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Rev Ass Med Brasil 1998; 44(3): 239-45 239 Artigo de Revisão Os plantões médicos, o sono e a ritmicidade biológica S. GASPAR, C. MORENO, L. MENNA-BARRETO Departamento de Fisiologia e Biofísica, ICB, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. UNITERMOS: Plantões médicos — desempenho, sono, ciclo vigília/sono, ritmos biológicos, cronobiologia. KEY WORDS: Shiftworking doctors — performance, sleep, sleep and wakefulness, biological rhythms, chronobiology. UMA INTRODUÇÃO AO PROBLEMA Em 1984, no New York City Hospital, uma jovem mulher, assistida por um residente que estava sem dormir por 32 horas, veio a falecer, produzindo na época um grande debate jurídico e social sobre a responsabilidade por tal morte. A justiça considerou que a fadiga e a falta de super- visão ao residente contribuíram significativamen- te para o fato. As discussões surgidas com esse acontecimento provocaram mudanças na organi- zação das jornadas de trabalho e no treinamento dos residentes, nos EUA, além de estimularem um aumento do número de pesquisas sobre os efeitos da privação aguda e crônica de sono no desempe- nho profissional, bem como sobre alterações fisio- lógicas e psicológicas de médicos submetidos a regime de plantões 1,2 . Nossa sociedade é, cada vez mais, uma socieda- de de 24 horas, o que exige um grande número de profissionais trabalhando durante a noite, inin- terruptamente. O trabalho médico, além de ser considerado difícil e de muita responsabilidade, possui um caráter essencial que o obriga a ser realizado nas 24 horas do dia, através de um regime de plantões, principalmente nas unidades hospitalares e nos serviços de emergência, envol- vendo um grande número de profissionais de di- versas especialidades. No Brasil, os regimes de plantão médico são variados, mas o mais comum são os turnos de 24 horas semanais. Em muitos locais, estes começam a noite após um dia normal de trabalho, o que muitas vezes leva os médicos envolvidos em tal regime a permanecer trabalhando quase sem dor- mir por mais de 36 horas. Entretanto, jornadas prolongadas com plantões noturnos mostram que- da no desempenho dos médicos, com dificuldade para manter um desempenho ideal para as tarefas a serem realizadas, além de freqüentes queixas de alterações de estados do humor com implicações significativas na vida profissional e pessoal. Estudos feitos com a população médica são pou- co numerosos, porém os realizados com a popula- ção em geral têm trazido importantes conhecimen- tos para a compreensão do estado de saúde de indivíduos em situações de trabalho, tanto em jornadas diurnas, quando se dorme durante a noite, como em situações de turnos alternantes ou plantões, quando ocorre uma dessincronização entre o ciclo vigília/sono e outros ritmos biológicos e o ciclo dia/noite e outros ciclos ambientais. Ferreira 3 argumenta que a mais importante contribuição da cronobiologia (ramo da biologia contemporânea que se ocupa do estudo da rit- micidade biológica) ao estudo da atividade huma- na no trabalho é a noção de variabilidade das funções biológicas ao longo das 24 horas do dia. Isso faz com que os trabalhadores respondam ou tendam a responder diferentemente a uma mesma situação de trabalho, conforme o momento do dia em que ela ocorra. Esse fato, por si só, já traz um dado importante, que se refere à variação do de- sempenho ao longo das 24 horas para qualquer pessoa. Quando nos referimos a turnos irregulares de trabalho, temos ainda outros fatores a associar- mos a essas variações de desempenho. A fadiga aguda ou crônica produzida por muitas horas de trabalho, associada à privação ou redução signifi- cativa das horas de sono, são os principais fatores que influenciam o desempenho do indivíduo. A espécie humana, como muitas outras, organi- za suas atividades segundo um ciclo de 24 horas. Oscilações da temperatura corporal, freqüência cardíaca, pressão sanguínea e respostas celulares para estímulos internos, tais como hormônios, sis- temas enzimáticos, neurotransmissores, eletró- litos e substratos metabólicos, também demons- tram ritmicidade circadiana 4 . Essa organização temporal resulta da atuação de fatores endógenos (relógios biológicos ou osciladores centrais) e de fatores ambientais (os sincronizadores ou zeitge- bers), e para a espécie humana os sincronizadores

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PLANTÕES: SONO E RITMOS

Artigo de Revisão

Os plantões médicos, o sono e a ritmicidade biológicaS. GASPAR, C. MORENO, L. MENNA-BARRETO

Departamento de Fisiologia e Biofísica, ICB, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.

UNITERMOS: Plantões médicos — desempenho, sono, ciclovigília/sono, ritmos biológicos, cronobiologia.

KEY WORDS: Shiftworking doctors — performance, sleep,sleep and wakefulness, biological rhythms, chronobiology.

UMA INTRODUÇÃO AO PROBLEMA

Em 1984, no New York City Hospital, umajovem mulher, assistida por um residente queestava sem dormir por 32 horas, veio a falecer,produzindo na época um grande debate jurídico esocial sobre a responsabilidade por tal morte. Ajustiça considerou que a fadiga e a falta de super-visão ao residente contribuíram significativamen-te para o fato. As discussões surgidas com esseacontecimento provocaram mudanças na organi-zação das jornadas de trabalho e no treinamentodos residentes, nos EUA, além de estimularem umaumento do número de pesquisas sobre os efeitosda privação aguda e crônica de sono no desempe-nho profissional, bem como sobre alterações fisio-lógicas e psicológicas de médicos submetidos aregime de plantões1,2.

Nossa sociedade é, cada vez mais, uma socieda-de de 24 horas, o que exige um grande número deprofissionais trabalhando durante a noite, inin-terruptamente. O trabalho médico, além de serconsiderado difícil e de muita responsabilidade,possui um caráter essencial que o obriga a serrealizado nas 24 horas do dia, através de umregime de plantões, principalmente nas unidadeshospitalares e nos serviços de emergência, envol-vendo um grande número de profissionais de di-versas especialidades.

No Brasil, os regimes de plantão médico sãovariados, mas o mais comum são os turnos de 24horas semanais. Em muitos locais, estes começama noite após um dia normal de trabalho, o quemuitas vezes leva os médicos envolvidos em talregime a permanecer trabalhando quase sem dor-mir por mais de 36 horas. Entretanto, jornadasprolongadas com plantões noturnos mostram que-da no desempenho dos médicos, com dificuldade

para manter um desempenho ideal para as tarefasa serem realizadas, além de freqüentes queixas dealterações de estados do humor com implicaçõessignificativas na vida profissional e pessoal.

Estudos feitos com a população médica são pou-co numerosos, porém os realizados com a popula-ção em geral têm trazido importantes conhecimen-tos para a compreensão do estado de saúde deindivíduos em situações de trabalho, tanto emjornadas diurnas, quando se dorme durante anoite, como em situações de turnos alternantes ouplantões, quando ocorre uma dessincronizaçãoentre o ciclo vigília/sono e outros ritmos biológicose o ciclo dia/noite e outros ciclos ambientais.

Ferreira3 argumenta que a mais importantecontribuição da cronobiologia (ramo da biologiacontemporânea que se ocupa do estudo da rit-micidade biológica) ao estudo da atividade huma-na no trabalho é a noção de variabilidade dasfunções biológicas ao longo das 24 horas do dia.Isso faz com que os trabalhadores respondam outendam a responder diferentemente a uma mesmasituação de trabalho, conforme o momento do diaem que ela ocorra. Esse fato, por si só, já traz umdado importante, que se refere à variação do de-sempenho ao longo das 24 horas para qualquerpessoa. Quando nos referimos a turnos irregularesde trabalho, temos ainda outros fatores a associar-mos a essas variações de desempenho. A fadigaaguda ou crônica produzida por muitas horas detrabalho, associada à privação ou redução signifi-cativa das horas de sono, são os principais fatoresque influenciam o desempenho do indivíduo.

A espécie humana, como muitas outras, organi-za suas atividades segundo um ciclo de 24 horas.Oscilações da temperatura corporal, freqüênciacardíaca, pressão sanguínea e respostas celularespara estímulos internos, tais como hormônios, sis-temas enzimáticos, neurotransmissores, eletró-litos e substratos metabólicos, também demons-tram ritmicidade circadiana4. Essa organizaçãotemporal resulta da atuação de fatores endógenos(relógios biológicos ou osciladores centrais) e defatores ambientais (os sincronizadores ou zeitge-bers), e para a espécie humana os sincronizadores

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sociais parecem ser os mais importantes, entreeles, especialmente, a jornada de trabalho.

O equilíbrio entre as influências dos sincro-nizadores e da organização temporal interna podeser perturbado por alterações agudas, tais comovôos transmeridianos, ou crônicas, como é o casodos trabalhos em regime de turnos, produzindouma quebra na sincronicidade dos diversos rit-mos internos, visto que esses ritmos não têm amesma velocidade de ajuste à nova realidadeexterna. Ferreira3 descreve que, a grosso modo,dois grandes grupos de variáveis vinculadas aosciladores centrais distintos — o ritmo vigília/sono, a resposta a alguns testes de desempenho, onível de adrenalina no sangue e o volume uri-nário — fazem parte, entre outros, daqueles quese ajustam rapidamente às mudanças, mas oritmo da temperatura central, o sono paradoxal(sono REM), as taxas urinárias de 17-hidro-xicorticosteróides se adaptam lentamente no de-correr de vários dias. Em função dessas diferen-tes velocidades de ajuste, ocorre uma dessin-cronização temporária, que, no caso dos trabalha-dores em turno, vai sofrendo novos ajustes con-forme vão ocorrendo as mudanças nos horários detrabalho. As dessincronizações produzidas pormudanças abruptas em jornadas de trabalho ouvôos transmeridianos se manifestam com o sur-gimento de distúrbios do sono, sensação de mal-estar, complicações gastrointestinais, flutuaçõesno humor e reduções no desempenho4.

Queixas relativas a problemas de sono são co-muns entre aqueles que trabalham sob escalas deplantão, as dificuldades para dormir durante o diasão muitas e os episódios de sono acabam sendomais curtos e não reparadores. Estudos polisso-nográficos de indivíduos adultos normais, adequa-damente sincronizados com trabalho diurno e sononoturno, mostram uma certa característica nacomposição do sono, quando, no primeiro terço danoite, ocorre uma concentração dos episódios desono profundo (fase 3 e 4 NREM) e, no terço final,uma predominância do sono paradoxal ou sonoREM. O sono REM tem uma freqüência de 4 a 5episódios por noite, com o primeiro deles ocorren-do entre 90 e 120 minutos e os próximos mantendouma periodicidade semelhante, porém, a cadanovo episódio de sono paradoxal, sua duraçãoaumenta5; já indivíduos que apresentam privaçõesagudas ou crônicas mostram variações nesseritmo, o sono diurno freqüentemente é mais curtoe não mostra a distribuição temporal típica dosdiferentes estágios de sono, nem mantêm a pro-porção normal desses estágios entre si, produzindoum sono deficitário6.

O sono diurno, por sua vez, é afetado por váriascondições sociais e familiares, o que pode ser ana-lisado através do EEG, que mostra uma acentuadadiminuição da fase 4 do sono de ondas lentas emúltiplos despertares de curta duração produzi-dos por ruídos de diversos tipos6 e também comoresultado da dessincronização dos ritmos inter-nos, particularmente os ritmos circadianos datemperatura central e do sono; o episódio de sonoque ocorre durante a fase ascendente da curva datemperatura produz um sono curto com alteraçõessignificativas na fase REM, que apresenta umadiminuição quantitativa na duração dos seus epi-sódios com o passar das horas de sono6.

Desde 1920, vários autores têm discutido priva-ção aguda e crônica de sono, privações totais ouseletivas e avaliações do desempenho pós-priva-ção. Embora os instrumentos de análise tenhamsido muito diferentes, produzindo resultados con-traditórios, há uma concordância entre váriospontos, como nos mostra Sales et al.2:

A) Efeitos neurofisiológicos: a) diminuição donível de vigilância, EEG de vigília com freqüênciasmais baixas e redução do ritmo alfa; b) desregu-lação autonômica: ativação nas primeiras fases deprivação aguda (aumento da freqüência respirató-ria e do pulso); nas privações prolongadas, p. ex.,superiores a 100 horas, a PA diastólica diminui aoinvés de aumentar como resposta a dor.

B) Efeitos sobre o desempenho: a) as tarefas querequerem atenção e concentração são afetadas; b)os efeitos são diretamente proporcionais à duraçãoda tarefa e à sua monotonia; c) redução da veloci-dade em tarefas nas quais o sujeito determina oseu próprio ritmo e aumento de erros naquelas emque o ritmo é ditado pelo experimentador; d) tantoas mudanças de conduta como diminuição do de-sempenho são mais pronunciadas nas primeirashoras da manhã.

C) Efeitos psicológicos: aumentos na incidênciade irritabilidade, bem como de condutas anti-so-ciais, têm sido descritos.

Embora as alterações no sistema fisiológicoestejam claramente demonstradas e validadaspor estudos científicos, aspectos psicológicos eproblemas comportamentais associados a essasalterações da ritmicidade são mais difíceis de serquantificados em função da subjetividade envol-vida. Cabe ressaltar, ainda, a existência dediferenças interindividuais e intra-individuais;aproximadamente um terço das pessoas sofresignificativamente com alterações temporais,enquanto no extremo oposto existe uma outraterça parte, para a qual os efeitos negativos sãomínimos4.

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O presente estudo visa rever esse tema, dentroda literatura médica atual, analisando trabalhospublicados entre l985 e 1996, encontrados nasfontes Medline e Current Contents/Life Sciences,que discutem os fatores que interferem no alerta eno desempenho dos médicos que trabalham sob oefeito da privação de sono, visto que é reconhecidoo fato de que a perturbação do ritmo circadiano,associada com a redução do sono, tem um papelimportante no desempenho humano, no alerta e nobem-estar.

ANÁLISE DAS RESPOSTAS PSICOMOTORASE NEUROPSICOLÓGICAS

Em função dos problemas para medir o desem-penho clínico, muitos dos estudos têm-se baseadoem testes neuropsicológicos. Isso traz, contudo,dificuldades, visto que é difícil a comparação deresultados em função da ampla variação das condi-ções experimentais. Outro aspecto a ser avaliado éque a maioria dos testes tem duração inferior atrês minutos, não permitindo comparações com assituações clínicas de trabalho, que são mais longase muitas vezes monótonas e repetitivas. Vale ain-da lembrar que o desempenho humano varia du-rante as 24 horas do dia, mesmo para pessoas nãosujeitas a privação de sono.

Orton e Gruzelier7 analisaram 20 residentes (14homens e 6 mulheres), com 25 anos de idade, emmédia, aplicando uma bateria de testes em duassituações, ambas no meio da tarde, uma delas apósuma noite de plantão seguida de um dia normal deatividade que se iniciava às 8:30 horas, e a outrana tarde de um dia normal de trabalho sem plantãona noite anterior.

Os testes usados no experimento foram: a) tem-po de escolha (choice reaction time); b) teste devigilância (vigilance reaction time); c) teste dediscriminação tátil (haptic test).

Nos testes de vigilância, que requerem manu-tenção da concentração, e no teste de discrimina-ção tátil, após uma noite de plantão, observam-semovimentos mais lentos, assim como um aumentosignificativo no tempo de resposta dos testes.

Em artigo de revisão, Samkoff e Jacques1 nãoencontraram, após uma noite de sono reduzido,deterioração da destreza manual e do desempenhono teste de escolha, em testes curtos. Esse é omesmo achado de Bartle, citado por Sales et al.2,no qual não aparecem mudanças nas provas quevalorizam concentração, clareza do pensamento esolução de problemas em testes com menos de trêsminutos de duração. Já Deaconson, também citadopor Sales et al.2, em seu trabalho com 26 residentes

testados durante 18 dias, mostrou que a privaçãode sono afeta o desempenho cognitivo e motor.

ESTUDOS DO HUMOR, AFETOS OU ATITUDES

Alguns estudos apontam para alterações dosestados do humor, afetos ou atitudes. No estudorealizado por Smith-Coggins et al.8, na Universi-dade de Stanford, com seis socorristas, analisandocinco tipos de estados subjetivos (sonolência, feli-cidade, tensão, clareza de pensamento e irritação),encontraram aumento da sonolência, diminuiçãoda felicidade e da clareza do pensamento, quandoos médicos trabalham à noite.

Orton e Gruzilier7, utilizando questionário doperfil dos estados subjetivos, com seis escalas (ten-são-ansiedade, depressão-desânimo, ansiedade-hostilidade, atividade-vigor, fadiga-inércia e con-fusão-desorientação), encontraram, após plantãonoturno, aumento em todos os valores nas diversasescalas, exceto na de atividade-vigor, que estavasubstancialmente diminuída.

No trabalho de Samkoff e Jacques1, no qual dezestudos foram revisados, vale ressaltar os achadosde Friedman com 14 residentes, com plantões emdias alternados, média de 1,8 hora de sono ao dia,que encontrou mais tristeza, menos egotismo eafeto social, usando o questionário modificado deJarvic, além de pequenas entrevistas seguidas detestes padronizados que mostraram: dificuldadeem pensar, depressão, irritabilidade, despersona-lização, afetos inapropriados e prejuízos de memó-ria. Ford e Wentz, num estudo longitudinal, ava-liaram, durante um ano, médicos em quatro mo-mentos: quatro de um total de 27 tiveram episódiode depressão maior, segundo os critérios do DSMIII, 11 afirmaram ter sentido depressões clínicas.Raiva, fadiga, tensão e confusão foram encontra-das no estudo de Sharp como tendo aumentadosignificativamente após seis meses de trabalho emplantões noturnos, num grupo de residentes. Seisoutros estudos mostram que os residentes referi-ram diminuição na eficiência do pensamento eimportantes distúrbios do humor, com mais de-pressão, mais fadiga, mais ansiedade e menosmotivação que o grupo-controle, após privação dosono.

Bartle et al., citado por Sales et al2., avaliando42 residentes de cirurgia fatigados (menos de 4horas de sono nas últimas 36 horas), e não fatiga-dos (mais de 4 horas de sono em 36 horas), concluí-ram que a privação de sono produz diminuição dovigor e sintomas de fadiga, depressão, angústia,tensão e confusão mental, ainda que a diferençaseja estatisticamente significativa apenas quando

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se considera o subgrupo de residentes que tinhamdormido menos que duas horas.

Estudos com medidas de estados de humor têmdemonstrado que sujeitos privados são mais afeta-dos quando comparados com sujeitos não privados.Embora significativos, esses resultados devem serentendidos como indicativos, pois foram obtidosatravés do procedimento de auto-avaliação, méto-do no qual os sujeitos podem, eventualmente, su-perestimar os efeitos da privação de sono sobre ohumor9.

ESTUDOS EM ATOS MÉDICOS REAISOU SIMULADOS

Estudos com atos médicos reais ou simuladostêm grande importância, pois permitem uma aná-lise mais precisa do trabalho de fato realizadopelos médicos durante suas atividades habituais,podendo, desta forma, comparar o desempenho notrabalho diurno e nos plantões noturnos, assimcomo num dia de trabalho após uma noite comprivação de sono.

Smith-Coggins et al.8 descrevem o desempenhode seis médicos socorristas, num exercício simula-do de intubação de manequim, quando foram ava-liadas a precisão e a rapidez. Ocorreu um aumentono tempo gasto para tal procedimento quando osmédicos trabalharam a noite toda (42,20 seg x31,56 seg, p=0,04). Por outro lado, a precisão doteste era a mesma tanto quando os avaliados dor-miam durante o dia e trabalhavam à noite, ou, aocontrário, dormiam à noite e trabalhavam duranteo dia. Observou-se, também, que os médicos, du-rante o trabalho noturno, não cumpriam parte dosprocedimentos necessários.

Cristensen et al., citados por Samkoff e Jacques1

e Sales et al.2, num estudo de 14 residentes sobcondições de fadiga, numa prova de reconhecimen-to de nódulos pulmonares em radiografias, con-cluíram que a fadiga não deteriorou a capacidadede busca e identificação dos nódulos, quando secompararam os resultados do grupo no início deum dia de trabalho com os resultados desse mesmogrupo após 15 horas de trabalho ininterrupto.

Em testes mais monótonos, como os realizadospor Friedman, também citado por Samkoff e Jac-ques1 e Sales et al.2, que observou residentes priva-dos de sono lendo registros de ECG por 30min,encontra-se um número duas vezes maior de errosdo que em situações sem privação.

Samkoff e Jacques1 e Sales et al.2 referem-se aotrabalho de Goldman, que analisou 33 cirurgiasusando um circuito fechado de TV, e observou queos residentes que tinham dormido menos que duas

horas na noite anterior tinham uma condição dedesempenho inferior aos demais residentes, e gas-tavam em média 30% a mais de tempo nos mesmosatos cirúrgicos.

ESTUDOS FISIOLÓGICOS

O trabalho realizado na Unidade de Emergênciado Centro Médico da Universidade de Stanford8 foio único encontrado em nossa revisão da literaturaem que aparecem dados polissonográficos de médi-cos. Nesse estudo, demonstrou-se que, quando osmédicos dormem durante o dia, permanecem me-nos tempo na cama (378min x 564min) e tambémdormem menos (328min x 496min). A análise daarquitetura do sono revelou que a fase de sono REMestava significativamente diminuída durante osono diurno, comparado com o sono noturno, prin-cipalmente na segunda metade do sono (37,4min x90min). Em contraste, não foram encontradas di-ferenças nas fases de sono de ondas lentas (SWS) ena composição total do sono.

A análise de outras quatro variáveis tambémmostrou diferenças consistentes entre as duascondições. Médicos que dormem durante o dia,após uma noite de plantão, adormecem mais rapi-damente do que quando trabalham durante o dia edormem à noite (8,7min x 27,4min, p = 0,08). Oinício do estágio 3 NREM é ligeiramente mais tardioem médicos que dormiram durante o dia (18,40minx 11,36min, p = 0,08). Médicos que dormem duran-te o dia tendem a ter menor duração de estágios 1e 2 de NREM; para o estágio 1 (29,1min x 46,5min,p = 0,13) e para o estágio 2 (163,1min x 241,5min,p = 0,06).

Do ponto de vista da análise das variações fisio-lógicas, citamos o trabalho de Bortkiewicz et al.10,que avaliaram 25 médicas (oito cirurgiãs e 17clínicas) lotadas no Pediatric Institute MedicalAcademic, de Lodz, na Polônia. Além de estudarcaracterísticas como as variações de parâmetrosfisiológicos, esses autores também estudaramessas variações relacionadas com a idade, compa-rando profissionais com até 40 anos (15 médicas)com outros com idades entre 41 e 59 anos (dezmédicas). Neste estudo foram observadas variá-veis como a pressão arterial, o eletrocardiogramae a força de contração voluntária das mãos. Asmedições foram realizadas em três momentos:antes de um dia de trabalho às 8:00 horas; após umplantão noturno e um dia normal de trabalho às 14horas e após uma noite de plantão às 8:00 horas.Os autores observaram reações fisiológicas distin-tas, comparando-se o trabalho diurno com o notur-no. A mudança nas reações consistiu de um peque-

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no aumento da PA, uma diminuição da freqüênciacardíaca e da atividade do sistema nervoso simpá-tico e parassimpático e apenas uma pequena dimi-nuição da força de contração voluntária das mãos.

Plantões, por sua vez, constituem uma maiorsobrecarga com aumento da freqüência cardíaca,grande atividade do sistema nervoso simpático euma considerável diminuição na força de contra-ção voluntária das mãos, observando-se que ocorreuma diminuição mais acentuada nesse item nasmédicas mais jovens, pois elas, ao iniciarem umdia de trabalho, apresentavam índices bem maio-res que os encontrados nas médicas com idadesuperior a 40 anos. Contudo, observa-se que, apósuma noite de plantão e um dia regular de trabalho,as médicas com menos de 40 anos apresentamvalores semelhantes aos apresentados pelo outrogrupo analisado.

Vários estudos com a população não-médica têmdemonstrado os efeitos deletérios da privação desono, evidenciando-se a presença de dois fatoresdiferentes: a fadiga aguda e os efeitos crônicos queproduzem uma dessincronização dos ritmos biológi-cos. Samkoff & Jacques1 citam um declínio nos resul-tados de testes psicológicos e de desempenho apósuma noite de perda de sono; esse declínio é maiorcom a cronicidade dessa redução. Os mesmos auto-res citam, ainda, que o desempenho pode ser bom empessoas privadas de sono, em função do aumento doesforço mental, particularmente em questões inte-ressantes; se elas envolvem habilidades motoras ouse incentivos são providenciados, contudo, testesmais prolongados, enfadonhos ou repetitivos podemser mais sensíveis à privação do sono.

Por outro lado, devemos ressaltar que o desem-penho humano nas atividades profissionais, rela-cionadas ou não com o trabalho de turnos ouplantões, é freqüentemente repetitivo, e as medi-das de tal desempenho podem sofrer pelo menostrês influências: 1) a repetição das tarefas, certa-mente, mobiliza processos ligados à motivação dosindivíduos, seja a novidade do início, seja o tédioda repetição; esses processos podem ser causas dasflutuações observadas nos resultados; 2) a repeti-ção pode causar fadiga, fato que tenderia a produ-zir resultados piores ao longo do tempo; 3) a repe-tição pode funcionar como um treinamento inten-sivo, o que tende a produzir resultados melhoresao longo do tempo11. Tais fatos são importantes, selevarmos em conta que a maioria dos testes fre-qüentemente usados para medidas de desempenhosão provas neuropsicológicas de curta duração querepresentam, também, uma novidade para o exa-minando, e são, normalmente, diferentes das ati-vidades profissionais exercidas2.

A eficiência do trabalho médico noturno, no qualo sujeito está privado de sono, sofre os efeitos dafadiga, o que se evidencia no aumento do tempopara realização de atos terapêuticos, bem como naqueda da sua qualidade, com negligências parauma série de procedimentos conforme o plantãoprossegue. A fadiga talvez seja, assim, um elemen-to com maior poder de comprometimento das açõesmédicas do que o efeito deletério que a privação desono causa sobre as funções cognitivas8.

Um achado compartilhado por diversos pesqui-sadores de sono, descrito por Pilcher e Huffcutt9,refere-se ao fato de que o desempenho cognitivoestá mais afetado pela privação do que o desempe-nho motor, e que o humor está muito mais afetadoque o desempenho cognitivo e motor analisadosseparadamente.

Há um consenso na literatura quando se analisaos efeitos da privação aguda ou crônica de sonosobre o humor na população em geral e em popula-ções médicas. São comuns o aparecimento de hos-tilidade, angústia, ansiedade, tensão, confusão,fadiga, depressão e um crescente aumento dossintomas depressivos2,4,7,8.

Samkoff e Jacques1, em revisão de estudos commédicos, relatam que os estados de humor sofremclaras mudanças com a diminuição do sono, encon-trando um aumento da hostilidade e raiva apósapenas uma noite de redução de sono. Observam,porém, que esse fato se agrava conforme aumen-tam os meses de trabalho com regime de plantãointercalado com jornadas diurnas regulares.

Dados referentes aos estados de humor, emborasubjetivos, são especialmente relevantes, em fun-ção da importância que a relação médico-pacientetem para o desenvolvimento da profissão, e o hu-mor pode desempenhar um papel significativo napercepção dos cuidados de saúde, afetando a habi-lidade dos médicos e prejudicando o funcionamen-to satisfatório da equipe de saúde, por vezes comefeitos deletérios para o paciente.

É importante reconhecer que a deterioração dodesempenho noturno pode ser afetada, tanto pelaredução aguda e crônica do sono como pela pertur-bação dos ritmos biológicos, quando o trabalho érealizado na fase “errada” destes. Vários são osestudos mostrando que o desempenho mental ànoite é comparável com o desempenho após consu-mo de álcool ou com o desempenho durante o diaapós privação de sono12.

Dormir durante o dia para repor o sono perdidodurante uma noite de trabalho pode ser uma ne-cessidade para muitas pessoas, mas o sono diurnoapresenta diferenças com relação ao sono noturno,as pessoas permanecem menos tempo na cama,

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efetivamente dormem menos, além de apresenta-rem uma redução no sono REM. Esses fatos, alémde fatores sociais, relacionam-se também com oritmo circadiano da temperatura. Estudos mos-tram que um sono mais prolongado ocorre quandodeitamos à noite, quando a temperatura centralestá baixando; por outro lado, um sono mais curtoocorre quando este começa de manhã, momento noqual a temperatura central está subindo.

CONCLUSÕES

Merecem atenção especial os médicos que tra-balham em plantões noturnos e, freqüentemen-te, fazem jornadas superiores a 30 horas, especi-almente nos dias em que acumulam um plantãonoturno intercalado entre dois períodos diurnosde trabalho. Esses esquemas de trabalho, razoa-velmente comuns na comunidade médica, produ-zem fadiga e favorecem o aparecimento de erros— é difícil manter um alto nível de desempenhono fim de um turno longo de trabalho. Na Ingla-terra e nos Estados Unidos, essa discussão temprovocado alterações na carga horária dos médi-cos residentes, estes por sinal, entre os médicos,as principais vítimas institucionais das longasjornadas de trabalho. O relato de um professorda Universidade de Manchester, James Wa-terhouse13 (comunicação pessoal), constitui umexemplo dessa discussão: “Jornadas excessivasde trabalho de médicos recém-formados eramrelativamente comuns, na Inglaterra, antes dadivulgação da recomendação do limite de 80 ho-ras semanais, em 1988. Nessa época, um médicoapresentou problemas neurológicos e responsa-bilizou o hospital onde trabalhava, atribuindoseu estado à jornada excessiva. A direção dohospital contestou a reclamação inicialmente,mas em seguida aceitou a responsabilidade atra-vés de acordo com o médico. Esses fatos ilustrambem a mudança de mentalidade que está ocor-rendo em nossos dias”.

No Brasil, essa discussão é ainda muito inci-piente, mas é importante que os médicos tenhamclareza da necessidade de cuidados no sentido deuma melhor preservação de sua saúde, mesmoquando estão sob regime de plantões.

A Fundação Européia para Melhoria das Condi-ções de Vida e de Trabalho12 recomenda que todosos envolvidos no trabalho (não apenas os médicos)sejam consultados no estabelecimento de umanova escala de turnos. Uma das recomendaçõesdessa Fundação para o trabalho médico é a sobre-posição de plantões, o que garante melhor qualida-de do atendimento.

Embora existam diferenças individuais naadaptação ao regime de trabalho em turnos — hásujeitos que toleram melhor esses esquemas —, éinegável o desgaste produzido pelos plantões, tan-to nas esfera profissional como na vida pessoal efamiliar. Os efeitos causados pela privação agudapodem ser mais fáceis de ser corrigidos, podendo osmédicos se preparar previamente, dormindo umsono curto nas horas que antecedem o trabalho, ouentão não trabalhando na manhã seguinte aoplantão. O acúmulo de plantões com poucas opor-tunidades de recuperação agrava os efeitos numadimensão que nem sempre é perceptível pelo indi-víduo. Sabe-se, hoje, que a exposição crônica ahorários irregulares de trabalho afeta a ritmi-cidade biológica, com conseqüências diversas, des-de distúrbios de humor e problemas de sono, atédesordens gastrointestinais e cardiovasculares(hipertensão).

A privação crônica de sono e a perturbação daritmicidade associada a ela provocam um aumentodo risco de acidentes de trabalho. Acidentes comcaminhões são mais prováveis de ocorrer nas pri-meiras horas da manhã; o desastre nuclear deThree Mile Island ocorreu por volta das 4:00 horasda madrugada; a fadiga foi um dos principaisfatores citados pelo National Transportation Sa-fety Board no acidente do Exxon Valdez. Essesfatos apontam para uma necessidade cada vezmaior de se estudar, compreender e propor solu-ções que permitam um melhor planejamento eorganização das escalas de trabalho, existindo,hoje, profissionais especializados que cumpremessa função, facilitando não só a organização dotrabalho como, também, contribuindo para umamelhor saúde daqueles que trabalham em turnos.

Numa época em que se discute muito a qualida-de dos produtos e serviços, cabe pensar critica-mente sobre os esquemas de horários e freqüênciasde plantões dos serviços de saúde. Nessa organiza-ção do trabalho médico, quase sempre feita porcolegas de profissão, encontramos jornadas e esca-las de trabalho que nem sempre respeitam osprincípios biológicos dos próprios médicos, assimcomo existem muitos profissionais que, por váriasrazões, fazem um grande número de plantões. Éfundamental uma ação preventiva para evitar so-brecargas e intensa fadiga com suas conseqüên-cias para a relação médico-paciente e para a qua-lidade de vida desses trabalhadores.

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