a r a o fazer. V i m a saber, pois no se falava noutra coisa l em casa e pela v i zinhana, que eram uns 'pobres hungarozinhos fugidos ao terror comunista'. Mas estava a comear o ano lectivo, e os meus alvoroos de adolescente limitavam-se excitao anualmente repetida dos reencontros no liceu depois de frias e das caras novas que iriam aparecer n a turma. 0 meu pai, n a altura major e colocado fora de Lisboa, veio passar u m fim-de-semana a casa, e lembro-me de o ter ouvido dizer: 'Estes j esto safos, vo fazer deles gente como deve ser, o pior dos que l ficaram.' E r a u m desses dias, alis frequentes, em que o meu pai vinha insuportvel, e talvez por isso pensei que se ele era o modelo da 'gente como deve ser', o pior era com certeza dos filhos daqueles hungarozinhos. Foi nesse liceu de Belm, de que fala J P , que o conheci puto de cales curtinhos, j eu ia no calo de golf, coisa de que poucos ainda se lembraro. Franzino e recm-sado de u m a maleita de pulmes, dessas que hoje se curam num abrir e fechar de olhos com comprimidos e lhe valera ento u m ano de repouso (metade dele aboletado em casa de uns tios em Benfica, pois o ar do mar...) e a frequncia assdua de tudo o que era pinhal volta de Lisboa, estava proibido de correrias e de pr o p n u m a bola, zelosamente vigiado por contnuos untados pelos pais, conhecidos dos meus, a quem devo t-lo descoberto no meio daquela miudagem, pois me pediram que o protegesse das violncias dos mais velhos, gente da minha idade. 0 rapaz era esperto e bom aluno, era essa a sua fora e usava-a passando aos colegas aflitos respostas nos pontos (a que hoje chamam testes), e por isso nunca ter sido afinal muito molestado por ningum. Escapou mesmo, com toda a naturali-

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dade, humilhante prova de uma amostra, dessas que se faziam em cima da mesa de pingue-pongue, o paciente agarrado de mos e ps lembrando as gravuras dos Tvoras, com a malta histrica volta e o contnuo fazendo-se ausente, mas u m ou outro, como quem no quer a coisa, no se contendo e deitando o rabo do olho.

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28 de Outubro Est n a m o d a olhar M a r x com desdm: n a d a se c u m p r i u do que p r e v i r a , e os que t r i u n f a r a m em seu nome a c a b a r a m no poder de u m a b u r o c r a c i a sobre os trabalhadores, n u m sistema p o l i c i a l , n u m a economia a b s u r d a e industrialmente atrasada. Pode olhar-se a coisa de outro modo. Se no considerarmos o m a r xismo como u m a cincia exacta (o que sempre recusei), mas como u m conjunto de teses no domnio da histria, da economia, da sociologia e d a poltica, ento situamo-nos no campo das cincias sociais ou humanas, as tais em que o observador parte interventora. V e j a mos mais de perto u m aspecto dos que radicalmente diferenciam cincias exactas e humanas: a previso. N a s p r i m e i r a s , o que se p r e v, com base em condies precisas conhecidas e eventualmente r e petveis, acontece t a l como previsto. Podemos t i r a r disso p a r t i d o , ou podemos tomar medidas defensivas (se o fenmeno anunciado f o r , p o r exemplo, u m a catstrofe), mas no o podemos evitar, desde que no nos seja dado i n t e r v i r a tempo nas tais condies. No posso combater as leis da gravidade, quando muito posso evitar que u m corpo caia. M a s nas cincias h u m a n a s , desde que u m a previso conhecida, e tanto mais quanto mais plausvel, os agentes sociais pem-se em movimento no sentido de a c o n t r a r i a r ou de a c u m p r i r , segundo os interesses em causa. Se so os primeiros os mais poderosos, pode s u ceder que os fenmenos sociais previstos se no verifiquem, justamente porque a previso estava certa ou seja, p o r q u e se a c r e d i tou, dados os seus fundamentos, que estava. No ser algo semelhante o que sucedeu nos pases de capitalismo avanado, a onde

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M a r x a n u n c i a r a que se v i r i a a d a r o afrontamento decisivo entre o capital e o t r a b a l h o ? E , a i n d a assim, no esteve o capitalismo seriamente ameaado durante as dcadas de 20 e 30, acabando p o r ser salvo em simultneo p o r u m a guerra e p o r u m a inverso terica n a prpria lgica capitalista (as polticas do tipo keynesiano, que p u n h a m o acento n a p r o c u r a , d i n a m i z a d a pelos governos, como motor d a economia)? M a r x analisou, julgo que correctamente, o capitalismo de oferta do seu tempo, o capitalismo modo de produo. E m termos econmicos, alis, as suas previses d a concentrao do c a p i t a l , da crescente componente tcnico-cientfica no p r o d u t o , das c r i ses cclicas do sistema, e outras mais, verificaram-se plenamente, como continua basicamente a ser vlida, a meu v e r , a sua teoria da explorao. O que o capitalismo conseguiu, isso s i m , f o i a desmobilizao poltica decorrente dessa mesma explorao. Apenas u m exemplo: o capitalismo no conseguiu eliminar o desemprego (existem hoje n a E u r o p a mais desempregados do que nos piores dias dos anos 30), conseguiu desmobiliz-lo e isso, digam o que disserem os neoliberais, devido s polticas de segurana social contra as quais se batem os defensores do liberalismo mais r a d i c a l . M a r x no ter t i do em conta, pela sua p a r t e , outro fenmeno desmobilizador: nos perodos de p r o s p e r i d a d e , maior a capacidade de luta dos t r a b a lhadores, mas no so essas ocasies revolucionrias; nos perodos de depresso, cresce o desemprego e, quando o sistema p o d e r i a e n contrar-se b e i r a da exploso revolucionria, naturalmente mais b a i x a a propenso r e i v i n d i c a t i v a e de mobilizao poltica. E n f i m , o sistema pde, jogando com o seu prprio poder econmico, c o n t r a r i a r as previses do grande afrontamento, at chegar ao momento em que comeou a b a i x a r , em todos os pases industrializados, o prprio nmero de trabalhadores industriais. E a q u i que voltamos a encontrar a interrogao f i n a l da nota anterior: u m a mais sofisticada anlise de classes adequada evoluo que se processa no dar pistas quanto ao futuro? Devemos c a i r no pessimismo de pensar que s vale a pena pensar as sociedades e as suas desordens, quando se tem poder p a r a i m p o r as solues que da podem decorrer? N e n h u m dos filsofos do sculo X V I I I previu, em r i g o r , a Revoluo: eles limitaram-se a enunciar princpios d a Razo aplicados ao o r d e namento das sociedades.

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M a i s u m a breve n o t a : o facto de se ter forado a revoluo anticapitalista em pases que de n e n h u m modo c o r r e s p o n d i a m s condies das previses de M a r x , e de isso ter conduzido a u m sistema obviamente distinto da sociedade sem classes que M a r x a n u n c i o u , sem muito nisso se deter, no ser u m a c o n t r a - p r o v a de que as suas previses estariam certas? F i n a l m e n t e , a lgica actual de evoluo desses pases no os aproximar b e m mais do sistema capitalista m u n d i a l , espcie de retorno ou convergncia que reforaria essa h i ptese, ou seja, a de que a sada marxista do sistema no era aquela?

13 de Outubro P o r teimar em discorrer sem peias e me r e c u sar militncia c m organizaes, posso i n c o r r e r n a acusao de m i litar afinal no mais r a d i c a l dos individualismos afirmando-me de esquerda. Diro que tenho a obrigao de saber (se que o no disse eu prprio vrias vezes) que no se transforma u m a sociedade atravs de aces i n d i v i d u a i s , sequer da sua soma. Que se todos adoptassem t a l s o b r a n c e r i a , n u n c a mais h a v e r i a qualquer transformao: individualismo iguala conservadorismo (igualdade com que, desde logo, estou de acordo). Que posso argumentar? E m p r i m e i r o lugar que pretender manter alerta o esprito crtico no pode ser identificado com i n d i v i d u a l i s m o . Esse no s o nico modo de estar possvel a u m intelectual, mas -o (ou devia s-lo) a qualquer militante n u m a organizao que no seja u m mero r e b a n h o , ou igreja. U m p a r t i d o de militantes obedientes e a-crticos (sej a m eles os chamados intelectuais orgnicos), mentalmente m i l i t a r i z a d o , u m a organizao essencialmente conservadora, sejam quais forem os objectivos e os discursos. P i o r e s , se assim se pode d i zer, s os despudorados partidos de clientelas, onde, a s i m , i n d i v i dualismo e conservadorismo do-se as mos, cada u m batendo-se pelos seus objectivos prprios (ser m i n i s t r o , ser a d m i n i s t r a d o r , s i m plesmente ter influncia, p o d e r , privilgios, dinheiro), de colectivo vendo-se apenas u m acotovelamento histrico p a r a tomar as melhores posies. P e l a m i n h a p a r t e , n a d a disso me diz n a d a . M a s no porque seja avesso, p o r princpio, a organizaes. Alis, s u m libertarismo r a d i c a l e, finalmente, ftil se no a b -

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surdo, recusa totalmente a organizao. U m a sociedade ideal, f u n dada n a permanente conflitualidade de pequenos (ou no to pequenos) grupos, em que constantemente se procurasse ultrapassar a d i a lctica conflito/solidariedade, seria no s u m a sociedade estruturada (logo, organizadora) mas sobretudo a nica talvez em que seria possvel compatibilizar organizao e esprito crtico. P o r outro l a d o , se certo que a organizao colectiva (no p l u r a l , e no q u a l q u e r ou quaisquer) fundamental como agente de transformao social, a aco e a p a l a v r a individuais podem ser, apesar de t u d o , pequenas ou grandes pedras que ajudaro a p a v i mentar esse c a m i n h o . U m intelectual, p o r ser u m actor i n d i v i d u a l , no pode, s por isso, ser catalogado de i n v i d u a l i s t a . Dir-se- que cmodo adoptar essa posio. Respondo que nunca cmodo p a r e cer que se est de f o r a , estando d e n t r o , parecer que se julga os o u tros, quando se est julgando a si prprio, i r apenas at onde se pode i r , parecendo no querer i r mais longe, n u m a p a l a v r a , assumir-se como se (como se foi sendo socialmente produzido e condicionado) e no c o n s t r u i r , p o r clculo ou interesse, u m a imagem do que se no . E n f i m , u m a ltima observao: se s os militantes, to escassos no f i m de contas, pudessem estar isentos do apodo de i n d i v i d u a l i s t a , ento no teria sentido sequer pensar em termos de qualquer socialismo. H a q u i que i n t r o d u z i r a noo de participao, muito mais alargada do que a de militncia. A o falar disso, ocorre-me u m a objeco que c m tempos me f o i colocada p o r u m economista hngaro, a propsito da anlise do socialismo de mercado que fiz no livro Sistemas Econmicos e Participao Social. D i z i a ele, mais ou menos: T u d o o que V . diz est muito certo, e consistente, desde que se aceite o postulado de que o cidado comum deseja participar. Mas isso apenas u m postulado e, como t a l , discutvel e no pode ser p r o v a d o . E se no fosse assim? C l a r o que no posso p r o v a r isso, nem o contrrio. M a s se houve coisa que sugeriu o perodo de 74-75 foi que o postulado ter algum fundamento: nesses dias, em que e r a grande a margem p a r a aces colectivas (por ser dbil o P o d e r poltico, ou vice-versa), foi patente o desejo de p a r t i c i p a r n a resoluo dos prprios problemas. F a l t o u , porm, a apreenso d a t a l dialctica conflitualidade/solidariedade, que poder p e r m i t i r integrar a nveis mais elevados essas solues

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dos prprios problemas. O u seja: o contexto (habitual) de concentrao do P o d e r que tende a i m p e d i r mesmo o simples desejo de p a r t i c i p a r . T r a n s f o r m a r a sociedade ser, antes de mais, l i b e r t a r esse desejo. M a s , mesmo nesta sociedade, surpreendente, apesar de tudo, a capacidade de iniciativa e a vontade de participao. U m i n telectual de esquerda necessariamente p o r t a d o r desse desejo de participao. De participao crtica como a sua prpria.

26 de Novembro Sempre me ficou n a memria a frase de O r son Welles no filme O Terceiro Homem (frase dele, pois no consta da novela de G r a h a m Greene) sobre a Sua: Um pas que u m modelo de o r d e m , de organizao, de seriedade, mas o que deu ao mundo? O relgio de cuco! A o meter hoje o cachecol na manga da gabardina, ocorreu-me algo de semelhante: O que a p r e n d i eu em ano e meio n a superlaboriosa e superorganizada A l e m a n h a , j ento (em 59-60) a caminho d a grande prosperidade? U m a m a n e i r a excelente de no p e r d e r o cachecol!

1 de Dezembro Est em pleno a mar n e o l i b e r a l , v i n d a , como quase t u d o , de outras paragens. Curiosamente, agora que a moda olhar p a r a os pases anglo-saxnicos, de novo francesa, neste caso, a inspirao. Registo, ao acaso, u m texto de A . J . S a r a i v a sobre o l i vro de Cndida V e n t u r a , o l i v r o de Pacheco P e r e i r a e E s p a d a (de que s l i a elucidativa apresentao do F a f e , c u j a longa srie de a r t i gos no DN foi divulgando tudo o que em Frana se i a p u b l i c a n d o e discutindo sobre estas questes), a v i n d a recente de R o s a n v a l l o n a L i s b o a , u m novo artigo de A . J . S a r a i v a sobre Democracia e L i b e ralismo, u m artigo de G u i l h e r m e de O l i v e i r a M a r t i n s , em que aspir a a u m liberalismo de esquerda, enfim, h dias, a formalizao do C l u b e da E s q u e r d a L i b e r a l . E interessante que (quase) toda esta gente se preocupe s o b r e t u do com a liberdade, em abstracto, e b e m pouco com as liberdades em conflito. Basta r e c o r d a r , p o r exemplo, que liberdade empresarial e l i b e r dade sindical so coisas conflituais, e no por acaso que esta lti-

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m a foi u m a conquista difcil, pois e r a considerado, em nome d a ideia l i b e r a l , que as associaes de trabalhadores l i m i t a v a m a liberdade i n d i v i d u a l (a t a l l i b e r d a d e em abstracto). E m Frana, foi preciso quase u m sculo p a r a revogar a famosa L e i L e C h a p e l i e r , do tempo da Revoluo, e p e r m i t i r a criao de sindicatos. Ento em que f i c a mos? P o r q u e no se reconhece muito simplesmente que o liberalismo nasceu intimamente associado filosofia do direito n a t u r a l e, desde L o c k e , o direito considerado bsico e f u n d a d o r d a sociedade civil era o direito de p r o p r i e d a d e ? P o r outras p a l a v r a s , o liberalismo o r i ginal afinal o que hoje se esconde nas prosas l i b e r a i s , sobretudo de gente que vem d a esquerda no e r a u m a teoria da liberdade (ou das liberdades) m a s , no essencial, u m a justificao r a c i o n a l d a liberdade econmica, e foi essa que a burguesia pretendeu i n s t a u r a r , contra as peias do Antigo Regime. Liberalismo igual a r a posa livre n u m galinheiro livre, disse algum h tempos. Est tudo dito. Quando se f a l a , pois, de l i b e r d a d e , como u m objectivo p r i m o r dial e abstracto, n u m sentido marcadamente poltico no o p r o blema da U R S S que est sempre n a mente dos ncoliberais de extraco literria? pretende-se, n a realidade, ocultar a face econmica do liberalismo, que a sua v e r d a d e i r a face: a da l i v r e iniciativa p r i v a d a , n u m a p a l a v r a a do capitalismo nascente. N o plano terico, u m B u r k e e, entre ns, u m Acrsio das Neves, no e r a m partidrios do liberalismo econmico n u m Estado hierrquico, no-democrtico? N a prtica, o liberalismo econmico, como bem conhecido, est tambm longe de implicar o liberalismo poltico. A s s i m foi ao longo do sculo X I X , quando a exploso do capitalismo i n d u s t r i a l convi-, veu com sistemas polticos em que o direito de cidadania se r e s t r i n gia s minorias com rendimentos mnimos comprovados (o chamado regime censitrio). A s s i m c o n t i n u o u nos perodos de maior crescimento de u m a Frana ou de u m a A l e m a n h a , com Napoleo I I I e B i s m a r c k , e logo depois com o Japo. A s s i m volta a ser hoje, quando assistimos ao liberalismo (econmico) r a d i c a l de u m P i n o c h e t , aos exemplos de u m a C o r e i a ou de T a i w a n e, com maior conteno n a t u ralmente, dureza poltica de u m a T h a t c h e r ou de u m R e a g a n , liberais (no plano econmico) como ningum. O que, de facto, p r e o c u p a os liberais no so as liberdades i n d i v i d u a i s , que f o r a m arrancadas

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passo a passo durante quase dois sculos, mas a liberdade de empreender e de fazer f r u t i f i c a r os seus capitais. Isto em termos ideolgicos, c l a r o , pois esses mesmos liberais sempre s o u b e r a m aproveitar da melhor m a n e i r a as incurses do Estado n a rea econmica, de que f o r a m e continuam a ser os primeiros beneficirios. Volto a alguns dos nomes citados no princpio. L i b e r a l i s m o e esq u e r d a : o que tm a ver? como se (ou no se) compatibilizam? R o sanvallon, sem excessivamente se entusiasmar com o neoliberalismo, diz contudo que a esquerda tem de passar de u m a cultura crtica a u m a cultura de governo. Segundo ele, deixou de haver receitas, h que descobrir u m pragmatismo face aos problemas postos sociedade, face a u m a imaginao bloqueada pela simultnea crise do marxismo. C u l t u r a de governo? Pragmatismo? E m resumo: a esquerda tem de ser realista, deixar de se projectar no impossvel, no utpico. Penso o contrrio: sempre, e cada vez mais, u m a cultura crtica que a esquerda tem de desenvolver. G o v e r n a r u m capitalismo em crise no me parece ser a funo essencial de u m a esquerda que, como se sabe, chamada ao poder nas alturas piores, em que tem de se meter ela prpria nas mais fundas gavetas. Guilherme O l i v e i r a M a r t i n s , essa insuportvel mquina de c i t a es, a s p i r a , esse, a u m liberalismo de esquerda. O que ser isso? D i z que aspira ao mercado como desestabilizador, como c r i a d o r de uma dinmica de mudana, algo que obrigue a sociedade a mexer (aqui cita A l a i n M i n e ) . M a s a sociedade mexe, descanse. E quanto mais tudo for m e r c a d o , tudo for negcio, tudo se c o m p r a r e vender, mais lugar h p a r a o liberalismo (o tal) e menos p a r a a esq u e r d a : a que pensa no n a L i b e r d a d e mas nas condies da l i b e r dade, no n a L i b e r d a d e como u m f i m mas nas mltiplas liberdades como meios p a r a que cada u m possa v i v e r , possa a m a r , possa p a r t i c i p a r , possa sair da ignorncia ou talvez da misria possa ser, e. no apenas ter. Estas combinaes astuciosas, como liberalismo de esquerda, fazem-me l e m b r a r os hegelianos de esquerda, ou os gaullistas de esquerda. O r a q u e m se l e m b r a hoje j , f o r a dos meios especializados, do S r . F e u e r b a c h ou do S r . Ren Capitant? No houve tambm, n a sua origem, nazistas e fascistas de esquerda? A expresso nacional-socialismo no , no f i m de contas,

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equivalente a nacionalismo de esquerda? E melhor no b r i n c a r com coisas srias. E perceber que tais astcias so meros alibis de que uns quantos senhores se servem n a sua irresistvel transio... p a r a a d i r e i t a . Veremos o percurso do recm-criado clube.

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198512 de Janeiro E n c o n t r o u m amigo, ex-assistente d a F a c u l d a de de L e t r a s , radiante p o r se ter libertado d a tutela de u m professor a que c h a m a , no mnimo, fascista, e que todo-poderoso n u m D e partamento que v a i povoando de dedicados servos e protegidos; o u o outro amigo, esse profissional dos melhores d a nossa p o b r e rdio, amargurado pela autntica perseguio que lhe foi m o v i d a , esta p o r u m cacique do P S , e que o afastou de u m p r o g r a m a que diariamente me deliciava. E recordo a famosa definio de fascista do P e r e i r a de M o u r a , pouco depois do 25 de A b r i l to r i d i c u l a r i z a d a ento. Acho que ele tinha razo: os pequenos ditadores de repartio, de Faculdade (e se conheo b e m o que se passa em L e t r a s , onde se r e constituram, com outros medocres, os feudos de outros tempos!), de empresa, de famlia so, de facto, exemplo de u m fascismo inter i o r i z a d o . So eles que explicam p o r que aceite u m a d i t a d u r a so os nossos inimigos quotidianos. No estamos em vsperas de qualquer novo fascismo institucional, mas a legio de pequenos d i tadores que nesta democracia p u l u l a m , ditam sentenas, t r i u n f a m e passeiam as suas importantes sades muito inquietante. E q u a n tos deles m a l se podem l e m b r a r daqueles tempos. H o u v e q u a l q u e r coisa que passou desses tempos p a r a os de hoje. Como foi? Mais desconcertante o caso de alguns homens muito estimveis, com quem convivi de perto ou simplesmente encontrei em raras conversas, c u j a imagem de grande a b e r t u r a , de grande generosida-

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de e de notveis capacidades nas respectivas profisses e especialidades. Homens activos, determinados, de m u i t a experincia, de m u i t a vida, com ideias c l a r a s , gostam de ser a d m i r a d o s (venial, se p e c a do ) e... seguidos. Rodeiam-se de colaboradores ou discpulos, que m a l se do conta de que o Mestre aceita tudo menos que o c o n testem, que o no acompanhem, que o no ouam. Dspotas i l u minados, estes? Ser. M a s quantos deles no tero destrudo muito esprito crtico em formao! A d m i r e i os que conheci, mas n u n c a i n tegrei as respectivas cortes: acho mesmo que foi essa a melhor p r o v a de admirao e de estima que lhes p o d i a d a r . S o u dos que preferem os que, perante u m suposto m a n j a r , dizem: Se b o m , no sei. Eu gosto, aos que comandam: P r o v a , que bom. V a i s gostar!

22 de Janeiro Delicioso dilogo n a T V , entre o impagvel Lus P e r e i r a de Sousa e a p s i q u i a t r a Lgia M o n t e i r o , a propsito de fantasias/fantasmas sexuais. A o o u v i r referir o papel dos dolos do cinema, d a cano, etc. (os J u l i o Iglesias & Cia) nas fantasias femininas, reage o entrevistador: Mas isso tem algo de adltero!. R e s posta: No tenho n a d a contra... L P S salta d a cadeira: Mas e n to, e os maridos?!! Concluso lgica da p s i q u i a t r a : Esses que fantasmem com a M a r y l i n Monroe... E s t a questo dos fantasmas sexuais, que antes se cingia s alcovas e aos crculos de fiis d a psicanlise, parece estar a chegar r i balta das coisas pblicas. Fazem-se artigos e inquritos em revistas de grande difuso, e, pelos vistos, tambm j disso se ocupa a televiso. R e d u t o ltimo d a sexualidade (e da intimidade consciente), a sexualidade fantasmada , a meu v e r , se assim se pode d i z e r , a mais livre de todas, o que no quer dizer a mais gratificante. Quantas vezes muitos de ns se tero interrogado, perante indivduos bisonhos e solteircs/onas no sentido t r a d i c i o n a l , sobre como podero viver sem sexo. Poucos casos haver, a r r i s c o : muitos sobrevivem p o r v i a d a actividade sexual fantasmada. P o r no ser totalmente cumprida, ser frustante, mesmo dramtica mas, comandada pela memria e pela imaginao, permite tudo, incluindo u m delirante dilogo com o m u n d o .

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Este p r o b l e m a , assim olhado, no o tenho visto t r a t a d o , j que o tema surge sempre em termos de sexualidade complementar: se se fantasma durante o acto sexual; ou pelo meio dos afazeres q u o tidianos; ou se como suporte d a masturbao, mas sempre supondo que em paralelo com u m a actividade sexual n o r m a l . claro que sim, os i n q u i r i d o s (ou os articulistas, por vezes p s i q u i a t r a s , por eles) contam muito livremente como, com qu, com q u e m , no tom de quem se enriquece com isso, de quem encontra nisso u m a l a r g a mento ou u m a diversificao d u m a sexualidade experimentada. r a r o , no entanto, r e f e r i r os fantasmas sexuais como elemento p o r ventura vital de recusa d a solido (no s sexual) e tambm d a r e a l i zao de desejos que, consciente e assumidamente, no se quer concretizar. E , porque no, tantas vezes, de suporte dessa famosa i n s t i tuio que a famlia, quando ela se t o r n a no mais insuportvel l u gar de solido: quantos no sobrevivem nesse deserto afectivo e sexual custa dos seus fantasmas sexuais? De que v i v e r i a , arrisco de novo, a imprensa e sobretudo o cinema pornogrficos, se no f o r a tudo isto?

25 de Janeiro P e l o meio d a indigncia temtica e potica da msica rock portuguesa, ficaram-me u m d i a no ouvido algumas p a lavras marteladas pelos J fumega: A ponte u m a passagem/par a a outra margem. E perguntei-me: que ponte? que margem? E bem posssvel que, muito prosaicamente, aqueles rapazes do P o r t o se estejam a r e f e r i r ponte muito r e a l sobre o D o u r o , ao sair dali, e que a margem seja tudo o que est p a r a l, L i s b o a ? , como p a r a os lisboetas ser P a r i s , L o n d r e s , o mundo as cidades m i t i f i cadas onde ns seramos outros. M a r g e m - m i t o , margem-aventura, margem-outro? Mas ocorrem-me outras coisas. Lembro-me do L a f c a d i o do G i d e (As Caves do Vaticano), do R i p l e y da H i g h s m i t h , do Kees P o p i n g a do Simenon (O Homem Que Via os Comboios Passar). O crime g r a tuito, o ltimo divertimento ou a ltima fuga margem d e f i n i t i v a , irreversvel, que corta todas as pontes, a i n d a quando s o prprio o saiba. Lembro-me tambm dos vrios enfants terribles, os do C o c teau, mas tambm as Z a z i e , Sally M a r a ou L o l i t a . M a r g e m i n f a n t i l ,

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ou adolescente, temporria, dos que acabaro p o r chegar a bom porto n a idade adulta como n a Infncia de Um Chefe, do S a r tre. A menos que algum no tenha encontrado a ponte... L e m b r o -me, tambm, de u m a historieta que h tempos escrevi pressa n u m papel de ocasio. Todos os habitantes de u m a pequena comunidade, com u m a nica excepo, so fervorosos amantes da l i m p e z a , no tolerando u m p a p e l , u m a b e a t a , quase u m gro de p nas ruas da povoao. A excepo u m cidado ovelha ranhosa, que no se p r e o c u p a com isso, no se coibindo de deitar pontas de cigarro, ou bem p i o r , p a r a os passeios e p a r a os j a r d i n s . Os restantes, tudo gente muito l i b e r a l , aceitam sem problemas que ele viva no meio da sujidade, desde que nos limites da sua habitao: o seu espao p r i v a d o , tem pois o d i reito de a fazer o que entenda. M a s j no toleram que ele viole, nas reas pblicas, o direito limpeza da m a i o r i a . No foi difcil a f i n a l encontrar u m a boa soluo. A simples existncia desse cidado anormal i m p u n h a a necessidade, de outro modo dispensvel, de haver algum que se ocupe da limpeza das r u a s . Ento, bastou que a Cmara contratasse o homem como v a r r e d o r de ruas. Desta f o r m a , cada vez que ele, como cidado, deita u m papel p a r a o cho, ele prprio, como v a r r e d o r , l i m p a a r u a que acabou de s u j a r . O homem , assim, livre de sujar a v i a pblica (com o que democraticamente se respeita os direitos das minorias), sem que isso p r e j u d i q u e o d i reito d a m a i o r i a a v-la sempre i m a c u l a d a . A m a i o r i a no s se v a n gloria d a sua capacidade democrtica p a r a integrar u m m a r g i n a l , como tem a l i , sempre vista de todos, u m excelente exemplo p a r a os filhos de como no devem ser se a m b i c i o n a m ser mais do que varredores de r u a s . P o r f i m , nesta anrquica associao de ideias, lembro-me da h o je to falada ponte que P o r t u g a l seria entre a E u r o p a e a margem a f r i c a n a , dado, como se d i z , o p r o f u n d o conhecimento que tm os portugueses das realidades africanas. A c h o a maior graa a isto. Que portugueses conhecem alguma coisa dessas tais realidades? Os que por l v i v e r a m anos e anos, e u m d i a , como se sabe, retornaram. No me consta que seja entre estes que se tem r e c r u t a d o , ou vir a r e c r u t a r , os cooperantes e os tcnicos que p a r a l se tem m a n dado. Destes, alguns talvez j antes se tivessem deslocado a essas

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terras, mas p o r perodos c u r t o s , insuficientes p a r a a d q u i r i r o t a l profundo conhecimento. No vejo, pois, que, p a r a alm da lngua (esse, argumento de algum peso), os portugueses concretos, no os mticos, que vo queles pases prestar assistncia tcnica, ou mesmo simplesmente fazer negcios, sejam melhores conhecedores da realidade africana do que franceses, alemes, italianos ou b r a s i l e i ros, estes ltimos p o r certo b e m mais -vontade nessas paragens do que qualquer j o v e m professor ou engenheiro portugus que l cai pela p r i m e i r a vez. De resto, acresce que a experincia dos que l v i veram, a i n d a que fosse u t i l i z a d a , coisa que se perde n u m a gerao. O u ser que se h e r d a de pais p a r a filhos? E s t a u m a ponte que s os nossos polticos vem: os europeus j l esto, com o dinheiro que tm, que chega e s o b r a p a r a no p r e c i sarem dos nossos profundos conhecimentos...

27 de Janeiro A pea de G o r k i Os Veraneantes (dada h dias n a televiso) trouxe-me de novo superfcie u m a questo que h muito me p e r t u r b a , e que julgo ser em b o a parte responsvel p o r uma certa imagem de d u r e z a , ou intolerncia, que alguns me a t r i buem. E u m facto que sempre tive, e continuo a t e r , u m a enorme d i ficuldade em dissociar a p a l a v r a (ou a obra, em geral) d a v i d a e do comportamento do seu autor de todos aqueles que me enviam mensagens escritas, faladas, filmadas, pintadas. P r e s s i n t o , m e l h o r , sei que isso me t o r n a muitas vezes injusto, que h obras indiscutivelmente b r i l h a n t e s , estimulantes, belas, provenientes de autores p o r quem no tenho grande (se que tenho alguma) considerao em termos humanos, no plano tico, ou poltico, p o r exemplo. Alis, que no u m a atitude razovel, basta p a r a o p r o v a r constatar que com isso penalizo (com que direito?) os autores actuais face aos a n t i gos, os portugueses face aos estrangeiros, os lisboetas face aos p r o vincianos, os da minha rua face aos dos outros bairros, n u m a p a l a v r a , aqueles sobre quem tenho mais fcil informao face aos desconhecidos (no que respeita sua v i d a pessoal, e social). A i n d a h tempos l i o que diz V i c t o r Segalen, no pssimo portugus do t r a dutor, que deixo intacto, ao prefaciar Noa-Noa, do G a u g u i n : Alguns seres so excepcionais apenas n u m sentido, n u m eixo a c u j a

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volta r o d a [!!], ao que parece, o conjunto das suas foras vivas; no resto (economia domstica, visitas de cortesia, sentimento do dever) podem ser burgueses, podem ser n o r m a i s . S tem que ver com o temperamento, o comportamento fsico [??]: determinado escritor, que esplndido e a r r e b a t a d o , de aparncia c a r n a l [??] pode ser u m magro sacristo; de f o r m a alguma o gnio exclui o exterior digno e decente, u m a v i d a de negcios e pontualidades. Colocado de outro modo, o mesmo p r o b l e m a da contradio entre o homem e a o b r a , ou entre a o b r a e a v i d a . E , tambm, sei que F r a n c i s B a c o n , u m dos pais do esprito cientfico m o d e r n o , e r a u m c o r r u p t o e u m escroque; que Rousseau ps n a r o d a dos abandonados todos os seus filhos recm-nascidos, u m por u m (Os filhos de Rousseau: belo tema p a r a u m grande r o m a n cista lhes traar vidas imaginadas); que o divino Goethe desprezou o jovem K l e i s t , e lhe sabotou a estreia de u m a pea, p o r v e r nele a l gum cujo gnio lhe p o d e r i a fazer s o m b r a ; que L e i b n i z , p o r nsia de d i n h e i r o , vendia falsas genealogias, atestadas pela sua autoridade e prestgio, a famlias de bastardos d a grande n o b r e z a alem, e era pouco escrupuloso n a d i p l o m a c i a e nos negcios (alm de se suspeitar que escondeu os seus contactos com S p i n o z a , p a r a lhe p l a g i a r , depois de m o r t o , u m a o b r a ento indita). Tambm no preciso que Antnio B a r r e t o , n a sua crtica aos Avestruzes, me venha l e m b r a r que se pode ser de esquerda e, ao mesmo tempo, ser vigarista, c a r r e i r i s t a , desonesto, etc. S e i , mas custa-me aceit-lo. Como me custa aceitar u m a atitude como a que transparece desta passagem do L'amant, da D u r a s : Colaboradores, os F e r n a n d e z [amigos d a D u r a s , em P a r i s , no tempo d a ocupao], E e u , dois anos depois d a guerra, membro do P . C F . A equivalncia absoluta. E a mesma coisa, a mesma tristeza, o mesmo pedido de socorro, a mesma d e b i l i dade de julgamento, digamos a mesma superstio, que consiste em crer n a soluo poltica do p r o b l e m a pessoal. A q u i a questo dist i n t a , e situa-se no plano mais vasto dos labirintos da tolerncia: pode ser-se amigo de u m c o l a b o r a d o r , sem de algum modo se colabor a r ? M a s no p o r acaso que esse texto me ocorre, precisamente agora. No consigo l-lo sem u m calafrio: pode assim desculpar-se tudo, com u m a simples frase? N o caso dos autores e das respectivas obras, pergunto-me: posso extasiar-me com a o b r a , e desculpar o

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resto? N a realidade, no posso, isto , no sou capaz. A R e n a t t a , da Cidade das Flores, gostar. diz a R o s a b i a n c a , impressionada com a Electra de R i c a r d o Strauss: No gosto, ele n a z i e no gosto. No posso

28 de Janeiro Vem-me memria, sei l porqu, a histria do groom do Caf M a r t i n h o (os poucos que a i n d a h, hoje chamam-lhes paquetes). H uns vinte e cinco ou t r i n t a anos i a muita vez, aos fins de tarde, ao M a r t i n h o , o da Praa D . Joo da Cmara, j desaparecido, no o d a A r c a d a , templo do culto de Pessoa, hoje to n a moda o culto e o caf. Salo imenso, rectangular, apenas com meia dzia de colunas esguias, muito altas, que a i n d a l esto. Pelo meio das mesas c i r c u l a v a u m a legio de grooms, midos dos seus 12 anos, que mudavam os cinzeiros, f a z i a m recados, t r a z i a m tabaco e os j o r n a i s assim que chegavam (os j o r n a i s da tarde saam pelas 6 h o r a s , nessa poca), chamavam o engraxador. P o r l p a r e i alguns anos. Aos p o u cos, os midos i a m crescendo e desapareciam nem aquela fatiota cheia de botezinhos e o queijinho tpico no toutio (como hoje s quase se v nos alunos do Colgio M i l i t a r ) se d a v a m com rapazes mais espigados. F u i - m e ento dando conta de que u m deles i a f i c a n do sempre. J com b u o , b o r b u l h a s , ar de quase-homem, e l c o n t i nuava ele p a r a u m lado e p a r a o u t r o , no meio d a miudagem. Parece que o estou a ver: dava uns ares ao Jos C u t i l e i r o de ento, com olhos claros, faces ligeiramente chupadas, n a r i z a a t i r a r p a r a a d u n co sem o ser. Impressionava-me v-lo: pressentia que os outros t i n h a m , cada u m deles, a r r a n j a d o o seu empregozito de adolescente e que ele porqu? no o conseguira. Perguntava-me se o i r i a m aguentar a l i eternamente, groom j a d u l t o , ou se simplesmente o despediriam u m belo d i a , quando a sua figura fosse j esteticamente insuportvel. N u n c a cheguei a saber. E n t r e t a n t o o M a r t i n h o fechou. Que ter sido feito dele? P o r onde andar hoje? Quantas perguntas destas f i c a m sem resposta! Que ter sido f e i to, p o r exemplo, daquele soldado que, em 1966, recm-chegado c i dade de C a b i n d a , onde a coisa n a a l t u r a estava f e i a , c h o r a v a p e r didamente, amparado p o r dois colegas mais serenos, entrada do

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nico hotel do stio? Ter escapado? Se escapou, recordar-se- ele desse episdio? E Jacqueline? Estudante estagirio n u m a fbrica prximo de Longwy, n a L o r e n a , eu f o r a convidado p a r a j a n t a r em casa de u m comerciante do R o t a r y l o c a l , c u j a f i l h a estivera a passar frias em P o r t u g a l . Jacqueline, u m a francesinha muito l o i r a , adolescente a m i ga da casa, f i z e r a comigo a viagem de regresso, ao f i m da noite, no carro da famlia, e sara antes de m i m . E ento que a sua jovem a m i ga me i n f o r m a , entre dentes, que a r a p a r i g a tinha u m a doena i n curvel e no d u r a r i a muito tempo. No as tornei a ver. Ter J a c queline m o r r i d o ? Teremos p o r v e n t u r a , caso contrrio, j alguma vez cruzado os nossos caminhos, em qualquer l u g a r , a q u i , em F r a n a? O pouco que sabemos do m u n d o , dos outros, de tudo. Que chega, a i n d a assim, p a r a disso nos fazermos, p a r a sobre isso c o n s t r u i r mos.

31 de JaneiroSempre que a m i n h a f i l h a chega a casa e diz Hoje foi u m dia to b o m ! correram-lhe bem as aulas, ganhou o jogo de basquete, trocou olhares cmplices com u m colega, sei l que mais no consigo evitar l e m b r a r - m e , abusivamente, das ltimas palavras de Um Dia na Vida de Ivan Denissovich, de Solejnistsine (de que ento apenas conhecia esse l i v r o e nada mais: se fosse hoje, voltando ao tema de h dias, t-lo-ia lido da mesma maneira?): No campo de prisioneiros S u k h o v adormeceu completamente satisfeito, feliz. F o r a bafejado p o r vrios golpes de sorte durante aquele d i a : no o h a v i a m posto no x a d r e z ; no t i n h a m enviado a brigada p a r a o C e n t r o ; s u r r i p i a r a u m a tijela de kasha ao almoo; o chefe de b r i g a da f i x a r a bem as raes; [...] c o m p r a r a tabaco. E no cara doente. U m dia sem u m a nuvem carregada, s o m b r i a . Quase u m dia feliz E u m desempregado, que calcorreia por t r a b a l h o , ou se arrasta pelas ruas? E u m empregado, que diariamente repete, a horas certas, os mesmos gestos maquinais e desinteressantes? E u m velho, que frequenta, dias sem f i m , os mesmos cantos da casa ou os mesmos bancos de j a r d i m ? Que pequenos nadas lhes conseguiro fazer um dia feliz? Que sociedade esta, de to baixas expectativas, que a simples pausa de u m a mquina, o tempo de u m a beata, ou u m banco

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livre batido pjelo sol cheguem talvez p a r a t o r n a r feliz u m d i a igual a todos os outros?

5 de Fevereiro J muito perto de M a d r i d , olho d a j a n e l a do comboio e a p r i m e i r a imagem que vejo u m a parede de fbrica, quase encostada l i n h a , e nela pintado em grandes letras b r a n c a s : Ni despido, n i sancin, l a Direccin a l paredn! Estaremos condenados a glosar eternamente o tema detestvel d a brandura dos nossos costumes? D e facto, n e m mesmo nos anos fortes de 1974 e 75 a l guma vez v i operrios r e c l a m a r e m o fuzilamento do patro. Sinais longnquos de u m a guerra c i v i l difcil de sarar? O u qualquer fogo i n terior de que ela tenha sido a expresso limite?

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6 de Fevereiro Dou por mim dezanove anos feitos, a estudar Economia. Por que no Direito, ou Medicina, ou Engenharia? Por que no outra coisa qualquer, ou simplesmente ter procurado u m emprego? Ningum me pediu opinio: no fim do 5. ano, inscreveram-me n u m a alnea que me traava o destino. Imagino, sei l, u m a violenta discusso, ou muitas, sobre o assunto, eu j deitado, batendo-se o meu pai pela nobre carreira das armas e opondo-lhe a minha me o argumento da minha fragilidade fsica, ou o do meu jeito p a r a as matemticas, ou, se a tanto se atreveu, o da persistncia com que, desde muito mido, sempre respondi com os habituais disparates inevitvel pergunta 'o que queres ser, quando fores grande?', mas nunca me saiu esse, e seria at o mais natural. 'Ora alguma razo', parece que a ouo dizer, 'haver p a r a isso', o que ela bem sabia. De u m a coisa estou certo: no foi dela que veio. a ideia da Economia pois, se era isso o que desejava, ter tido a manha de sugerir todas as hipteses menos essa. E assim me coube, se no me engano, u m a profisso achada por compromisso, rarssima vitria materna em tantas e tantas disputas por d c aquela palha, e esta, pelo menos p a r a mim, no o era. Adivinho o meu pai rematando a conversa, como que a mastigar o seu desaire: 'Tivesse o rapaz ido p a r a o colgio militar, outro galo cantaria!'Q

claro que h a v i a outras coisas pelo meio. Desde que me conheo que ouo a m i n h a av, casmurra e cliente assdua da 44

Manuteno, a repetir a graa, olhando de soslaio para o genro, de que 'capito nome de bolacha'. Isso j m a l o irritava. Bem pior seriam, e sero, as constantes piadas de caserna, os sorrisos m a l disfarados que lhe foram acompanhando as promoes: alferes Capito, tenente Capito, os anos difceis de capito Capito, a patente enfim ultrapassando o nome, e por a fora, at onde for possvel (ou as altas patentes acharem a justaposio ainda compatvel com a dignidade militar). O que cairia n a rotina e no esquecimento com algum mais bonacheiro, dar p a r a alimentar geraes de recrutas com u m tipo crispado e certamente grosseiro e insolente como o meu pai. Serei optimista pensando que, ao aceitar ou contrapor 'Economia', ele ter, talvez inconscientemente, querido poupar-me a tais 'humilhaes'? A s da av, as do quartel, e tambm os constantes apartes maternos de que 'famlia de militar no famlia nem nada: ou andam com a casa s costas ou anda u m p a r a cada lado.' F o r a ela que impusera, desde o princpio, a segunda alternativa e, dado o militar que lhe coubera em sorte, calculo as graas que dava a Deus. Mas antevendo em mim, necessariamente, o marido ideal p a r a qualquer jovem casadoira, no desejaria futura nora as penas (e os riscos) de frequentes separaes, ou ento a tal vida de saltimbancos que no d sossego a ningum. Tudo isto so conjecturas, mas o que importa que da, ou de outra forma qualquer, eu v i m parar a Econmicas. Vendo bem as coisas, poderia eu, com quinze anos, ter decidido melhor? Estaria hoje mais satisfeito com o que eu prprio tivesse escolhido ento? Acho que u m a violncia ter que optar por uma profisso com essa idade, e que a sociedade perde, dessa maneira, muitas 'vocaes' que ento ainda no se manifestaram. Mas perguntar o filho do pedreiro se poderia ser outra coisa, e no servente? Resta que, se a escolha fosse minha, ao menos no teria a sensao de ter sido empurrado. Confesso que me interessam bem pouco as balelas que ando a aprender. No vejo o que estas altas matemticas e estas teorias todas tm que ver com a vida real das pessoas, e estou para ver o que irei fazer quando isto acabar. Entretanto, como

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nasci aplicado e avesso a fazer m figura, vou-me safando menos mal e u m dia a minha me dir s amigas que eu fiz u m curso brilhante. Para ela, estar tudo bem. Que o rapaz no gostava de fazer m figura, verdade, mas creio que no foi coisa que lhe viesse de nascena, era antes a expresso de u m a timidez quase doentia, de u m a insegurana que lhe v i n h a em boa parte do confronto, a que assistia confuso, entre a desmedida convico materna de que estav a ali u m gnio, que havia que cultivar e proteger como u m a flor de estufa, e a evidente desconfiana do pai, mulherengo e assduo frequentador de primeiras filas do Parque Mayer e sequentes andanas pelos clubes nocturnos, p a r a quem ele no passava de u m a irremedivel desiluso, fraco como u m a menina, s bom para livros e estudos, algo entre o suspeito e o maricas. Durante muitos anos, J P conseguiu sem esforo estar sempre entre os primeiros naquilo em que se metia, o que no chegava p a r a lhe apaziguar as dvidas sobre a importncia que isso teria, em definitivo, face a tudo de que se sentia incapaz e em que, por isso mesmo, no se punha prova. A propsito de timidez, contou-me u m a vez J P o suplcio que foi p a r a ele, at bem tarde, a ida peridica ao barbeiro, quando u m a casual troca de olhares com a manicura ou qualquer anedota mais pesada contada por algum dos presentes lhe produziam imediato rubor que nem sequer podia disfarar, ali pregado cadeira, e pior ainda quando no encontrava palavras p a r a dissuadir a me de, terminado o circuito das compras, o passar a buscar como se fosse u m a criana, ali onde, j sem isso, se sentia u m estranho e temia que todos o olhassem como o pai, onde desconfiava estarem-se a tramar a cada momento misteriosas combinaes de adultos, ao ponto de o fazer associar a barbearia quase a u m local de perdio, coisa que, claro, ignorava o que fosse. De outra vez, mais mido, lembra-se do pai o ter levado ao caf, beira da estao do Rossio, onde passava todas as horas livres quando estava colocado em Lisboa ou nas redondezas, talvez u m dia em que o fosse levar ao futebol, ou quando desapareceu seis meses de casa e o ia pegar alguns sbados

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ao elctrico em que a me o trazia at ao Rossio, e logo havia de aparecer por l u m a cauteleira, pelos vistos velha conhecida do pai, que lhe ps as mos no ombro e o classificou alto e bom som de belo rapaz e com u m malicioso trejeito de boca lhe vaticinou que com uns olhos desses, ainda me vais sair pior do que o teu pai! Aproveita, menino, que a vida curta, enquanto ele se assoava apressadamente p a r a que ningum visse o sangue subir-lhe s faces. Enfim, ficaram-lhe tambm n a memria os terrveis trajectos de comboio p a r a o liceu, nos dias em que trazia fatos virados do avesso, com o estigma da algibeira no lado contrrio, coisa que imaginava atrair p a r a si as atenes comiseradas de todos os outros passageiros, e o obrigava a fazer a viagem de p, virado p a r a a porta. Isto passava-se em pocas de semipenria, quando o pai cortava nos gastos caseiros (vai tudo par a qualquer marafona, comentava a me p a r a quem a quisesse ouvir), e o dinheiro no chegava p a r a substituir o fato j coado. No liceu, J P esforava-se por descobrir, ele que nunca reparava em tais coisas, mais meia dzia de bolsos transviados, e olhava-os com terna cumplicidade. Mas, nesses dias, sempre se afastava dos amigos, temendo alguma piada, que no suportaria e que, de resto, nunca nenhum lhe deu. Teria preferido andar com os fatos n u m fio, como andavam muitos outros, a quem faltava o dinheiro mesmo para os mandar v i rar. Aquele bolso fora do lugar, sentia-o como u m a estrela de David. J bem entrado nos trinta, J P toca nisto ao de leve, n u m a das suas notas. Assim: Nos tempos em que i a ao futebol, observei u m a coisa curiosa. Quando a bancada estava superlotada e chegava u m retardatrio, este tomava u m a de trs atitudes. A primeira, a do 'conquistador': arrastando por vezes a mulher e os catraios, avanava p a r a o lugar que dizia ser o seu, cavalgava por cima dos ps dos j sentados e por fim exigia em altos berros o seu lugar, encaixava-se a ele e famlia, ainda soltava umas graolas de m a u gosto e preparava-se par a assistir ao jogo sem minimamente se preocupar para onde teriam ido os desalojados. A segunda, a do 'infeliz', que v i a tu-

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do coalhado de gente, no ousava sequer avanar e acabava por mal ver o jogo, de p n u m a das entradas, espreitando por entre os ombros de tipos mais altos, quase sempre perdendo os golos. Enfim, a terceira, a do 'cvico teimoso': este no prescindia do seu lugar sentado, mas estudava cuidadosamente com o olhar as vrias filas, descobria u m ponto onde era menor o aperto e s ento avanava sem hesitao at l chegar, pedia amavelmente p a r a 'darem u m jeito' e sentava-se sem mais problemas. Adolescente e j adulto, anos seguidos pertenci ao segundo grupo, felizmente que no era dos mais baixos. Depois, ganhei confiana, e passei ao terceiro: determinado, mas com a preocupao de no pisar ningum. Pisar o menos possvel, estaria mais certo.

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7 de Fevereiro D i z - m e a M . pelo telefone que m o r r e u o N u n o Bragana. O choque f o i muito p a r a alm do que eu prprio p o d e r i a antever: no sei catalogar a nossa relao, que de amizade no ter sido, mas apenas de nos sabermos sempre do mesmo campo e isso chegar p a r a nos abraarmos, talvez do fundo de alguma c u m p l i c i d a de fundamental, de cada vez que, de longe em longe, nos encontrvamos. No v o u esquecer a ltima vez que o v i , uns dois meses atrs, quando passou os Verdes Anos n a Cooperativa d a Graa. Nem a ltima vez que o l i , n u m artigo no J L , confisso pattica de alcolico enfim dolorosamente recuperado contrio quase r e l i giosa do seu ltimo pecado. O N u n o ter sido u m caso extremo (e i n curvel!) de desenraizamento social: aristocrata e catlico, revoltado desde sempre com a injustia e a opresso, que a sua classe e a sua religio ( h i e r a r q u i a , entenda-se) sustentavam, e de que v i v i a m . M u